Decisão Arbitral
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., SGPS, S.A., sociedade comercial anónima com sede em Rua ... ..., ...-..., titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade das autoliquidações de IRC com os números de identificação 2017... e 2018..., referentes aos exercícios de 2016 e 2017 e, bem assim, da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada contra aqueles actos tributários, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago e a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A Requerente é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais (SGPS) que se dedica à actividade de gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta do exercício de actividades económicas, sendo a sociedade dominante do designado Grupo A..., que é tributado segundo o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS).
Nos exercícios de 2016 e 2017, a Requerente agregava, no âmbito do RETGS, os seus resultados fiscais, entre outras empresas, como as sociedades B..., S.A. (B...) e C... S.A. (C...).
Em outubro de 2016 e outubro de 2017, as empresas apresentaram as respetivas declarações Modelo 27 de autoliquidação da contribuição extraordinária sobre o sector energético (CESE) relativas a 2016 e 2017, sendo que a B... suportou, a título de CESE, a quantia global de € 58.585,47 (€ 30.419,38 respeitante a 2016 e € 28.166,09 a 2017), e C... a quantia global de € 329.802,56 (€ 174.566,86 respeitante a 2016 e € 155.235,70 a 2017).
Posteriormente, as empresas apresentaram as respetivas declarações de rendimentos Modelo 22 de IRC relativas aos exercícios de 2016 e 2017, e, com vista a dar cumprimento ao disposto na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC, acresceram no Campo 785 do Quadro 07 – Apuramento do Lucro Tributável”, a título de CESE, os montantes de € 30.419,38 e € 28.166,09, no caso da B..., e de € 174.566,86 e € 155.235,70, no caso da C... .
Por seu turno, a Requerente, na qualidade de sociedade dominante do Grupo A..., apresentou as declarações de rendimentos Modelo 22 de IRC respeitantes aos mesmos exercícios, nas quais reflectiu as declarações de rendimentos Modelo 22 das sociedades dominadas integrantes do Grupo A... .
As empresas somente inscreveram a CESE no campo 785 do Quadro 07, por virtude da imposição resultante do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea q) do CIRC, quanto não à dedutibilidade para efeitos fiscais do encargo com essa contribuição e apresentaram reclamação graciosa em vista à declaração de ilegalidade da liquidação em IRC com esse fundamento, a qual foi objecto de indeferimento tácito.
A contribuição sobre o sector energético (CESE) foi aprovada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2014), com início de vigência em 1 de janeiro de 2014, tendo em vista, principalmente, a absorção dos custos decorrentes das opções políticas adoptadas no passado no domínio electroprodutor e, por essa via, a redução do stock de dívida tarifária, i.e. dos custos de interesse económico geral, e foi mantida em vigor, para os anos de 2015, 2016 e 2017, pelas Leis n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, 159-C/2015, de 30 de dezembro e 42/2016, de 28 de dezembro.
Nos termos do artigo 12.º do regime jurídico da CESE, “a contribuição extraordinária sobre o sector energético não é considerada um gasto dedutível para efeitos de aplicação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.”, regra que igualmente decorre da alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC onde se diz que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável, entre outros, os encargos contabilizados com a contribuição extraordinária sobre o sector energético.
Porém, a interpretação dessas normas no sentido de não ser fiscalmente dedutível a CESE suportada nos respectivos exercícios padece de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da tributação pelo rendimento real e da capacidade contributiva, previstos nos artigos 104.º, n.º 2, e 13.º da CRP, bem como do princípio da igualdade.
O princípio da tributação pelo rendimento real resulta do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, pelo qual “a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”, o que significa que o legislador constitucional afastou a tributação de rendimentos presumidos ou normais, exigindo expressamente que se tributem os rendimentos efetivamente obtidos pelos sujeitos passivos, sempre que tal se revele possível.
A tributação pelo rendimento real é, por definição, uma decorrência do princípio da capacidade contributiva, de acordo com o qual os contribuintes só podem ser tributados pela sua efetiva e real força económica, desempenhando este princípio uma função determinante no que concerne ao desenho e modo de distribuição dos encargos tributários.
A concretização dos princípios constitucionais do rendimento real e da capacidade contributiva implica o reconhecimento de que todas as componentes do rendimento, quer positivas, quer negativas, terão relevância tributária no âmbito do cálculo do lucro tributável a tributar em sede de IRC.
Pelo que, ao impor a desconsideração do montante suportado nos exercícios a título de CESE, os artigos 23.º-A, n.º 1, alínea q) do Código do IRC e 12.º do regime jurídico da CESE, determinam a tributação de um rendimento falsamente empolado, que traduz um incremento patrimonial superior ao real incremento auferido pelo sujeito passivo, à revelia dos princípios constitucionais da tributação pelo rendimento real e da capacidade contributiva.
A regra constitucional é de que todos os custos incorridos relacionados com a obtenção de rendimentos devem ser dedutíveis, sendo que os desvios a esta regra, porque constituem entorses aos princípios da tributação pelo rendimento real e da capacidade contributiva, exigem uma racionalidade ou motivação intrínseca forte o suficiente para derrogar tais princípios.
Sucede que, na situação em apreço, não se conjecturam quaisquer razões justificativas que validem a derrogação daqueles princípios constitucionais, o que afeta de inconstitucionalidade material o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea q), do CIRC, na interpretação em que afasta a dedução dos custos incorridos com a CESE.
Na prática, a CESE assume-se como uma contribuição que visa tributar o exercício da actividade de produção de energia com vista a financiar uma entidade pública cujo móbil é a promoção de políticas públicas e a liquidação da dívida tarifária, de cariz público, recorrendo, para o efeito e fundamentalmente, ao critério do activo da entidade, pelo que não existe nenhum motivo de cariz ético ou moral que justifique a sua desconsideração em sede de IRC.
E não existe qualquer justificação especial que possibilite ao legislador ordinário excluir a dedutibilidade dos montantes suportados a título de CESE para efeitos de apuramento do lucro tributável, pelo que o legislador ordinário legislou com base no livre arbítrio.
Impõe-se concluir que os artigos 23.º-A, n.º 1, alínea q), do CIRC e 12.º do regime jurídico da CESE, ao determinarem a não dedutibilidade da CESE para apuramento do lucro tributável de IRC, padecem de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da tributação pelo rendimento real, da capacidade contributiva e da igualdade, nos termos dos artigos 104.º, n.º 2, e 13.º da CRP.
Requer a final que reconheça o direito à dedução em sede de IRC, nos exercícios de 2016 e 2017, dos montantes suportados a título de CESE, no valor global de € 388.388,03, com a consequente a restituição do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a excepção da incompetência do tribunal arbitral para conhecer do pedido, porquanto a Requerente pretende pôr em causa a legalidade da norma que prevê a CESE, e não propriamente o acto de autoliquidação em sede de IRC, além de que a CESE constitui uma contribuição financeira e não um imposto, encontrando-se excluída da arbitragem tributária por efeito do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pelo qual a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição.
Considera ainda que uma diferente interpretação seria não só ilegal como inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes, bem como da legalidade, como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT.
Em sede de impugnação, a Administração sustenta que a receita da CESE é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), com o objectivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental. E não estamos, por isso, perante uma cobrança de tributo que vise prover, indistintamente, às necessidades financeiras do Estado, em que esteja ausente uma qualquer contraprestação pública.
Por outro lado, a regra geral da dedutibilidade dos gastos e perdas comporta diversas excepções ditadas por uma multiplicidade de razões que o legislador, dentro da sua margem de liberdade de conformação normativa, considerou atendíveis e não violadoras do princípio de tributação pelo lucro real, entre as quais se conta a prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC.
Com efeito, os sujeitos passivos da CESE são apenas operadores do sector que integram o sector energético nacional, a receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), e há uma interdição geral de repercussão directa ou indirecta sobre o tarifário e para efeitos de determinação do respetivo custo de capital e do custo médio das quantidades adquiridas de gás natural contratadas.
Neste contexto, seria incoerente que fosse admitida a aceitação como gasto dedutível para a determinação do lucro tributável das importâncias suportadas pelos sujeitos passivos a título da CESE, porquanto, a dedução equivaleria a uma repercussão indirecta da CESE sobre o Estado (e autarquias, relativamente à derrama municipal), na exacta medida em que a consequente diminuição ao lucro tributável redundaria em redução de imposto liquidado.
Dir-se-á, assim, que o afastamento da dedução da CESE ao lucro tributável é uma decorrência natural e lógica da opção de política legislativa sobre o financiamento do sector energético, que tem o propósito de afastar a imposição do encargo com a CESE à generalidade dos contribuintes, desiderato que só poderia ser efectivamente alcançado completando a proibição da repercussão com a não dedutibilidade do correspondente gasto ao lucro tributável do IRC.
Entende, em consequência, que a norma da alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC não padece dos invocados vícios de desconformidade constitucional e a interpretação normativa proposta pela Requerente, no sentido da dedutibilidade dos gastos com a CESE, mostra-se ser materialmente inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito democrático, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes, que decorrem dos artigos 2.º, 103.º, 165.º e 202.º da CRP.
Conclui no sentido da procedência das excepções dilatórias e, se assim se não entender, pela improcedência do pedido arbitral.
2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e ordenado o prosseguimento do processo para alegações escritas facultativas por prazo sucessivo, também destinadas a permitir à Requerente o exercício do contraditório quanto à matéria de excepção.
Em alegações a Requerente, quanto à excepção de incompetência do tribunal arbitral, considerou que não está em causa, no processo, a questão da inconstitucionalidade da própria CESE, mas a questão da inconstitucionalidade da proibição de dedutibilidade em sede de IRC dos montantes apurados a título de CESE, em decorrência do disposto nos artigos 23.º-A, n.º 1, alínea q) do Código do IRC e 12.º do regime da CESE, pelo que não se pretende que o tribunal arbitral julgue inconstitucional a norma, em abstrato, mas antes recuse a sua aplicação no caso concreto. E, por outro lado, a Requerente não suscitou a pronúncia do tribunal a respeito da legalidade de um ato tributário de liquidação de CESE, e limitou-se a requerer a declaração de ilegalidade dos actos de autoliquidação de IRC dos exercícios de 2016 e 2017, na parte em que obsta à dedução da CESE suportada nesses exercícios, pelo que não releva para esse efeito que a CESE seja uma contribuição ou imposto.
Quanto à matéria de fundo, as partes reiteraram as suas anteriores petições.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 28 de Agosto de 2019.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e foi invocada a excepção da incompetência do tribunal.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.
A) A Requerente é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais que se dedica à actividade de gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta do exercício de actividades económicas, sendo a sociedade dominante do designado Grupo A..., que é tributado segundo o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades;
B) Nos exercícios de 2016 e 2017, a Requerente agregou os seus resultados fiscais com as sociedades B..., S.A. (B...) e C... S.A. (C...), que integram o grupo de sociedades;
C) Nas declarações Modelo 27 de autoliquidação da contribuição extraordinária sobre o sector energético relativas a 2016 e 2017, a B... suportou, a título de CESE, a quantia global de € 58.585,47 (€ 30.419,38 respeitante a 2016 e € 28.166,09 a 2017), e a C... a quantia global de € 329.802,56 (€ 174.566,86 respeitante a 2016 e € 155.235,70 a 2017);
D) Posteriormente, a B... e a C... apresentaram as respetivas declarações de rendimentos Modelo 22 de IRC relativas aos exercícios de 2016 e 2017, tendo inscrito no Campo 785 do Quadro 07 – Apuramento do Lucro Tributável”, a título de CESE, em cada um desses anos, os montantes de € 30.419,38 e € 28.166,09, no caso da B..., e de € 174.566,86 e € 155.235,70, no caso da C...;
E) A Requerente, na qualidade de sociedade dominante do Grupo A..., apresentou as declarações de rendimentos Modelo 22 de IRC respeitantes aos mesmos exercícios, nas quais reflectiu as declarações de rendimentos Modelo 22 das sociedades dominadas integrantes do Grupo A...;
F) Em 9 de Novembro de 2018, a Requerente apresentou reclamação graciosa dos actos de autoliquidação em IRC com fundamento em inconstitucionalidade;
G) A reclamação graciosa não foi objecto de decisão no prazo legalmente previsto, tendo sida indeferida tacitamente.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.
Matéria de direito
Incompetência do tribunal arbitral
5. A Autoridade Tributária suscitou a excepção da incompetência do tribunal arbitral para conhecer do presente pedido com dois diferentes fundamentos: a Requerente não imputa qualquer ilegalidade aos actos de autoliquidação em IRC, mas pretende a desaplicação da norma constante dos artigos 23.º, n.º 1, alínea q), do CIRC, e 12.º do Regime da CESE, por inconstitucionalidade; estando em causa uma contribuição financeira e não um imposto, a pretensão da Requerente encontra-se excluída da arbitragem tributária por efeito do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pelo qual a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição.
A arguição mostra-se ser manifestamente improcedente e assenta num evidente equívoco.
A Requerente formulou um pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade de actos de liquidação em IRC relativamente aos exercícios de 2016 e 2917, invocando como causa de pedir a inconstitucionalidade da norma da alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e do artigo 12.º do regime jurídico da CESE, quando interpretadas no sentido de não ser fiscalmente dedutível a contribuição extraordinária sobre o sector energético, por violação dos princípios da tributação pelo rendimento real, do princípio da capacidade contributiva e da igualdade.
Ora, a Constituição admite o controlo difuso de constitucionalidade pelos tribunais (artigo 204.º) e prevê o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (artigo 280.º, n.º 1). O recurso para o Tribunal Constitucional de decisões positivas ou negativas de inconstitucionalidade proferidas pelos tribunais encontra-se igualmente previsto na Lei do Tribunal Constitucional (artigo 70.º, n.º 1, alíneas a) e b)).
A desaplicação de normas pelos tribunais, por iniciativa oficiosa ou por suscitação das partes, corresponde a uma forma de fiscalização concreta de constitucionalidade para que os tribunais têm competência própria, não se confundindo com a competência do Tribunal Constitucional, que intervém em sede de recurso de constitucionalidade ou no âmbito da fiscalização abstracta da constitucionalidade (artigo 281.º da CRP).
Por outro lado, o referido artigo 204.° da Constituição, ao admitir o controlo difuso da constitucionalidade, refere-se genericamente aos tribunais, não distinguindo entre tribunais estaduais e tribunais arbitrais, e o artigo 280.° da CRP, ao definir o âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade, admite o recurso de constitucionalidade relativamente a decisões dos tribunais, referindo-se a decisões de quaisquer tribunais. E, como o Tribunal Constitucional tem também vindo a afirmar, os tribunais arbitrais (necessários ou voluntários) são também tribunais, dispondo do poder-dever de verificar a conformidade constitucional de normas aplicáveis no decurso de um processo arbitral e de recusar a aplicação das que considerem inconstitucionais (entre outros, o Acórdão n.º 181/2007, de 8 de Março de 2007, Processo n.º 343/2005).
Como é bem de ver, pretendendo a Requerente obter a desaplicação da norma do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea q) do Código do IRC, para efeito de se considerar como fiscalmente dedutível a contribuição extraordinária sobre o sector enérgico, o tribunal arbitral é competente para apreciar essa questão no âmbito do pedido que visa a anulação de acto de liquidação em IRC.
E uma tal interpretação não pode ser tida como violando os princípios constitucionais do Estado de Direito e da separação dos poderes, da legalidade ou da indisponibilidade do crédito tributário, pela linear razão de que essa competência se encontra directamente conferida aos tribunais (incluindo os tribunais arbitrais) pela Constituição.
Acresce que não está em causa, no pedido arbitral, a constitucionalidade da contribuição extraordinária sobre o sector energético, mas a constitucionalidade de uma norma do Código do IRC e do regime jurídico da CESE que regulam o apuramento do lucro tributável das pessoas colectivas.
Por isso mesmo, o pedido arbitral não se dirige contra a exigência legal do pagamento da contribuição extraordinária sobre o sector energético, mas contra o acto de liquidação em IRC, na parte em que toma em consideração a não dedutibilidade para efeitos fiscais do encargo suportado com essa contribuição.
É assim claro que o pedido arbitral se reporta à conformidade legal de um acto de liquidação em IRC e tem por base uma norma do Código do IRC e não qualquer das disposições que regulam a contribuição sobre o sector energético.
Não estando em causa a constitucionalidade ou a legalidade da contribuição sobre o sector energético, não tem qualquer relevo para o caso discutir se a dita contribuição é uma contribuição financeira ou é um imposto, ou se esta é ou não contrária à Constituição. O que interessa reter é que os tribunais arbitrais são competentes para a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de liquidação de tributos, incluindo no tocante aos actos de liquidação em IRC (artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT) e a Portaria de Vinculação apenas exclui da jurisdição dos tribunais arbitrais as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos do recurso à via administrativa (artigo 2.º, alínea a)), sabendo-se que não é essa, obviamente, a situação do caso.
O tribunal arbitral é, por conseguinte, competente para conhecer do pedido.
Questão de fundo
Dedutibilidade da CESE para efeitos fiscais
6. A Requerente entende que as normas dos artigos 23.º-A, n.º 1, alínea q) do Código do IRC e 12.º do regime jurídico da CESE, interpretadas no sentido de não ser fiscalmente dedutível a contribuição sobre o sector energético, padece de inconstitucionalidade material por violação do princípio da tributação segundo rendimento real, do princípio da capacidade contributiva e do princípio da igualdade. Para assim concluir, a Requerente considera, em suma, que a concretização dos princípios constitucionais do rendimento real e da capacidade contributiva implica o reconhecimento de que todas as componentes do rendimento, quer positivas, quer negativas, sejam relevantes para o cálculo do lucro tributável a tributar em sede de IRC, pelo que qualquer restrição a esse princípio carece de ser racionalmente justificada. No caso, não existe qualquer justificação especial que possibilite ao legislador ordinário excluir a dedutibilidade dos montantes suportados a título de CESE, pelo que as normas se encontram eivadas de violação dos invocados princípios e ainda do princípio da igualdade na modalidade de proibição do arbítrio.
Por forma a ter uma visão global e completa da matéria, as questões de constitucionalidade carecem de ser analisadas à luz do regime legal definido para a contribuição para o sector energético.
A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro), incluída entre os encargos não dedutíveis para efeitos fiscais, é tida como uma contribuição extraordinária que tem “por objectivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”, incidindo sobre as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2015, se encontrassem nalguma das situações elencadas do artigo 2.º do regime que cria a contribuição.
A receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, com o objectivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional (artigo 11.º).
Por outro lado, é o próprio artigo 12.º do regime da CESE que declara a não dedutibilidade da contribuição para efeitos fiscais, no âmbito do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, regra que foi transposta para alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro.
Refere a Requerente que a não dedutibilidade da contribuição para efeitos fiscais viola o princípio da tributação segundo o rendimento real, que se encontra consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da Constituição.
Desse princípio decorre que a determinação do lucro tributável das empresas deva assentar fundamentalmente na respectiva contabilidade, como meio de dar a conhecer a situação económica das empresas, e tem em vista assegurar que o sistema fiscal permita efectuar o controlo dos rendimentos numa medida aproximada à realidade existente.
A tributação segundo o rendimento real corresponde a um quadro típico ou caracterizador do sistema fiscal que não exclui que possa encontrar-se sujeito a desvios que se mostrem justificados no plano constitucional, e que não pode deixar de atender aos princípios de praticabilidade e de operacionalidade do sistema (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 162/2004, de 17 de Março de 2004, Processo n.º 698/2003).
O lucro tributável para efeitos de IRC assenta, por isso, no resultado contabilístico, ao qual o legislador tributário introduz as correcções extracontabilísticas necessárias para tomar em consideração os objectivos e condicionalismo próprios do Direito Fiscal, e, como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o rendimento fiscalmente relevante não constitui uma realidade de valor materialmente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável (cfr. atrás referido Acórdão n.º 162/2004 e, na doutrina, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 301).
Por outro lado, esse princípio surge associado ao princípio da capacidade contributiva, como corolário do princípio da igualdade.
O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal, tem conduzido à ideia, expressa por exemplo no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97 (de 29 de Abril de 1997, Processo nº 63/96), de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará “a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo”.
No entanto, o Tribunal Constitucional não deixa de aceitar a proibição do arbítrio, enquanto critério de controlo negativo da igualdade tributária, como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.
Neste contexto, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem excepção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010, de 14 de Julho de 2010, Processo n.º 107/2010 e n.º 695/2014, de 15 de Outubro de 2014, Processo n.º 1265/2013).
Revertendo à situação do caso, cabe fazer notar que a CESE foi instituída como uma contribuição extraordinária, incidente sobre as pessoas e entidades que integram o sector enérgico nacional, tendo por objectivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector, através da constituição de um fundo, entretanto criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril (FSSSE) e ao qual se encontram consignadas as receitas.
O Tribunal Constitucional tem defendido a qualificação da CESE como contribuição financeira e tem defendido que não contraria a Lei Fundamental (e.g., mais recentemente o Acórdão n.º 7/2019, de 8 de Janeiro de 2019, no âmbito do Processo n.º 141/16). Também a doutrina tem assumido a CESE como tendo natureza jurídica de contribuição financeira, com um âmbito de incidência delimitado a um grupo definido de destinatários, caracterizando-se como uma contribuição com uma finalidade extrafiscal que tem também em vista modelar e orientar as condutas dos sujeitos passivos (sobre esta modalidade de contribuições, e.g., SUZANA TAVARES DA SILVA, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, Coimbra, 2008, págs. 48-53).
Por outro lado, estando em causa uma limitação à dedução de encargos, como excepção à regra geral da dedutibilidade dos gastos, ela poderá encontrar-se enquadrada em diversos critérios legislativos que vão desde a mera técnica de quantificação do imposto - como sucede quando se exclui da dedução a colecta de IRC –, a medidas de carácter sancionatório - quando se visa evitar a imputação ao resultado do exercício dos gastos decorrentes da prática de infracções –, ou a medidas de combate à fraude e evasão fiscais - quando se desconsideram despesas não documentadas ou gastos que podem corresponder a uma forma encapotada de pagamento de remunerações (SALDANHA SANCHES, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra, 2006, págs. 393-394).
Relativamente à CESE nada permite concluir que o legislador não tivesse pretendido seguir o primeiro dos critérios legislativos indicados, já aplicável à colecta de IRC, tendo em vista evitar que o gasto efectivo com o pagamento da contribuição pudesse ser repercutido em desfavor do Estado, através da dedução para efeitos do apuramento do lucro tributável. De facto, como se deixou exposto, a CESE tem uma finalidade extrafiscal, assumindo uma função moderadora dos comportamentos das entidades ligadas ao sector.
Em todo este contexto, não pode deixar de reconhecer-se que subsiste uma justificação plausível para a não dedutibilidade do encargo, como meio de evitar a redução do impacto financeiro que a medida legislativa pretende alcançar.
E não pode ignorar-se que o legislador adoptou idêntico tratamento legislativo em relação à contribuição para o sector bancário, que igualmente teve em vista financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector bancário, e à contribuição sobre a indústria farmacêutica, que tem por objectivo garantir sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde na vertente dos gastos com medicamentos (artigo 23.º-A, n.º 1, alíneas p) e s), estas aditadas pela Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro).
A Requerente invoca ainda a violação do princípio da igualdade por violação da proibição do arbítrio por não subsistir uma razão bastante para restringir a regra geral de dedutibilidade de gastos em relação à CESE.
Como se viu, o princípio da igualdade tributária é hoje encarado, não apenas num concepção puramente negativa, mas também de forma positiva que surge concretizada através do princípio da capacidade contributiva. Mas mesmo numa perspectiva estrita do princípio da igualdade como proibição do arbítrio, como também se deixou exposto, a restrição estabelecida em relação à CESE encontra-se enquadrada num dos critérios gerais que justificam a limitação à regra geral de dedutibilidade dos gastos, o que não pode deixar de entender-se como um fundamento bastante para um tratamento distintivo.
Não ocorre, por isso, a invocada violação de princípios constitucionais.
Vícios de conhecimento prejudicado
11. Face à improcedência do pedido arbitral fica necessariamente prejudicado o conhecimento dos pedidos de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.
III - Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica os actos tributários de autoliquidação e a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa;
b) Julgar prejudicado o conhecimento dos pedidos de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 81.561,49, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2020,
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro Vogal
Miguel Patrício
A Árbitro Vogal
Rita Calçada Pires