DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Dra. Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Dr. Jaime Carvalho Esteves e Dra. Adelaide Moura, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 9 de setembro de 2019, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., contribuinte fiscal nº..., cidadã alemã residente em ..., ..., Alemanha, doravante designada por “Requerente”, vem requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos conjugados do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e nos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
2. A Requerente pretende a anulação, parcialmente, do ato de liquidação de IRS nº 2019..., relativo ao ano de 2017, devendo ser reduzido o seu valor de 304 870,38 EUR para 152 435,19 EUR, bem como o pagamento de juros indemnizatórios vencidos e vincendos desde a data em que foi efetuado o pagamento do imposto.
3. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).
4. Em 28 de junho de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, em 5 de julho de 2019.
5. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo a Conselheira Fernanda Maçãs, a Dra. Adelaide Moura e o Dr. Jaime Carvalho Esteves, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação em 20 de agosto de 2019, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
6. O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 9 de setembro de 2019.
7. Em 14 de outubro de 2019, a Requerida apresentou a sua Resposta e procedeu à junção do processo administrativo (“PA”).
8. Em 17 de outubro de 2019 foi proferido despacho arbitral para notificação da Requerente para querendo, exercer contraditório em relação à Resposta da Requerida, quanto ao pedido de suspensão da instância.
9. A Requerente, em 28 de outubro de 2019 opôs-se ao pedido de suspensão da instância.
10. Por despacho arbitral de 15 de novembro de 2019, não existindo necessidade de produção de prova adicional, para além daquela que documentalmente já se encontra incorporada nos autos, e reunindo o processo todos os elementos necessários para prolação da decisão, por razões de economia e celeridade processual, da proibição da prática de atos inúteis, o Tribuna Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo notificado as partes para produzirem alegações escritas, no prazo de quinze dias e concedendo à Requerida a faculdade de juntar as suas alegações com carácter sucessivo relativamente às produzidas pela Requerente.
11. Foi designado o dia 6 de março de 2020 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.
12. Ambas as partes apresentaram alegações e mantiveram as posições anteriormente assumidas.
13. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, da seguinte forma:
a) Com referência ao ano de 2017, apresentou a sua declaração Modelo 3 de IRS, tendo na mesma evidenciado rendimentos de mais-valias resultantes da venda do prédio urbano denominado “Lote mil e trinta e seis”, situado na Urbanização de ..., freguesia de ... concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., daquela freguesia, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., adquirido por ela em 29 de abril de 1998.
b) A requerente vendeu o referido prédio urbano em 15 de setembro de 2017, tendo obtido um rendimento de mais-valias de 1.251.779,00 EUR, o que após a dedução das despesas, gerou um rendimento global de 1.088.822,00 EUR.
c) Apesar da Requerente não concordar com o valor do imposto apurado, efetuou o pagamento, de forma a evitar que fosse instaurado um processo executivo, com acréscimo de juros e despesas e risco de penhoras.”
d) A requerente entende que no apuramento do seu rendimento coletável, a AT não aplicou a regra constante do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS que prevê que as mais-valias imobiliárias obtidas por residentes em território português são tributadas em 50%.
e) Sendo certo que no artigo 72º do mesmo Código do IRS se estabelece que é tributada à taxa de 28% a totalidade dos rendimentos de mais valias obtidas por não residentes em Portugal.
f) Resultando dos referidos preceitos “um regime diferenciado entre residentes e não residentes em território português, criando um regime manifestamente mais favorável a residentes em território nacional”.
g) Assumindo tal diferenciação de regimes “maior relevância quando aplicada a residentes num Estado-Membro da União Europeia.
h) Esta divergência de regimes de tributação em função de os sujeitos passivos residirem, ou não, num Estado-Membro foi já apreciada “pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão de 11.10.2007, Processo C-443/06 denominado “Acórdão Hollmann”, no qual considerou que a norma do artigo 43º, nº 2 do CIRS português instituiu um sistema diferenciado e menos favorável para os não residentes em território nacional, constituindo um meio de descriminação arbitrária e uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais o que por sua vez viola o principio da não descriminação.”
i) “Neste sentido vai também o Supremo Tribunal Administrativo, no seu Acórdão datado de 16.01.2008, no processo nº 0439/2016, quando decidiu não só pela incompatibilidade de aplicação do preceito 43º nº2 CIRS, como inclusive pela sua violação do direito comunitário.”
j) “De igual modo tem decidido o Centro de Arbitragem Administrativa (doravante CAAD) no processo 520/2017-T datado de 4.06.2018; processo 644/2017-T datado de 30.05.2018; processo 45/2012-T datado de 05.06.2012, todos decididos no sentido da ilegalidade do ato praticado pela AT derivado pela manifesta incompatibilidade do artigo 43º nº2 CIRS com o artigo 63º e 65º do TFUE” (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).
14. Na sua Resposta a Requerida impugnou o pedido, em síntese, da seguinte forma:
a) “Tendo em conta o teor do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 11.10.2007, e no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão nele sufragada, foi aditado ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (n.º 9 à data dos factos).
b) “As declarações de rendimentos respeitantes aos anos fiscais de 2008 (em vigor a partir de janeiro de 2009) e seguintes, mais concretamente o Modelo 3, têm um campo para ser exercida opção pela taxa do artigo 68º do Código do IRS.”
c) Na “declaração Mod. 3 de IRS entregue em nome da Requerente, verifica-se que no quadro 8 B foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (residência em país da UE) e o campo 7 (pretende a tributação pelo regime geral aplicável aos não residentes).”
d) Tendo a Requerente declarado pretender a tributação pelo regime geral, foi este o regime que lhe foi aplicado “relativamente àquele ano, motivo pelo qual não foram tidos em conta apenas 50% da mais-valia apurada com a alienação do imóvel mencionado no quadro 4 do anexo G da declaração modelo 3 de IRS que entregou relativamente ao ano de 2017.”
e) “A decisão proferida no Acórdão Hollmann, refere-se a situações ocorridas na vigência da redação anterior à Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, do artigo 72º do Código do IRS.”
f) “Sobre a vigência das normas supra identificadas, veja-se a decisão arbitral proferida a 24-04-2019, no processo 539/2018-T” que decidiu a favor da Autoridade Tributária e Aduaneira questão semelhante à que que está em análise.
g) “A alteração legislativa introduzida ao do artigo 72º do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, não foi ainda alvo de apreciação pelo TJUE, em sede de reenvio prejudicial, para efeitos de apreciação do cumprimento das disposições conjugadas dos artigos 18.°, 63.°, 64.° e 65.° TFUE.”
h) O quadro normativo “passou a prever duas situações/possibilidades/alternativas de tributação do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, resultantes da diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição por alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.”
i) “A alteração introduzida ao artigo 72º do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, sanou o vício de que padecia a legislação nacional, nos termos julgados pelo” Acórdão Hollmann.
j) Em face de do reenvio prejudicial já suscitado no processo n.º 598/2018-T “deverá a presente instância arbitral ser suspensa (cf. artigo 29º do RJAT artigos 269º nº 1 alínea c) e nº 1 do artigo 272º do CPC) até notificação da decisão do TJUE no referido processo n.º 598/2018-T, a qual irá estabelecer interpretação vinculativa sobre a matéria, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE), a que o Estado Português se vinculou nos termos do TFUE.”
k) Quanto aos juros, “não se mostra verificado o preenchimento do requisito que exige a existência de um erro na liquidação imputável aos serviços, pois não se descortinou-nos termos constantes da presente informação - ter sido cometida, por aqueles, qualquer ilegalidade.”
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
III. FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA DE FACTO
1.1. FACTOS PROVADOS
Com relevo para a decisão da causa, atendendo às posições assumidas pelas partes, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
a) A Requerente, A... é cidadã alemã residente na Alemanha.
b) Apresentou a sua declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2017, tendo na mesma evidenciado rendimentos de mais-valias resultantes da venda do prédio urbano denominado “Lote mil e trinta e seis”, situado na Urbanização ..., freguesia de..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número..., daquela freguesia, inscrito na respetiva matriz sob o artigo..., adquirido por ela em 29 de abril de 1998.
c) A Requerente vendeu o referido prédio urbano em 15 de setembro de 2017, tendo obtido um rendimento de mais-valias de 1.251.779,00 EUR, o que após a dedução das despesas, gerou um rendimento global de 1.088.822,00 EUR.
d) A Requerente pagou o montante do imposto apurado pela Requerida no valor de 304 870,38 EUR.
e) No cálculo do imposto a Requerida não aplicou a regra constante do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, que prevê que as mais-valias imobiliárias obtidas por residentes em território português são tributadas em 50%.
f) O que levaria, segundo a Requerente, a uma redução de €304.870, 38 para €152.435, 19.
g) Em 15 de Março de 2019 foi criado o processo de divergência identificado pelo n.º ... relativo a declaração de IRS identificada pelo n.º ... submetida em nome de A... N.º..., tendo como motivo da irregularidade detetada a alienação de imóveis.
1.2. FACTOS NÃO PROVADOS E FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Não se verificaram quaisquer factos dados como não provados com relevância para a decisão arbitral.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo.
2. DO DIREITO
2.1.Da ilegalidade da liquidação
A) Das normas aplicáveis
Como ficou dito, a questão essencial a decidir gira em torno da exclusão da incidência de imposto de mais valias a 50% (tal como acontece com os residentes), obtida por um não residente em Portugal, mas residente num Estado Membro da União Europeia, e a sua desconformidade com o Direito Comunitário.
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, «constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de (...) alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis».
Porém, o n.º 5 do mesmo artigo prevê expressamente a exclusão de tributação das mais-valias resultantes da alienação de habitação própria e permanente quando haja aquisição de novo imóvel com a mesma finalidade e desde que observados determinados requisitos, aí indicados.
Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo 10.º, o ganho sujeito a tributação corresponde à diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição.
O valor de aquisição é corrigido pela aplicação do coeficiente de desvalorização monetária, acrescido dos encargos e despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação do imóvel (artigos 50.º e 51.º do CIRS).
O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano (artigo 43.º, n.º 1, do CIRS), mas, no caso de transmissões efetuadas por residentes o saldo «é apenas considerado em 50 % do seu valor» (n.º 2 do mesmo artigo, na redacção anterior à Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro).
Relativamente a residentes, sobre esse valor incidem as taxas gerais previstas no artigo 68.º do CIRS.
Relativamente a não residentes em território português, o artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do CIRS prevê a aplicação de uma taxa autónoma especial de 28%, aplicável à totalidade das mais-valias.
Porém, «os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português» (n.º 9 do artigo 72.º na redacção da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro, vigente em 2017). De harmonia com o n.º 10 deste artigo «para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes».
No caso em apreço, para Requerente, os preceitos mencionados evidenciam um regime diferenciado entre residentes e não residentes em território português, criando um regime manifestamente mais favorável a residentes em território nacional, com violação do Direito da União, como vem sendo defendido pelo TJUE, em especial no Acórdão de 11.10.2007, processo C-443/06, denominado “Acórdão Hollman”.
Para a Requerida, a Requerente podia ter optado pela tributação das mais valias à taxa legal aplicável no caso de serem auferidas por residentes em território português, sendo que a determinação da taxa teria em conta todos os rendimentos incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aso residentes, o que não fez.
Além do mais, alega a Requerida, que o regime inicial do artigo 72.º do CIRS foi considerado incompatível com o Direito da União Europeia pelo acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-443/06 (acórdão Hollmann). Acontece que com a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, os n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º do Código do IRS passaram a prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas, já não APENAS para os residentes em Portugal, mas TAMBÉM para os não residentes, desde que residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu. Para a Requerida, a alteração legislativa introduzida ao do artigo 72º do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, não foi ainda alvo de apreciação pelo TJUE, em sede de reenvio prejudicial, para efeitos de apreciação do cumprimento das disposições conjugadas dos artigos 18.º, 63.º, 64.º e 65.º Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Conclui a Requerida que é de fazer reenvio prejudicial sobre a compatibilidade da redacção do artigo 72.º introduzida pela Lei n.º 67-A/2007 com os artigos 18.º, 63.º, 64.º e 65.º Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que o TJUE considerou violados pela redacção anterior, sobretudo tendo em conta o reenvio prejudicial já suscitado na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 598/2018-T.
A Requerente afirmou a desnecessidade de reenvio prejudicial por que, em suma, a jurisprudência do TJUE é clara no sentido de ser considerado discriminatório relativamente a residentes em Estados Membros da União Europeia um regime mais gravoso do que o aplicável aos residentes em território português, mesmo que lhes seja permitida a possibilidade de opção pelo regime aplicável aos residentes.
Vejamos.
B) Quanto ao pedido de reenvio
Esta questão foi abordada, nos precisos termos em que se coloca no presente caso, na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 600/2018-T, nos termos que passamos a reproduzir, por coincidir com a orientação deste Tribunal.
O artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia estabelece o seguinte:
Artigo 63.º
(ex-artigo 56.º TCE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
“O TJUE considerou incompatível o com o Direito da União, por se tratar de um tratamento diferenciado incompatível com a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (anterior artigo 56.º), o regime do artigo 72.º, n.º 1, do CIRS, na redacção anterior à Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, no processo C-443/06, acórdão de 11-10-2007, Hollmann versus Fazenda Pública, por tributar as mais-valias de contribuintes não residentes a uma taxa fixa (em 2017, de 28 %), enquanto os residentes estão sujeitos a um imposto progressivo sobre o rendimento.
Nesse acórdão entendeu-se que é incompatível com a norma que assegura aquela liberdade de circulação de capitais ( ) um regime que «sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efectuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel».
Esta jurisprudência foi recentemente reafirmada no Despacho do TJUE (sétima secção) de 06-09-2018, processo C 184/18, em que se entendeu que «uma legislação de um Estado Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado Membro, efetuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais valias realizadas por um residente naquele Estado Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela exceção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia».
No entanto, esta última decisão foi também proferida tendo como pressuposto a redacção do artigo 72.º introduzida pela Lei n.º 109 B/2001, de 27 de Dezembro, anterior à Lei n.º 67-A/2007.
Assim, como diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, não há jurisprudência específica do TJUE sobre a compatibilidade do regime introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, nos n.ºs 7 e 8 do CIRS com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
No entanto, o TJUE entendeu naquele acórdão do processo C-443/06, que o essencial da incompatibilidade do regime do artigo 71.º, n.º 1, com o direito de União resulta de instituir «um tratamento fiscal desigual para os não residentes, na medida em que permite, no caso de realização de mais valias, uma tributação mais gravosa e, por isso, uma carga fiscal superior à que é suportada pelos residentes numa situação objectivamente comparável» (§ 54).
Na mesma linha, decidiu o TJUE no acórdão de 19-11-2015, processo C-632/13 (Skatteverket contra Hilkka Hirvonen) que «a recusa, no quadro da tributação dos rendimentos, em conceder aos contribuintes não residentes, que auferem a maior parte dos seus rendimentos no Estado de origem e que optaram pelo regime de tributação na fonte, as mesmas deduções pessoais que são concedidas aos contribuintes residentes, no quadro do regime de tributação ordinária, não constitui uma discriminação contrária ao artigo 21.º TFUE quando os contribuintes não residentes não estejam sujeitos a uma carga fiscal globalmente superior à que recai sobre os contribuintes residentes e sobre as pessoas que lhes são assimiladas, cuja situação seja comparável à sua».”
Revertendo ao caso em apreço, o que essencialmente releva para este efeito é saber se existe ou não uma discriminação negativa na aplicação à Requerentes do regime que lhe foi aplicado.
Afigura-se claro que, como referido na Decisão Arbitral que estamos a seguir, “o regime previsto por defeito (na falta de opção) no n.º 1 do artigo 72.º é mais oneroso para os não residentes do que para os residentes, pois enquanto a taxa máxima aplicável às mais-valias realizadas por residentes é de 24% do seu valor (taxa máxima de 48% prevista no artigo 68.º, aplicável a 50% do saldo das mais-valias), a taxa prevista no n.º 1 do artigo 72.º do CIRS é de 28%, aplicável à totalidade do saldo.
“ Na verdade, à matéria tributável de cada Sujeito Passivo no valor de € 108.085,28 correspondeu IRS no valor de € 30.263,88 à taxa de 28%, aplicável aos não residentes enquanto mesmo aplicando a taxa máxima de 48% (e a taxa média é necessariamente menor pois a cada escalão corresponde a respectiva taxa) a metade daquela matéria tributável o IR a pagar por cada um dos Sujeito Passivo seria de € 25.940,47 (108.082,28 / 2 x 48%).
“Mesmo considerando a taxa adicional de solidariedade prevista no artigo 68.º-A, n.º 1, do CIRS de 2,5% aplicável à parte que excede 80.000 [(108.085,28 - 80.000) x 2,5% = 702,13] e a já extinta sobretaxa extraordinária de 3,21%, prevista no artigo 194.º, n.º 3, da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, aplicável à parte que excede o valor anual da retribuição mínima mensal garantida de 7.798,00 ( ) [(108.085,28 – 7.798) x 3,21% = 3.219,22), conclui-se que aplicando o regime dos residentes cada um dos Requerentes pagaria € 29.861,82 (25.940,47 + 702,13 + 3.219,22), menos do que o valor de € 30.263,88 que foi liquidado a cada um dos Requerentes.”
Ora, aplicando o raciocínio mencionado, ao caso em apreço, afigura-se existir razão à Requerente quando argumenta que “no apuramento do seu rendimento coletável, a AT não aplicou a regra constante do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, que prevê que as mais-valias imobiliárias obtidas por residentes em território português são tributadas em 50%.”
“Sendo certo que no artigo 72º do mesmo Código do IRS se estabelece que é tributada à taxa de 28% a totalidade dos rendimentos de mais valias obtidas por não residentes em Portugal.”
Para a Requerente, resulta dos referidos preceitos “um regime diferenciado entre residentes e não residentes em território português, criando um regime manifestamente mais favorável a residentes em território nacional”.
Assumindo tal diferenciação de regimes “maior relevância quando aplicada a residentes num Estado-Membro da União Europeia.
Posto isto, “(…) é seguro que o regime de tributação a taxa liberatória previsto no artigo 72.º do CIRS, na redacção vigente em 2017, é incompatível com o referido artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, pois torna a transferência de capitais menos atractiva para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado.”
Foi este regime negativamente discriminatório para os não residentes que foi aplicado na liquidação impugnada.
Como consignado na Decisão Arbitral que estamos a seguir, “O facto de actualmente este regime poder ser afastado pelos sujeitos passivos, se manifestarem uma opção, não afasta a discriminação negativa, pois é nele imposta uma obrigação de opção que não é extensiva aos residentes.
“Para além disso, na linha do que entendeu o TJUE no acórdão de 18-03-2010, processo C-440/08 (F. Gielen contra Staatssecretaris van Financiën), a propósito de uma questão paralela de eventual relevância da possibilidade de opção de afastamento de um regime discriminatório (no caso relativamente ao artigo 49.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), a conclusão de que ocorre incompatibilidade «não é posta em causa pelo argumento de que os contribuintes não residentes podem optar pela equiparação, que lhes permite escolher entre o regime discriminatório e o regime aplicável aos residentes, dado que essa opção não é susceptível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório. Por outro lado, um regime nacional que limite a liberdade de estabelecimento é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa. Decorre do exposto que a escolha concedida ao contribuinte não residente através da opção de equiparação, não neutraliza a discriminação».
“No mesmo sentido se pronunciou o TJUE no acórdão de 28-02-2013, processo C-168/11:
“62 Mesmo admitindo que tal sistema seja compatível com o direito da União, resulta contudo da jurisprudência que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode permanecer incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, acórdão de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 162, e de 18 de março de 2010, Gielen, C-440/08, Colet., p. I-2323, n.º 53). A este respeito, a existência de uma opção que permitiria eventualmente tornar uma situação compatível com o direito da União não tem assim por efeito sanar, por si só, o carácter ilegal de um sistema, como o previsto pela regulamentação controvertida, que compreende um mecanismo de tributação não compatível com este direito. Importa acrescentar que tal ocorre por maioria de razão no caso em que, como no caso em apreço, o mecanismo incompatível com o direito da União é aquele que é automaticamente aplicado na inexistência de escolha efetuada pelo contribuinte.
“Ainda no mesmo sentido se pronunciou o TJUE no acórdão de 08-06-2016, processo C-479/14:
“42. Relativamente ao caráter facultativo do referido mecanismo de tributação, há que sublinhar que, mesmo admitindo que esse mecanismo seja compatível com o direito da União, é jurisprudência constante que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode continuar a ser incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa. A existência de uma opção que permitisse eventualmente tornar uma situação compatível com o direito da União não tem por efeito sanar, por si só, o caráter ilegal de um sistema, como o que está em causa, que continua a comportar um mecanismo de tributação não compatível com este direito. Importa acrescentar que tal ocorre por maioria de razão no caso de, como no processo em apreço, o mecanismo incompatível com o direito da União ser aquele que é automaticamente aplicado na falta de escolha efetuada pelo contribuinte (v., neste sentido, acórdão de 28 de fevereiro de 2013, Beker, C 168/11, EU:C:2013:117, n.º 62 e jurisprudência referida).
“É à luz desta jurisprudência que há que apreciar a pretensão da Autoridade Tributária e Aduaneira de reenvio prejudicial.
“Nos termos do art. 8.º, n.º 4, da CRP «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
“Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do TFUE (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões conexas com o Direito da União Europeia ( ). E, quando se suscita uma questão de interpretação e aplicação de Direito da União Europeia, os tribunais nacionais devem colocar a questão ao TJUE através de reenvio prejudicial.
“No entanto, quando a lei comunitária seja clara e quando já haja um precedente na jurisprudência europeia a interpretação do Direito da União Europeia resulta já da jurisprudência do TJUE não é necessário proceder a essa consulta, como o TJUE concluiu no Acórdão de 06-10-1982, Caso Cilfit, Proc. 283/81. Até mesmo quando as questões em apreço não sejam estritamente idênticas (doutrina do acto aclarado) e quando a correcta aplicação do Direito da União Europeia seja tão óbvia que não deixe campo para qualquer dúvida razoável no que toca à forma de resolver a questão de DUE suscitada (doutrina do acto claro) (idem, n.º 14).
“No caso em apreço, conclui-se com segurança da reiterada jurisprudência do TJUE que a ilegalidade da aplicação do regime discriminatório não é sanda pela possibilidade do seu afastamento, o que dispensa a necessidade de reenvio prejudicial.
“Aliás, o Supremo Tribunal Administrativo, no recente acórdão de 20-02-2019, processo n.º 0901/11.0BEALM 0692/17, sem aventar a necessidade de reenvio, concluiu pela ilegalidade do regime que resulta da conjugação do artigo 43.º, n.º 2, com o artigo 72.º do CIRS, relativamente a uma situação em que as mais-valias foram realizadas em 2010, portanto já na vigência da recurso da Lei n.º 67-A/2007.”
Termos em que, é de concluir pela ilegalidade da tributação nos termos em que foi efectuada na liquidação impugnada, o que justifica sua anulação parcial, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
2.2.Quanto aos juros indemnizatórios
Como referido, a Requerente, apesar de não concordar com o valor de imposto apurado, procedeu ao respectivo pagamento, solicitando agora juros indemnizatórios. Tendo-se concluído pela ilegalidade da liquidação ora impugnada, estão preenchidos os requisitos, quer da devolução do imposto indevidamente pago, quer do pagamento de juros indemnizatórios.
Quanto à primeira situação, a mesma decorre do regime jurídico fixado no artigo 100.º da LGT, o qual determina que:
A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.
Nos mesmos termos, sendo de proceder o pedido de anulação parcial da liquidação impugnada, importa que seja reconhecido o direito da Requerente a juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, n.º1, da LGT.
Com efeito, o regime substantivo do direito a tais juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3 – São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
4 – A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5 – No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.
Os juros indemnizatórios serão calculados à taxa legal e pagos nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT, do artigo 24.º, ns. 1 e 5, do RJAT, do artigo 61.º, n.ºs 3 e 4, do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e das Portarias que fixam a taxa legal.
IV. Decisão
Termos em que se acorda neste Tribunal Arbitral:
a. Julgar procedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade parcial do ato tributário impugnado, com a consequente anulação parcial da liquidação de IRS n.º 2019...;
b. Condenar a Requerida a restituir o imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, fixados à taxa legal, a contar da data em que foi efectuado o pagamento.
V. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º1, do CPC e 97.º-A, n.º1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º2, do Regulamento Geral de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €152. 435, 19.
VI. Custas
Conforme o disposto no artigo 24.ºdo RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 3 de Abril, de 2020.
Os árbitros,
Fernanda Maçãs (presidente)
Drª Adelaide Moura (vogal)
Dr. Jaime Carvalho Esteves (vogal)