DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A..., contribuinte n.º ..., com domicílio fiscal na ..., n.º..., ..., ..., apresentou, em 02-07-2019, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida ou AT).
2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficosa e subsequente anulação do acto tributário de liquidação do Imposto Único de Circulação, referente ao ano de 2016, relativamente ao veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..., com o consequente reembolso do imposto pago.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 03-07-2019.
3.1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
3.2. Em 20-08-2019 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 09-09-2020.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
3.5. Tendo a Requerida apresentado resposta defendendo-se por impugnação e por excepção, foi dada à Requerente a possibilidade de se pronunciar, o que fez.
3.6. Por despacho de 02-12-2019 foi dispensada a reunião prevista no art. 18º do RJAT e, com a anuência das partes, a apresentação de alegações.
4. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega o seguinte:
Ser proprietária do veículo automóvel de marca ..., modelo ..., com a matrícula ... .
O Certificado de Matrícula da referida viatura tem inscrito no campo “Data da Matrícula a que se refere o certificado”: 2011-12-22 e no campo “Data da primeira matrícula do veículo”: 2004-01-16.
O veículo aqui em causa foi matriculado pela primeira vez em França, no ano de 2004, tendo sido importado em dezembro de 2011.
A Autoridade Tributária procedeu à emissão do DUC n.º ... do imposto único de circulação, referente ao ano de 2016, do veículo supra identificado, no valor de € 250,61.
É descabido transformar um veículo com mais de sete anos, num veículo novo, neste caso sendo alegadamente do ano 2011, para efeitos de liquidação de imposto único de circulação.
O artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), opõe-se a que uma norma fiscal, como o artigo 2.º, n.º 1 a) e b) do Código do IUC, tribute de forma agravada veículos usados importados de outros Estados-Membros em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado português da mesma marca, modelo, cilindrada, modo de combustão e antiguidade.
Tendo o veículo aqui em causa sido matriculado pela primeira vez no ano de 2004 é claro que o mesmo se enquadra na categoria A, por conseguinte, não se encontra abrangido pela norma de incidência objetiva constante da alínea b), do n.º 1, do artigo 2º.
Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, existe violação do artigo 110.° do TFUE sempre que a tributação dos automóveis importados e a que incide sobre os automóveis nacionais similares – como o caso em análise - seja calculada de forma diferente e com base em critérios diferentes, conduzindo a uma tributação superior do produto importado.
Termina pedindo a anulação da liquidação e a restituição do imposto pago.
5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, invocando em síntese:
A ilegitimidade passiva da AT no processo, face à existência de um premente interesse em agir por parte do Instituto da Mobilidade e Transportes, pois só este poderá dispor do conhecimento dos factos relativos à integração dos veículos nas diferentes categorias, estando, desse modo, demonstrada a legitimidade passiva necessária daquele instituto para intervir na demanda.
Da leitura do requerimento inicial e documentos anexos conclui-se que o pedido em apreço se reconduz a um pedido de decisão arbitral que determine o enquadramento do veículo automóvel na categoria A. Como o objecto do litígio não pode ser qualificado como um acto de fixação da matéria tributável que dá origem à liquidação de tributo para efeitos da alínea b) do n.º 1 d artigo 2º do RJAT, ocorre incompetência absoluta do foro arbitral em razão da matéria.
Contrariamente ao alegado pela Requerente entende que a liquidação impugnada não consubstancia qualquer violação do princípio da igualdade, inexistindo discriminação na tributação do veículo automóvel relativamente aos veículos provenientes de outros Estados Membros.
Não existe razão à Requerente quanto à alegada discriminação negativa entre veículos matriculados noutro Estado Membro e os matriculados em território nacional, defendendo não existir qualquer violação ao TFUE ou a outra norma da União Europeia.
A liquidação de IUC em apreço resulta da aplicação das normas do CIUC, de igual forma, a todos os veículos matriculados em Portugal.
Conclui a Requerida pela legalidade do acto de liquidação contestado pela Requerente que deverá, assim, ser mantido, sustentando, ainda, que em qualquer circunstância não seriam devidos juros indemnizatórios (o que, certamente, assenta em lapso, uma vez que não foram requeridos pela Requerente).
II – SANEAMENTO
6.1. O tribunal encontra-se regularmente constituído.
6.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
6.3. O processo não enferma de nulidades.
6.4. A Requerida suscitou a excepção de ilegitimidade passiva da AT e a incompetência do tribunal em razão da matéria.
Apreciando tais excepções:
Sustenta a Requerida que, tendo sido formulado pedido de condenação da AT na anulação da liquidação de IUC, fundado no facto de a viatura automóvel em questão ter sido erroneamente enquadrada na categoria B, uma vez que a matrícula em Portugal foi atribuída em 2011, existe um premente interesse em agir por parte do IMT, IP, donde resulta a legitimidade passiva necessária daquela entidade o que levará à absolvição da instância.
Do mesmo modo, face a esse mesmo pedido - declaração de ilegalidade da liquidação de IUC, em virtude de o veículo automóvel ter sido enquadrado na categoria B – alega que este se reconduz a um pedido de decisão arbitral que determine o enquadramento do veículo automóvel na categoria A o que estará a excluído do âmbito da jurisdição arbitral tributária, atendendo ao que estabelece o n.º 1 do art. 2º do RJAT, donde resultaria a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria.
Começar-se-á pela apreciação desta última excepção uma vez que, a proceder, ficará prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
Diga-se, salvo o devido respeito, que não se percebe a questão suscitada pela Requerida, face ao correcto enquadramento legal abstracto que previamente faz.
Com efeito, com bem refere nos art. 7º e 8º da resposta e que, por isso, se transcrevem:
- “a noção de pedido encontra-se consagrada no artigo 581º, nº 3 do CPC e corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da ação interposta, traduzindo-se na providência que o Autor solicita ao tribunal, sendo a causa de pedir, nos termos do nº 4 do mesmo artigo, a fonte do direito invocado, o ato ou facto jurídico em que o Autor se baseia para formular o seu pedido e de que, no seu entender, o direito procede”.
- “Assim, o objeto processual dos presentes autos de pronúncia arbitral encontra-se delimitado pelo respetivo pedido e causa de pedir, nos termos delineados no pedido de pronúncia arbitral”.
Ora, como a Requerida bem enuncia, é precisamente o pedido que determina o efeito pretendido pelo Autor e que, desse modo, delimita o tipo e âmbito da acção judicial.
Tendo também identificado devidamente o pedido formulado pela Requerente – cf. art. 9º da resposta – a qual apenas pretende, em suma, ver anulada a liquidação de IUC e de juros compensatórios.
Resulta da análise do articulado da Requerente que a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado reside num deficiente enquadramento, efectuado pela AT, na categoria B do IUC, sujeitando, desse modo, o veículo automóvel a imposto ou de forma mais agravada do que a que seria devida. Quer dizer, estará em causa, na versão da Requerente, uma errada aplicação de uma norma da incidência real ou objectiva do imposto.
Não se vislumbra em que medida possa ser chamada à colação a intervenção do IMT para aplicação das normas de incidência do IUC, para cuja administração é exclusivamente competente a AT, pelo que aquele nunca poderia ser parte na acção, desde logo porque da eventual procedência do pedido nenhum prejuízo para ele adviria (art. 30º, n.º 2 do CPC).
É, pois, manifesto inexistir qualquer situação de ilegitimidade passiva da AT, bem como de litisconsórcio necessário que pressuponha a intervenção nos autos do IMT, IP (art. 33º do CPC), improcedendo a excepção deduzida pela Requerida.
E a mesma fundamentação será de aplicar para dar resposta à invocada incompetência do tribunal em razão da matéria.
Com efeito, como já se disse, o pedido da Requerente reconduz-se apenas à anulação da liquidação de IUC, por considerar estar ferido de ilegalidade o respectivo acto.
Ora, o tribunal arbitral é competente para a apreciação de pretensão relativa à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos cuja administração seja cometida à AT [al. a) do n.º 1 do art. 2º do RJAT e art. 2º e n.º 1 do art. 3º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março].
Acresce que, no pedido arbitral - por equiparação ao processo de impugnação judicial – são apreciados vícios que afectem a validade do acto questionado, sendo admissível como fundamento “qualquer ilegalidade” e, designadamente, a errada qualificação do acto tributário [art. 99º do CPPT ex vi art. 29º, n.º 1 a) do CPPT].
Tal como está formulado o requerimento inicial, não há dúvidas de que a Requerente sustenta o seu pedido em ilegalidade do acto de liquidação consubstanciado numa deficiente aplicação de uma norma de incidência do CIUC o que, de forma incontestável, integra a competência material do tribunal arbitral.
Improcedem, desse modo, as excepções deduzidas pela Requerida.
Sendo o tribunal competente, cumpre decidir.
III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO
III.1. Matéria de facto
Atendendo às posições assumidas pelas partes e à prova produzida consideram-se, com relevo para apreciação e decisão da causa, como provados os seguintes factos:
a) Foi emitida pela AT, em 06-12-2016, o documento único de cobrança n.º 2016... referente ao IUC do veículo automóvel ..., no valor de 250,61 €;
b) Do referido documento consta, entre outros elementos: “categoria B” e “ano da matrícula 2011”, “mês de matrícula Dezembro”;
c) Do certificado de matrícula daquela viatura consta, entre outros elementos: “Número de matrícula: ...; Data da primeira matrícula do veículo: 2001-01-16; Data da matrícula a que se refere o certificado: 2011-12-22”;
d) Os elementos mencionados na alínea anterior constam, de igual modo, da ficha “Detalhe de Características de Veículo (Veículo Terrestre)” da AT para efeitos de liquidação do IUC;
e) O veículo automóvel em causa foi matriculado pela primeira vez em França, no ano de 2004 e foi registado em território português em Dezembro de 2011;
f) A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa relativamente ao qual foi proferido despacho de indeferimento, em 02-05-2019, pelo Director de Finanças de ..., notificado por ofício de 03-05-2019;
g) A Requerente pagou o imposto.
Fundamentação da matéria de facto:
A matéria de facto dada como provada assenta no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida, bem como do processo administrativo junto aos autos.
Não foram dados como não provados factos com relevo para a decisão da causa.
III.2. Matéria de Direito
Conforme resulta do pedido arbitral, a Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa relativo à liquidação de IUC, por considerar que, em virtude de o veículo automóvel de que é proprietária ter tido a primeira matrícula em 2004 – ou seja, antes da entrada em vigor do CIUC – deveria estar integrado na categoria A e não na B, como consta daquela liquidação.
A Requerida, por seu turno, defende a legalidade da liquidação considerando que a mesma é resultado da aplicação das normas do CIUC, de igual forma, a todos os veículos matriculados em Portugal.
A Lei 22-A/2007 de 29 de Junho, que operou a reforma da tributação automóvel, aprovando o CIUC, dispõe no art. 2º, n.º 1, que “o imposto único de circulação incide sobre os veículos das categorias das categorias seguintes, matriculados ou registados em Portugal”.
Estabelecendo o n.º 1 do art. 6º que “o facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”.
Por sua vez estabelece o n.º 1 do art. 3º que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito púbico ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Assim, da leitura das normas de incidência real apontadas resulta que o elemento determinante para a sujeição a imposto é a matrícula ou registo em território nacional. Ou seja, a data que releva para a determinação ou forma de sujeição ao imposto único de circulação automóvel, é a data da matrícula em Portugal. Quer dizer, será irrelevante a data de matrícula no país de origem ou, inclusivamente, a data de fabrico.
O problema de aplicação do IUC suscita-se, todavia, relativamente aos veículos automóveis que, em abstracto, não estariam sujeitos a IUC ou, estando, seriam integrados noutra categoria, mas já o estariam se se atender exclusivamente à data da atribuição de matrícula ou registo em Portugal.
É que o n.º 2 do art. 14º do CIUC determina que este é aplicável:
“- a partir de 01-07-2007 aos veículos da categoria B matriculados a partir dessa data;
- a partir de 01-01-2008, aos restantes veículos”.
Definindo o n.º 1 do art. 2º as diferentes categorias de veículos para efeitos de IUC:
a) “Categoria A: Automóveis ligeiros de passageiros e automóveis ligeiros de utilização mista com peso bruto não superior a 2.500 kg matriculados desde 1981 até à data da entrada em vigor do presente código;
b) Categoria B: Automóveis de passageiros referidos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 2º do Código do Imposto sobre Veículos e automóveis ligeiros de utilização mista com peso bruto não superior a 2.500kg, matriculados em data posterior à da data da entrada em vigor do presente código”.
O veículo objecto do presente processo teve a sua primeira matrícula atribuída no ano de 2004, em França, tendo sido registada em Portugal no ano de 2011.
Desta factualidade resulta que se se atender à data da atribuição da primeira matrícula o veículo estaria integrado na categoria A, ao passo que se tivermos em conta a data de registo em Portugal, já integraria a categoria B estando, por isso, sujeito a IUC de forma mais agravada.
Alega a Requerente que a aplicação de IUC ao veículo em causa, cuja matrícula foi atribuída antes de 2007 num estado membro, consubstancia uma discriminação negativa dos veículos usados provenientes de outros Estados Membros em relação aos veículos nacionais semelhantes, o que contraria o direito comunitário.
Por seu turno, sustenta a Requerida não se verificar tal discriminação negativa, uma vez que a opção feita pelo legislador nacional está legitimada, uma vez que o mecanismo de obtenção de receita incorporado no CIUC apenas seria censurável, face ao princípio da proporcionalidade, se resultasse manifestamente indefensável, o que não se verifica uma vez que tal medida é aplicada de forma indistinta a todos os proprietários de veículos nas mesmas condições.
Não cremos que assista razão à Requerida.
Com efeito, entendemos que as normas de incidência objectiva do CIUC não são compatíveis com o direito da União Europeia, face ao tratamento diferenciado em função da nacionalidade da matrícula original do veículo.
Tal opção consubstancia efectivamente uma discriminação negativa dos veículos usados provenientes de outros Estados membros relativamente aos veículos nacionais em condições semelhantes. O que contraria o art. 110º do Tratado União Europeia quando impõe que “nenhum Estado membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre os produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados membros imposições internos de modo a proteger indirectamente outras produções”.
Já a propósito do imposto sobre a poluição - com paralelismo manifesto com a situação em apreço – tinha decidido o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão de 7-04-2011, Processo C-402/2009 (Caso Tatu), que o artigo 110.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado membro crie um imposto sobre a poluição que incide sobre os veículos automóveis no momento da sua primeira matrícula nesse Estado membro, se esta medida fiscal for estruturada de tal maneira que desencoraje a colocação em circulação, no referido Estado membro, de veículos usados adquiridos noutros Estados membros, sem, por outro lado, desencorajar a compra de veículos usados da mesma idade e com o mesmo desgaste no mercado nacional.
E especificamente para a aplicação do art. 2º do CIUC ora em causa, veio o mesmo Tribunal, no Acórdão C-640/17, de 17-04-2018, a considerar que:
- “Há que começar por recordar que o artigo 110.º do TFUE tem por objectivo assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados-Membros, em condições normais de concorrência. Este artigo visa eliminar qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas discriminatórias aos produtos provenientes de outros Estados-Membros (Acórdão de 9 de Junho de 2016, Budisan, C-586/14, EU:C2016, n.º 19 e jurisprudência referida).
- Para o efeito, o artigo 110.º, primeiro parágrafo, TFUE, proíbe os Estados-Membros de fazerem incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas superiores às que incidem sobre os produtos nacionais similares (Acórdão de 9 de junho de 2016, Budisan, C-586/14, EU:C2016:421, n.º 20).
- A este respeito, segundo jurisprudência constante, um sistema de tributação só pode ser considerado compatível com o artigo 110.º TFUE se se demonstrar que está organizado de modo a excluir, em todas as hipóteses, que os produtos importados sejam tributados mais fortemente do que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios (Acórdãos de 19 de Março de 2009, Comissão/Finlândia, C-10/08, não publicado, EU:C:2009:171, n.º 24, e de 19 de dezembro de 2013, X, C-437/12, EU:C:2013:857, n.º 28).
- Por outro lado, o Tribunal já declarou que, em matéria de tributação dos veículos automóveis, usados importados, o artigo 110.º do TFUE visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que respeita à concorrência entre os mprodutos que já se encontram no mercado nacional e os produtos importados (Acórdãos de 17 de julho de 2008, Kraweczynski, C-426/07, EU:C:2008:434, n.º 31, e de 3 de Junho de 2010, Kalinchev, C-2/09, EU:C2010:312, n.º 31).
- Ora, os veículos automóveis presentes no mercado de um Estado-Membro são produtos nacionais do mesmo, na aceção do artigo 110.º do TFUE. Quando esses produtos são vendidos no mercado dos veículos usados desse Estado-Membro, devem ser considerados produtos análogos aos veículos usados importados do mesmo tipo, com as mesmas características e com o mesmo desgaste. Com efeito, os veículos usados comprados no mercado do referido Estado-Membro e os comprados, para importação e entrada em circulação no mesmo, noutros Estados-Membros constituem produtos concorrentes (Acórdãos de 7 de abril de 2011, Tatu, C-402/09, EU:C:2011:219, n.º 55, e de 7 de Julho de 2011, Nisipeanu, C-263/10, não publicado, EU:C:2011:466, n.º 24).
- Daqui resulta que o artigo 110.º do TFUE obriga cada Estado-Membro a escolher e a estruturar os impostos que incidem sobre os veículos automóveis de maneira a não terem por efeito favorecer a venda de veículos usados nacionais e desencorajar desse modo a importação de veículos usados similares (Acórdãos de 7 de abril de 2011, Tatu, C-402/09, EU:C:2011:219, n.º 56, e de 7 de julho de 2011, Nisipeanu, C-263/10, não publicado, EU:C:2011:466, n.º 25).
- No caso em apreço, decorre da decisão de reenvio que o Imposto Único de Circulação em causa no processo principal é cobrado anualmente sobre, nomeadamente, qualquer veículo automóvel ligeiro de passageiros matriculado ou registado em Portugal, variando o seu montante, designadamente, em função da data da primeira matrícula do veículo considerado em Portugal, como ainda aos veículos já presentes no mercado nacional.
- No entanto, os veículos automóveis ligeiros de passageiros, como o veículo importado em causa no processo principal, estão isentos de Imposto Único de Circulação caso tenham sido matriculados em Portugal antes de 1981, ao passo que os veículos similares matriculados noutro Estado-Membro antes de 1981 estão sujeitos ao referido imposto, por terem sido matriculados pela primeira vez em Portugal após essa data.
- Por outro lado, esses mesmos veículos integram a categoria A quando tiverem sido matriculados pela primeira vez em Portugal entre 1981 e 1 de julho de 2007, data da entrada em vigor do CIUC, e a categoria B quando tiverem sido matriculados pela primeira vez em Portugal após 1 de julho de 2007. Em contrapartida, os veículos similares que tenham sido importados de outro Estado-Membro e matriculados em Portugal após 1 de Julho de 2007 integram a categoria B, mesmo quando tiverem sido matriculados pela primeira vez noutro Estado-Membro antes dessa data. Os veículos importados para Portugal após 1 de julho de 2007 e matriculados pela primeira vez noutro Estado-Membro antes de 1 de julho de 2007 são, assim, objeto de uma tributação sistematicamente superior à tributação de que são objeto os veículos similares não importados e matriculados pela primeira vez em Portugal antes dessa mesma data.
- Consequentemente, a regulamentação nacional em causa no processo principal aplica aos veículos usados e importados de outros Estados-Membros após 1 de julho de 2007 uma tributação sistematicamente superior à tributação de que são objeto os veículos similares não importados e matriculados pela primeira vez em Portugal antes dessa mesma data.
- Atendendo às considerações expostas, há que responder à questão principal que o artigo 110.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado-Membro por força da qual o Imposto Único de Circulação que estabelece é cobrado sobre os veículos automóveis ligeiros de passageiros matriculados ou registados nesse Estado-Membro sem ter em conta a data da primeira matrícula de um veículo, quando esta tenha sido efetuada noutro Estado-Membro, com a consequência de a tributação dos veículos importados de outro Estado-Membro ser superior à dos veículos não importados similares””.
Acolhendo na íntegra o que se transcreveu, é manifesto que as normas de incidência objectiva em causa, constituem um claro desincentivo à compra de veículos originários de outros Estados membros, por oposição à compra de veículos com matrícula nacional nas mesmas condições.
O n.º 4 do art 8º da CRP, estabelece o primado do direito comunitário, quando determina que as disposições dos tratados que regem a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitados os princípios fundamentais do Estado de direito comunitário.
Daí que, quando as normas de direito ordinário interno não são compatíveis com o direito comunitário, o Tribunal não as pode aplicar suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto. “O juiz nacional, encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário, tem a obrigação de assegurar o pleno efeito dessas normas, deixando se necessário inaplicadas, por sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a eliminação prévia desta por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional” (Acórdão de 09-03-1978 do Tribunal de Justiça da União Europeia, no Processo 106/77 - Ac. Simmenthal).
Decorre do exposto que a aplicação pela Requerida das normas de incidência do IUC nos termos constantes da liquidação impugnada é contrária ao direito da União Europeia, pelo que não pode ser acolhido, não podendo a mesma manter-se na ordem jurídica, impondo-se a sua anulação.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado, determinando-se a anulação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, bem como do acto de liquidação do Imposto Único de Circulação, referente ao ano de 2016, relativamente ao veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..., com o consequente reembolso à Requerente do imposto pago.
b) Condenar a Requerida nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 250,61 € (duzentos e cinquenta euros e sessenta e um cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 306,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2020
O Árbitro
(António Alberto Franco)