DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. Pedido
A..., S.A., sociedade anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., nº 2, ...-... Lisboa, doravante designada por “Requerente”, apresentou, em 17-04-2019, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação dos atos de liquidação de imposto único de circulação números 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016... e 2016... .
A Requerente alega, no essencial, o seguinte:
Tendo os veículos automóveis sobre os quais incidem as liquidações impugnadas sido dados em contratos de locação financeira e aluguer de longa duração pela Requerente, e tendo todos os locatários nesses contratos adquirido, no termo respetivo, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, passaram esses adquirentes, a partir do momento da aquisição, a ser os sujeitos passivos do IUC.
Não invalida a sujeição a imposto dos adquirentes a falta de registo dos veículos no Registo Automóvel a favor dos mesmos, desde logo porque o registo não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente de eficácia declarativa.
Do princípio da equivalência consubstanciado no artigo 1.º do Código do IUC decorre que o sujeito passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.
O art. 3º, nº 1 do CIUC estabelece uma presunção sobre quem é proprietário dos veículos automóveis sujeitos a imposto.
Prevendo o artigo 73.º da LGT que as presunções relativas a normas de incidência tributária são sempre ilidíveis, então, o único desfecho possível é o de que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC é uma presunção ilidível, que admite sempre prova em contrário.
Esta prova pode ser feita “por qualquer meio, uma vez que a lei não exige para este contrato forma escrita. No que respeita à fatura, o artigo 29.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado reconhece a factura como documento ao qual é legalmente atribuída relevância para documentar e comprovar transacções.
2. Resposta
Na contestação à petição da Requerente, pugnando pela improcedência do pedido, a Requerida alega essencialmente o seguinte:
No n.º 1 do artigo 3.º do CIUC o legislador não estabeleceu uma presunção sobre quem se considera proprietário dos veículos automóveis, mas definiu expressamente que são proprietários dos veículos automóveis as pessoas aí enunciadas;
Tal resulta não apenas do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, mas também de outras normas consagradas no referido Código, como o artigo 6.º, do qual decorre que só as situações jurídicas objecto de registo geram a obrigação de imposto.
Também, como se infere do n.º 3 do mesmo artigo, o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação directa com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo.
No mesmo sentido milita o artigo 3.º, nº 2 do CIUC ao fazer coincidir as equiparações aí consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respectivo registo.
Ainda que o art.º 3º, nº 1 do CIUC contivesse uma presunção, também não se pode considerar esta ilidida, pois os documentos apresentados como prova não têm valor probatório para ilidir a presunção legal.
3. Tramitação subsequente,
Por despacho de 24-09-2019, o Tribunal designou o dia 12-11-2019 para a realização da reunião prevista no art.º 18º do RJAT.
A reunião realizou-se na data prevista, com ambas as Partes devidamente representadas.
Nesta reunião foi produzida prova testemunhal e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas.
As Partes apresentaram alegações em que não acrescentaram matéria relevante à já aportada nos articulados.
II – SANEAMENTO
O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 17-04-2019, é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD na mesma data da sua apresentação e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 24-04-2019.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal singular, que comunicou a aceitação da designação dentro do prazo legal.
Em 11-06-2019 as Partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo oposto qualquer impedimento.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 02-07-2019.
Nestes termos, o tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
O tribunal arbitral é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.
O processo não padece de nulidades, podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n.º 1 do RJAT.
Não foram identificadas nulidades no processo.
III – QUESTÕES A DECIDIR
São as seguintes as questões a decidir:
1) Se o art.º 3º, nº 1 do Código do Imposto Único de Circulação, na redação vigente até 2 de agosto de 2016, contém uma presunção sobre quem deve ser considerado, para efeitos do imposto, proprietário do veículo automóvel objeto do mesmo, e se tal presunção é ilidível.
2) Na hipótese de o art.º 3.º, nº 1 do Código do Imposto Único de Circulação conter uma presunção ilidível sobre quem deve ser considerado, para efeitos do imposto, proprietário do veículo automóvel objeto do mesmo, se deve a mesma ser considerada ilidida pela prova apresentada pela Requerente.
IV – MATÉRIA DE FACTO
A. FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES PARA A DECISÃO DA CAUSA
São os seguintes os factos considerados provados e com relevância para a decisão da causa:
1) A Requerente foi notificada dos atos de liquidação de imposto único de circulação números 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016... e 2016..., todos referentes ao ano de 2016;
2) As liquidações dizem respeito aos veículos com as matrículas: ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ...;
3) Os veículos com as matrículas ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., ou seja, de todos os veículos sobre os quais recaem as liquidações impugnadas;
4) A Requerente emitiu as seguintes faturas e faturas/recibos:
Fatura/recibo nº 2010..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2008..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2012..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2003..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2009/..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2009..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2006..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula...;
Fatura/recibo nº 2004..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula...;
Fatura/recibo nº 2002..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula...;
Fatura/recibo nº 2003..., referente à venda do veículo com a matrícula...;
Fatura/recibo nº 2009..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2012..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura nº 001-FT ..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2006..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2006..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2009..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura nº 2013..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2006..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2002..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula...;
Fatura/recibo nº 2010..., referente à venda do veículo com a matrícula...;
Fatura/recibo nº 2012/12/30, referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula...;
Fatura/recibo nº 2010..., referente à venda do veículo com a matrícula ...;
Fatura/recibo nº 2002..., referente ao pagamento do valor residual do contrato de locação financeira do veículo com a matrícula ... .
5) Os veículos sobre os quais incidem as liquidações impugnadas encontravam-se registados na Conservatória do Registo Automóvel em nome da Requerente no momento dos alegados factos tributários.
6) A Requerente procedeu ao pagamento do imposto referente a todas as liquidações impugnadas, acrescido de juros compensatórios.
7) No sistema informático da Requerente, nomeadamente na parte deste sistema que faz a gestão dos contratos em execução, os contratos de locação financeira e aluguer de longa duração em causa encontram-se registados como tendo chegado ao termo, e tendo sido em todos os casos exercida a opção de compra pelo respetivo locatário.
8) No sistema informático da Requerente, nomeadamente na parte deste sistema que faz a gestão dos contratos em curso, não aparece, em nenhum dos contratos em causa nos autos, a informação de falta de pagamento do valor residual por parte do respetivo locatário.
Os factos dados por provados foram assim considerados com base na prova documental junta ao processo e na prova testemunhal produzida durante a reunião.
B. FACTOS NÃO PROVADOS
São os seguintes os factos considerados não provados e com relevância para a decisão da causa:
1) Que os locatários dos veículos tenham pago o preço devido pela aquisição dos veículos no fim do contrato.
Não existem outros factos não provados com relevo para a decisão da causa, para além daqueles cuja prova se discutirá na “fundamentação”.
V – FUNDAMENTAÇÃO
Quanto à questão de saber se no nº 1 do art.º 3º do CIUC (na redação vigente até ao dia 16 de agosto de 2016) se estabelecia uma presunção ou se, pelo contrário, se definia o sujeito passivo sem recurso a qualquer presunção, ela pode dar-se por encerrada no primeiro sentido indicado, ie no sentido de que a norma estabelecia uma presunção, já que a jurisprudência tanto dos tribunais administrativos superiores ((vejam-se, neste sentido, os acórdãos: TCA-Sul, 28-11-2019, proc. nº 2126/13.1BELRS; TCA-Sul, 13-03-2019, proc. nº 201/14.4BEALM; TCA-Sul, 19-03-2015, proc. nº 201/14.4BEALM ) como dos tribunais arbitrais é unânime nesse sentido (vejam-se, neste sentido as dos tribunais arbitrais: 21-10-2019, proc. nº 236/2019-T; 09-09-2019, proc. nº 189/2019-T; 25-10-2019, proc. nº 128/2019-T, entre muitos outros).
Embora apreciando a questão já no domínio da atual redação, é pertinente citar sobre esta matéria o acórdão do STA de 20-03-2019, proferido no processo nº 466/14, que diz:
“Dado que o registo do direito de propriedade sobre uma coisa móvel, cuja validade depende da regularidade do respectivo acto constitutivo, apenas confere publicidade ao acto registado, sempre é possível ilidir a presunção de que o titular inscrito no registo coincide com o efectivo titular do direito registado. Assim, quando o titular do direito de propriedade inscrito no registo não coincidir com o titular do direito de propriedade é possível ilidir a presunção de que o titular registado é o titular do direito registado, em numerosas situações com repercussões ao nível do direito civil e comercial. Deverá admitir-se que o mesmo aconteça, em sede de direito fiscal, com a consequente possibilidade de produzir a alteração em sede de incidência subjectiva de imposto dando prevalência ao acto constitutivo do direito sobre o acto registado.
O legislador pretendeu com o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação dotar a Administração Tributária de um mecanismo de fácil identificação dos sujeitos passivos deste imposto socorrendo-se da presunção constante do art.º 7.º do CRP, aplicável subsidiariamente ao registo automóvel de que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
De frisar ainda, no entanto, que a conclusão de que a norma continha uma presunção não se baseia tanto na letra do preceito – que não nos conduz definitivamente a qualquer um dos sentidos alternativos (como se explana de forma, por exemplo, na decisão arbitral proferida no processo 128/2019-T - como nos princípios do direito tributário.
Não acompanhamos, neste ponto, a tese defendida pela Requerente, e também acolhida em algumas decisões arbitrais, de que a qualificação da norma do nº 1 do art.º 3º como uma presunção se extrairia do princípio da equivalência, enunciado no art. 1º do CIUC.
Em primeiro lugar, porque o princípio da equivalência, antes de se traduzir numa específica formulação do princípio da igualdade, significa que o tributo que nele se baseia deve procurar onerar o sujeito passivo na medida do benefício que este aufere ou do custo que este causa (como, aliás, se encontra corretamente explicitado no art.º 4º do Regime geral das taxas das autarquias locais, aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro). O princípio da equivalência é, pois, em primeiro lugar, um critério para determinação do quantum do tributo.
Ora, apesar da sonante enunciação do princípio no art. 1º do CIUC, nada na lei, nos trabalhos preparatórios ou em qualquer outro elemento de informação disponível permite pensar realisticamente que, no IUC, o quantum do imposto seja ainda que remotamente determinado pelo princípio da equivalência, ie. seja determinado tendo por base uma mensuração ainda que estimativa do custo ambiental ou outro que cada veículo efetivamente gera para a sociedade.
Em segundo lugar, porque ainda que se aceite que o imposto é efetivamente, e não apenas teoricamente, baseado no princípio da equivalência, dele nunca se poderia extrair, como pretende a Requerente, que o sujeito passivo é o “utilizador efetivo” e não o titular do direito de utilização, que são duas coisas totalmente distintas. O imposto, com efeito, tributa os titulares do direito de utilização – proprietário, locatário, etc. – e não o utilizador efetivo.
A Requerente refere-se a esses sujeitos como os “utilizadores presumíveis” (ou “presumíveis causadores dos danos ou aproveitadores dos benefícios”). Mas então, seguindo a lógica da argumentação, teria que ser admitida a possibilidade de se ilidir a presunção de que o titular do direito de uso é o efetivo utilizador. O que seria absolutamente impraticável.
Preferimos, assim, seguir, quanto a este ponto, a doutrina constante da decisão arbitral proferida no processo nº 63/2014, que subscrevemos, e que transcrevemos:
A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.
Há, pois, que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.
Ou seja, estando em causa a definição de uma categoria - a de “proprietário” – e existindo tal categoria no direito civil, em princípio, e em conformidade com o art. 11.º, nº 2 da LGT, deve assumir-se que o seu conteúdo na lei tributária coincide com o do direito civil. E assim, proprietário é aquele que é titular do direito de propriedade.
Ora, no direito civil, titular do direito de propriedade não é aquele que figura no registo como tal, embora o registo faça nascer a presunção de que o titular do registo é proprietário.
É certo que o Código do IUC, por razões de eficiência na tributação, assenta numa ligação estreita ao registo automóvel; e que, certamente por razões de eficiência, o legislador frisou que se tem por proprietário aquele que como tal figura no registo.
Porém, o princípio da justiça tributária impõe que o direito tributário faça recair os tributos sobre aqueles em cuja esfera se verificam realmente os pressupostos económicos da tributação, e não se baste como meras aparências formais.
Quanto aos argumentos oferecidos pela Requerida contra a possibilidade de interpretar a norma em causa como uma presunção, consideramos que não devem proceder.
Recorrendo ao elemento teológico da interpretação da lei, diz a Requerida que o CIUC visou transformar o anterior imposto de circulação num verdadeiro imposto sobre a propriedade de automóveis. Não se contesta que assim é. Mas a questão está em saber quem é “proprietário”. Por outras palavras, aceitando a premissa de que o IUC visa tributar o proprietário e não o utilizador, quando se comprove que a entidade que figura no registo como proprietário não o é efetivamente, a questão que aqui se coloca é a de saber se, ainda assim, se deve continuar a tributar a entidade que se sabe não ser o proprietário.
Concluído que o art.º 3º, nº 1, na redação vigente até 2 de agosto de 2016, continha uma presunção sobre quem é proprietário do veículo, não há também qualquer dúvida de que tal presunção é ilidível, nos termos do art. 73º da LGT.
Resta, assim, apreciar se a Requerente provou que não era proprietária dos veículos à data dos alegados factos tributários.
A fim de provar que não era proprietária dos veículos, a Requerente apresenta os seguintes meios de prova:
A) Contratos de locação financeira dos veículos objeto das liquidações;
B) Faturas/recibo e em alguns casos faturas relativas à venda ou ao exercício do direito de opção de compra dos mesmos veículos, por parte dos locatários;
C) Depoimento da testemunha B...,
A) Contratos
Os contratos de locação financeira, obviamente, não provam a transmissão da propriedade. Provam, sim, que os veículos foram objeto de contratos de locação financeira, com o que se criaram certas condições em que se tornaria normal a sua posterior aquisição pelos locatários, mas não deixando afastada a possibilidade de tal aquisição não se verificar, desde logo porque tal aquisição não é sequer uma obrigação que impenda sobre o locatário, mas uma simples opção.
Os contratos de locação financeira incluem, por definição, uma cláusula de opção de compra a ser exercida no final do contrato. Se o contrato chega ao fim, o locatário pode, mediante o pagamento do preço residual, adquirir o bem.
B) Faturas e recibos
A Requerente exibe também faturas/recibo e faturas relativas à venda desses bens (embora em certos casos os documentos se refiram apenas a “venda” e noutros casos a “pagamento do valor residual”, na verdade trata-se da mesma coisa, pois o “valor residual” é a quantia que tem que ser paga pelo locatário no final do contrato como condição para adquirir, por compra e venda, o bem objeto do contrato e daí o termo “venda”.)
Quanto ao valor probatório de tais faturas e recibos, relativo ao facto da aquisição das viaturas pelo locatário, a Requerida procura refutar a sua aptidão para provar os factos alegados nos seguintes termos:
“A Requerente junta ainda nos documentos 24 a 46, diversas faturas/recibos, com a descrição “valor residual” ou “venda do bem”.
Dessas faturas/recibos consta a data de emissão e a data de vencimento e no lado inferior direito consta “Válido como recibo após boa cobrança”.
Houve pagamento do valor da fatura? Houve boa cobrança ou a Requerente está em situação de litígio?
Daqui decorre naturalmente a questão de saber se os documentos juntos pela Requerente constituem prova suficiente para abalar a (suposta) presunção legal estabelecida no artigo 3.o do CIUC.
Claramente que não, pelo que se impugnam para todos os efeitos legais os Documentos juntos ao pedido arbitral, uma vez que os mesmos não provam de forma clara e inequívoca que ocorreu a transmissão do veículo e consequentemente da propriedade do mesmo.
Com efeito, a Requerente não junta um único extracto financeiro ou cheque que prove que as faturas foram pagas ou se os contratos foram cumpridos, ou se, pelo contrário estão em contencioso.
Ao que a Requerente responde:
Confrontada com os documentos juntos pela Requerente nos presentes autos e o seu valor probatório com a finalidade de ilidir a presunção legal estabelecida no n.º 1 do artigo 3.o do Código do IUC, a AT limita-se a manifestar as suas inquietações que se enredam em inúmeras indagações excessivamente subjectivas em matéria de apreciação e até valoração da prova documental que merecem total desconsideração por parte deste Tribunal Arbitral e que, em boa verdade, foram cabalmente respondidas pela testemunha inquirida no depoimento prestado (vg. o desuso da figura do cheque nas instituições financeiras, a autorização de débito direto na conta do cliente, a plataforma eletrónica que disponibiliza serviços financeiros, modernos, fiáveis e seguros, designadamente na área dos pagamentos; e a tipologia do ALG/LSG terminado que naturalmente pressupõe a emissão da fatura e o recebimento do respetivo valor).
No entanto, haverá que notar, sem, também, lançar mão do expediente processual contemplado no artigo 444.º do Código de Processo Civil («CPC»), subsidiariamente aplicável ao RJAT, de que dispunha para o efeito, ou sequer, sem cumprir o ónus mínimo de alegação e de fundamentação que lhe competia para contrariar a presunção de veracidade de que, nos termos do artigo 75.º da LGT, goza a documentação junta nos presentes autos.
Se havia sérias dúvidas da veracidade da prova documental junta nos presentes autos, não restava outra alternativa à AT senão recorrer aos mecanismos processuais acima elencados – o que não se verificou.
Ora, com o devido respeito pela posição de ambas as Partes, não nos parece que o que a Requerida faz seja uma impugnação da validade ou veracidade dos documentos em causa, enquadrável no art.º 444º CPC.
O que a Requerida faz, sim, é impugnar a validade dos documentos em causa como aptos a provar o facto da aquisição das viaturas, o que tem a ver com o seu conteúdo e função, e não com a sua veracidade. E para isso basta-lhe justificar essa inaptidão, não tendo nem devendo recorrer ao art. 444º do CPC.
A Requerida observa, em primeiro lugar, que todos os documentos intitulados “fatura” e “fatura/recibo” contêm a menção “Válido como recibo após boa cobrança”.
O que esta menção significa, com efeito, é que o preço constante da fatura ou do recibo em causa ainda não foi pago no momento da respetiva emissão.
Aliás, a natureza tanto da fatura como da fatura/recibo é exatamente essa: é a de um documento emitido unilateralmente pelo credor (vendedor ou prestador de serviços) que informa o devedor (adquirente) das condições de um negócio já realizado já realizado ou não.
Daí que se um comerciante, quiser reclamar em via judicial o preço de um serviço ou de uma venda efetuados a um cliente, não lhe basta exibir uma fatura. Terá de juntar prova de a venda foi efetivamente efetuada ou o serviço efetivamente prestado.
O documento de quitação do preço pago recebe o nome de “recibo”, não de “fatura” ou “fatura/recibo”.
Por isso tais documentos não são aptos a provar o pagamento do preço, sendo essa a razão pela qual se apõe neles a menção “Válido como recibo após boa cobrança”.
C) Prova testemunhal
Concluindo-se então que a prova documental apresentada não é apta a provar a transmissão dos bens, cabe apreciar se o depoimento testemunhal descrito permite concluir que a Requerente ilidiu a presunção do art.º 3º do CIUC.
A testemunha, por sua vez, empregada da Requerente, disse:
Desempenhar funções de “back office” na organização da Requerente;
Não pertencer ao serviço dos “meios de pagamento”
Caber-lhe analisar, entre outras funções, a informação disponibilizada pelo sistema informático da Requerente no respeitante ao curso dos contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração;
Não existir um documento que prove o pagamento quando um adquirente de um veículo procede ao pagamento do valor residual;
Pelo que observou no sistema informático, em relação a nenhum dos contratos em causa se verificou ter havido falta de pagamento do valor residual.
Os contratos em causa se encontravam, à data dos alegados factos tributários, classificados de acordo com o sistema interno de classificação como “contratos findos”, pressupondo tal terminologia que os ditos contratos tinham terminado com a transmissão dos veículos para os locatários.
Apreciação da prova
Para a apreciação da prova, deve começar por se firmar se o que está em causa é, apenas, a ilisão da presunção do art. 3º, nº 1 do CIUC ou, pelo contrário, ilidir a presunção que resulta do registo automóvel (presunção, quer num caso quer noutro, de que a propriedade do veículo automóvel registado pertence ao titular do registo).
Existindo já vasta jurisprudência sobre a matéria, cremos que maioritariamente ela se decide pela segunda solução apontada: do que se trata, em casos como o dos autos, é de ilidir a presunção de titularidade que resulta do registo automóvel.
Neste sentido, pode citar-se o acórdão do STA de 20-03-2019 (proc. nº 466/14 1.BEMDL 0273/18), em que se diz:
“Dado que o registo do direito de propriedade sobre uma coisa móvel, cuja validade depende da regularidade do respectivo acto constitutivo, apenas confere publicidade ao acto registado, sempre é possível ilidir a presunção de que o titular inscrito no registo coincide com o efectivo titular do direito registado. Assim, quando o titular do direito de propriedade inscrito no registo não coincidir com o titular do direito de propriedade é possível ilidir a presunção de que o titular registado é o titular do direito registado, em numerosas situações com repercussões ao nível do direito civil e comercial. Deverá admitir-se que o mesmo aconteça, em sede de direito fiscal, com a consequente possibilidade de produzir a alteração em sede de incidência subjectiva de imposto dando prevalência ao acto constitutivo do direito sobre o acto registado.”
Portanto, a questão que há que decidir é se, para efeitos fiscais, a prova apresentada pela Requerente ilide a presunção resultante do registo automóvel de que a propriedade pertence ao titular registado.
A questão tem sido apreciada inúmeras vezes, quer pelos tribunais administrativos e fiscais, quer pelos tribunais arbitrais.
E embora se trate de uma questão de apreciação da matéria de facto, que, por esse motivo, não tem que moldar-se a qualquer orientação jurisprudencial, também é certo que, por se tratar de uma questão de facto que se vem repetindo recorrentemente com a mesma configuração, e em nome do princípio da certeza na aplicação do direito, não podemos deixar de considerar relevante o modo como os tribunais a têm tratado.
Aliás, é importante notar que existe até um caso em que, no recurso para o STA, de sentença proferida pelo TAF de Penafiel, foi expressamente a questão de saber “se a sentença atribuiu um correto valor probatório aos documentos apresentados para demonstração da venda da viatura referida nos autos (questão do valor probatório dos documentos necessários para afastar a presunção)”. E tendo a questão sido suscitada no recurso, o Supremo Tribunal considerou dever pronunciar-se sobre ela, afirmando: “resta ainda apreciar se ocorre oposição quanto ao valor probatório da fatura e recibo no contrato de compra e venda.” (STA, 23-05-2018, proc. 01341/17).
O que, pensamos, corrobora a nossa assunção inicial de que, sendo embora uma questão de apreciação da matéria de facto, normalmente subtraída ao princípio aplicação uniforme do direito, pela recorrência com que se coloca e pela similitude das provas apresentadas, justifica uma preocupação de uniformização, tanto quanto possível, das decisões jurisdicionais.
Ora, na grande maioria dos casos que deram origem a recursos quer para o Supremo Tribunal Administrativo quer para o Tribunal Central Administrativo, os sujeitos passivos apresentaram, além das faturas de venda, elementos de prova que demonstravam ou implicavam a intervenção dos adquirentes dos veículos. Em alguns outros casos, os sujeitos passivos, ao pedir a anulação das liquidações de IUC, haviam pedido o cancelamento das matrículas dos veículos sobre os quais as mesmas liquidações incidiam; e ainda em alguns outros casos, os sujeitos passivos exibiram documentos aduaneiros de exportação com vista a provar a saída dos veículos do território nacional.
Assim, no acórdão do TCAN de 07-12-2017 (proc. nº 358/14.4BEVIS), em que o Tribunal, negando provimento ao recurso, manteve decisão que anulara as liquidações de IUC considerando ilidida a presunção do art.º 3º do CIUC, o sujeito passivo tinha exibido seguro automóvel efetuado pelo adquirente e efetuado pedido de cancelamento da matrícula consequentemente às liquidações do imposto por si considerado indevido;
No caso julgado no acórdão do mesmo Tribunal de 01-06-2017 (proc. nº 2502/14.2BEPRT), em que igualmente se considerou ilidida a presunção do art. 3º, nº 1 do CIUC, o sujeito passivo apresentou como meio de prova, além de fatura comercial, o contrato de seguro automóvel celebrado pelo alegado adquirente.
No acórdão do mesmo Tribunal de 11-01-2018 (proc. nº 888/13.5BEPRT), em que confirmou o tribunal a sentença do TAF do Porto que anulara as liquidações de IUC por julgar ilidida a presunção do art. 3º, nº 1 do CIUC, o sujeito passivo exibiu “termos de responsabilidade” dos adquirentes em que estes declaravam ter adquirido as viaturas.
No acórdão do mesmo Tribunal de 21-02-2019 (proc. nº 611/13.4BEVIS), em que foi apreciado recurso de sentença do TAF de Viseu que anulara liquidações de IUC considerando ilidida a presunção do art. 3º, nº 1 do CIUC, o sujeito passivo apresentou prova testemunhal do próprio adquirente do veículo.
No acórdão do TCAS de 14-03-2019 (proc. nº 201/14.4BEALM), em que o Tribunal confirmou decisão do TAF de Almada que anulara várias liquidações de IUC por julgar ilidida a presunção do art. 3º, nº 1 do CIUC, o sujeito passivo juntou documentos de exportação, com os quais demonstrou que o veículo em causa tinha saído do território português, e ainda um “termo de responsabilidade” por parte do comprador.
O mesmo aconteceu no acórdão do STA de 23-05-18 (proc.1341/17), em que o Tribunal revogou, por oposição de julgados, sentença do TAF de Penafiel que julgar improcedente impugnação de IUC por impossibilidade de ilidir a presunção do art. 3º, nº 1 do CIUC.
No acórdão do STA de 20-03-2019 (proc. nº 466/14.1BEMDL), que confirmou sentença do TAF de Mirandela que anulara várias liquidações de IUC por julgar ilidida a presunção do art. 3º, nº 1 do CIUC, o sujeito passivo pediu o cancelamento das matrículas dos veículos sobre os quais as mesmas liquidações incidiam anteriormente à impugnação.
O mesmo – pedido de cancelamento das matrículas por parte dos sujeitos passivos – aconteceu nos casos sobre os quais recaíram os acórdãos do STA de 30-03-19 (proc. nº 466/14) e de 18-04-2018 (proc. nº 206/17).
Este levantamento que é aqui efetuado da jurisprudência referente à questão da prova com vista à ilisão da presunção do art. 3º, nº do CIUC mostra que, na maior parte dos casos, os sujeitos passivos juntaram determinados elementos de prova que vão para além das faturas: declarações dos próprios adquirentes, pedidos de cancelamento das matrículas, que mostram a vontade inequívoca do sujeito passivo em regularizar a situação registal, ou documentos de exportação, que provam a exportação dos veículos do território nacional efetuada por terceiros.
Contudo, existe uma corrente jurisprudencial, que não colidindo com nada do que se verte nas anteriores decisões, afirma que no contexto das relações tributárias, e especificamente para efeitos de tributação em IUC, a exibição de faturas comerciais emitidas pelo sujeito passivo é suficiente para ilidir a presunção do art.º 3º, nº 1 do CIUC, afastando a sua qualidade de proprietário dos veículos.
Exemplo desta corrente jurisprudencial são os acórdãos do TCAN de 22-02-2018 (proc. nº 938/13.5BEPRT), de 19-06-2019 (proc. nº 1269/14.9BEPNF) e de 01-06-2017 (proc. nº 2502/14.2BEPRT).
No primeiro dos três arestos citados diz-se:
“Como já ficou exposto, a decisão recorrida entendeu que a prova apresentada pela Impugnante, constituída exclusivamente pelas facturas, não possui valor suficiente para, à luz do direito probatório material, demonstrar que os factos presumidos – a propriedade dos veículos – não são verdadeiros.
Para o efeito, a decisão recorrida faz alusão ao Ac. do T.C.A. Sul de 19-03-2015, Proc. nº 8300/14, www.dgsi.pt, onde se ponderou, perante a existência de facturas relativas à venda dos veículos em causa e notas de débito através das quais registou na sua contabilidade o montante do preço relativo às facturas emitidas e em dívida pelos adquirentes, que “nos encontramos perante meros documentos particulares e unilaterais, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado acordo, assim tendo um reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático, como é a compra e venda. E recorde-se que qualquer dos documentos contabilísticos em causa não prova, sequer, o pagamento do preço pelo comprador. Tanto a factura como a nota de débito constituem documentos contabilísticos elaborados no seio da empresa e que se destinam ao exterior. A factura deve visualizar-se como o documento contabilístico através do qual o vendedor envia ao comprador as condições gerais da transacção realizada. Por sua vez, a nota de débito consiste no documento em que o emitente comunica ao destinatário que este lhe deve determinado montante pecuniário. Ambos os documentos surgem na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador, assim não fazendo prova do pagamento do preço pelo mesmo comprador e, por consequência, prova de que se concluiu a compra e venda (somente a emissão de factura/recibo ou de recibo faz prova do pagamento e quitação - cfr.artº.787, do C.Civil; António Borges e Outros, Elementos de Contabilidade Geral, 14ª. edição, Editora Rei dos Livros, pág.62 e seg.). …”.
Neste domínio, é sabido que:
“E) A Impugnante emitiu a factura n.º 221.1.006/87, datada de 08/04/1987, a favor de M…, da qual consta, a seguinte menção: “Uma viatura usada marca M.A.N., matricula AE” - “Valor: 150.000$00”. Fls 32.
F) A Impugnante emitiu a factura n.º 231.1.010/87, datada de 31/12/1987, a favor de A…, da qual consta, a seguinte menção: “1 viatura usada marca FORD, modelo D0707, matrícula GA.” - “Valor:100.000$00”. Fls 33.
G) A Impugnante emitiu a factura n.º 231.1.019/90, datada de 23/04/1990, a favor de “S…, Lda”, da qual consta, entre outras, as seguintes menções: “BERLIET, matrícula CA.” - “Valor: 350.000$00”. “BEDFORD, matrícula DM.” - “Valor: 200.000$00”.Fls 35.
H) A Impugnante emitiu a factura n.º 221.1.0070/90, datada de 16/07/1990, a favor de D…, da qual consta a seguinte menção: “Fornecimento de uma viatura usada da marca FIAT,… matricula BG” - “Valor: 90.000$00”. Fls 36.
I) A Impugnante emitiu a factura n.º 221.1.077/90, datada de 31/12/1990, a favor de “P…, Lda”, da qual consta, entre outras, a seguinte menção:“M.A.N. Matrícula HR“ “Valor: 500.000$00”. Fls 37.
J) A Impugnante emitiu a factura n.º 3710026, datada de 21/12/1993, a favor de “Transporte…” , da qual consta, entre outras, a seguinte menção:“Um camião FIAT, modelo 170NT35 de matrícula OO” “Valor: 250.000$00”. Fls 38.”
Com este pano de fundo, quando se tem presente a informalidade que envolve este tipo de transacção, cremos que as facturas descritas nos autos merecem, à partida, maior crédito do que aquele que a decisão recorrida lhes pretende atribuir, até porque nada é referido pela AT no que concerne aos termos em que foram emitidas as aludidas facturas, sem olvidar que a prova tem de ser analisada em função do enquadramento da situação em apreço que, no caso, passa pela análise de vendas que ocorreram, nesta altura, há mais de 30 anos, tendo a mais recente cerca de 25 anos, além de que estão em causa bens em 2ª mão.
Como quer que seja, a factura resulta do cumprimento do disposto no art. 29º nº 1 al. b) do CIVA, sendo que a factura deve também obedecer aos requisitos previstos no mesmo diploma, até porque será com base neste documento que o adquirente, quando se trate de um operador económico, procederá à dedução do IVA a que tenha direito e contabilizar o gasto inerente à transacção em causa, do mesmo modo que o vendedor deverá contabilizar o rendimento obtido.
Mas mais.
A factura constitui documento contabilístico elaborado no seio da empresa e que se destina ao exterior, mormente, à AT, que dela extrai todos os efeitos inerentes em sede de valoração para incidência de diversos impostos, o que significa que, a menos que se demonstre a sua falsidade, as facturas presumem-se válidas para todos os efeitos legais, não podendo deixar de o ser, apenas e só, como meio de prova da transacção, relevante para efeitos de incidência de IUC.
A partir daqui, cabe ter presente que, nos termos do art. 75º nº 1 da LGT, “presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”, o que envolve também os documentos justificativos, sendo recorrentes as situações em que AT desconsidera as operações tituladas por certas facturas com fundamento no facto de as mesmas não serem o suporte das operações que visam titular - “facturas falsas”.
Sendo assim, perante a relevância que a lei fiscal atribui à factura emitida nos termos legais e considerando a presunção de veracidade da operação que a mesma titula, afigura-se-nos que não será descabido considerar que a factura poderá ser, só por si, prova bastante da aludida operação, situação que se afasta do exposto na decisão recorrida.
Diga-se ainda que estamos perante transacções comerciais, efectuadas por uma entidade empresarial no âmbito da actividade que constitui seu objecto social e, nesse âmbito, a empresa está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a facturação assume especial relevância, pois que, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma factura relativamente a cada transmissão de bens qualquer que seja a qualidade do respectivo adquirente (CIVA, art. 29.º, n.º 1, alínea b), sendo que a factura deve obedecer a determinada forma, detalhadamente regulada nos artigos 36.º do Código do IVA e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 198/90, de 19 de Junho.
Ora, na sua contestação, a AT limita-se a dizer que são parcos os elementos documentais juntos até ao momento, não colocando em crise os elementos que constam dos mesmos.
Ora, é com base nesse documento emitido pelo fornecedor dos bens que o adquirente, quando se trate de um operador económico - como é o caso da generalidade das situações a que se refere o presente processo - irá deduzir o IVA a que tenha direito (CIVA, art. 19.º, n.º 2) e contabilizar o gasto da operação (CIRC, arts. 23.º, n.º 6 e 123.º, n.º 2) e é também com base na facturação por si emitida que o fornecedor dos bens deverá contabilizar os respectivos rendimentos, conforme decorre do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 123.º do CIRC.
Assim, desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT, verificando-se que a já referida presunção abrange não só os livros e registos contabilísticos, mas também os respectivos documentos justificativos, sem prejuízo de a presunção de veracidade das facturas comerciais emitidas nos termos legais poder, porém ser afastada sempre que as operações a que se referem não correspondam à realidade, bastando, para tanto, que a Administração Tributária recolha e demonstre indícios fundados desse facto.
Nesta situação, como se viu, a Recorrida não impugnou, nem suscita qualquer dúvida, quanto às operações tituladas pelas facturas apresentadas pela Requerente, o que significa que em função da relevância atribuída pela legislação tributária às facturas emitidas, nos termos legais, pelas empresas comerciais no âmbito da sua actividade empresarial e a presunção de veracidade das operações por elas tituladas, não pode deixar de considerar-se que as mesmas constituem, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela ora Recorrente.
E no acórdão de 19-06-2019, o Tribunal diz:
A elisão da presunção legal obedece à regra constante do artº. 347.º, do Código Civil, demonstrando-se que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais. Tendo sido apurado que a Recorrente não impugnou que em 15.12.2009 a Oponente emitiu factura com o n.º 2009000245 à sociedade “AEC. S.A. com morada em E… Ribeira de S…, Câmara de Lobos, no valor de total de € 17 500,00 com IVA incluído de 20%, relativo ao camião usado, marca Volvo, modelo FL614, matricula xx-xx-QQ.
Em 31.01.2007 a Oponente emitiu factura com o n.º 200700015 à sociedade “JD, Lda”. com morada na Rua A…, Paredes, Rebordosa, no valor de total de € 8 000,00 com IVA incluído de 21%, relativo ao trator Mercedes, matricula xx-xx-CO.
Em 07.07.2009, a Oponente emitiu factura com o n.º 200900139 à sociedade.., S.A., com morada no Edifício D… Lisboa, no valor total de € 10 000,00, com IVA, incluindo à taxa de com IVA incluído de 20%, relativo ao F1036, matricula xx-xx-BS.
Em 16.07.2009, a Oponente emitiu factura com o n.º 200900144 à sociedade EV, Lda., com morada na Rua J…, 4795-405 S. Mamede Negrelos, no valor total de € 32 500,00, com IVA, incluindo à taxa de 20%, relativo ao veículo mercedes 1843, matricula xx-AB-xx.
Ter-se-á de concluir que foi ilidida a presunção estabelecida no artigo 3.º n.º 1 do CIUC, uma vez, que a Recorrida fez prova, através de documentos comprovativos da transmissão dos veículos em causa, pelo que não era possuidora nem proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço.
Também no CAAD, a corrente que afirma perentoriamente que as faturas comerciais emitidas pelo sujeito passivo são prova suficiente da transmissão tem vindo a fortalecer-se.
Exemplo dessa linha jurisprudencial são as decisões proferidas nos processos 376/2017-T, de 14-12-2017, na qual se diz:
“Tratando-se de contractos que envolvem a transmissão da propriedade de bens móveis mediante o pagamento de um preço, têm aqueles, como efeitos essenciais, entre outros, o de entregar a coisa (C. Civil, arts. 874.º e 879.º).
No entanto, estando em causa um contrato de compra e venda que tem por objeto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório, o seu cumprimento pontual pressupõe a emissão da declaração de venda necessária à inscrição no registo da corresponde aquisição a favor do comprador, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.[6]
Tal declaração, relevante para efeitos de registo, poderá constituir prova da transação, mas não constitui o único ou exclusivo meio de prova de tal facto.
Para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, que, através de declaração de venda confirma que a propriedade do veículo foi por aquele adquirida por contrato verbal de compra e venda (vd. Regulamento do Registo Automóvel, art. 25.º, n.º 1, alínea a)).
Não obstante serem estas as regras decorrentes das disposições da lei civil, relativas ao informalismo da transmissão de coisas móveis e, sendo o caso, do respetivo registo, não pode deixar de ter-se também presente que, na situação em análise, estamos perante transações comerciais, efetuadas por uma entidade empresarial no âmbito da atividade que constitui seu objeto social.
Nesse âmbito, a empresa está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a faturação assume especial relevância.
Desde logo, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma fatura relativamente a cada transmissão de bens qualquer que seja a qualidade do respetivo adquirente (CIVA, art. 29.º, n.º 1, alínea b).
Também de acordo com o disposto em normas tributárias, a fatura deve obedecer a determinada forma, detalhadamente regulada nos artigos 36.º do Código do IVA e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 198/90, de 19 de Junho.
É com base nesse documento emitido pelo fornecedor dos bens que o adquirente, quando se trate de um operador económico - como é o caso da generalidade das situações a que se refere o presente processo - irá deduzir o IVA a que tenha direito (CIVA, art. 19.º, n.º 2) e contabilizar o gasto da operação (CIRC, arts. 23.º, n.º 6 e 123.º, n.º 2).
Por seu lado, é também com base na faturação por si emitida que o fornecedor dos bens deverá contabilizar os respetivos rendimentos, conforme decorre do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 123.º do CIRC.
Desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT.
Com efeito, a referida presunção abrange não só os livros e registos contabilísticos, mas também os respetivos documentos justificativos, conforme, de resto, constitui entendimento pacífico da própria administração tributária [7] e da jurisprudência firmada dos tribunais superiores [8].
A presunção de veracidade das faturas comerciais emitidas nos termos legais pode, porém, ser afastada sempre que as operações a que se referem não correspondam à realidade, bastando, para tanto, que a Administração Tributária recolha e demonstre indícios fundados desse facto (LGT, art. 75.º, n.º 2, al. a).
No presente caso, a Requerida não impugnou, nem suscita qualquer dúvida, quanto às operações tituladas pelas faturas apresentadas pela Requerente.
Considerada, pois, a relevância atribuída pela legislação tributária às faturas emitidas, nos termos legais, pelas empresas comerciais no âmbito da sua atividade empresarial e a presunção de veracidade das operações por elas tituladas, não pode deixar de considerar-se que as mesmas constituem, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela Requerente, acompanhando-se, nesta matéria, a jurisprudência arbitral maioritária.
E não a há dúvida de que esta corrente jurisprudencial se tornou hoje não só maioritária, como sólida, pois assente numa doutrina consistente.
Tudo isto visto, parece-nos dever concluir a questão particular de saber se as faturas comerciais emitidas pelo sujeito passivo provam a transmissão do veículo automóvel, sem mais, pede, hoje, uma relativização do princípio da livre apreciação das provas, contido no artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil. Nesta situação em particular, pela recorrência com que a mesma questão probatória é colocada, o julgamento da matéria de facto tem que ser conciliado com o princípio da certeza na aplicação do direito.
E é por isso que aderimos à corrente exposta, que é dominante nos tribunais arbitrais mas é também, sem se poder dizer dominante, solidamente afirmada pelo Tribunal Central Administrativo-Norte, sem que se encontre nos outros tribunais superiores uma posição que claramente se lhe oponha.
E assim, adiantando o sentido da decisão, há que considerar que a Requerente logrou, através da prova apresentada, consistente em faturas e faturas/recibo relativas às vendas dos veículos, ilidir a presunção do art.º 3º nº 1 do CIUC, com o que as liquidações impugnadas devem ser julgadas ilegais.
VI. JUROS INDEMNIZATÓRIOS
No que diz respeito ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, seguimos também o entendimento expresso no acórdão arbitral citado, em que se expende a seguinte doutrina:
“Nos termos do n.º 1 do art. 43º da LGT, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido."
O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
No presente caso, ainda que se reconheça não ser devido o imposto liquidado à Requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando-se, em consequência, a anulação das liquidações questionadas, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito a favor do contribuinte.
Com efeito, ao promover as liquidações de IUC considerando a Requerente como sujeito passivo deste imposto, a Administração Tributária não poderia proceder por forma diversa, limitando-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
Por outro lado, também como já se concluiu, a referida norma tem a natureza de presunção legal, de que decorre, para a AT, o direito/dever de liquidar o imposto e exigi-lo a essas pessoas, sem necessidade de provar os factos que a ela conduz, conforme expressamente prevê o n.º 1 do art. 350.º do Código Civil.
Não se mostrando, assim, reunidos os pressupostos em que se suporta o direito a juros indemnizatórios, não pode, pois, nesta vertente, o pedido proceder.
Todavia, estipula o artigo 100.º da LGT que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
No presente caso, a anulação das liquidações ocorreu por via da impugnação do indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente em Setembro de 2016, pelo que lhe é aplicável o disposto na al. c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT: “3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (…) - c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”
O facto de a AT ter decidido antes do decurso do prazo de um ano (cerca de três meses após os pedidos de revisão) não é, no entender deste Tribunal Arbitral, circunstância inibitória do direito aos juros indemnizatórios reclamados pela Requerente, porquanto nessa sede a AT não reviu os atos tributários, antes obrigando a Requerente a recorrer do indeferimento para este Tribunal.
Com efeito, constitui jurisprudência pacífica que os juros indemnizatórios são devidos sempre que a AT decida favoravelmente à pretensão do contribuinte, depois de decorrido aquele prazo de um ano a contar do pedido de revisão, como serão igualmente devidos quando decorra mais de um ano após o pedido de revisão por o contribuinte se ver obrigado a recorrer à via judicial para obter decisão favorável à sua pretensão, em virtude de a AT (dentro ou fora daquele prazo) ter recusado rever o ato.[12] Tal é o que sucede no caso da Requerente que só depois de recorrer a esta arbitragem vê proceder a sua pretensão.
Concluindo: a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, mas apenas àqueles que forem devidos a partir de um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa e até à data da restituição à Requerente dos montantes das liquidações anuladas.
VII. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, o presente Tribunal decide:
1) Declarar ilegal e anular, por erro nos pressupostos de direito, os atos de liquidação de Imposto Único de Circulação números 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016..., 2016... e 2016...;
2) Condenar a Requerida ao reembolso, à Requerente, dos montantes indevidamente pagos por esta a título de imposto e de juros compensatórios;
3) Condenar a Requerida a pagar à Requerente juros indemnizatórios sobre os montantes indevidamente pagos e que sejam vencidos a partir de um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa e até à data da restituição à Requerente dos montantes das liquidações anuladas
Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em € 1.079,35 euros (mil, setenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos).
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 306.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às Partes.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 16 de fevereiro de 2020
O Árbitro
(Nina Aguiar)