Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 317/2019-T
Data da decisão: 2020-01-15  IRS  
Valor do pedido: € 720.449,23
Tema: IRS - Cláusula geral anti-abuso - Caducidade do direito à liquidação.
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., NIF ... e seu cônjuge B..., NIF ..., residentes em ..., ... ..., vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2018..., relativa ao ano de 2014, no valor total de € 720.449,23, com data limite para pagamento voluntário em 1 de Fevereiro de 2019.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

Na contabilidade da sociedade C..., SA, foi reconhecida, em 26 de Dezembro de 2005, uma dívida para com o seu accionista A... no montante de €38.601.350,00, resultante da aquisição, nessa data, de partes de capital da D... SGPS e de outras 6 sociedades do Grupo E... .

 

O crédito do accionista aumentou até Dezembro de 2009, num valor de €3.150.716,225 em resultado da aquisição pela C... de outras partes de capital de várias sociedades do Grupo E..., em março de 2006, pelo valor de € 1.401.903,22, e de bens imóveis, entre março e setembro de 2006, num total de €1 .748.813,00.

 

Entre 3 de Dezembro de 2005 e 31 de Dezembro de 2009 foram efectuados pagamentos ao accionista, por dedução ao seu saldo credor, no montante de €1.893.602,64, e entre 31 de Dezembro de 2010 e 31 de Dezembro de 2014, foram efectuados pagamentos nos montantes de €925.326,97, em 2012, €6.057.366,91, em 2013, e €1.100.000, em 2014.

 

Em 1993, os Requerentes detinham na C... SA, um total de 91% (88,75% + 2,25%) do capital, sendo o restante detido, em partes iguais, pelos seus filhos. Em 1 de Janeiro de 2006 (após a venda das acções) passaram a deter um total de 2,4% (2,34% + 0,06%) e a partir de 30 de Junho de 2016, deixaram de ter qualquer participação, directa ou indirecta, nesta sociedade.

 

Relativamente à D... SGPS, os Requerentes eram detentores, em 1 de Novembro de 2005, de 64% (55% + 9%) do capital, mantendo em 26 de Dezembro de 2005, uma participação indirecta por efeito da participação social de 2,4% na C..., que era titular de 60% do capital da D... SGPS. A partir de 30 de Junho de 2016, os Requerentes deixaram de deter quaisquer participações na C... .

Em 25 de Outubro de 2006, os filhos dos Requerentes, que eram detentores em nome pessoal das participações sociais, transferiram a propriedade das acções para sociedades holding, uma por cada ramo familiar, assim designadas: F... SGPS, G... SGPS, H... SGPS e I... SGPS.

Com a venda das participações sociais e dos imóveis, os Requerentes alienaram à C... a totalidade dos bens que possuíam, à excepção de depósitos bancários e aplicações financeiras, sendo que o preço de venda das acções correspondeu ao valor contabilístico das sociedades em causa. Por outro lado, a venda das acções e bens imóveis não teve subjacente uma motivação fiscal, e teve a única intencionalidade de começar a organizar uma «partilha em vida» de forma a prevenir conflitos futuros entre os herdeiros, não tendo havido um qualquer propósito fiscal.

Não tem relevo para o caso a circunstância de a alienação das acções não ter sido efectuada pelo seu valor nominal. De facto, o preço de venda não foi determinado por mera avaliação, mas pelo valor contabilístico das sociedades em causa (capitais próprios), dividindo-se esse valor contabilístico pelo número de ações representativas do capital social de cada uma dessas sociedades para determinar o valor actual de cada acção, sendo que esse método é o que se torna aplicável nas transações entre sociedades com relações espaciais, em que se impõe que sejam praticados preços de mercado.

 

Acresce que o crédito que os Requerentes passaram a deter sobre a C... pelo valor real das acções que haviam alienado destinava-se a preservar a sua capacidade económica, visto que por efeito da venda deixaram de ter bens "significativos" para fazer face às suas necessidades.

 

É igualmente irrelevante que a C... não dispusesse de capacidade para solver, no imediato, a dívida contraída para com os Requerentes. No contexto de uma «partilha em vida» não faria sentido que a C... contraísse um empréstimo para proceder ao imediato pagamento da dívida, nem os Requerentes tinham interesse nesse procedimento. O que se pretendeu foi que fossem efectuados pagamentos por conta dos créditos existentes à medida que os Requerentes precisassem de disponibilidade financeira e era, nesse momento, que os filhos, titulares das empresas, promoviam a distribuição de dividendos entre as várias sociedades do Grupo para possibilitar o pagamento dessas importâncias.

 

Não se verifica, em resumo, qualquer um dos pressupostos da aplicação da CGAA.

 

Ocorre, por lado, a caducidade do direito à aplicação da CGAA. A venda das acções em causa foi atempadamente comunicada à Autoridade Tributária, através da obrigação declarativa a que se refere o artigo 138.º do CIRS e os pagamentos efetuados pela C..., nos anos de 2010 a 2014, estão devidamente registados na contabilidade da D... SGPS, e, sendo assim, a Autoridade Tributária teve conhecimento das vendas das acções que agora questiona desde 10 de Março de 2006 (data da comunicação da realização da compra e venda) e conhecimento dos pagamentos por conta do crédito em cada um dos anos seguintes (2006 a 2014). Pelo que se verificou a caducidade do direito à aplicação da CGAA, nos termos do disposto no artigo 63.º, n.º 3, do CPTT, na redacção original, que fixava um prazo especial de três anos para a abertura do procedimento conducente à aplicação da CGAA, contado desde a «realização do negócio jurídico objeto das disposições anti-abuso».

 

Mesmo que essa norma não seja aplicável, continua a subsistir o prazo normal de caducidade do direito à liquidação, que toma como ponto de referência o momento da prática do negócio abusivo. Tendo sido a alienação das acções comunicada à Autoridade Tributária em 10 de Março de 2006, é a partir dessa data que se deve contar o prazo de caducidade de eventuais liquidações adicionais, mesmo as feitas com invocação da CGAA.

 

Mesmo que assim não fosse, a contagem do prazo de caducidade haverá de iniciar-se no momento em que o esquema abusivo se completa, correspondendo esse ao momento em que houve lugar à recepção de acréscimos patrimoniais por efeito do pagamento dos créditos que os Requerentes dispunham sobre a C..., e tendo o primeiro pagamento sido efectuado em 2006 e prolongando-se os restantes pagamentos ao longo de 8 anos, o direito à aplicação do CGAA caducou em finais de 2010, isto é, quatro anos após o primeiro pagamento, ou considerando apenas os pagamentos de que ainda existe ainda documentação, em finais de 2013.

 

No caso, a Autoridade Tributária pretende requalificar, em 2018, uma operação ocorrida em 2005 para justificar o seu direito a tributar operações realizadas no ano de 2014, apesar de não pretender tributar as prestações de pagamentos anteriores por considerar tal direito caducado.

Requerem a final a anulação da liquidação impugnada, no que se refere à inclusão no rendimento tributável de €1.100.000,00 relativos aos pagamentos efectuados, no ano de 2014, pela sociedade C..., S.A, bem como a anulação da liquidação de juros compensatórios, por não verificação de qualquer dos pressupostos de aplicação da CGAA, e, caso assim se não entenda, por caducidade do direito à liquidação.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que a D... SGPS pagou dividendos à C... (sem tributação, nos termos do artigo 51.º do CIRC), no montante de € 1.653.182,58, sendo que a maior parte desses lucros (no valor de € 1.100.000) foi transferida em seguida para o accionista A... a título de reembolso do crédito gerado com a operação de alienação das partes de capital que aquele detinha na D... SGPS e nas outras 6 sociedades do Grupo E..., que ocorreu em 2005.

 

Caso estes montantes fossem pagos ao accionista sob a forma de lucros estariam sujeitos a tributação, segundo o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS e, nestes termos, a C... foi a sociedade veículo usada pelo accionista para receber dividendos como se de um pagamento/reembolso de uma dívida se tratasse, assim se justificando que os serviços de Inspeção Tributária tivessem proposto o procedimento de aplicação de cláusula geral anti-abuso (CGAA), do qual resultou a liquidação adicional em IRS no valor € 720.449,23, emitida em 17 de Dezembro de 2018.

A Autoridade Tributária não põe em causa as motivações subjacentes às operações realizadas, mas sim a forma artificiosa como foi criada a dívida da C... perante o accionista, com as acções que foram objecto de alienação a serem valorizadas, na sua maioria, acima do valor nominal. A D... SGPS também distribuiu os dividendos à C... beneficiando da eliminação da dupla tributação prevista no artigo 51.º do CIRC e da dispensa de retenção na fonte estipulada no artigo 97.º, n.º 1, alínea c), do mesmo código, sendo esses valores utilizados na amortização da referida dívida ao accionista.

Por outro lado, as condições em que se realizaram os negócios só foram possíveis pela existência de relações especiais entre os intervenientes.

No âmbito do procedimento inspectivo, foram demonstrados todos os requisitos de aplicação da CGAA, e, designadamente, os elementos meio – a forma utilizada -, resultado – a vantagem fiscal e a equivalência económica obtidas -, intelectual – a motivação do contribuinte -, normativo – a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida - e sancionatório – a efetivação da cláusula.

Também não se verifica a caducidade do direito à liquidação. Nos termos do artigo 45.º, n.º 1, da LGT, na redacção vigente à data, “o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.” Acrescentando o n.º 4 que no caso dos impostos periódicos, esse prazo conta-se a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário. E o facto tributário relativo a IRS de 2014 verificou-se a 31 de Dezembro de 2014, sendo que a liquidação adicional foi emitida em 17 de Dezembro de 2018 e notificada aos sujeitos passivos em 31desse mês, ainda dentro do prazo de caducidade de quatro anos estipulado na referida norma. 

Alegam os Requerentes que a aplicação da CGAA caducou em 2008 ou 2010, nos termos do n.º 3 do artigo 63.º do CPPT, na sua redação inicial, que estabelece que o prazo de 3 anos se inicia a partir do momento em que a Administração teve conhecimento do negócio celebrado em 2005 ou a partir da data do primeiro pagamento, ocorrido em 2006. No entanto, em 2014 (ano em que foi feito o pagamento dos dividendos a título de reembolso/amortização de dívida), essa norma já se encontrava revogada, havendo de contar-se o prazo nos termos do n.º 4 do artigo 45.º da LGT (4 anos) e durante esse prazo os serviços poderiam accionar o procedimento inspetivo conducente à aplicação da CGAA.

Conclui no sentido da improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo houve lugar à reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal indicada pelas partes.

 

Em alegações, a Requerente e a Requerida procuraram fixar os factos que consideram como assentes e mantiveram quanto à matéria de direito as suas anteriores posições. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo o Conselho Deontológico designado o árbitro presidente, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 15 de Julho de 2019.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           Em 1993, na data da constituição da C..., S.A., os Requerentes detinham um total de 91% (88,75% + 2,25%) do capital, sendo o restante capital detido, em partes iguais, pelos seus filhos J...,  A..., K..., e L..., na percentagem individual de 2,25%;

B)           Na contabilidade da sociedade C..., SA, foi reconhecida, em 26 de Dezembro de 2005, na conta 278222 – outros credores, um saldo devedor a favor do Requerente A..., no montante de €38.601.350,00, resultante da alienação a essa entidade de 60% do capital da D... SGPS e de 6,40% do capital das sociedades M..., S.A, N..., S. A., O..., S. A., P... SGPS, S.A, Q..., S.A. e R..., SARL, que integram o Grupo E...;

C)           O crédito do Requerente A... aumentou até Dezembro de 2009, por efeito da alienação à C... de partes de capital de outras sociedades do Grupo E..., em março de 2006, pelo valor de € 1.401.903,22, e de bens imóveis, entre março e setembro de 2006, pelo valor total de € 1.748.813,00;

D)           Em 1 de Janeiro de 2006, após a alienação das acções, os Requerentes passaram a deter, respetivamente, 2,34% e 0,06% do capital, num total de 2,4%, da C...;

E)            A partir de 30 de Junho de 2016, os Requerentes deixaram de ter qualquer participação, directa ou indirecta, na C...;

F)            Em 1 de Novembro de 2005, os Requerentes eram detentores de 64% (55% + 9%) do capital da D... SGPS;

G)           Em 26 de Dezembro de 2005, os Requerentes deixaram de ter participações directas na D... SGPS, mantendo uma pequena participação indirecta por efeito da participação social de 2,4% que detinham na C...;

H)           A partir de 30 de Junho de 2016, os Requerentes deixaram de deter quaisquer participações na D... SGPS;

I)             Em 10 de Março de 2006, os Requerentes cumpriram a obrigação legal de declaração à Autoridade Tributária da alienação das acções que ocorreu em 2005; 

J)            Entre 31 de Dezembro de 2005 e 31 de dezembro de 2009 foram feitos pagamentos ao Requerente marido por dedução do saldo credor no montante de € 1.893.602,64;

K)           Entre 31 de Dezembro de 2009 e 31 de dezembro de 2014, o saldo credor do Requerente marido por efeito da alienação das acções evolui do seguinte modo:

 Em 31 de Dezembro de 2011: € 38.088.833,58

Em 31 de Dezembro de 2012: € 37.163.506,61

Em 31 de Dezembro de 2013: € 31.106.139,70

Em 31 de Dezembro de 2014: € 30.006.139,70

L)            Em 2012, 2013 e 2014, o Requerente A... recebeu por conta dos seus créditos as importâncias de € 925.326,97, € 6.057.366,91 e € 1.100.000;

M)          O montante de € 1.100.000,00, referente ao ano de 2014, resultou de pagamentos parcelares de € 300.000,00, € 300.000,00, € 400.000,00 e € 100.000,00, realizados em 13 de Janeiro, 4 de Abril, 8 de Maio e 8 de julho, provenientes de dividendos distribuídos pela D... SGPS à C... nessas datas;

N)           Os pagamentos ao Requerente A... por conta do seu crédito eram efectuados à medida em que eram solicitados, sendo que para o efeito os filhos, titulares das empresas, promoviam a distribuição de dividendos entre as várias sociedades do Grupo em vista a permitir os pagamentos;

O)           Após 25 de Outubro de 2006, os filhos dos Requerentes transferiram a propriedade das acções de que eram detentores em nome pessoal na D... SGPS para sociedades holding por cada ramo familiar, assim designadas: F... SGPS, G... SGPS, H... SGPS e I... SGPS;

P)           O preço de venda das acções a que se refere a antecedente alínea B) foi calculado pelo valor contabilístico (capitais próprios) das sociedades em causa;

Q)           À data da aquisição das acções pertencente ao Requerente A..., a  C... tinha um capital social de € 100.000,00 e não dispunha de recursos financeiros para fazer à dívida contraída;

R)           Os Requerentes foram objecto de um procedimento inspectivo externo de âmbito parcial, titulado pela Ordem de Serviço n.º OI2018..., emitida pela Direcção de Finanças de ..., iniciado em 6 de Setembro de 2018, com a finalidade de comprovação e verificação das obrigações dos sujeitos passivos em sede de IRS no ano fiscal de 2014;

S)            Na sequência da acção inspectiva, os serviços de Inspeção Tributária propuseram a aplicação de cláusula geral anti-abuso (CGAA) mediante o procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT, que foi autorizado por despacho da Directora-Geral datado de 12 de Dezembro de 2018;

T)            Os sujeitos passivos foram notificados em 27 de Setembro de 2018 do projecto de relatório de Inspeção Tributária para exercerem o direito de audição prévia, tendo exercido esse direito através de exposição que deu entrada na Direção de Finanças de ... em 24 de Outubro de 2018;

U)           O procedimento inspectivo determinou o apuramento de rendimentos de capitais da categoria E, no valor total de € 1.100.000, por referência ao ano de 2014, a que corresponde o valor de imposto a pagar de € 720.449,23, em resultado do pagamento efectuado pela C..., nesse ano, por conta do saldo credor dos Requerentes;

V)           O Relatório de Inspecção Tributária fundamenta a correcção aritmética, nos termos do disposto no artigo 63.º, n.º 3, alínea b), do CPPT, nos seguintes termos:

III.2.2 a) Comparação das vantagens fiscais com o benefício económico 

A vantagem fiscal do reembolso da dívida pela sociedade C... ao seu acionista, resultante da aquisição das participações que este detinha na sociedade D... SGPS (e nas outras 6 sociedades do Grupo E... alienadas) e após a distribuição de dividendos por parte da D... SGPS à C..., consistiu na retirada de dividendos daquela sociedade sem qualquer tributação. 

No caso em análise não se vislumbra qualquer benefício económico, uma vez que a via escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal concretizou-se nos seguintes atos/negócios: 

- o acionista S... procedeu à alienação de 60% das ações que titulavam o capital social da D... SGPS (e de 6,4% das ações que titulavam o capital das outras 6 sociedades do Grupo E...), beneficiando da exclusão de tributação prevista na al. a) do nº. 2 do artigo 10º do CIRS, pelo facto daquelas terem sido por si detidas durante mais de 12 meses (exceto as partes de capital da sociedade M..., SA – relativamente às quais declarou uma menos-valia); 

- concomitantemente, utilizou-se uma sociedade imobiliária detida pelo S... em 91% - que estava praticamente inativa - para servir de veículo para a aquisição das supra referidas ações; - montada esta estrutura, temos que quando a sociedade D... SGPS (bem como as ditas outras 6 sociedades do Grupo E... alienadas) distribuem dividendos à C... não há qualquer encargo tributário face ao disposto no artigo 51.º do CIRC, usufruindo ainda da dispensa de retenção na fonte, por força do disposto no artigo 97.º, n.º1, alínea c) do mesmo Código, sendo que esse proveito na C... nunca chega a dividendo (recorde-se que esta sociedade nunca distribuiu lucros aos seus acionistas, que se mantiveram sempre pessoas singulares), e como tal, nunca há tributação em sede de IRS na esfera do S..., na medida em que os mesmos valores servem para mero reembolso da quantia em dívida perante o referido acionista, que, relembre-se, serviu tão-somente o propósito de comprar algo que já pertencia a essa mesma pessoa. 

Para remunerar o capital dos acionistas da D... SGPS a forma normal seria a distribuição de dividendos (aos seus acionistas, os quais, à data destas operações, eram todos pessoas singulares) pagando o respetivo imposto, e não a criação de uma estrutura que permitiu retirar esses rendimentos sem qualquer tributação, através da sua transformação em reembolso do crédito gerado por uma operação efetuada entre entidades juridicamente distintas, mas economicamente e de facto controladas pela mesma pessoa.

III.2.2 b) Mudança na posição económica do contribuinte que porventura opere 

Estas operações tiveram como objetivo fundamental a distribuição de dividendos, colocados à disposição no ano de 2014, e permitiram a transformação de um fluxo financeiro que, sem a operação de alienação descrita, e a utilização da C... como sociedade veículo, chegaria ao acionista sob a forma de dividendo e, consequentemente, seria um rendimento sujeito a IRS (segundo as regras da categoria E). 

Todavia, com as operações realizadas, aquele fluxo financeiro chega ao acionista S... sob a forma de reembolso de uma dívida, que não é considerado rendimento em sede de IRS, possibilitando a transferência não tributada dos lucros da D... SGPS para o acionista (pessoa singular), através da transformação daquele fluxo, conseguido com a interposição da sociedade C... . 

Como já se disse, a C..., sociedade praticamente inativa até então, a partir de 26 de Dezembro de 2005, através das aquisições de partes de capital (e imóveis) ao S..., passa a funcionar como cofre desses Ativos visando retirar os dividendos dessas participadas sem tributação através da utilização abusiva do reembolso da dívida gerada em favor do S... com essas mesmas operações. 

Neste contexto, não se vislumbram razões económicas válidas para a realização destas operações desde logo porque, quando recebe tais Ativos, assume uma dívida para a qual não possui estrutura ou recursos financeiros para pagar (veja-se a disparidade entre o capital social e os capitais próprios em Dezembro de 2005 – 0,01 e 0,0099 milhões de Euros, respetivamente – e o montante do crédito do S... que ficou obrigada a pagar – 38,601 milhões de Euros). 

Por outro lado, e como decorre dos factos já explanados, os rendimentos gerados pelos inúmeros imóveis propriedade da C... (recorde-se que em 2014 eram 206), são manifestamente irrelevantes, quer quando comparados com os rendimentos decorrentes do MEP, quer quando analisados face ao valor que assumem no balanço da sociedade, mostrando que o propósito da sua passagem para a C... por parte do S... nunca terá sido efetivamente a sua gestão e rentabilização, mas apenas e tão somente o seu depósito numa entidade formalmente externa à família, mas de facto pelo mesmo detida e administrada.

Conclui-se portanto que, de 2005 em diante, esta sociedade imobiliária detida pelo S... e família –C...- serviu essencialmente para receber os lucros pagos pela D... SGPS (e pelas restantes sociedades do Grupo E... nas quais participa) e permitir a sua retirada pelo acionista que controla esta sociedade, agora transformados na figura de reembolso de dívida.

Com tais transmissões apenas se conseguiu proceder à mera alteração de uma titularidade jurídica direta por uma titularidade indireta, (visto que o acionista S... continua a deter o poder (controlo) efetivo sobre a D... SGPS e todas as restantes sociedades alienadas, mantendo-se como Presidente do Conselho de Administração de todas elas) atingindo através deste artifício um fim essencialmente fiscal, não havendo mais-valia ao nível da organização ou gestão, nem alteração substancial na sua estrutura de capital. 

O reconhecimento de uma dívida de elevado montante no seu passivo, quando não possuía estrutura para tal, apenas foi possível porque existiam relações especiais entre a C... e o vendedor das partes sociais. Estas operações só foram concretizadas atendendo às relações especiais que existem entre o alienante e o acionista da C... (é a mesma pessoa). 

Em complemento à manifesta falta de capacidade financeira para pagar a dívida assumida perante o S..., a qual apenas se concretizou graças às relações especiais já descritas, assiste-se também a uma alteração significativa da política de dividendos da D... SGPS, porquanto esta passou a efetuar a redistribuição dos dividendos auferidos das suas participadas, P... SGPS e O... SA (os quais ascenderam a aproximadamente a 6 milhões de Euros, pagos nos anos de 2009, 2013 e 2014).

Concluindo, a subsunção ao regime da CGAA encontra-se justificada pela circunstância das operações em exame configurarem, pelos seus valores, negócios anormais, gerando volumes de endividamento para a C... tão insustentáveis para aquela sociedade como vantajosos para o acionista S... . Trata-se de uma sobreposição dos interesses pessoais aos interesses societários que denota a anomalia do instrumento elisivo. 

III.2.2 c) Potencial interesse extra-fiscal do mesmo 

No caso em análise, conforme demonstrado, a alienação da participação de 60% que o S... detinha na sociedade D... SGPS (e de 6,4% que detinha noutras sociedades do Grupo E...), e a distribuição de lucros que paulatinamente foram utilizados para reembolsar a dívida gerada com a aquisição daquelas participações, visou, em primeira instância, a obtenção do resultado fiscal – distribuição dos dividendos, “disfarçados” como “reembolsos” de dívida.

Estamos perante um dos múltiplos exemplos de escola da doutrina da transação-farsa (sham transaction doctrine) a qual prevê precisamente a distribuição de dividendos através da constituição de um empréstimo junto dos acionistas, operação que é designada, nos meios dedicados ao estudo do planeamento agressivo, como transação de descolamento de dividendos (dividend-stripping transaction)8. A mesma é uma de muitas modalidades estudadas de dividendos construtivos ou disfarçados. 

De igual modo, verificamos que a estruturação das operações, para além de dirigida à obtenção da referida vantagem fiscal, foi ainda e simultaneamente, dotada de uma forma anómala e artificiosa, uma vez que tendo em conta os factos descritos, não se vislumbra outro motivo para estas operações que não seja a distribuição de dividendos das empresas do Grupo E... (com especial relevância para a D... SGPS, dado que se trata da participação mais significativa) ao acionista sem qualquer tributação. 

Não obstante os atos e negócios jurídicos que compõem esta estrutura sejam, em si mesmos, válidos e lícitos, e correspondam à efetiva vontade dos sujeitos passivos, não se lhes vislumbra qualquer substância económica. 

O que é decisivo na aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso é aferir se o ato ou negócio jurídico escolhido tem uma substância, económica ou outra, que se possa dizer predominante na sua relação com a vantagem fiscal (comparativa) objetivamente decorrente dessa escolha. Analisando a sequência dos factos não se vislumbra substância económica na operação para além da vantagem fiscal.

Assim, é notória a existência de uma motivação fiscal preponderante, que se manifestou nas formas adotadas e que faz prevalecer a finalidade fiscal do negócio sobre a eventual finalidade não fiscal.

Pelo que se conclui ter ocorrido planeamento fiscal ilegítimo, com abuso de figuras jurídicas subversor dos propósitos legais, estando portanto reunidas as condições para aplicação do disposto no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e no artigo 63.º do CPPT. 

Por assim ser, incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz no âmbito tributário, a consideração como reembolso de dívida dos dividendos distribuídos ao acionista da C..., uma vez que esta operação foi praticada com abuso das formas jurídicas e teve como objetivo essencial a eliminação de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

Face ao exposto, a tributação para os montantes atribuídos em 2014 deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência da tal estrutura, concretamente na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º e na alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS, não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 38° da LGT.

W)          Os Requerentes foram notificados da liquidação adicional de IRS em 31 de dezembro de 2018.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, na produção de prova testemunhal em audiência e factos não questionados.

 

Matéria de direito

 

Caducidade do direito à liquidação

 

5. Defendem os Requerentes que se verifica a caducidade do direito à liquidação pelo decurso do prazo de três anos previsto no artigo 63.º, n.º 3, do CPPT, na redacção originária, ou pelo decurso do prazo geral de quatro anos a que se refere o artigo 45.º, n.º 1, da LGT, porquanto a Autoridade Tributária teve conhecimento da alienação das acções por via do cumprimento pelos sujeitos passivos da obrigação declarativa, em 10 de Março de 2016, ou, pelo menos, com a realização dos pagamentos tidos como dividendos dedutíveis que se iniciaram em 2006.

 

Começando por analisar esta questão, cabe referir que a cláusula geral anti-abuso é, em si, um facto jurídico complexo que corresponde a um esquema negocial adoptado pelo contribuinte com o propósito de obter um ganho fiscal que não ocorreria se ele tivesse recorrido às formas jurídicas ou às práticas negociais comuns.

 

Reportando-nos à situação do caso, não basta, por conseguinte, para se iniciar a contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação que for devida, tomar como ponto de referência a data em que foram efectuadas as alienações das participações sociais já que estas operações não consubstanciam em si mesmo um meio artificioso ou fraudulento ou um abuso de formas jurídicas. O que poderá ter justificado a aplicação da cláusula geral anti-abuso – na perspectiva da Autoridade Tributária - é o facto de o retorno do crédito gerado pela venda de acções vir a ocorrer através de pagamentos que dissimulam uma distribuição de dividendos, e, por isso mesmo, o esquema negocial que é objecto da cláusula geral anti-abuso apenas se completa com o acréscimo patrimonial que é obtido indevidamente por esse meio.

 

O artigo 63.º, n.º 3, do CPPT determinava, na sua redacção originária, que o procedimento de aplicação da cláusula anti-abuso poderia ser aberto no prazo de três anos a contar do início do ano civil seguinte à realização do negócio objecto das disposições anti-abuso, configurando-se como um prazo especial referente a esse específico procedimemto tributário. Essa norma foi entretanto revogada pela nova redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, pelo que deverá entender-se que o prazo de caducidade do direito à liquidação, mesmo nesse caso, é agora o prazo geral de quatro anos constante do n.º 1 do artigo 45.º da LGT, que o n.º 4 explicita contar-se, nos impostos periódicos, “a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário”.

 

Considerando o já anteriormente exposto, o facto tributário a ser tido em atenção para efeito da contagem do prazo de caducidade, no caso de aplicação da cláusula geral anti-abuso, é o dito facto complexo, que se não reduz à mera operação de alienação de participações sociais, mas culmina com o rendimento auferido e o modo como foi auferido.

 

Sendo assim – como é bem de ver -, o prazo de caducidade não se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que ocorreram as alienações das participações sociais (2005), nem da data em que as alienações foram declaradas à Autoridade Tributária (10 de Março de 2006), nem da data em que foram efectuados os primeiros pagamentos (2006).

 

Tratando-se de um pagamento realizado no exercício de 2014, o prazo de caducidade conta-se a partir de um 1 de janeiro de 2015 e tendo sido os Requerentes notificados da liquidação adicional em 31 de Dezembro de 2018, não havia decorrido o prazo de quatro anos fixado no falado artigo 45.º, n.º 1, da LGT.

 

Resta acrescentar que não faz qualquer sentido alegar – como fazem os Requerentes – que a Administração poderia ter-se apercebido do negócio abusivo em 2006, ou nos anos seguintes, à medida que foram sendo efectuados os pagamentos por conta do crédito gerado pela venda das participações sociais. De facto, a Administração não pode extrapolar de um facto inicial (alienação de acções) a ocorrência de factos futuros abusivos e, em todo o caso, a tributação em sede de IRS a título de rendimentos de capitais apenas pode ser considerada em relação ao ano fiscal em que os rendimentos são obtidos.

 

Improcede, por conseguinte, a excepção de caducidade do direito à liquidação.

 

Cláusula geral anti-abuso

 

6. Para dilucidar a questão que está em debate justifica-se descrever, ainda que em termos sucintos, o regime da cláusula geral anti-abuso.

 

A disposição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT declara como “ineficazes, no âmbito tributário, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

Segundo assinala SÉRGIO VASQUES, a cláusula geral anti-abuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados se tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2018, pág. 369).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados.

 

Resulta de todas as precedentes considerações, que a cláusula geral anti-abuso se destina a eliminar as vantagens fiscais ilegítimas obtidas na esfera jurídica pelo contribuinte através de actos ou negócios abusivos praticados com o intuito de obviar ao pagamento do imposto que seria devido caso se tivesse recorrido às formas negociais comuns.  

 

A aplicação da cláusula anti-abuso depende, por outro lado, de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a actuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidos como assentes (cfr. acórdão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo n.º 04255/10, e acórdão arbitral proferido no Processo n.º 377/2014).

 

No caso vertente, a vantagem fiscal ilícita que justificou a aplicação da disposição anti-abuso traduziu-se na evitação de pagamento de imposto relativamente à distribuição de lucros a um dos sócios, que, normalmente, seria objecto de tributação como rendimentos de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, e que foi alcançada através de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas.

 

Os Requerentes alienaram à C..., SA, 60% do capital da D... SGPS e de 6,40% do capital de outras seis sociedades do Grupo E..., tendo sido reconhecida na contabilidade daquela entidade, em 26 de Dezembro de 2005, por efeito dessa operação, um saldo devedor a favor do Requerente A..., no montante de € 38.601.350,00.

 

À data da constituição da C..., S.A., em 1993, os Requerentes detinham um total de 91% (88,75% + 2,25%) do capital, sendo o restante capital detido, em partes iguais, pelos seus filhos na percentagem individual de 2,25%. Em Janeiro de 2006, após a alienação das acções, os Requerentes passaram a deter 2,34% e 0,06% do capital, num total de 2,4%.

 

Em Novembro de 2005, os Requerentes eram detentores de 64% (55% + 9%) do capital da D... SGPS, deixando de ter participação directa nessa entidade em 26 de Dezembro de 2005, quando a passaram apenas a manter uma participação indirecta por efeito da detenção de 2,4% do capital C... .

 

A partir de Junho de 2016, os Requerentes deixaram de ter qualquer participação, directa ou indirecta, na C... e na D... SGPS.

 

Os pagamentos por conta do crédito resultante da alienação de participações sociais à C... eram efectuados a solicitação do Requerente A... sempre que este necessitasse de disponibilidade financeira e eram realizados através de distribuição de dividendos entre as várias sociedades do Grupo.

Foram feitos pagamentos ao Requerente marido por dedução do saldo credor, no montante de € 1.893.602,64, entre 31 de Dezembro de 2005 e 31 de dezembro de 2009, e no montante de € 8.082.693,88, entre 31 de Dezembro de 2011 e 31 de Dezembro de 2014.

 

Em 2014, o Requerente A... recebeu por conta dos seus créditos a importância de € 1.100.000, em pagamentos parcelares de € 300.000,00, € 300.000,00, € 400.000,00 e € 100.000,00, realizados em 13 de Janeiro, 4 de Abril, 8 de Maio e 8 de julho, provenientes de dividendos distribuídos pela D... SGPS à C... .

 

Assistiu-se, nestes termos, a uma série de transações por passos (“step transaction”) com um efeito consequencial que é o de permitir que os Requerentes, que eram sócios maioritários das empresas, passassem a deter apenas um crédito resultante da alienação de acções que lhes assegura a possibilidade de auferirem rendimentos a título de pagamento que, na realidade, provêm de distribuição de dividendos.

 

Não pode ignorar-se, neste contexto, que se trata de um grupo de empresas familiar, mantendo o Requerente A... a condição de presidente do conselho de administração da D... SGPS e da C..., e que os accionistas desta última entidade são os filhos Requerente a quem este transmite as instruções para os pagamentos que devam ser efectuados por conta do crédito.

 

Acresce que não há qualquer indicação no processo quanto os termos que tenham sido estipulados para a obrigação pecuniária e mormente quanto ao prazo da prestação e as garantias de cumprimento, tendo-se dado como provado apenas que a dívida resultante da alienação das acções foi reconhecida na contabilidade da D... através da abertura de um conta em que se inscreve o saldo devedor.   

 

7. A referência a actos ou negócios jurídicos que podem ser tidos como ineficazes por aplicação da cláusula anti-abuso deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo quaisquer esquemas negociais que possam considerar-se finalisticamente relacionados e que, por ausência de racionalidade económica, devam ser tidos como visando obviar ao pagamento do imposto que normalmente seria devido. Ademais, as formas negociais que tenham sido utilizadas devem ser aferidas em termos objectivos, a partir da substância económica das transações segundo um padrão de razoabilidade económica e comercial.

 

Não podendo perder-se de vista que o sentido geral da Diretiva Antielisião Fiscal (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que sugere que uma montagem (ou série de montagens) será considerada como não genuína na medida em que não coloque em prática um propósito comercial válido baseado em razões que reflitam a realidade económica.

 

 No caso, as operações de modificação do capital social levadas a efeito e  a constituição de um crédito a favor dos Requerentes não revelam um objectivo suficientemente definido e justificado do ponto de vista financeiro, nem encontra uma explicação bastante na alegada pretensão de realizar uma sucessão organizada da propriedade e direcção das várias sociedades do grupo, desiderato que sempre poderia ser alcançado por via de uma reorganização societária - como, aliás, sucedeu com a constituição de holdings por cada ramo familiar – sem que para isso se tornasse indispensável a constituição de uma obrigação pecuniária.

 

O que importa reter é que a transmissão de participações sociais com a contrapartida do reconhecimento de uma dívida por uma das sociedades do grupo, em vista ao pagamento planeado através de distribuição de dividendos entre as empresas, representa na prática um mecanismo artificioso destinado a obter uma indevida poupança fiscal.

 

Subsistem, em todo este contexto, factos indiciários suficientes para considerar que o conjunto articulado de operações, não tendo tido um objectivo que se torne justificável no plano da racionalidade económica e da actividade empresarial, teve o único propósito de obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da cláusula geral anti-abuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar improcedente o pedido arbitral e manter a liquidação adicional que vem impugnada.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 720.449,23, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Notifique.

 

Lisboa, 15 de Janeiro de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Tomás Cantista Tavares

Vencido conforme declaração em anexo

 

O Árbitro vogal

Jorge Carita 

Voto de vencido

 

 

 

 

 

 

1. Votei vencido, pelas seguintes razões: (i) Entendo que há um conjunto de factos relevantes que estão provados no processo (mas não assumidos de forma correta na Sentença) e que moldam totalmente a decisão;  (ii) com base neles, não se verificam os pressupostos de aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso (CGAA) do art. 38.º, n.º 2, da LGT; e (iii) ocorre a caducidade do direito à liquidação, seguindo jurisprudência firmada pelo CAAD.

 

2. Quanto aos factos, em sequência cronológica (e descritos no requerimento inicial):

a) Em 26/12/2005, o S... e mulher venderam 60% da D... SGPS à C..., por 38 milhões de euros, com espera de preço (facto B) do projeto de Sentença) e alienaram também à D... SGPS as participações que detinham em termos pessoais nas demais sociedades do grupo;

b) Em 2006, os outros acionistas da D... SGPS (filhos do S...) passarem as suas participações para sociedades holdings pessoais. Com isso, todos os sócios da D... SGPS deixaram de ser pessoas singulares e passaram a ser sociedades (p. 7 do relatório inspetivo junto com o processo administrativo (PA)).

c) Antes da operação, o Senhor S... (e mulher) tinha mais de 90% do capital social da C... . Mas em 3/2006, por aumento de capital dos outros sócios – o S... e a mulher ficaram com uma participação simbólica de 2,4% e os outros sócios (os filhos do S...) ficaram, cada um, com 24,4% do capital social da C... (p. 8 e 9 da fundamentação, junta com o PA).

d) Não está provado que exista uma relação causal direta e inelutável ao longo do tempo entre o valor dos dividendos recebidos pela D... SGPS e o pagamento parcial do preço, nos mesmos valores. Não havia cronograma temporal do pagamento da dívida de 38 Milhões de euros; o contrato de compra e venda das participações era omisso; e o preço foi sendo pago, quando as partes (o S...) o solicitava.

 

Quer dizer: em 3 meses (12/2005 a 3/2006) há duas mudanças significativas:

Primeira: o S... e mulher deixam de ter o controlo acionista do grupo E... . Antes tinham o domínio direto do Grupo (mais de 50% do capital e votos); entre 12/2005 e 3/2006, mantêm o domínio indireto (via C...); a partir de 3/2016, deixam de ter o domínio do grupo, mantendo apenas participações marginais na C..., de 2,4% e nenhuma participação na D... SGPS e em qualquer outra sociedade do grupo (é como uma “partilha em vida” a favor dos filhos).

Segunda: há uma lógica de empresarialização global: em 3 meses a D... SGPS deixa de ser detida por pessoas singulares e passa a ser detida apenas por outras sociedades, ainda que de membros da família – seguramente por causa da dimensão do Grupo.

 

3. Perante tais factos, entendo que não se verificam os pressupostos de aplicação da CGAA do art. 38.º, n.º 2, da LGT.

O art. 38.º, n.º 2, da LGT (na redação em vigor em 2014 [ano da liquidação impugnada]) dizia o seguinte: “são ineficazes no âmbito tributário, os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência ou não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

 

A jurisprudência (sobretudo arbitral, cfr. por todos o proc. 126/2018-T) e a doutrina (JL Saldanha Sanches, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra Editora, 2006, p. 170 e Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2018, p. 369) fazem depender a aplicação da CGAA da verificação cumulativa de vários pressupostos, que, embora com diferenças de análise (a jurisprudência afere cinco requisitos e a doutrina três), se reconduzem substancialmente ao mesmo, a saber:

a) Elemento objetivo (causal): atos ou negócios que reduzam, eliminem ou difiram a tributação;

b) Elemento subjetivo: que esses atos ou negócios jurídicos visem, “essencial ou principalmente” a redução, eliminação ou diferimento temporal do imposto.

c) elemento normativo: “com utilização de meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”.

Assim, no caso concreto:

a) O negócio efetuado (compra e venda de ações, com espera de preço) não tem qualquer relação causal com a distribuição de dividendos.

O S... fez um negócio de venda de participações sociais, que à época a lei fiscal concedia uma isenção sobre as mais valias (aproveitou, de forma direta, uma tributação zero desejada pelo legislador – que apenas foi revogada quase 5 anos depois). A “espera de preço” é um elemento não essencial do negócio em termos fiscais. Se o preço fosse pago na íntegra, ainda que à custa de endividamento bancário, então já não haveria abuso? E, além disso, não existe uma relação causal entre os dividendos recebidos pela D... SGPS e o pagamento do preço ao S... (nem contratualmente, nem foi isso o que aconteceu na realidade). E o S..., ao perder o domínio sobre o grupo, já não consegue exigir juridicamente o pagamento, se e quando desejar. 

 

b) Os atos ou negócios jurídicos não visaram “essencial ou principalmente” a eliminação da tributação.

O negócio em causa (venda, pelo S..., do domínio da D... SGPS, com espera de preço) insere-se numa operação global mais vasta, concretizada em várias fases e negócios, em tempo adequado (3 meses) – e que passou em termos essências pela saída do S... (e sua mulher) de sócio maioritário de todo o grupo E... e passagem geracional, aos seus filhos em partes iguais (partilha em vida), com a (i) venda das suas participações sociais à C... (com espera de preço) e (ii) com a operação de aumento de capital (de baixo valor) na C... (que o S... não acompanhou e ficou assim, após o aumento, com uma participação simbólica na C...).

Ou seja: em 11/2005 – o S... e sua mulher dominavam (largamente) todas as sociedades do grupo E... (imobiliária, SGPS, e demais sociedades); em 4/2006 (e até hoje) detêm apenas uma participação simbólica na C... (2,4%)

Quer dizer: Se o S... apenas fizesse a venda com espera de preço da D... SGPS a favor da C...– poder-se-ia aventar que o propósito principal ou essencial da operação poderia ser o planeamento fiscal, pois na verdade, mantinha o domínio do grupo (já não direto, mas indireto), como sócio principal da C... .

Mas não isso o que sucedeu: o S... quis passar a propriedade do grupo E... para os seus filhos, em partes iguais – numa passagem geracional em empresa familiar. E fez um conjunto de operações com esse propósito. E esse intuito (concretizado) tem dimensão material, repercussões vastas e irreversíveis, num conjunto de empresas de grande dimensão: no fundo, a este intuito subjazem razões pessoais e económicas, não fiscais, de grande relevância e materialidade.

Claro que haveria outras formas de conseguir este mesmo propósito, desde a doação (isenta de imposto de selo) ou a venda (isenta de IRS) das ações da D... SGPS e demais empresas aos filhos do S.... Mas, o S... quis receber o preço justo pelas ações (em vez de fazer uma doação), para não ter de viver da caridade dos filhos – e a CGAA não vai ao ponto de sindicar tais opções pessoais e íntimas; como não quis vender as ações aos filhos (porventura porque não lhas quereriam comprar, dado o elevado valor do ativo e falta de liquidez dos filhos).

Em suma: analisado este negócio no seu contexto (uma das operações da passagem acionista para a segunda geração), não posso concluir que a poupança fiscal (eliminação de imposto) foi o propósito essencial ou principal da venda com espera de preço. Existem ponderosas razões económicas e pessoais, não fiscais. E as operações homólogas (venda com pagamento do preço ou doação) estariam igualmente isentas de imposto.

Note-se que a lei (art. 38.º, n.º 2, da LGT) fala em atos ou negócios jurídicos, no plural, para atender à operação como um todo, em todos os seus aspetos – e não apenas a uma das parcelas, descontextualizada das razões económicas válidas da operação como um todo.

Advogo, por fim, na senda da jurisprudência arbitral (Ac. 420/2014-T, 62/2014-T, 267/2013-T, 288/2014-T) que é da AT o ónus da prova de que às operações subjazem razões de eliminação do imposto, de forma principal ou essencial. Ou, seguramente, que tal prova não é efetuada no processo, nos casos, como no presente, em que o requerente comprova a existência de ponderosas razões não fiscais da operação, como um todo, que ultrapassam meras economias de custos de estrutura.

 

c) O elemento normativo “utilização de meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas” impõe dois corolários para a aplicação da CGAA.

Por um lado, nem toda a poupança fiscal, ainda que significativa, cai na alçada da CGAA; só se aplica este instituto nos casos em que se utilizem meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas.

Por outro lado, estas expressões “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas” remetem para (i) atos ou operações insólitas, não frequentes, desajustadas ao fim económico proposto e (ii) desde que se conclua que o legislador tem a intenção firme de as tributar, se tivessem recorrido aos meios mais comuns.

Nada disso acontece no presente caso.

Aqui, uma pessoa singular decide vender um ativo (partes de capital) a uma empresa, ficando o preço em dívida. Estamos a falar de uma operação comum e usual (compra e venda), com diferimento de preço (possível e comum). O preço arbitrado, a ausência de garantias e de plano de pagamento não relevam para a aplicação da CGAA, pois existindo relações especiais, teriam de ser configuradas no art. 63.º do CIRC e não no art. 38.º da LGT.

Além disso, como não existe uma simetria ou encadeamento causal entre os dividendos recebidos pela D... SGPS e o pagamento do preço em dívida (nem estipulado no contrato, nem como um comportamento de facto, tipo padrão), não se pode dizer que a operação efetuada (venda com espera de preço) foi artificiosa e fraudulenta e tinha uma outra em mente – que era a distribuição de lucros.

Repare-se, por fim, que não existe identidade de fim económico entre as operações: com a venda com espera de preço (e saída do controlo da C...) o S... deixou o controlo das empresa do grupo (operação de saída); ao passo que a distribuição de lucros tem um substrato económico que é a detenção e controlo, direito ou indireto, sobre as participações sociais (operação de manutenção das partes sociais).

 

Como referi acima, a aplicação do elemento normativo da CGAA pressupõe ainda que se conclua que o legislador tinha a intenção firme de tributar a operação, se realizada nos seus contornos em substituição na operação mais próxima. Também isso não se verifica no caso concreto.

Em termos económicos, um sócio pode ser remunerado pelo seu investimento, com a venda da participação (mais valias) ou com o recebimento dos excedentes anuais da sociedade (via distribuição de lucros ou reservas). Mais ainda: se a sociedade decide não distribuir os seus lucros anuais (mas mantê-los na sociedade), o valor da sociedade (e das participações sociais) aumenta nessa mesma e exata medida – e consequentemente, o valor da mais valia é superior, em caso de venda das partes sociais.

A eficiência deve ser uma das pedras de toque do sistema fiscal – no sentido de que o sistema fiscal deve procurar a identidade de tributação (mesmo regime fiscal) para operações economicamente substituíveis. Uma operação e o seu substituto mais próximo devem ter o mesmo regime fiscal, sob pena dos agentes, na sua liberdade económica, se afeiçoarem à operação com menor imposto.

Nos dias de hoje, a tributação em IRS das mais valias de partes sociais (Categoria G) e dos lucros distribuídos (categoria E) é essencialmente idêntica, por estas razões. Em ambos os casos, os rendimentos são tributados a uma taxa proporcional de 28%, liberatória para a categoria E (art. 71.º do CIRS) e especial para as mais valias (art. 72.º do CIRS).

Mas não era assim à data dos factos: nesse tempo, o legislador fiscal concedeu uma isenção de imposto para as mais valias de participações sociais (por razões que o intérprete tem de aceitar), criando com isso, desejadamente, uma disparidade fiscal em rendimentos substituíveis, numa clara opção legal pelas mais valias (venda de participações) em detrimento da sua manutenção (e remuneração por dividendos), em duplo sentido:

i) Os sócios (pessoas singulares) tinham um claro incentivo legal em não efetuar distribuição de dividendos (manter os lucros nas empresas) e serem remunerados apenas pela venda das suas participações sociais.

ii) Os agentes (pessoas singulares) tinham um claro incentivo legal em procurar operações que desembocassem em alienações de ações, em detrimento de distribuição de dividendos.

E não se olvide que é este o desejo jurídico de qualquer benefício fiscal: que, em limitação legal e assumida da eficiência, os agentes moldem os seus comportamentos (na liberdade contratual) aos interesses extra-fiscais elegidos pelo legislador (venda de ações), porque superiores aos da tributação que impedem: que os agentes efetuem operações com mais valias isentas, em lugar de distribuição de dividendos tributadas.

Em suma: não se preenche o elemento normativo, pois não estão em causa operações, desajustadas ao fim económico proposto e o legislador tem a intenção firme de não tributar as operações de preferência de mais valias isentas face a dividendos (quer seriam tributados), quando economicamente substituíveis.

Esta argumentação não é sequer inovadora e esteve já subjacente à decisão do processo arbitral 381/2014-T (p. 28 a 30).

 

4. Na minha opinião, verifica-se ainda a caducidade do direito à liquidação, seguindo, neste ponto, a jurisprudência firmada pelo CAAD no processo 235/2018-T (em que fui árbitro), e que remete para outra jurisprudência arbitral, no mesmo sentido.

Começando pelos factos relevantes:

a) Em 26/12/2005, o S... efetua a venda das ações, com espera de preço (a operação sindicada pela AT, como alegadamente abusiva) – B dos factos provados

b) em 10/3/2006, o S... declara especificamente esta venda de ações à AT (segundo obrigação legal) – I dos factos provados

c) Entre 31/12/2005 e 31/12/2009, foram feitos pagamentos ao S... (pagamento do preço de venda das ações em a)) no valor de quase 1,9 Milhões de euros – J dos factos provados.

E fazendo agora a sequência cronológica das leis aplicáveis:

a) O art. 63.º do CPPT, na sua redação original, estabelecia o seguinte

1 - A liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio.

2 - Consideram-se disposições antiabuso, para os efeitos do presente Código, quaisquer normas legais que consagrem a ineficácia perante a administração tributária de negócios ou atos jurídicos celebrados ou praticados com manifesto abuso das formas jurídicas de que resulte a eliminação ou redução dos tributos que de outro modo seriam devidos.

3 - O procedimento referido no número anterior pode ser aberto no prazo de três anos após a realização do ato ou da celebração do negócio jurídico objecto da aplicação das disposições antiabuso.

b) A Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, alterou o n.º 3, que passou a ter a seguinte redação:

3 – O procedimento referido no n.º 1 pode ser aberto no prazo de três anos a contar do início do ano civil seguinte ao da realização do negócio jurídico objeto das disposições anti-abuso.

c) Com a Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, deixou de ser feita qualquer referência a prazo para a abertura do procedimento para aplicação da cláusula geral antiabuso.

No caso dos autos:

a) a operação objeto de aplicação do art. 38.º, n.º 2 da LGT ocorreu em 26/12/2005.

b) Logo, segundo a lei vigente nessa época (art. 63.º, n.º 3, do CPPT, na redação em vigor entre 2005 e 2008 inclusive), o procedimento próprio para a aplicação da CGAA só poderia ser aberto no prazo de 3 anos após a realização do ato ou da celebração do negócio jurídico objeto da aplicação da CGAA (ou seja, in casu, até ao dia 26/12/2008).

c) ou caso se considere que a operação só se consumou com o aumento de capital da C... ocorrido em 20o6, então o procedimento próprio para a aplicação da CGAA só poderia ser aberto, o mais tardar, até 31/12/2009.

Assim, é para mim evidente:

a) Para a aplicação da CGAA – é imperativo que se considere ineficaz o ato de venda das ações com espera de preço efetuado em 2005.

b) A letra da lei da época (até 2012) pressupunha a abertura de procedimento próprio, contado do “ato ou da celebração do negócio jurídico objeto da aplicação das disposições antiabuso” – ou seja, realização da operação abusiva e não da obtenção das vantagens fiscais decorrentes.

Ou seja, até 2012, o elemento literal não permite concluir que a abertura de procedimento inspetivo próprio se conta do momento da obtenção (consumação) da vantagem fiscal e não da realização da operação abusiva. O legislador disse o que quis dizer, e o intérprete não pode chegar a um resultado interpretativo que não tenha um mínimo de ressonância nas palavras da lei (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1985, p. 182); até porque, em termos fiscais, as regras da caducidade e do procedimento e processo tributário estão cobertas pelo princípio da legalidade tributária (art. 8.º, n.º 2, al. a) e e) da LGT).

Aliás, por este prazo ser curto e, no limite, por se poder esgotar sem a obtenção concreta da vantagem para o sujeito – tais razões levaram, seguramente, o legislador a revogar este regime, com efeitos desde 2012, que eliminou este procedimento e prazo.

c) O procedimento próprio para a aplicação da CGAA constituía uma garantia para o sujeito passivo: que a aplicação da CGAA pressupunha um procedimento próprio, num prazo determinado. Assim, o decurso do prazo previsto extinguia o direito potestativo de que gozava a AT de instaurar o referido procedimento. E com isso, ficava precludido o direito da AT, por caducidade do direito à liquidação.

O sujeito ativo tinha um direito (pode-dever) de abrir um procedimento em prazo próprio, até certo momento – e não o tendo feito nesse prazo, caduca o direito à liquidação com base na CGAA, por razões de segurança jurídica do contribuinte, o fundamento do instituto da caducidade.

d) Quando a lei nova entrou em vigor (extinguindo o procedimento próprio de 3 anos para a aplicação da CGAA, contado do ato abusivo) – a verdade é que a caducidade já estava consumada, perante a lei anterior, e porque os prazos já não estão em custo (mas terminados, extintos e consumados).

 

Assim, no caso dos autos, o direito a instaurar o procedimento da CGAA, retirando eficácia tributária aos negócios de 2005/06) extinguiu-se, já que o procedimento apenas foi instaurado em 2018 (R dos factos provados).

 

Tomás Cantista Tavares