Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 128/2014-T
Data da decisão: 2014-10-10  IUC  
Valor do pedido: € 253,00
Tema: Incidência subjetiva
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Decisão Arbitral

 

I.              RELATÓRIO

A..., S.A., sociedade com sede na Rua …, Lisboa, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, doravante simplesmente designado Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a anulação de 6 (seis) actos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes aos exercícios de 2009 a 2012, no valor total de € 253,00, bem como reembolso de igual montante, relativo ao imposto pago e ao pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios.

Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:

a)             A Requerente é uma instituição de crédito, sendo que, no âmbito da sua actividade, concede financiamento ao sector automóvel;

b)             Os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas encontravam-se dados em locação financeira;

c)             À data da ocorrência do facto gerador do imposto, a Requerente já não era proprietária dos veículos dados em locação financeira;

d)            Tendo estes sido vendidos aos anteriores locatários, pese embora não tenha sido alterado o respectivo registo de propriedade;

e)             Motivo pelo qual não pode, a Requerente, assumir a qualidade de sujeito passivo do imposto;

f)              Contudo, ainda que assim não fosse, nunca a Requerente poderia ser havida como sujeito passivo do IUC, porquanto sobre os veículos em questão incidiam contratos de locação financeira, o que implica ser o locatário o sujeito passivo e, consequentemente, o responsável pelo pagamento do imposto;

g)             A AT considera que a Requerente, enquanto entidade locadora dos veículos, é a responsável pelo pagamento do IUC;

h)             Nos termos do artigo 3º do CIUC, o locatário é equiparado ao proprietário do veículo para ser considerado sujeito passivo de IUC;

i)               A falta de registo não afecta a validade dos contratos de compra e venda celebrados mas apenas a sua eficácia e, mesmo esta, apenas perante terceiros de boa-fé, qualificação que a AT não assume;

j)               A AT não pode ser considerada um terceiro para efeitos de registo, por via de que, os contratos de compra e venda e de locação financeira lhe seriam inoponíveis;

k)             O legislador optou por privilegiar o critério da propriedade económica, em detrimento da propriedade jurídica;

l)               Nos termos do n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, cabendo aos locatários o gozo exclusivo do veículo, cabe-lhes também a eles a obrigação de pagar o imposto;

m)           No caso das 6 liquidações em crise, a Requerente não é sujeito passivo de IUC;

n)             As liquidações não se encontram fundamentadas.

A Requerente juntou 4 anexos e 4 documentos, não tendo arrolado testemunhas.

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 2 a) do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

O tribunal arbitral foi constituído em 17 de Abril de 2014.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, alegando, em síntese, o seguinte:

a)             O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que são sujeitos passivos do IUC os proprietários, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;

b)             O artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção de propriedade, mas uma verdadeira ficção de propriedade – o legislador não diz que se presumem proprietários mas que se consideram proprietários;

c)             Embora a Requerente alegue que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários a que se referem as liquidações controvertidas, a verdade é que a prova por si apresentada não permite concluir pela necessária transmissão dos veículos;

d)            As facturas juntas não constituem documento idóneo para comprovar a venda dos veículos em causa, uma vez que mais não são do que documentos unilateralmente emitidos pela Requerente;

e)             A falta de inscrição no registo das alterações de propriedade ou das situações de locação tem como consequência que a obrigação de pagamento do IUC recaia no proprietário inscrito, não podendo a AT liquidar o imposto com base em elementos que não constem do registo;

f)              O IUC é devido pelas pessoas que constam no registo como proprietárias dos veículos;

g)             Quanto aos contratos de locação financeira, a falta de cumprimento da obrigação prevista no artigo 19º do CIUC faz impender sobre a Requerente a responsabilidade pelas custas arbitrais.

A Requerida juntou 3 documentos e cópia do processo administrativo, não tendo arrolado nenhuma testemunha.

Atenta a posição assumida pelas partes e não existindo necessidade de produção adicional de prova, determinou-se a não realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, tendo-se fixado prazo para produção sucessiva de alegações por escrito; o que as Partes vieram a fazer no prazo para tanto fixado.

 

II.              QUESTÕES A DECIDIR

Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:

a.         Apurar quem é sujeito passivo de IUC se, na data da verificação do facto gerador do imposto, vigorar contrato de locação financeira que tenha por objecto veículo automóvel;

b.         Apurar quem é sujeito passivo de IUC quando, na data da verificação do facto gerador do imposto, o veículo automóvel primitivamente objecto de contrato de locação financeira tiver já sido alienado;

c.         Apurar qual o valor jurídico do registo automóvel em sede de IUC, maxime para efeitos da incidência subjectiva do imposto;

d.        Determinar se a não actualização do registo automóvel permite considerar, como sujeitos passivos de IUC, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;

e.         Apurar quais as consequências do incumprimento do disposto no artigo 19.º do CIUC;

III.              MATÉRIA DE FACTO

a.         Factos provados

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:

1.        A Requerente é uma instituição financeira de crédito;

2.        No âmbito da sua actividade, a Requerente concede aos seus clientes financiamento com vista à aquisição de veículos automóveis;

3.        O sobredito financiamento é, as mais das vezes, formalizado através da celebração de contratos de locação financeira;

4.        Durante o período de execução daqueles contratos, a Requerente mantém a posição jurídica de locadora;

5.        A Requerente foi notificada de 6 actos de liquidação de IUC relativos aos anos de 2009 a 2012, no valor global de € 253,00;

6.        Nenhum dos 6 veículos pertence às categorias F ou G a que alude o artigo 4.º do CIUC;

7.        As 6 liquidações referem-se a veículos em relação aos quais, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida, pela Requerente, uma factura de venda a terceiro;

8.        A Requerente pagou o imposto liquidado pela Requerida e espelhado nas liquidações ora impugnadas; o que fez ao abrigo do Regime Excepcional de Regularização de Dividas Tributárias e à Segurança Social, instituído pelo Decreto-Lei n.º 151-A / 2013.

b.        Factos não provados

Com interesse para os autos, nenhum outro facto se provou.

c.         Fundamentação da matéria de facto

A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pela Requerente, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada.

IV.              CUMULAÇÃO DE PEDIDOS

Atento o elevado número de viaturas e o volume de documentação necessária para comprovar os factos que alega, vem a Requerente, invocando o princípio da economia processual, pedir um juízo de ilegalidade que abranja os 6 actos de liquidação de imposto ora em apreço.

Ora, conquanto se não esteja perante um “elevado numero de viaturas”, verifica-se a identidade da natureza dos factos tributários, dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão, nada obstando a que, nos termos do artigo 3.º do RJAT e do artigo 104.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário, se proceda à pretendida cumulação de pedidos.

V.              SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas.

O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade, não existindo excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

VI.              DO DIREITO

Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.

Compulsada a argumentação expendida pelas Partes, facilmente se intui a questão de fundo ora em causa: saber se a norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC contém ou não uma presunção legal; questão que ademais tem suscitado profusa jurisprudência – também arbitral – que, oportunamente, aqui se trará.

Sob a epígrafe incidência subjectiva, o artigo 3.º do CIUC dispõe que:

1. – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2. – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação

Ora, dissipar as dúvidas sobre o sentido e o alcance a atribuir a determinada norma jurídica implica levar a cabo uma tarefa interpretativa que permita retirar do enunciado linguístico um concreto sentido ou conteúdo de pensamento([1]). Contudo, tal tarefa apenas se pode cumprir – assim se logrando apreender a vis ac potestas legis – através da utilização de um concreto método, que se estriba na interpretação literal, por um lado, e na interpretação lógica ou racional, por outro.

Recorde-se, antes de avançarmos, que de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, as normas tributárias se interpretam de acordo com os princípios de hermenêutica jurídica comummente aceites, maxime os fixados, entre nós, no artigo 9.º do Código Civil. Prossigamos.

A interpretação literal apresenta-se, então, como o primeiro estádio da actividade interpretativa. Como refere FERRARA, “o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete([2]).

Na verdade, uma vez que a lei se encontra expressa em palavras, deve, então, delas ser extraída a significância verbal que contêm, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais. Porém, sendo as palavras empregues pelo Legislador equívocas ou indeterminadas, será forçoso recorrer à interpretação lógica, que atende ao espírito da disposição a interpretar.

A interpretação lógica, tal como vem sendo pacificamente figurada pela doutrina([3]), estriba-se no elemento racional, no elemento sistemático e no elemento histórico; ponderando-os e deles deduzindo o valor da norma jurídica em apreço.

Por elemento racional há-de entender-se a raison d´être da norma jurídica, i.e., a finalidade para a qual o legislador a instituiu. A descoberta da ratio legis apresenta-se, assim, como um factor de indubitável importância para a determinação do sentido da norma.

Sucede, porém, que uma determinada norma não existe isoladamente, antes convive com as demais normas e princípios jurídicos de forma sistemática e complexa. Assim, natural se torna que o sentido de uma concreta norma resulte claro da confrontação desta com as demais. Como refere BAPTISTA MACHADO, “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.([4]).

Já o elemento histórico, por seu turno, há-de reportar-se e incluir os materiais conexos com a história da norma, tais como “a história evolutiva do instituto, da figura ou do regime jurídico em causa (…); as chamadas fontes da lei, ou seja os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador na elaboração da lei (…); os trabalhos preparatórios.”.

Apliquemos, então, o que se vem dizendo ao caso vertente.

Compulsados os argumentos de Requerente e Requerida, e no que tange ao elemento literal, facilmente se compreende que o foco de dissenso reside na expressão “(…) considerando-se como tais (…)”, contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.

Pergunta-se – como de resto se fez na Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T([5]): “O facto do legislador ter optado pelo vocábulo “considerando-se” destrói a possibilidade de estarmos perante uma presunção?”. Não. É a resposta que, cremos, se impõe. E nem se venha dizer que tal conclusão vai infirmada pela circunstância de o legislador não ter utilizado o vocábulo “presumem-se”, que empregou no vetusto Regulamento do Imposto Sobre Veículos.

Também aqui não podemos deixar de sublinhar o que naquela decisão ficou dito: “examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º n.º 2, 374.º n.º 1, 376.º n.º 2, 1629.º (…). Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo. E ali se acrescenta o ensinamento de LEITE DE CAMPOS, SILVA RODRIGUES e LOPES DE SOUSA que, pela clareza de exposição, igualmente se transcreve. Assim, escrevem os Autores que “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.

A este propósito, JORGE LOPES DE SOUSA([6]) refere que no n.º 1 do artigo 40.º do Código do IRS se utiliza a expressão “presume-se, ao passo que no n.º 2 do artigo 46.º do mesmo diploma se faz uso do vocábulo “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.

E que dizer do n.º 4 do artigo 89.º-A? Acaso dúvidas subsistem de que se trata de uma presunção? E tal conclusão sai fragilizada pelo facto de ali se empregar o verbo considerar? Não nos parece.

Assim, e ao que aqui nos interessa, revela-se admissível assimilar o verbo considerar ao verbo presumir. Com efeito, podemos estar perante uma presunção mesmo quando o legislador haja optado por outros verbos, nomeadamente pelo verbo considerar. Na verdade, e ao invés do propugnado pela Requerida, é esta a conclusão que menos belisca a coerência sistemática postulada pelo ordenamento jurídico como um todo.

Mas mais: também o elemento racional autoriza semelhante conclusão.

Convoquemos a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X, de 07/03/2007, que originou a Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, porquanto dali resulta clara a ratio legis.

Pretendeu-se empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” em função da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.

Assim, “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.

De forma congruente àquela motivação, o legislador veio a consagrar, no artigo 1.º do CIUC, o princípio da equivalência, ficando claro “que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.

Pode, aliás, dizer-se que as preocupações ambientais e energéticas são tão impressivas em sede de IUC, que o princípio da equivalência molda não apenas a base tributável, mas também, e sobretudo, a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º.

Uma vez mais se convoca a Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T: “Tendo em conta quer o lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa (artigo 1.º do CIUC) – elemento sistemático – quer o elemento histórico corporizado pela Proposta de Lei n.º 118/X (fonte de lei), quer o racional (ou teleológico) acabado de analisar, todos apontam no sentido da conclusão preliminar a que chegámos aquando da análise do elemento gramatical, só fazendo sentido conceber no contexto do artigo 3.º do CIUC a expressão “considerando-se como tais” como reveladora da presença de uma presunção ilidível (…). Na verdade, a ratio legis do imposto antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o proprietário económico, no dizer de DIOGO LEITE DE CAMPOS, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade”.

Assente que fica a natureza jurídica da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, cumpre agora clarificar a questão da incidência subjectiva do imposto durante o período de vigência de um contrato de locação financeira.

Antes, porém, e para melhor dilucidar a questão que ora nos ocupa, deve sublinhar-se que, na vigência de um contrato de locação financeira, não obstante o locador manter na sua esfera jurídica a propriedade do bem locado, apenas ao locatário assiste o direito de gozar, de forma exclusiva, o bem locado; o que resulta da leitura conjugada do artigo 1.º, da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º, todos do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho.

Ora, uma vez que é ao locatário que assiste o potencial de utilização do veículo, e atento o princípio informador do IUC – consagrado no artigo 1.º do respectivo Código –, facilmente se compreende que seja o locatário o onerado com a obrigação de imposto por via da sua qualificação como sujeito passivo, através da sua equiparação a proprietário. É este, ao que ora nos importa, o sentido a retirar dos n.º 1 e 2 do artigo 3.º do CIUC.

Deste modo, sendo o locatário o potencial responsável pelos custos viários e ambientais, bem se compreende que seja ele, e apenas ele, o responsável pelo pagamento do imposto.

Em face do que antecede e à luz do disposto no n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, dúvidas não subsistem: se à data da verificação do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira, cujo objecto seja um veículo automóvel, o sujeito passivo é o locatário; nunca o locador.

E que dizer se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo automóvel objecto do contrato de locação financeira houver sido alienado?

Há-que dizer, a título prévio, que a venda ao locatário é uma situação que sucede amiúde na economia do contrato de locação financeira, como aliás também sucede nos presentes autos.

Ora, sendo a compra e venda celebrada, o locatário será instituído, ex contratu, na posição de proprietário, consequentemente passando a ser-lhe aplicável o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC; i.e., o novo proprietário mantém, para efeitos de IUC, a posição de sujeito passivo do imposto, mas já não por via da norma que lhe atribuía tal qualidade enquanto locatário (n.º 2 do artigo 3.º do CIUC).

E tal solução impõe-se desde o momento da perfeição do contrato de compra e venda não apenas porque o Código do IUC o determina – ao afirmar que são sujeitos passivos do imposto os proprietários –, mas também pelo facto de entre nós vigorar o princípio da consensualidade, que importa que a transmissão da propriedade ocorra por mero efeito do contrato; como resulta em primeira linha do n.º 1 do artigo 408.º do Código Civil. Veja-se ainda, reforçando o «que acima se diz, a alínea a) do artigo 879.º daquele diploma.

Refira-se, ainda, que o entendimento exposto no parágrafo que antecede é unanimemente propugnado por Doutrina([7]) e Jurisprudência([8]), não carecendo, assim, de desenvolvimentos adicionais.

E o que se vem de dizer releva para sustentar a nossa posição no que tange ao valor jurídico do registo automóvel. Recorde-se, porém, que de acordo com a regra geral acima vista a transferência do direito se produz ex contratu, sem necessidade de qualquer acto material ou de publicidade([9]).

Como pacificamente aceite por Doutrina e Jurisprudência, perante o silêncio do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, quanto à questão do valor jurídico do registo automóvel, torna-se necessário lançar mão da disciplina do registo predial; operação ademais autorizada pelo artigo 29.º daquele Decreto-Lei.

Ora, atendendo ao Código do Registo Predial – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 125/13, de 30 de Agosto –, maxime ao seu artigo 7.º, e conjugando esta norma com o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, rapidamente se infere a função primacial do registo (automóvel): dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor.

Pode então afirmar-se que o registo não tem natureza constitutiva, antes meramente declarativa, permitindo apenas presumir a existência do direito e a sua titularidade. Note-se: presumir e não ficcionar, podendo assim ser ilidida mediante prova em contrário.

E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, e salvas as excepções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente de qualquer acto subsequente, e.g., inscrição no registo.

Desta feita, não prevendo a lei qualquer excepção para o contrato de compra e venda de veículo automóvel, a eficácia real produz normalmente os seus efeitos, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo.

Ora, se independentemente do registo o adquirente passa a ser o proprietário, o titular inscrito deixa concomitantemente de o ser; pese embora no registo figure como tal.

In casu, e não obstante a falta de inscrição no registo, as transmissões efectuadas são oponíveis à Requerida, não podendo esta prevalecer-se do disposto no n.º 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial.

Desde logo pelo facto de a Requerida não ser, para efeitos do disposto naquela norma, havida como terceiro para efeitos de registo.

A noção de terceiros para efeitos de registo é-nos dada pelo n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Tal não é, manifestamente, o caso dos autos.

O mesmo raciocínio se terá, naturalmente, de aplicar às hipóteses de locação financeira, em relação às quais também o registo não tem qualquer eficácia constitutiva, mais não passando de uma presunção de que o direito existe. Presunção ilidível, do mesmo passo, mediante prova em contrário.

E, da mesma forma, a falta de inscrição no registo do contrato de locação financeira não significa que este não exista.

Ora, pese embora à data das liquidações de imposto a Requerente ainda figurar no registo como proprietária dos veículos, a verdade é que alega não ser, à data do facto gerador do imposto, a sua proprietária, por já os haver alienado.

Assim, e uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se os documentos juntos pela Requerente são aptos a cumprir tal desiderato.

Com vista a provar que os veículos referidos nos presentes autos foram por si alienados em data anterior à da ocorrência do facto gerador do imposto, a Requerente juntou as respectivas facturas de venda.

Note-se que a Requerida alegou que “as faturas (por si só) não constituem documento idóneo para comprovar a venda dos veículos em causa, uma vez que a mesma não é mais do que um documento unilateralmente emitido pela Requerente”.

Verifica-se, antes de mais, que a Requerente juntou, para cada uma das duas matrículas em causa, factura de venda.

Por outro lado, conforme resulta dos factos provados, nenhum dos dois veículos em causa nos presentes autos pertence às categorias F ou G a que alude o artigo 4º do CIUC, pelo que o facto gerador do imposto ocorre na data da respectiva matrícula ou em cada um dos seus aniversários.

Decorre ainda dos factos provados que, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida pela Requerente, relativamente a cada um veículos, uma factura de venda a terceiro (in casu, primitivos locatários).

A Requerida sustenta que a factura não é documento apto a comprovar a a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, porquanto tal documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade por parte do pretenso adquirente.

Acrescentando que “não faltam casos de emissão de faturas referentes a transmissões de bens e/ou de prestações de serviços que nunca chegaram a concretizar-se”.

É certo, como invoca a Requerida, que muitas situações existem em que as facturas não titulam qualquer negócio jurídico. No caso dos autos, porém, nenhum elemento permite formar a convicção de que as facturas juntas não titulem negócio algum, sendo certo que a sua falsidade não foi sequer arguida pela Requerida, que se limitou a invocar existirem várias situações dessas, sem concretamente referir que a situação dos autos se subsumia a tal.

Assim, à míngua de quaisquer elementos que permitam concluir o contrário, aceita-se, naturalmente, a veracidade dos documentos juntos.

Assente a veracidade das facturas juntas pela Requerente, bem como o seu conteúdo, teremos de considerar, sem necessidade de quaisquer outras indagações, serem estas documentos aptos a provar a alienação dos veículos em causa.

Com efeito, não prevendo a lei qualquer forma específica para a celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel, terá, necessariamente, de se aceitar como prova do dito contrato a factura emitida nos termos legais. Revelando-se, assim, desnecessários os documentos contabilísticos a que alude a Requerida no ponto 15. das suas Alegações.

Temos, pois, que à data do facto gerador do imposto (data da matrícula ou de cada um dos seus aniversários) a Requerente havia já alienado os dois veículos, pese embora as referidas alienações não tenham sido espelhadas no competente registo.

Assim, atento o facto de a presunção resultante do registo ser ilidível mediante prova em contrário – prova essa que se considera realizada através da apresentação das facturas de venda –, e verificado que fica, relativamente aos veículos em apreço, não ser a Requerente sua proprietária à data da ocorrência do facto gerador do imposto, torna-se forçoso concluir não poder ser esta havida como sujeito passivo do IUC liquidado.

Detenhamo-nos agora sobre a questão suscitada pela Requerida, relativa ao artigo 19.º do CIUC, que estabelece o seguinte:

Para efeitos do disposto no artigo 3º do presente código (…) ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados”.

A Requerida, sustentando que a Requente incumpriu a obrigação declarativa decorrente do artigo 19.º do CIUC, vem sustentar dever de tal retirar-se consequências intra e extraprocessuais. As primeiras redundariam na responsabilização da Requerente pelas custas arbitrais inerentes ao presente processo; as segundas materializar-se-iam na responsabilização desta a título contra-ordenacional.

A Requerente, por seu turno, vem dizer não ser verdade ter incumprido a obrigação resultante do artigo 19.º do CIUC, mais referindo que o que releva nos presentes autos é a questão da determinação da incidência subjectiva do imposto, e não qualquer outra relacionada, nomeadamente, com o artigo 19.º.

Cumpre referir, então, e em abstracto, que a inobservância do disposto no artigo 19.º do CIUC pode, efectivamente, configurar a contra-ordenação p. e p. no artigo 117.º do Regime Geral das Infracções Tributárias. Não é isto, contudo, o que se discute nos presentes autos, como aliás bem refere a Requerente.

Mais a mais, sempre se dirá que o citado artigo 19.º se insere no Capítulo III do CIUC, respeitante a obrigações acessórias, fiscalização e regime contra-ordenacional, sendo a obrigação dali resultante meramente declarativa e não tendo qualquer virtualidade de alterar as regras de incidência subjectiva do imposto, previstas no Capítulo I sob a epígrafe “Princípios e regras gerais”.

E que assim é resulta, também, do facto de o próprio artigo 19.º não prever essa sanção para o seu incumprimento. De onde se retira, sem qualquer margem para dúvidas, que o incumprimento desta obrigação não determina, sem mais, que o sujeito passivo do imposto passe a ser o locador.

Em suma:

·           A norma ínsita no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC contém uma presunção;

·           Estando aquela presunção contida numa norma de incidência tributária, admitirá sempre prova em contrário, como resulta do artigo 73.º da LGT;

·           Quando, na data da verificação do facto gerador do imposto, o veículo automóvel primitivamente objecto de contrato de locação financeira tiver já sido alienado, embora o direito de propriedade continue registado em nome do primitivo proprietário, o sujeito passivo do IUC é o novo proprietário, contanto que aquele ilida a presunção decorrente do registo;

·           A transmissão da propriedade ocorre por mero efeito do contrato, não carecendo de qualquer acto subsequente;

·           O registo automóvel não tem natureza constitutiva, antes visando dar publicidade à situação dos veículos através de presunções, ilidíveis, da existência do direito e da respectiva titularidade;

·           Não pode a AT estribar-se na ausência de actualização do registo para, questionando a perfeição dos contratos de compra e venda, atribuir ao primitivo proprietário a qualidade de sujeito passivo de IUC e, assim, exigir deste o cumprimento da obrigação de imposto;

·           O eventual incumprimento do disposto no artigo 19.º do CIUC não será relevante para efeitos de determinação da incidência subjectiva do imposto.

De tudo quanto se expendeu resulta clara a inexistência de fundamento legal para os actos de liquidação de IUC, impondo-se a sua anulação, com as demais consequências legais.

VII.              DISPOSITIVO

Em face do exposto, decide-se:

a.         Julgar procedente, por provado, o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC a que se refere o pedido da Requerente;

b.         Anular os actos de liquidação de IUC acima referidos;

c.         Julgar procedente o pedido de restituição do montante de € 253,00, pago pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde os pagamentos indevidos, até integral pagamento à Requerente das quantias liquidadas;

***

Fixa-se o valor do processo em € 253,00, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

***

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 4 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida por ser a parte vencida.

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Registe e notifique.

Lisboa, 10 de Outubro de 2014.

O Árbitro,

 

Alberto Amorim Pereira

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Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 



([1])      Cf. BAPTISTA MACHADO, JOÃO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1982, p. 175.

([2])      FERRARA, FRANCESCO, Interpretação e Aplicação das Leis, 1921, Roma; Tradução de MANUEL DE ANDRADE, Arménio Amado, Editor, Sucessor – Coimbra, 2.ª Edição, 1963, p. 138 e ss.

([3])      Vide, por todos, BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 181.

([4])      BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 183.

([5])      Cf. Decisão Arbitral de 5 de Dezembro de 2013, proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013, p. 21.

([6])      Cf. LOPES DE SOUSA, JORGE, Código do Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vol. I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 589.

([7])      Vide, por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volumes I e II, Coimbra Editora, 4ª Edição Revista e Actualizada, Anotações aos artigos 408.º e 79.º.

([8])      Vide, inter alios, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 1998.

([9])      Cf. EWALD HÖRSTER, HEINRICH, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 2ª Reimpressão da Edição de 1992, p. 467.