DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Conselheira Doutora Maria Fernanda dos Santos Maçãs, árbitro-presidente, Professor Doutor Rui Medeiros e João Menezes Leitão, árbitros-vogais, que constituem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. Relatório
1. A..., S. A. (a seguir “A...” ou “Requerente”), pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., ..., ...-... ..., ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações posteriores (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), apresentou em 4.4.2019 pedido de pronúncia arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Contribuição Extraordinária Sobre o Setor Energético (CESE) n.º 2018..., relativa ao ano de 2014, e da correspondente liquidação de juros compensatórios.
2. No pedido de pronúncia arbitral, em conformidade com o previsto nos artigos 5.º, n.º 3, al. b), 6.º, n.º 2, al. b), 10.º, n.º 2, al. g) e 11.º, n.º 2 do RJAT, a Requerente designou como árbitro o Professor Doutor Rui Medeiros.
Nos termos do n.º 3 do artigo 11.º do mesmo RJAT, a Requerida indicou como árbitro João Menezes Leitão.
Por solicitação dos árbitros designados pelas partes, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, designou como Árbitro Presidente a Senhor Conselheira Doutora Maria Fernanda dos Santos Maçãs.
As partes foram devidamente notificadas destas designações, às quais não opuseram recusa nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
3. Nos termos do n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, e conforme comunicação do Senhor Presidente do CAAD, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 12.6.2019.
4. No pedido de pronúncia arbitral (a seguir, petição inicial ou PI), a Requerente alega, em síntese, que as liquidações da CESE e dos correspondentes juros compensatórios, aqui impugnadas, são ilegais por padecem de vícios materiais e formais, a saber:
a) ilegalidade material da liquidação da CESE sindicada, por se dever entender, atento o disposto na alínea d) do art. 4.º do Regime Jurídico da CESE (a seguir RCESE), que isenta da CESE “a produção de eletricidade por intermédio de centros electroprodutores com licenças ou direitos contratuais atribuídos na sequência de concurso público, desde que os respetivos produtores não se encontrem em incumprimento das obrigações resultantes da adjudicação no âmbito de tais procedimentos”, que a Requerente integra o âmbito dessa isenção, dado que a licença de exploração do centro electroprodutor da Central ..., de que a Requerente é titular, resultou de um “procedimento de consulta pública”, o qual constitui um “procedimento concorrencial subsumível no conceito de concurso público ali previsto”, portanto, um “[p]rocedimento que, para todos os efeitos e, aqui em concreto, para subsunção na previsão da alínea d) do artigo 4.º, deverá ser equiparado a um procedimento de concurso público, tal como o mesmo é hoje caracterizado”, o que “não corresponde a uma qualquer alegação espúria, ou isolada ou mesmo atrevida por parte da Requerente”, mas é “a posição reiterada e mesmo unânime na voz pública de diversos responsáveis, designadamente no contexto parlamentar” e “o atestam, à exaustão, quer os documentos conformadores do concurso em causa, quer a Comunicação da Comissão Europeia, concretamente sobre o caso da Central ..., no caso n.º IV/E-3/..., e o Despacho n.º ... de 09.08.1991, do Ministério da Indústria e Energia, que culminam no título de licença de produção de energia elétrica atribuída subsequentemente pela Direção-Geral de Energia” (artigos 8.º a 49.º e 152.º a 236.º da PI);
b) vício de preterição de formalidade essencial por violação do dever legal de análise e verificação dos factos invocados pelo sujeito passivo e ponderação dos contributos por este fornecidos, no relatório final do procedimento de inspeção (arts. 50.º e 52.º a 75.º da PI);
c) vício quanto ao procedimento, por equivocamente ter baseado a decisão final adotada na verificação de um pressuposto erróneo, inexistindo o parecer de sentido e natureza vinculativa de que a AT se socorre (arts. 50.º e 76.º a 109.º da PI);
d) vício de falta de fundamentação da decisão, atendendo aos termos imprecisos e, no mínimo, pouco consistentes da posição firmada, que não a permitem de todo sustentar, não tendo a AT feito a apreciação que lhe incumbia (arts. 50.º e 110.º a 123.º da PI);
e) vício de violação do ónus de instrução e junção do processo administrativo que a AT deveria ter assegurado, ainda, ao abrigo dos princípios da colaboração e da cooperação, por ser aquela detentora da documentação procedimental necessária ao esclarecimento dos contornos do caso e, assim, a única capaz de garantir uma adequada instrução do procedimento (arts. 50.º e 125.º a 151.º da PI).
5. A AT, ao abrigo do artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, apresentou resposta em que se defendeu por exceção e por impugnação, peticionando, na procedência da exceção invocada, a sua absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, pela improcedência, por não provado, do pedido de pronúncia arbitral formulado, a sua absolvição do pedido.
A exceção invocada pela Requerida (arts. 38 a 47 da resposta) prende-se com a alegação de que não cabe na competência dos tribunais arbitrais do CAAD, a que a AT se vinculou, a apreciação do presente pedido arbitral, o que fundamenta no facto de a CESE, cuja liquidação n.º 2018... aqui se aprecia, constituir uma contribuição financeira (“não só assim classificada formalmente pelo legislador mas também assim se configurando materialmente pois que é possível identificar uma prestação presumivelmente provocada ou aproveitada pelos sujeitos passivos da CESE”) e não um imposto, pelo que “nos termos conjugados dos artigos 4.º n.º 1 do RJAT e do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, o tribunal será materialmente incompetente para apreciar o mérito da presente causa, pelo que deve a Requerida ser absolvida da instância”.
Em sede de impugnação, a Requerida alega, em síntese, o seguinte:
a) quanto à ilegalidade material invocada, que “em momento algum a Requerente prova aquilo que alega, ou seja, (...) que a exploração da central de ciclo combinado a gás na ... lhe tenha sido atribuída através de concurso público, para efeitos de aplicação da isenção prevista na alínea d) do art.º 4.º da RCESE”, não permitindo os documentos apresentados “concluir pela verificação dos pressupostos do benefício fiscal em causa”, já que um concurso público “é o procedimento objeto de anúncio num jornal oficial (Diário da República e/ou JOUE) no qual, através da apresentação de uma proposta, pode participar qualquer entidade que preencha os requisitos gerais de participação”, pelo que a Requerente encontra-se sujeita e não isenta de CESE nos termos da alínea a) do art. 2.º do RCESE (arts. 48 a 83 e 136 a 211 da resposta);
b) quanto aos vícios formais alegados, que são inexistentes, como resulta do Relatório de Inspeção Tributária, assentando a sua invocação simplesmente no “facto de a Requerente não se querer conformar com os atos atacados” (arts. 84 a 135 da resposta);
Adita ainda a Requerida que “a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição da República Portuguesa”, devendo ser julgada “inconstitucional a alínea d) do art.º 4.º da RCESE, por violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da proteção jurídica e da confiança (n.º 2 e 3 do art.º 103.º da CRP), quando interpretado no sentido de que a atribuição das licenças de produção de energia elétrica nos termos dos Decretos-Lei n.º 99/91 e n.º 100/91, ambos de 2 de Março, configuram concursos públicos para efeitos de aplicação da isenção nela prevista”, assim como por violação do “princípio constitucional da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos 2.º e 111.º da CRP, constituindo-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cfr. artigos 202.º e 203.º da CRP), bem como do princípio constitucional da igualdade (cfr. artigo 13.º da CRP)” (arts. 212 a 227 da resposta).
6. Notificada da resposta apresentada pela Requerida, a Requerente exerceu o contraditório quanto à “questão prévia da competência material deste Tribunal” mediante “réplica em resposta à exceção” que apresentou em 17.9.2019 e na qual sustentou a improcedência da exceção suscitada, com base, em súmula, nos seguintes dois motivos:
i) a necessidade de interpretação corretiva e atualista da Portaria n.º 112-A/2011, sustentando-se que “[s]erá irrelevante a natureza do tributo desde que a sua administração se compreenda na esfera de competências da AT, pelo que caberá fazer uma leitura corretiva da norma do artigo 2.º da Portaria, considerando a medida ou extensão da prerrogativa concedida ao Estado de dispor quanto à competência dos tribunais arbitrais, necessariamente contida nos termos do RJAT” (n.º 22) e “[n]ão existe (...) qualquer motivo para que a Portaria n.º 112-A/2011 não seja lida de forma atualista, considerando as atribuições e competências atuais da AT, e em consonância com o regime que a legitima e funda, o RJAT” (n.º 33), pelo que “a vinculação operada através da Portaria n.º 112-A/2011 deverá ser lida em conjugação com a consagração, em termos amplos, da jurisdição dos tribunais arbitrais em matéria tributária de acordo com o RJAT e, assim, abrangendo qualquer tributo cuja administração caiba à AT” (n.º 37);
ii) a natureza tributária da CESE, que implicaria “a competência material deste Tribunal, desta feita, por via da direta aplicação do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, numa interpretação literal do preceito” (n.º 165), porquanto constitui “um imposto especial sobre alguns operadores de um setor de atividade específico, aos quais, em face da sua particular capacidade contributiva, o Estado entendeu que devia exigir um esforço acrescido no processo de consolidação orçamental atualmente em curso” (n.º 152), dado que “o tributo em causa não tem por subjacente qualquer relação de bilateralidade, correspetividade ou sinalagmaticidade, direta ou meramente difusa, entre a prestação exigida pelo Estado e qualquer atividade deste de que os sujeitos passivos sejam, real ou presumivelmente, beneficiários” (n.º 43), e “não sendo a CESE a contrapartida de qualquer serviço concretamente prestado (relativamente ao qual se pudesse dizer que implicaria maiores recursos públicos em virtude do valor dos ativos), nem tão pouco a contrapartida de qualquer benefício, ainda que difuso/indireto, decorrente da atuação em determinado setor, só podemos então concluir que a base tributável em causa foi escolhida como manifestação de capacidade contributiva (e não de equivalência), o que inscreve a CESE, decisivamente, no universo dos impostos” (n.º 113).
7. Por despacho de 29.9.2019 da Senhora Presidente do Tribunal Arbitral, por não haver lugar a produção de prova constituenda e dado a Requerente ter exercido o contraditório por escrito à matéria de exceção deduzida pela Requerida, foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT e notificadas as partes para, querendo, produzirem alegações por escrito no prazo de 15 dias.
A Requerente apresentou em 17.10.2019 as suas alegações, em que replicou à resposta da AT e renovou os argumentos expostos nos seus articulados antecedentes, tendo, além disso, juntado cópia do acórdão proferido no processo n.º 146/2019-T, cujos segmentos deliberativos quanto aos vícios formais suscitados, sustentando a identidade dos litígios e das questões apreciadas, convocou para o presente processo. Pelo seu lado, a Requerida apresentou em 4.11.2019 as suas alegações, em que reiterou (descontando lapso ocorrido quanto ao tributo aqui em causa) as posições expressas no seu articulado de resposta.
Foi emitido, por último, em 6.12.2019, despacho de prorrogação do prazo para a emissão da decisão arbitral para o dia 11.2.2020.
8. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo (alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT).
II. Thema decidendum
9. O thema decidendi em julgamento nos presentes autos prende-se com a legalidade da liquidação de Contribuição Extraordinária Sobre o Setor Energético (CESE) n.º 2018 ..., relativa ao ano de 2014, e da consequente liquidação de juros, tendo em atenção os vícios de violação de lei que são invocados pela Requerente, conforme acima descrito no n.º 4.
10. Cabe, porém, apreciar prioritariamente a questão da competência material do Tribunal Arbitral, cujo conhecimento, que é oficioso, precede o de qualquer outra questão, conforme disposto no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, segundo o qual o “âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”, sendo que a ausência de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, o que impõe o dever de abstenção do conhecimento do mérito da causa e a absolvição do réu da instância, conforme estabelecido no artigo 16.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT) e nos artigos 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 98.º, 99.º, 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas c) e e) do RJAT.
Para apreciação desta questão prévia, é conveniente começar por fixar a factualidade pertinente, tendo presente que a competência se afere em função da pretensão formulada pelo autor e respetivos fundamentos, ou seja, noutra formulação, em razão da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e da causa de pedir deduzidos e da própria natureza dos sujeitos processuais.
III. Matéria de facto
III.1. Factos provados
11. Apreciadas as alegações em sede fáctica constantes das peças processuais das partes e examinada a prova documental produzida, quer a apresentada com a PI, quer a constante do procedimento administrativo junto aos autos (ficheiros com a identificação PA_Parte1.pdf e PA_Parte2.pdf, a seguir abreviadamente PA), onde se inclui o Relatório de Inspeção Tributária, notificado pelo Ofício n.º ... de 29.11.18 (a seguir abreviadamente RIT), o Tribunal julga provados os seguintes factos:
I. A Requerente, que desenvolve a atividade de produção de eletricidade de origem térmica, é titular da licença vinculada de produção de energia elétrica para a central termoelétrica de ciclo combinado a gás natural da ..., em ..., atribuída em 20.1.1995, conforme cópia do título junto como doc. n.º 2 à PI e a fls. 44 e segs. do PA, em que se refere que o “Director-Geral de Energia atribui, nos termos do n.º 2 do Artigo 11.º do Decreto-Lei nº 99/91, de 2 de Março, à A..., SA (…), licença de produção de energia eléctrica para a central termoeléctrica de ciclo combinado a gás natural” que “tem a natureza de licença vinculada, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 99/91 de 2 de Março”.
II. A referida licença foi atribuída na sequência de procedimento designado “Consulta para construção e operação de uma Central de ciclo combinado a gás natural para produção de energia eléctrica”, lançado em 14 de Agosto de 1990 para instalação na ... de uma central a gás natural de ciclo combinado (cfr. o programa da consulta a fls. 24 e seguintes do PA, o despacho n.º 80 a fls. 39 e segs. do PA e docs. n.ºs 4 e 5 à PI).
III. A Requerente foi questionada, em 19.01.2015, pela Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) da AT, em face da não apresentação, relativamente ao período de 2014, da declaração modelo 27 relativa à CESE e do não pagamento dessa contribuição, para justificar a omissão, tendo respondido, via e-mail da mesma data, que: “a A... está isenta do pagamento da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, ao abrigo da alínea d) do Artigo 4.º do Artigo 228.º da Lei 83 C de 2013”, o que determinou nova notificação, em 28.7.2015, para remeter à UGC “quaisquer elementos/documentos que façam prova da justificação aduzida (…), os quais deverão sustentar/justificar os fundamentos conexos com a isenção de pagamento da referida contribuição extraordinária, nos termos propugnados pela empresa” (cfr. as descrições constantes do RIT, pp. 6-7).
IV. Em 9.9.2015 foi realizada uma reunião que envolveu a Requerente, a B..., SA, representantes da AT e representantes da Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG), em que ficou estabelecido que a Requerente procederia à apresentação da documentação que comprovaria, na sua perspetiva, a aplicação da isenção prevista na al. d) do art. 4.º do RCESE, apresentação esta que foi concretizada em 29.09.2015, conforme carta da Requerente junta a fls. 16 e segs. do PA e indicação do RIT, p. 7.
V. Após insistências da UGC à DGEG (cfr. a descrição do RIT, p. 8), foi emitida a Informação DGEG n.º.../2018, de 03.08.2018, que colocou à consideração do Secretário de Estado da Energia a homologação da Informação DGEG n.º .../16, de 10.02.2016, o qual exarou em 13.8.2018 despacho com o seguinte teor: “Visto. Deve a DGEG fornecer à AT todos os elementos necessários à boa decisão sobre esta questão” (cfr. a Informação indicada constante do Anexo I ao RIT).
VI. Na Informação DGEG n.º .../16, de 10.02.2016 (anexa à informação DGEG n.º .../2018), que foi objecto de despacho de 10.2.2016 pelo Diretor-geral da DGEG, com o seguinte teor: «Concordo com o exposto na presente informação. À consideração do Senhor Secretário de Estado a homologação sobre o entendimento da DGEG de que não existe informação recolhida que comprove a existência de concurso público, pelo que não se deve considerar que estes Centros Eletroprodutores titulares de CAE, B... e a A..., estão isentos ao abrigo do disposto na alínea d) do artigo 4.º da CESE”, consignou-se o seguinte em sede de “Conclusão” (cfr. pp. 10-11 da referida Informação constante do Anexo I ao RIT):
“Todas as centrais que ao abrigo do Decreto-Lei n.º 240/2004, de 27 de dezembro, celebraram o Acordo de Cessação antecipada do CAE ao abrigo deste diploma e atualmente com CMEC (Contrato para a Manutenção do Equilíbrio Contratual) não suscitaram a isenção ao abrigo da alínea d) do artigo 4.º da CESE, situação que apenas ocorreu para estas duas centrais que não celebraram esse Acordo, mantendo os respetivos CAE.
A B... e a A... estão sujeitas ao pagamento da CESE uma vez que se encontram na situação prevista na alínea a) do artigo 2.º da CESE (Incidência subjetiva) por serem titulares de licenças de exploração de centros electroprodutores, a central termoelétrica a carvão do ... (B...) e a central de ciclo combinado a gás na ... (A...).
A exceção prevista na alínea d) do artigo 4.º diz respeito a licenças ou direitos contratuais atribuídos na sequência de concurso público, e salvo melhor opinião o procedimento evidenciado pelas empresas não nos parece configurar a figura do concurso público previsto no Código de Contratação Pública”.
VII. Na decorrência da Ordem de Serviço n.º OI20180..., foi realizada à Requerente, pelos Serviços de Inspeção Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, ação de inspeção interna, de âmbito parcial, em sede de CESE respeitante ao ano de 2014 (cfr. RIT, p. 5).
VIII. No âmbito desta ação inspetiva, a Requerente foi notificada através do ofício n.º ... de 13.11.2018, para, no prazo de 15 dias, exercer o direito de audição por escrito ou oralmente, sobre o Projeto de Correções da Inspeção Tributária respeitante à CESE referente ao período de 2014, o qual foi exercido por escrito em 28.11.2018, em que a Requerente expressou a sua discordância relativamente à correção proposta e pediu o reconhecimento da isenção de CESE (cfr. RIT, pp. 14 e segs., bem como o documento de exercício do direito de audição prévia e o Projeto de Correções do Relatório de Inspeção, ambos a fls. não numeradas do PA).
IX. Pelo RIT junto ao PA, de que a Requerente foi notificada pelo Ofício n.º..., de 29.11.2018, e que aqui se dá por reproduzido, foi promovida uma correção técnica quanto à CESE relativa ao ano de 2014 no valor de €958.850,17, que assentou, designadamente, na seguinte motivação (cfr. RIT, p. 5): “Encontrando-se a A... sujeita e não isenta de [CESE], nos termos do disposto na al. a) do art.º 2.º do [RCESE], verificou-se que a mesma não procedeu à entrega da declaração modelo 27 (...) e, concomitantemente, ao respetivo pagamento, para o período de 2014. Efetuado o apuramento em questão pela [AT], tendo por base os elementos constantes no relatório e conta do ano de 2014, apurou-se uma CESE em falta no valor de €958.850,17”.
X. A Requerente foi objeto da liquidação da Contribuição Extraordinária Sobre o Setor Energético (CESE) com o n.º 2018..., datada de 03.12.2018, relativa ao período de 2014, com data limite de pagamento em 11.01.2019, no montante de €958.850,17, constando da demonstração da liquidação a seguinte fundamentação (cfr. doc. n.º 1 junto à PI):
“Liquidação oficiosa efetuada nos termos do n.º 7 do artigo 7.º do regime da contribuição extraordinária sobre o setor energético (...) motivada pela falta de liquidação pelo sujeito passivo, prevista no n.º 2 do art. 7.º do regime da contribuição extraordinária sobre o setor energético.
A presente sujeição à contribuição extraordinária sobre o setor energético decorre da aplicação da alínea a) do artigo 2.º e do artigo 3.º do referido regime, em virtude de o sujeito preencher os pressupostos da incidência daqueles normativos.
O valor da contribuição a pagar resulta da aplicação da taxa prevista no n.º 2 do artigo 6.º daquele regime, no qual se subsume a base de incidência prevista no artigo 3.º”.
XI. Relativamente à liquidação indicada no número anterior, a Requerente foi igualmente objecto da liquidação de juros compensatórios e de juros moratórios com o n.º 2018..., no montante total de €151.672,35, com data limite de pagamento em 11.01.2019, constando da demonstração da liquidação a seguinte afirmação em sede de fundamentação (cfr. doc. n.º 1 junto à PI): “Juros calculados nos termos do preceituado no artigo 10.º do regime da contribuição extraordinária sobre o setor energético e do artigo 35.º da Lei Geral Tributária (LGT) por ter sido retarda a liquidação de parte ou da totalidade do imposto ou por se ter verificado atraso na insuficiência do pagamento, por facto imputável ao contribuinte”.
XII. A Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo, conforme indicação do sistema de gestão processual do CAAD, em 04.04.2019.
III.2. Factos não provados
12. Não se descortinam outros factos, com relevância para a presente decisão, a julgar como não provados.
III.3. Motivação da decisão da matéria de facto
13. A convicção do Tribunal sobre os factos dados como provados resultou do exame dos documentos carreados para os autos, seja dos juntos à PI seja dos constantes do PA, e das informações não impugnadas exaradas no RIT (cfr. art. 76.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT) e art. 115.º, n.º 2 do CPPT), tudo conforme se especifica nos pontos da matéria de facto acima enunciados.
IV. Do Direito
a) Competência do Tribunal Arbitral
14. Principiando, como é prioritário, pela apreciação da exceção suscitada sobre a incompetência material deste Tribunal para conhecer os vícios imputados à liquidação sindicada em atenção à específica configuração tributária da CESE, facilmente se reconhece que a resolução desta questão prévia envolve, por um lado, a explicitação da medida da jurisdição atribuída aos tribunais arbitrais organizados sob a égide do CAAD e, por outro lado, a dissecação da natureza jurídico-tributária da CESE.
Com efeito, conforme supra assinalado no n.º 5, a alegação da Requerida sobre a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer do presente pedido de pronúncia arbitral funda-se em que a sua vinculação, nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3 (a seguir também Portaria de Vinculação), à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD reporta-se à apreciação de pretensões relativas a impostos, cuja administração lhes esteja cometida, que se encontrem referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT (com as exceções elencadas nas diversas alíneas desse artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011), não abrangendo tributos que não possuam a natureza de impostos, mas devam ser antes qualificados como contribuições. Pelo seu lado, na sua réplica, como acima assinalado no n.º 6, a Requerente sustenta que a competência deste Tribunal resulta, em primeiro lugar, de uma leitura “corretiva” e “atualista” do art. 2.º da Portaria de Vinculação, pela qual se considere abrangido nessa disposição qualquer tributo cuja administração caiba à AT e, depois, da própria natureza de imposto da CESE.
Daí que, como indicado, a resolução da questão da competência material deste Tribunal tenha de ser efetuada na dupla vertente da definição legal e regulamentar da competência dos tribunais arbitrais do CAAD e da caracterização jurídico-tributária da CESE.
Diga-se que sobre estas duas matérias já foram proferidas várias decisões de tribunais arbitrais deste CAAD, incluindo o acórdão proferido no processo arbitral n.º 347/2017-T, subscrito pela Senhora Presidente e por um dos vogais do presente Tribunal Arbitral, cuja orientação, não obstante algumas posições divergentes na jurisprudência arbitral, por se continuar a reputar como a dogmaticamente correta, aqui se perfilhará no essencial.
15. O enunciado normativo fulcral a considerar para a definição in casu da competência deste Tribunal Arbitral, como logo resulta das exposições das partes, consta do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3, que estabelece o seguinte (que se transcreve na versão anterior à alteração introduzida pela Portaria n.º 287/2019, de 3.09):
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior [a saber, segundo o art. 1.º, a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, serviços extintos do Ministério das Finanças, em cujas atribuições sucedeu a Autoridade Tributária e Aduaneira, por força do disposto no art. 27.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, als. a) e b) do Decreto-Lei n.º 117/2011, de 15.12 e no art. 12.º do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15.12] vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes: a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário; b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão; c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira”.
Esta disposição concretiza o disposto no n.º 1 do art. 4.º do RJAT que, na redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30.12, dispõe: “A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.
Como se escreveu no recente acórdão proferido no processo n.º 182/2019-T deste CAAD: “A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa por conseguinte um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral. Tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos tribunais arbitrais, mas poderia estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.
Nesse sentido, a Portaria de vinculação tem uma finalidade semelhante à que decorre do n.º 2 do artigo 187.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos para a arbitragem administrativa. Nos termos dessa disposição, a partir do momento em que cada ministério assume, por portaria, a sua vinculação à jurisdição dos centros de arbitragem, ele fica vinculado a submeter-se a uma decisão arbitral, relativamente aos tipos de litígios compreendidos no âmbito da portaria. Trata-se de um instrumento colocado na livre disponibilidade dos ministérios, que são livres de assumirem, por portaria, a sua vontade de se submeterem à arbitragem dos centros institucionalizados relativamente a certos tipos de litígios e dentro de certos limites, sendo essa opção da Administração que confere aos interessados o direito potestativo de se dirigirem a um centro de arbitragem para dirimirem litígios que possam ser submetidos aos tribunais arbitrais”.
Deste modo, a Portaria n.º 112-A/2011 delimitou, no que aqui importa, o âmbito da vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD em função do tipo de litígios abrangidos, ou seja, da matéria da causa, assim conformando uma competência em razão da matéria dos tribunais arbitrais tributários.
Daí que a aferição da competência para o julgamento de um litígio por parte de um tribunal arbitral tributário constituído sob a égide do CAAD se deva orientar pelos parâmetros já bem elucidados pelo acórdão proferido no processo n.º 48/2012-T, que vale a pena recordar:
“A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do [RJAT].
Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o art. 4.º do RJAT estabelece que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.
Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral”.
16. Em consequência, como a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos da vinculação definida pela Portaria n.º 112-A/2011 e dado que esses termos fazem referência explícita e precisa a “pretensões relativas a impostos cuja administração” esteja cometida à AT, as pretensões de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais (que não sejam excetuadas nas diversas alíneas do artigo 2.º da Portaria de Vinculação), a cuja arbitrabilidade a AT se encontra sujeita e sobre as quais os tribunais arbitrais do CAAD se podem pronunciar, têm de ser “relativas a impostos” e, claro está, a impostos cuja administração lhe esteja atribuída, não se reportando, pois, a todos e quaisquer “tributos” (conforme a formulação genérica do n.º 1 do art. 2.º do RJAT), portanto, a tributos que não constituam impostos.
Resulta, desta forma, do enunciado lexical constante do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, dada a delimitação nele operada da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD “que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos”, que o tipo de litígio em que é possível a arbitragem tributária no âmbito do CAAD em relação à AT pressupõe a espécie jurídico-tributária dos impostos, não abrangendo toda a multímoda realidade dos tributos a que se reporta em termos globais o art. 2.º, n.º 1 do RJAT, com as referências a “atos de liquidação de tributos” ou “à liquidação de qualquer tributo”, categoria genérica que compreende, conforme disposto no art. 3.º, n.º 2 da LGT (cfr. igualmente art. 4.º, n.º 1 da LGT), “os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas”.
O elemento verbal do corpo do art. 2.º da Portaria de Vinculação – e é bem sabido que, por força do n.º 2 do art. 9.º do Código Civil, nas expressivas e conhecidas palavras de OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 13.ª ed., Coimbra, 2005, p. 396, “A letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer isto dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito. Os seus possíveis sentidos dão-nos como que um quadro muito vasto, dentro do qual se deve procurar o entendimento verdadeiro da lei. Para além disto, porém, não se estaria a interpretar a lei mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam no texto qualquer apoio” – é determinante em fixar que a vinculação à arbitragem do CAAD abarca unicamente pretensões relativas a impostos cuja administração esteja cometida à AT, pois é este o significado natural e técnico-jurídico da formulação verbal adotada. Como incisivamente se refere no acórdão proferido no processo n.º 182/2019-T: “Acresce que a interpretação da lei fiscal se rege pelos critérios hermenêuticos que resultam do artigo 9.º do Código Civil e “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei” (artigo 11.º, n.ºs 1 e 2, da LGT). Ora, dificilmente se poderia compreender que as leis fiscais devessem ser interpretadas, sem qualquer particularismo, segundo os critérios de interpretação consagrados no direito civil, mormente quando estivessem em causa “termos próprios de outros ramos de direito”, e já não houvesse que aplicar esse princípio quando estejam em causa termos próprios do direito fiscal”.
Assim, em face do elemento gramatical em apreço e de uma correspondente interpretação declarativa, afigura-se não ser juridicamente adequado sustentar que uma referência específica a impostos deva afinal ser percebida como alcançando qualquer outra figura (taxa ou contribuição) enquadrada na categoria vasta dos tributos (art. 3.º, n.º 2 da LGT).
17. Já agora, muito embora tal alteração, quer pelo seu âmbito aplicativo quer pela solução própria da jurisdição administrativa e fiscal constante do n.º 1 do art. 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c) do RJAT, não possua relevância para o presente processo, refira-se que o entendimento exposto não sofre abalo com o aditamento da alínea e) ao art. 2.º da Portaria de Vinculação operado pela Portaria n.º 287/2019, de 3.9, porquanto, não obstante o emprego nessa nova alínea da expressão “tributos”, facilmente se vê que se tratou simplesmente de retomar a terminologia presente nos n.ºs 1 e 11 do art. 63.º do CPPT, dado que essa modificação teve como único propósito prescrever uma nova restrição à arbitrabilidade tributária, a saber, como se declara no Preâmbulo da Portaria n.º 287/2019: “tendo a referida Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, passado a prever que a impugnação da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, é obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa, importa fazer refletir essa mesma regra, quanto às pretensões destinadas à declaração da ilegalidade destes atos, quando apresentadas em sede arbitral”.
Em qualquer caso, é evidentemente a regra constante do proémio do art. 2.º da Portaria que delimita o sentido das exceções previstas nas alíneas desse mesmo artigo, não estas que definem a regra. Como se consigna no acórdão já citado proferido no processo n.º 182/2019-T: “A referência a pretensões relativas a impostos, no proémio do artigo 2.º da Portaria, não constitui uma excepção, mas o próprio âmbito material da arbitragem tributária. Se se remetesse para o regime excepcional das diversas alíneas desse artigo a referência a pretensões relativas a impostos, o preceito ficava sem conteúdo preceptivo útil e o regime de vinculação ficava apenas delimitado negativamente”.
18. Para além da letra imediata do corpo do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, esta circunscrição da jurisdição arbitral tributária às pretensões respeitantes a impostos em sentido técnico-jurídico preciso impõe-se igualmente por força do elemento sistemático da interpretação (art. 9.º, n.º 1 do Cód. Civil e art. 11.º, n.º 1 da LGT).
É que a articulação sistemática do art. 2.º do RJAT e do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 evidencia a clara finalidade delimitativa-restritiva dos termos da vinculação estabelecida por aquele último preceito, por força do qual, no círculo circunscrito pelo art. 2.º do RJAT (as pretensões “referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro”), a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD concerne, primariamente, como consigna o corpo do artigo, unicamente à apreciação de pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida e, depois, dentro deste âmbito dos impostos que a AT administra, não compreende, como decorre da referência à exceção constante da parte final do corpo do preceito, as pretensões enumeradas nas diversas alíneas desse artigo pelo menos sem satisfação dos requisitos previstos.
19. Impõe-se, aliás, assumir que o poder jurisdicional de um tribunal arbitral do CAAD não pode nunca ser auto-realizável ou auto-atribuído pelo próprio tribunal e pelas partes, mas pressupõe, de modo rigoroso, a exata aplicação das regras legais e regulamentares que balizam a competência e a vinculação à jurisdição arbitral. A importância do escrupuloso cumprimento das regras de competência a que estão sujeitos os tribunais arbitrais tributários em sede de exercício da sua Kompetenz-Kompetenz deduz-se, aliás, da seguinte apreciação do importante acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2016, n.º 14: “a matéria tributária situa-se no âmago das atribuições do Estado, nela se evidenciando a necessária prossecução de interesses públicos absolutamente essenciais a uma comunidade politicamente organizada, razão que levou a CRP, no n.º 1 do artigo 103.º, a estatuir que «o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado». Se não for possível sindicar judicialmente a decisão de um tribunal arbitral tributário que, à revelia do quadro regulamentar estabelecido, se considere competente numa certa matéria, então tal significará que não existe nenhuma forma de assegurar que funções tributárias que o Estado deve exercer não lhe serão “confiscadas”, sem controlo por um tribunal do Estado”.
Respeitando, nesta decorrência, o enunciado restritivo e a intenção delimitativa da Portaria de Vinculação, conclui-se que o presente Tribunal Arbitral constituído no âmbito do CAAD apenas possui competência para apreciar pretensão indicada no artigo 2.º do RJAT, na medida estrita em que o pedido de pronúncia arbitral respeite a imposto cuja administração esteja cometida à AT.
20. O que se acabou de referir quanto ao sentido normativo que assim se deve ter como correto em face dos dados do nosso sistema jurídico e a importância de, em tal quadro regulador, os tribunais arbitrais não se auto-conferirem, sem fundamento normativo, jurisdição que não possuem, o que seria inteiramente estranho à “areté” arbitral, é suficiente, sem necessidade de pormenorizar uma discussão sobre cânones hermenêuticos relevantes na aplicação do Direito, para excluir a necessidade de uma interpretação corretiva ou atualista, conforme pretende a Requerente (vd. supra n.º 6).
Acrescente-se, ainda assim, que uma teleologia capaz de fundar uma tal interpretação atualista ou, se isso se fosse admissível, corretiva, para alargar a medida da jurisdição arbitral tributária organizada no CAAD, só poderia legitimar-se, em termos ético-valorativos, naturalmente não reconduzíveis a empíricos interesses privados, no princípio de tutela jurisdicional efetiva (cfr. artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP). Ora, não possui solidez bastante a convocação desse princípio para a pretendida interpretação da Portaria de Vinculação, pois, na sequência da fundada observação do seu acórdão n.º 230/2013, n.º 13, segundo a qual: “ainda que os tribunais arbitrais constituam uma categoria de tribunais e exerçam a função jurisdicional, não pode perder-se de vista que essa é uma forma de jurisdição privada (…). O direito fundamental de acesso aos tribunais constitui tendencialmente uma garantia de acesso a tribunais estaduais em resultado da necessária conexão entre esse direito e a reserva de jurisdição, que apenas poderá caracterizar uma reserva de jurisdição arbitral quando o acesso ao tribunal arbitral seja livre e voluntário”, em referência direta à arbitragem tributária, o Tribunal Constitucional, no seu recente acórdão n.º 545/2019, bem elucidou (n.º 16) que: “não pode considerar-se que, assegurado que está o recurso aos tribunais estaduais, a não consagração de uma determinada via arbitral no domínio tributário represente uma restrição do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição” pois “existindo a possibilidade de recurso aos tribunais tributários estaduais que, como se viu, constitui a principal via de acesso ao direito, não se pode considerar que o regime adjetivo não proporcione aos cidadãos meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”.
21. Adite-se, ainda, para deixar explicitamente invocado o elemento racional ou teleológico da interpretação, que as razões materiais para uma hermenêutica respeitadora da enunciação estrita das pretensões sobre impostos suscetíveis de julgamento pelo Tribunais arbitrais tributários do CAAD são de fácil compreensão, mostrando-se bem explanadas no acórdão proferido no processo n.º 115/2018-T (suprimem-se as notas originais):
“o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que fosse restringido o âmbito da arbitragem tributária de harmonia com a vinculação.
Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» (...).
A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação a que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:
“Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva”.
A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:
“A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria”.
Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.
A arbitragem tributária pode vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.
Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.
Por isso se justificava em 2011 e justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.
A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime. (...)”.
22. Em suma, o âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais tributários do CAAD compreende unicamente, nos termos conjugados dos arts. 2.º, n.º 1 do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração esteja cometida à AT, não abrangendo, portanto, as pretensões relativas a contribuições que, por ela, sejam administradas.
Consequentemente, este Tribunal Arbitral só possui competência para dirimir o presente litígio atinente à CESE caso este tributo deva ser qualificado como imposto e não como contribuição financeira.
b) Da qualificação da CESE
23. Vejamos, então, agora, o segundo núcleo problemático em que tem de se dissecar a questão da competência material do Tribunal Arbitral: a natureza jurídico-tributária da CESE, que, por força do que acabou de se ver quanto à parcela de jurisdição atribuída, legal e regulamente, aos tribunais arbitrais tributários do CAAD, necessariamente se tem de subsumir à figura jurídica do imposto, sem o que este Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para julgar as pretensões deduzidas pela Requerente quanto à legalidade dos atos tributários sindicados de liquidação da CESE e dos juros compensatórios.
24. Recorde-se, preliminarmente, para efeitos da qualificação jurídica desta espécie tributária da CESE, a tipologia dos tributos que separa entre impostos, contribuições especiais (tradicionais), contribuições financeiras, e taxas. Esta tipologia encontra-se enunciada, em moldes não inteiramente coincidentes, no atual art. 165.º, n.º 1 da CRP, cuja al. i) coloca na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a “criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas”, e nos arts. 3.º e 4.º da LGT, em que o primeiro indica apenas as classificações de tributos (“a) Fiscais e parafiscais; b) Estaduais, regionais e locais” (n.º 1); que “compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (n.º 2)) e remete o regime geral das taxas e contribuições financeiras para lei especial (n.º 3), regime geral esse consabidamente ainda inexistente (se descontarmos o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro), e o segundo explicita, nos seus três números, os pressupostos dos impostos, taxas e contribuições especiais (sendo que, neste último caso, também estatui uma disciplina), a saber: “Os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património”; “As taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares”; “As contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade são consideradas impostos”.
Neste âmbito, o dissídio entre as partes sobre a qualificação tributária da CESE traduz-se em a Requerente considerar que se trata de “um imposto especial sobre alguns operadores de um setor de atividade específico, aos quais, em face da sua particular capacidade contributiva, o Estado entendeu que devia exigir um esforço acrescido no processo de consolidação orçamental atualmente em curso” (vd. n.º 50 das alegações) e a Requerida entender que se trata de uma contribuição “não só assim classificada formalmente pelo legislador mas também assim se configurando materialmente pois que é possível identificar uma prestação presumivelmente provocada ou aproveitada pelos sujeitos passivos da CESE” (vd. n.º 40 da resposta), sendo neste enquadramento distintivo entre imposto e contribuição financeira que este Tribunal julga dever centrar-se o exame da natureza da CESE.
Pois bem, a autonomização e diferenciação das categorias tributárias do imposto e da contribuição financeira, para o que é, naturalmente, irrelevante o nomen atribuído pelo legislador, importando sim o regime jurídico concreto legalmente definido, radica fulcralmente no critério distintivo material, que se manifesta no pressuposto e finalidade do tributo, de o facto gerador consubstanciar uma prestação presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra.
Cite-se, a este respeito, a elucidação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 593/15 (suprimem-se as citações):
“As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de uma atividade administrativa) (...).
As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (...)”.
25. Isto posto, centrando-nos especificamente na CESE, principia-se por consignar que o respetivo regime jurídico (RCESE) foi instituído pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, alterado pelas Leis n.ºs 82-B/2014, de 31.12, 33/2015, de 27.4, 42/2016, de 28.12 e 71/2018, de 31.12, tendo a sua vigência sido objeto das prorrogações determinadas pelas Leis n.ºs 159-C/2015, de 30.12, 42/2016, de 28.12, 114/2017, de 29.12 e 71/2018, de 31.12.
Tendo em atenção, conforme acima exposto nos pontos III, VII, IX e X do probatório, que a factualidade que se encontra em causa se refere ao período de tributação de 2014, ao qual se reporta a liquidação oficiosa da CESE n.º 2018..., importa atender à regulação legal que é ratione temporis aplicável à liquidação impugnada, a qual, nos termos do art. 12.º do Cód. Civil e do art. 12.º da Lei Geral Tributária, corresponde à regulação em vigor no referido ano de 2014. Deste modo, está em jogo na situação sub judice a aplicação à Requerente da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético respeitante ao período de 2014.
Deste modo, tendo em conta as alterações legislativas acima enumeradas, a regulação a considerar para enquadramento e apreciação da liquidação da CESE relativa ao ano de 2014 é a que foi originariamente introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, que aprovou o regime que cria a contribuição extraordinária sobre o setor energético, conforme respetivo art. 1.º, n.º 1 que enuncia que: “O presente regime tem por objeto a introdução de uma contribuição extraordinária sobre o setor energético e determina as condições da sua aplicação”.
Esta aplicabilidade ratione temporis é, evidentemente, válida para a própria deteção da natureza jurídica da CESE, porquanto se trata aí de tarefa a realizar com base na disciplina jurídica relevante, logo em razão da compleição tributária resultante das disposições dos arts. 1.º a 12.º do RCESE, na redação original da Lei n.º 83-C/2013, não sendo pertinentes, por estarem fora do âmbito temporal de aplicação competente, dado o ano de 2014 da factualidade em juízo, as soluções resultantes das modificações operadas pelas Leis n.º 82-B/2014, de 31.12, n.º 33/2015, de 27.04, n.º 42/2016, de 28.12 e n.º 71/2018, de 31.12.
Vale a pena, aliás, destacar que a índole temporalmente demarcada da CESE e da sua conformação jurídica, com repercussão na respetiva qualificação tributária, é claramente patenteado (como logo o frisou o acórdão proferido no processo n.º 312/2015-T do CAAD), não apenas pela sua explícita designação (contribuição extraordinária), mas pelas diversas referências temporais precisas que constam dos seus enunciados normativos em relação à delimitação dos seus elementos estruturais - a 1 de Janeiro de 2014 (artigo 2.º e artigo 3.º, n.º 4), a 31 de Dezembro de 2013 (artigo 4.º, alínea o)), a 1 de Janeiro e 15 de Dezembro de 2014 (art. 6.º, n.º 3) ou a 31 de Outubro e a 20 de Dezembro de 2014 (art. 7.º) –, tudo a implicar a renovação anual da sua vigência, com actualização daquelas referências temporais, como tem vindo a suceder, por força dos arts. 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31.12, 280.º da Lei n.º 114/2017, de 29.12, 264.º, n.º 2 da Lei n.º 42/2016, de 28.12 e art. 6.º da Lei n.º 159-C/2015, de 30.12.
Certa posição (vd. FILIPE DE VASCONCELOS FERNANDES, A Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético. Regime Fiscal e Constitucional, 2019, pp. 51-52) reporta-se mesmo a três versões da CESE, que designa como CESE 1 (correspondente à versão original do regime, nos termos da Lei n.º 83-C/2013), CESE 2 (correspondente às alterações efectuadas pela Leis n.ºs 33/2015 e 42/2016) e CESE 3 (correspondente às alterações efectuadas pela Lei n.º 71/2018).
26. Tendo, então, em pauta, para efeitos da qualificação jurídico-tributária aqui pertinente, a regulação vigente em 2014, descrevam-se os dados estruturais de regime da CESE que são caracterizadores do tributo em atenção à disciplina resultante da Lei n.º 83-C/2013.
26.1. Nos termos do n.º 2 do art. 1.º do RCESE, a CESE “tem por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético”.
26.2. No que concerne à incidência subjectiva, nos termos do art. 2.º do RCESE, os sujeitos passivos da CESE são “as pessoas singulares ou coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2014” se encontrem nas situações caracterizadas nas diversas alíneas a) a l) do mesmo preceito.
26.3. Relativamente à incidência objectiva, sobre cujas bases são aplicáveis as taxas percentuais previstas no art. 6.º do RCESE, o art. 3.º do RCESE dispõe o seguinte:
1 - A contribuição extraordinária sobre o setor energético incide sobre o valor dos elementos do ativo dos sujeitos passivos que respeitem, cumulativamente, a:
a) Ativos fixos tangíveis;
b) Ativos intangíveis, com exceção dos elementos da propriedade industrial; e
c) Ativos financeiros afetos a concessões ou a atividades licenciadas nos termos do artigo anterior.
2 - No caso das atividades reguladas, a contribuição extraordinária sobre o setor energético incide sobre o valor dos ativos regulados caso este seja superior ao valor dos ativos referidos no número anterior.
3 - Para efeitos do n.º 1, entende-se por 'valor dos elementos do ativo' os ativos líquidos reconhecidos na contabilidade dos sujeitos passivos, com referência a 1 de janeiro de 2014, ou no 1.º dia do exercício económico, caso ocorra em data posterior.
4 - Para efeitos do n.º 2, entende-se por 'valor dos ativos regulados' o valor reconhecido pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos para efeitos de apuramento dos proveitos permitidos, com referência a 1 de janeiro de 2014.
26.4. A CESE, por força dos arts. 5.º e 12.º do RCESE constitui, como se assinala no acórdão proferido no processo n.º 312/2015-T, “um encargo a suportar económica e financeiramente pelos respetivos sujeitos passivos”, porquanto o art. 5.º (não repercussão) consagra uma proibição de repercussão das importâncias suportadas com o tributo (“As importâncias suportadas pelos sujeitos passivos a título de contribuição extraordinária sobre o setor energético não são repercutíveis, direta ou indiretamente, nas tarifas de uso das redes de transporte, de distribuição ou de outros ativos regulados de energia elétrica e de gás natural, previstas nos regulamentos tarifários dos respetivos setores, não devendo a contribuição ser considerada, designadamente, para efeitos de determinação do respetivo custo de capital”) e o art. 12.º (não dedutibilidade) determina que o correspondente gasto não é dedutível para efeitos da determinação da matéria colectável do IRC (“A contribuição extraordinária sobre o setor energético não é considerada um gasto dedutível para efeitos de aplicação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas”).
26.5. A receita do tributo constitui uma receita consignada, conforme previsto pelo art. 11.º do RCESE que estabelece o seguinte:
1 - A receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), a criar por decreto-lei, no prazo de 60 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do setor energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida tarifária e do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional decorrentes de custos de interesse económico geral (CIEGs), designadamente resultantes dos sobrecustos com a convergência tarifária com as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
2 - O FSSSE tem a natureza de património autónomo, sem personalidade jurídica e com autonomia administrativa e financeira, podendo ser-lhe atribuída a possibilidade de adquirir aos operadores regulados ou às entidades a que estes hajam cedido os seus créditos o direito de receber, através das tarifas da eletricidade, os montantes relativos aos valores ou direitos correspondentes ao diferencial de custos que não forem repercutidos no ano a que respeitam.
3 - Os créditos adquiridos nos termos do número anterior podem ser extintos em termos e condições a fixar no decreto-lei a que se refere o n.º 1.
4 - Fica o Governo autorizado a transferir para o FSSSE o montante das cobranças provenientes da contribuição extraordinária sobre o setor energético.
5 - Os encargos de liquidação e cobrança incorridos pela Autoridade Tributária e Aduaneira são compensados através da retenção de uma percentagem de 3 % do produto da contribuição, a qual constitui receita própria.
26.6. O Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), a que se consignou a receita da CESE, foi criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9.4, no âmbito do Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, com a natureza de património autónomo, sem personalidade jurídica e com autonomia administrativa e financeira (art. 1.º, n.ºs 1 e 2), visando “contribuir para a promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional, designadamente através: a) Do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética; b) Da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético prevista no artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro” (art. 2.º).
À data dos factos (note-se que o Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9.4 foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7.12, o que, pelas razões acima aduzidas sobre a regulação temporalmente relevante, aqui não releva examinar), o produto da CESE, como receita do FSSSE (art. 3.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 55/2014), devia quanto a 2/3 ser alocado à cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo de financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, e quanto a 1/3 ser alocado à cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (cfr. art. 4.º, n.º 2 do DL n.º 55/2014).
26.7. Em termos de procedimentos de liquidação e cobrança, o art. 7.º, n.ºs 1 e 2 do RCESE estabelece que a CESE é liquidada pelo sujeito passivo, através de declaração de modelo oficial, a ser enviada por transmissão eletrónica, em certos casos até 31.10.2014 e noutros casos até 20.12.2014, e o art. 8.º, n.º 1 prevê que o seu pagamento deve ser realizado até ao último dia do prazo estabelecido para o envio da referida declaração.
27. Pois bem, em face destes dados normativos ratione temporis relevantes para o ano de 2014, subscreve-se o entendimento de que a CESE (a dita “CESE 1”), em termos de qualificação jurídico-tributária se enquadra tributariamente como uma contribuição financeira a favor de entidades públicas (cfr. art. 165.º, n.º 1, al. i) da CRP e art. 3.º, n.º 2 da LGT), não constituindo um imposto.
Esta caracterização da CESE como tributo comutativo, como contribuição financeira a favor de entidades públicas, e não como imposto, foi já devidamente ajuizada no âmbito de Tribunal Arbitral deste CAAD, na decisão arbitral proferida no proc. n.º 312/2015-T, bem como pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no seu recente acórdão de 8.1.2020, proc. n.º 0386/17.8BEMDL, e do Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 7/2019 (cfr. ainda no mesmo sentido o parecer n.º 4/2016 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República), apreciação essa que aqui se acolhe, por se julgar inteiramente apropriada à disciplina que se vem de descrever.
28. Assim, no acórdão proferido no processo n.º 312/2015-T que teve precisamente como objecto acto de liquidação da CESE relativa ao ano de 2014 e como quadro de referência o RCESE resultante da Lei n.º 83-C/2013, foi a CESE devidamente caracterizada, em atenção os dados estruturais de regime acima apresentados, como contribuição financeira (e não como imposto).
Com efeito, assumindo que a questão da qualificação jurídico-tributária da CESE “há-de fazer-se no contexto da respetiva recondução à categoria de um imposto de receita consignada ou de uma contribuição financeira”, cuja linha divisória tradicional se estabelece “entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade/causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou actividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários”, pelo que “a qualificação de um tributo como contribuição exige “uma clara conexão entre a origem das receitas [o pressuposto do tributo] e o destino [finalidade] que a lei lhes assinala”; conexão que possa ser reconduzida a uma ‘relação de troca’ ou a uma ‘relação causal’ entre o Estado e o sujeito passivo”, este acórdão proferido no processo n.º 312/2015-T considerou que: “a CESE ao ser exigida aos operadores do sector energético com o intuito de financiar políticas do sector energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética e com a redução do stock da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional, inscreve-se claramente neste tipo de contribuições exigidas pelo modelo económico-social do Estado regulador”, concluindo, pois, que a CESE “há-de reconduzir-se à categoria jurídico-dogmática das contribuições financeiras a favor de entidades públicas”.
Para esta conclusão, este acórdão afastou a ideia de que a CESE em 2014 constituiu fundamentalmente uma medida de consolidação orçamental, pois observou que:
“a receita da CESE ficou consignada ab initio, já em 2014, e logo por força da Lei Orçamental para esse ano (veja-se o artigo 11.º do Regime da CESE, aprovado pelo artigo 228.º dessa Lei: a Lei n.º 83-C/2013), ao «Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético» ̶ nos termos e para o cumprimento dos objetivos antes descritos. Ora, este «destino» ou esta «função» da receita, normativamente definidos, é que hão-de contar para a sua qualificação – sendo irrelevantes, face a eles, quaisquer considerações, de enquadramento mais geral da medida no contexto da necessidade de consolidação orçamental, que constem de textos oficiais, incluindo o preâmbulo de diplomas legais, relativas a esse contexto e à apresentação das medidas atinentes a esse genérico desiderato.
Mas depois, e em segundo lugar, o facto é que não há contradição necessária entre o destino ou destinos imediatos a que ficou afeta a CESE e esse objetivo mais amplo da consolidação orçamental – o que perfeitamente explica a referência a ambos (ou a articulação entre ambos) no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 55/2014. Não é, com efeito, pelo facto de as receitas da CESE serem consignadas ao Fundo, e de ser através deste que as mesmas vão ser alocadas à realização do objetivo central por elas visado (o financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sistema energético) – não é por isso (como bem se compreende) que elas deixam de contribuir menos para a consolidação das contas públicas portuguesas em geral”.
29. Na sequência deste acórdão e em recurso de constitucionalidade sobre a interpretação normativa nele desenvolvida quanto à qualificação da CESE como contribuição financeira, o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar sobre a CESE respeitante ao ano de 2014, tendo igualmente acolhido esta qualificação tributária como contribuição financeira.
Assim, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019 afirmou-se que “a CESE é um tributo da categoria das contribuições, excluindo a sua classificação, quer como taxa, quer (...) como imposto” (n.º 14), porquanto:
- “Ainda que não referida a uma contraprestação direta, específica e efetiva, resultante de uma relação concreta com um bem ou serviço, o que afasta a sua qualificação como taxa, a sujeição à CESE de determinados operadores económicos tem como um dos seus objetivos «financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético» (artigo 1º, n.º 2, do regime da CESE). É, a par do objetivo da redução da dívida tarifária – que é uma das suas causas –, o objetivo da promoção de mecanismos para financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, bem como de medidas de apoio às empresas, que gerará, igualmente, contrapartidas, ainda que difusas, dirigidas aos sujeitos passivos da CESE. A existência destas presumidas contraprestações que vão além do mero objetivo da redução tarifária, e que a criação do FSSSE garante, assegura, também, o caráter estrutural de bilateralidade ou sinalagmaticidade da relação subjacente ao tributo em causa, permitindo excluir a sua caracterização como imposto, já que nelas é possível identificar a satisfação das utilidades do sujeito passivo do tributo como contrapartida do respetivo pagamento. É a participação de um especial setor da atividade económica nos benefícios/custos presumidos da adoção destas políticas de financiamento que permite isolá-los dos demais contribuintes, sujeitando-os à contribuição criada pelas normas em apreciação, sem que essa diferenciação possa considerar-se violadora da Constituição (...). Assim, apesar de não pressupor uma contraprestação direta, específica e efetiva, razão pela qual não pode ser qualificada como taxa, a CESE, reveste características de bilateralidade na relação entre o Estado e os sujeitos passivos do tributo, pela conexão entre a origem das receitas e o seu destino.
Não estamos, por isso, perante uma cobrança de tributo para participação nos gastos gerais da comunidade, numa pura angariação de receitas, que vise prover, indistintamente, às necessidades financeiras do Estado, que traduza o cumprimento de um dever geral de cidadania e solidariedade, como o dever de pagar impostos, em que esteja ausente uma qualquer contraprestação pública dedicada. Isto porque não é finalidade imediata e genérica deste tributo a obtenção de receitas, a serem afetadas, geral e indiscriminadamente, à satisfação de encargos públicos.
O facto de não ser possível individualizar-se, de forma concreta e absolutamente objetiva, uma compensação efetiva que, pelo seu conteúdo e natureza, seja especificamente dirigida aos sujeitos passivos que desenvolvam a atividade da recorrente, mas apenas as vantagens difusas, tal não retira caráter comutativo às prestações que visem financiar os objetivos que vão além da redução da dívida tarifária, já que estas contrapartidas não estão dissociadas de prestações públicas, ainda que genericamente destinadas a um grupo específico, sendo de presumir que os sujeitos passivos da CESE beneficiarão dos mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético. Ou seja, no caso da CESE, estamos perante um tributo comutativo, em virtude de, ainda que de forma difusa, ser possível identificar nos objetivos do FSSSE, a que foi consignada, contraprestações destinadas a um determinado grupo de sujeitos passivos que mantêm suficiente proximidade com as finalidades que este prosseguirá (...)” (n.º 10);
- “a CESE é consignada a um fundo que tem natureza de património autónomo, sem personalidade jurídica e com autonomia administrativa e financeira, o Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), instituído pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril. Esta consignação ao FSSSE foi expressamente fixada, logo na Lei do Orçamento de Estado para 2014 (artigo 11.º do regime da CESE, aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013), retirando esta receita ao financiamento de despesas públicas gerais do Estado.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional já considerou ser esta uma qualidade reveladora da natureza comutativa destes tributos, por tal consignação significar que a receita não pode ser desviada para o financiamento de despesas públicas gerais, confirmando a relação de bilateralidade, como decidido pelo Tribunal no Acórdão n.º 152/2013, relativo à taxa pela utilização do espetro radioelétrico.
Independentemente de se considerar esta consignação de receitas decisiva para a caracterização do tributo em causa, a verdade é que a natureza de contribuição financeira da CESE resulta, inequivocamente, da presença de um sinalagma, ainda que difuso, que lhe confere bilateralidade, nos termos atrás desenvolvidos.
Aliás, a circunstância de ser ainda possível identificar, na CESE, quer a tributação de benefícios, mesmo que reflexos, destinados a um especial conjunto ou categoria de sujeitos passivos, quer o objetivo de cobrir os custos que as soluções regulatórias desse financiamento pressupõem, legitima materialmente a consignação de receitas, por lei considerada excecional.
Por todas estas razões, não pode deixar de se considerar que a CESE assume as características de uma contribuição financeira” (n.º 12).
Como se disse, esta qualificação da CESE como uma contribuição financeira e não como um imposto foi igualmente subscrita pelo recente acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8.1.2020, proc. n.º 0386/17.8BEMDL, que adoptou amplamente a análise desenvolvida pelo indicado acórdão do Tribunal Constitucional.
30. Nesta sequência, deve assinalar-se, em particular, que, ao contrário do sustentado pela Requerente (n.ºs 113 e seguintes das suas alegações), o facto de constituir base tributável da CESE elementos do ativo do sujeito passivo (vd. supra n.º 26.3) não implica inscrever decisivamente a CESE no universo dos impostos por o critério dos ativos ser “absolutamente inidóneo para ser utilizado como base objetiva de um tributo bilateral”, pois essa base de incidência pode servir, não apenas como revelação da capacidade contributiva, mas igualmente para efeitos de aplicação do princípio da equivalência.
Justamente, o Tribunal Constitucional afirmou no acórdão acima citado o seguinte, que se acompanha (n.º 15):
- “A titularidade dos ativos tributáveis por parte das empresas que as normas legais sujeitam à CESE, cuja justificação radica na sustentabilidade sistémica do setor energético, torna-as presumíveis beneficiárias das políticas públicas de energia e da sua regulação. Os ativos não surgem como manifestação meramente hipotética da capacidade contributiva, que fosse exigida como receita para despesas gerais do Estado, mas como indicador que permite presumir a potencial utilidade das prestações públicas que aos operadores aproveitam, e os custos presumidos que provocam, já que os ativos são elementos essenciais ao desenvolvimento da atividade, sendo suficientemente adequados para diferenciarem aquele impacto. Também por esta razão, não pode ligar-se a sujeição do ativo ao tributo a qualquer demonstração de que estaríamos perante um imposto sobre o património das empresas. Na lógica do legislador, a titularidade de ativos em certa área da economia é um dado que permite aferir da suscetibilidade da empresa para ser causa de ou beneficiar de políticas de sustentabilidade, o que a distingue dos demais operadores de outras áreas e dos cidadãos. Não é, assim, uma forma de arrecadar receita, indistintamente. É, por isso, uma base de incidência adequada”;
- “o facto de a sujeição à CESE ser diferenciada (artigo 3.º da Lei n.º 83-C/2013) em função da titularidade do valor dos elementos do ativo de determinados operadores económicos, ou do valor dos ativos regulados (...), assim afastando a imposição de um encargo à generalidade dos contribuintes, e ajustando a base de incidência em função dos diferentes grupos de sujeitos passivos do tributo, não é (...) indício de desigualdade, mas, antes, de delimitação da base de incidência em função da presumida contraprestação, cujo benefício/custo respeita ao setor energético, desde logo, não a impondo à generalidade dos contribuintes, e procurando a acomodação da contribuição ao custo/benefício presumidos”.
31. Por outro lado, diferentemente do exposto pela Requerente (n.º 155 das alegações), também não parece que possua peso argumentativo consistente contra a qualificação da CESE como contribuição financeira a invocação das considerações do Tribunal de Contas no Relatório n.º 3/2015 – AEOAC – 2.ª S - Acompanhamento da Execução Orçamental da Administração Central – janeiro a dezembro de 2014 – valores provisórios, Julho 2015, p. 26: “Tal como a CSB, a CESE reveste a natureza de imposto pelo que foi indevidamente contabilizada em outras receitas correntes. Porém, a situação já foi corrigida em 2015 visto que as verbas relativas à CESE estão a ser registadas no SGR pela AT como receita de impostos diretos diversos”.
É que o que está em causa nessas considerações é a aplicação do classificador económico da receita e despesa pública que é objecto do Decreto-Lei n.º 26/2002, de 14.2 (com as alterações posteriores), diploma este que consagra o regime jurídico dos códigos de classificação económica das receitas e despesas públicas, bem como a estrutura das classificações orgânicas (cfr. art. 1.º).
Ora, esta classificação económica, que constitui um quadro conceptual de contabilidade pública, que serve para o acompanhamento, numa perspetiva económica, da execução orçamental das receitas e despesas públicas, não prevê entre os códigos de classificação económica das receitas e das despesas publicas (cfr. art. 3.º do referido Decreto-Lei n.º 26/2002 e respectivo anexo I), qualquer categoria específica própria para as contribuições financeiras, como tal autónoma dos impostos, sendo que, no essencial e em termos globais, esta classificação, em sede de receitas correntes, simplesmente separa as receitas correntes fiscais e as receitas correntes não fiscais. Assim, quando se percorre os capítulos 1, 2 e 3 do classificador, em sede de receitas correntes fiscais, observa-se que não existe nenhuma categoria atinente a contribuições financeiras.
Precisamente, a censura que o Tribunal de Contas fez à contabilização da CESE – e disso se tratou: da contabilização de receitas em conformidade com as disposições legais atinentes à execução orçamental - prendeu-se com o facto de a AT ter contabilizado a CESE no capítulo 8, grupo 1 (capítulo este que respeita a “Outras receitas correntes: Outras: Prémios, taxas por garantias de risco e diferenças de câmbio./ Produto da venda de valores desamoedados. /Lucros de amoedação./ Outras”), que concerne a receitas não fiscais.
Em consequência, a aplicação do classificador económico das receitas e despesas públicas nada depõe quanto à natureza jurídico-tributária da CESE, estando aí em causa simplesmente um uso de uma designação, enquanto termo que identifica um conceito ou uma classificação, com um conteúdo específico, distinto ou, pelo menos, não confundível com aquele que releva para a determinação tributária da figura.
Deve, aliás, assinalar-se, por último, que o Tribunal de Contas, ainda que a outro propósito, já destacou a necessidade de as contribuições, como receitas públicas específicas, serem registadas “com classificação económica apropriada em cumprimento do princípio orçamental da especificação devendo por isso ser promovida, sempre que necessário, a atualização dos códigos de classificação económica das receitas e despesa públicas” (Relatório n.º 4/2015 – AEOAC – 2.ª S Acompanhamento da Execução Orçamental da Administração Central – janeiro a março de 2015, p. 30).
32. Por estes motivos, considera-se que o enquadramento jurídico-tributário adequado da CESE, na regulação em apreciação nos presentes autos, é o de contribuição financeira.
c) Conclusão
33. Nestes termos, como a espécie tributária da CESE é uma contribuição financeira (e não um imposto) e como o âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, por força do disposto no RJAT (arts. 2.º e 4.º) e na Portaria de Vinculação (art. 2.º), apenas abrange as pretensões relativas a impostos administrados pela AT, segue-se simplesmente afirmar a conclusão da incompetência ratione materiae deste Tribunal para a apreciação do presente litígio.
Verifica-se, pois, a incompetência absoluta deste Tribunal Arbitral, o que implica uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da instância da Requerida, conforme disposto no art. 16.º do CPPT, aplicável ex vi al. c) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT e nos arts. 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi alínea e) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT.
V. Decisão
Termos em que se decide, em conformidade com o disposto no art. 16.º do CPPT e dos arts. 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi alíneas c) e e) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT, declarar a incompetência absoluta deste Tribunal em razão da matéria e, em consequência, absolver desta instância arbitral a Requerida.
VI. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, aplicáveis por força das alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.110.522,52 (um milhão, cento e dez mil quinhentos e vinte e dois euros e cinquenta e dois cêntimos).
VII. Custas
Custas a cargo da Requerente, nos termos do artigo 5.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, não cabendo proceder, em conformidade com o disposto no n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, à fixação do respectivo montante.
Notifique-se.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2020.
A Presidente do Tribunal Arbitral
(Maria Fernanda dos Santos Maçãs)
O Árbitro vogal
(João Menezes Leitão)
O Árbitro vogal
(Rui Medeiros)
(vencido conforme declaração junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que o presente Tribunal é materialmente competente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral.
A controvérsia em torno da questão da competência dos tribunais arbitrais para conhecer de “pretensões relativas a impostos” é conhecida.
Todavia, independentemente da posição que se assuma nessa querela, o entendimento que fez vencimento neste Processo Arbitral, no quadro da troca de emails havida no seguimento de uma breve reunião introdutória sobre o tema, não ponderou adequadamente dois aspetos que apontam no sentido da competência do Tribunal Arbitral para conhecer do presente litígio.
a) Por um lado, o recente aditamento da alínea e) ao artigo 2.º da Portaria de Vinculação, realizado pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, revela que, na própria perspetiva do Governo, a competência dos tribunais arbitrais em matéria de arbitragem tributária se estende ao campo dos tributos.
Recorde-se que, nos termos da nova alínea, ficam excluídas do âmbito das “pretensões relativas a impostos” suscetíveis de ser dirimidas em tribunal arbitral as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.
Ora, se o Governo – sublinhe-se, no mesmo artigo – sentiu necessidade de excluir do âmbito das “pretensões relativas a impostos” certos tributos, forçoso é concluir que, doutra forma, tais tributos estariam abrangidos pela cláusula geral que admite a arbitragem tributária em matéria de “impostos”.
E não se diga, em sentido contrário, que este entendimento estenderia demasiado a competência dos tribunais arbitrais. Não se esqueça, com efeito, que o entendimento aqui adotado só vale para os tributos administrados pela Autoridade Tributária. E, como é sabido, a Autoridade Tributária tem sob a sua administração tão-somente os impostos sobre o rendimento e sobre o património, os direitos aduaneiros e as contribuições especiais.
Por tudo isto, apesar de a referida alínea e) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação ter sido aditada em momento posterior ao exercício de 2014, a mesma constitui um importante contributo para compreender o alcance da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD em matéria de “impostos”.
Logo, e uma vez que a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético («CESE») é um tributo administrado pela Autoridade Tributária, em termos semelhantes aos impostos, resta concluir pela competência do presente tribunal para apreciar o pedido de pronúncia arbitral.
b) Por outro lado, num processo em que está em causa a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Contribuição Extraordinária Sobre o Setor Energético relativa ao ano de 2014, não se pode desvalorizar os vários argumentos que apontam no sentido de que a CESE se configurava, à data, como um imposto.
É certo que, no Acórdão n.º 7/2019, o Tribunal Constitucional qualificou a CESE como uma contribuição financeira.
A verdade, porém, é que uma tal conclusão não pode ser adotada quando se discute a aplicação da CESE em 2014. Não é preciso defender qualquer overruling da qualificação em geral adotada pelos juízes do Palácio Ratton, bastando tão somente aproveitar as possibilidades do distinguishing.
Recorde-se que, no referido aresto, o Tribunal Constitucional considerou que a CESE não era um tributo cobrado “para participação nos gastos gerais da comunidade, numa pura angariação de receitas, que vise prover, indistintamente, às necessidades financeiras do Estado, que traduza o cumprimento de um dever geral de cidadania e solidariedade, como o dever de pagar impostos, em que esteja ausente uma qualquer contraprestação pública dedicada. Isto porque não é finalidade imediata e genérica deste tributo a obtenção de receitas, a serem afetadas, geral e indiscriminadamente, à satisfação de encargos públicos”. O Tribunal do Palácio Ratton acrescentou que, “como é bom de ver, os operadores económicos deste sector, entre os quais a recorrente, em virtude do seu específico objeto social, irão, presumivelmente, aproveitar, como contrapartida da CESE, de mecanismos que promovem a sustentabilidade sistémica do sector energético, de cariz social e ambiental, a desenvolver pelo Estado regulador, garante dessa sustentabilidade (…). E, sendo assim, é possível identificar, também no caso da recorrente, uma contrapartida presumivelmente provocada e aproveitada pela recorrente, enquanto sujeito passivo, que o legislador faz repercutir, através da CESE, nestes operadores económicos sujeitos a regulação, e não na comunidade em geral”. Enfim, ainda segundo o Acórdão n.º 7/2019, não é irrelevante o facto de a CESE estar “consignada a um fundo que tem natureza de património autónomo, sem personalidade jurídica e com autonomia administrativa e financeira, o Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético”, não servindo, portanto, a receita da CESE para o “financiamento de despesas públicas gerais do Estado”.
A verdade, porém, é que, apesar de a receita da CESE estar aparentemente consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, esta consignação não é automática, pois depende de despacho do Governo, tal qual está determinado no n.º 4 do artigo 11.º do Regime Jurídico da CESE, na sua redação original.
Não se trata, sublinhe-se, de reconhecer força normativa aos factos. É a própria lei que faz condicionar a consignação de uma decisão não vinculada do Governo. Concretamente, nos termos do referido artigo 11.º, n.º 4 (hoje, n.º 6), da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, lei que criou justamente a contribuição extraordinária sobre o setor energético, “fica o Governo autorizado a transferir para o FSSSE o montante das cobranças provenientes da contribuição extraordinária sobre o setor energético”. E, num período de grande escassez de receitas, como aquele que se vivia no tempo da Troika, compreende-se que o Governo tenha preferido canalizar a receita da CESE para as despesas públicas gerais.
E, de facto, resulta do Relatório do Tribunal de Contas n.º 3/2015, relativo ao Acompanhamento da Execução Orçamental da Administração Central no ano de 2014, que, nesse ano, o Fundo não registou qualquer execução. Da mesma forma, no Relatório n.º 3/2017, agora no âmbito do Acompanhamento da Execução Orçamental respeitante ao ano seguinte – isto é, 2015 –, lê-se também que “não foi efetuada qualquer transferência do produto da CESE para o FSSSE, não tendo nesse ano o Fundo registado qualquer execução”.
Parece assim evidente que, naqueles anos em que o Fundo não registou qualquer execução e a receita não lhe foi materialmente afeta, a CESE - ao contrário do fundamento determinante da qualificação da CESE como contribuição financeira que subjaz ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019 – não teve como finalidade financiar qualquer tipo de prestações públicas provocadas ou aproveitadas pelos sujeitos passivos, o que levará indiscutivelmente a enquadrar a CESE na categoria dos impostos. Não é deste modo possível afirmar que a receita da contribuição no ano de 2014, em apreciação, teve como finalidade o financiamento de uma contraprestação que presumivelmente é provocada ou aproveitada pelos sujeitos passivos do tributo, visto que essa mesma receita, ao não ser afeta ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético - e foi esse o pressuposto em que assentou a posição do Tribunal Constitucional -, constitui uma receita geral do Estado, como é característica dos impostos.
Por outro lado, sendo a base de incidência da CESE constituída pelos elementos do ativo dos sujeitos passivos, a contribuição incide sobre a sua capacidade contributiva, manifestada pela detenção de património, como é característica dos impostos. A situação é bem diferente daquela que se verifica, por exemplo, na Contribuição sobre o Setor Bancário, pois nesta, ao assumir o passivo como base de incidência, a contribuição pretende internalizar os riscos inerentes ao exercício da atividade dos sujeitos passivos.
Deste modo, o presente tribunal sempre seria competente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral, atendendo a que se trata de uma pretensão relativa a um imposto cuja administração está cometida à Autoridade Tributária.
(Rui Medeiros)