Decisão Arbitral
Os árbitros Maria Fernanda dos Santos Maçãs (árbitro-presidente), Dr. Júlio Tormenta e Dr. Pedro Miguel Bastos Rosado (árbitros-vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam o seguinte:
I. Relatório
1. A..., Lda. (anteriormente denominada por B..., Unipessoal, Lda.), Pessoa Colectiva nº..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa, doravante designada por Requerente, apresentou, em 23 de abril de 2019, pedido de pronúncia arbitral, visando a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2019..., de 3 de janeiro de 2019, relativa ao exercício de 2015, da qual resultou um montante de imposto a pagar de € 264.947,62 (duzentos e sessenta e quatro mil novecentos e quarenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos), acrescido de juros compensatórios na importância de € 26.828,66 (vinte e seis mil oitocentos e vinte e oito euros e sessenta e seis cêntimos), num total de € 291.776,28 (duzentos e noventa e um mil setecentos e setenta e seis euros e vinte e oito cêntimos), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada por Requerida ou AT.
2. A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste na declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRC e de juros compensatórios relativa ao período de tributação de 2015.
3. Pede, ainda, a Requerente o reembolso das importâncias indevidamente pagas a título de IRC e de juros compensatórios, no valor total de € 291.776,28 (duzentos e noventa e um mil setecentos e setenta e seis euros e vinte e oito cêntimos), bem como a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 23 de abril de 2019, e posteriormente notificado à AT.
5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
6. Em 17 de junho de 2019, as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo arguido qualquer impedimento.
7. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 8 de julho de 2019.
8. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou Resposta e remeteu o “Processo Administrativo” (doravante designado por “PA”).
9. Na sua Resposta, veio a AT defender a improcedência dos pedidos.
10. Por despacho de 29 de setembro de 2019 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foram notificadas as partes para produção de alegações escritas.
11. No mesmo despacho de 29 de setembro de 2019, foi indicado que a decisão final seria proferida e notificada às partes até 7 de janeiro de 2020.
12. As partes apresentaram Alegações escritas.
II. Saneamento
1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e é competente.
2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
3. O processo não enferma de nulidades.
III. Matéria de facto
1. Factos provados
Dão-se como provados os seguintes factos com potencial relevo para a decisão:
A) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas com o NIF n.º ... que desenvolve a sua atividade como prestadora de serviços médicos e consultadoria na área da saúde – código CAE 86210 (cf. informação publicada em https://publicacoes.mj.pt/ mediante a Inscrição 1 – AP. 32/2007...).
B) A Requerente foi objeto de um procedimento inspeção externo de âmbito parcial – IRC e Retenções na Fonte em sede de IRS ao exercício de 2015, em cumprimento da OI2018..., tendo como motivo os elevados saldos de caixa e bancos apresentados pela Requerente.
C) Anteriormente ao inicio do procedimento de inspeção externa, ao abrigo do principio da colaboração e das prerrogativas previstas nos termos dos artigos 59.ºe 63.º da Lei Geral Tributária (LGT) e dos n.ºs 3 e 4 do artigo 29.º do RCPITA, a Requerente foi notificada através do oficio n.º ... de 2015-05-04, para prestar informação relativa ao número de estabelecimentos e identificar a morada onde é exercida sua atividade assim como o envio do balancete analítico reportado a 2013-12-31, antes do apuramento de resultados.
D) Subsequentemente por Despacho DI2015... e em resultado da informação colhida, o sócio-gerente – Dr. C...– foi visitado pelos SIT (Serviços de Inspeção Tributária) em 2015-09-10 nas instalações do ..., sito na ... em Lisboa com o objetivo de recolher mais alguma informação relacionada com a atividade da Requerente e ser efetuada uma contagem física de caixa à mesma. Foi elaborado um “Termo de Declarações/Contagem”( cf. Anexo 1 do RIT) do qual se destacam os seguintes aspetos:
- o sócio-gerente é a pessoa responsável pela Caixa;
- não existem valores relevantes para efeitos de contagem de caixa sitos noutros locais para além da morada onde é exercida a gerência, isto é, as instalações do ...; e
- o saldo de caixa à data de 2015-09-10 era 0 (zero) valores.
E) Também na mesma data – 2015-09-10 – o sócio-gerente foi notificado para apresentar diversa documentação contabilística e respetiva documentação de suporte (cf. descrito no Anexo 2 e pg. 9, ambos do RIT).
F) Do pedido de documentação acima mencionada (ponto E), recebida pela AT em 2015-09-16, destaca-se, entre outros, o balancete a 2014-12-31 onde na conta relativa a Caixa – “111- Caixa A” a mesma apresentava um saldo de € 741.400,41 (cf. anexo 3 e pg. 9, ambos do RIT, e pg. 38-40 do PA _PARTE 1.PDF) e um saldo de € 6.934,85 na conta – “1211 –D...” totalizando na conta de razão de Meios Monetários um valor de € 748.335,29 (cf. Anexo 3 e pg. 9, ambos do RIT, e pg. 38-40 do PA_PARTE 1.PDF).
G) Em 2015-09-29 a Requerente através de carta datada de 2019-09-29 e assinada pelo seu sócio-gerente enviou à AT, extratos bancários referentes ao período 2013-01-01 a 2015-09-13 (cf. pg. 90-95 do PA_PARTE1.PDF) assim como contratos de mútuo e respetivos recibos (cf. Anexo 4 pg. 9 e 10, ambos do RIT, e pg. 41-47 do PA). Dos referidos extratos bancários constata-se que o saldo bancário no Banco D... reportado a 31/12/2014 quer em termos de data valor quer data de movimento, ascende a € 204.136,57(cf. pg.95 do PA_PARTE 1.PDF). Na carta mencionada supra é referido “(…) Mais informo que, e de acordo com o termo de declarações que assinei nunca existiram saldos físicos de Caixa passando os movimentos por contas bancárias. Deste modo solicitei ao meu Técnico de Contas que releve a contabilidade de acordo com a documentação que anexo bem como algumas correcções relativos aos capitais próprios da sociedade implicando, a correcção da IES de 2014 e as respectivas demonstrações financeiras, bem como enviarei a ultima acta da assembleia geral onde se deliberará toda a correcção da contabilidade (…)” tendo-se provado conforme material probatório constante dos autos o envio, em 2015-10-07, de um novo balancete reportado a 2014-12-31, onde era relevado na conta relativa a Caixa – “111- Caixa A” um saldo de € 113.198,69,69, na conta relativa a depósitos à ordem – “1211 –D...” um saldo de € 204.136,57 e ainda na conta relativa a Sócios - “2685121”- um saldo de € 431.000 (cf. Anexo 5 e pg. 10, ambos do RIT, e pg. 50 do PA_PARTE 1.PDF), resultante das regularizações contabilísticas efetuadas na contabilidade no exercício de 2014.
H) Do novo balancete, reportado a 2014, enviado em 2015-10-07, a AT constatou que havia, nomeadamente, um saldo na conta de Caixa (“conta 111- Caixa A”) de € 113.198,69 havendo necessidade o sócio-gerente ser novamente ouvido, uma vez que o sócio-gerente tinha afirmado no “Termo de Declarações” que “(---) nunca deveriam existir saldos físicos de caixa (…)”, o que veio a acontecer em 2015-10-14. Foi lavrado um novo “Termo de Declarações“, onde foram levantadas 5 questões e às quais o sócio-gerente respondeu (cf. Anexo 6 pg. 10 e 11, ambos do RIT, e pg. 54-55 do PA) tendo reafirmado que em caixa não havia nenhum valor e que tinha que falar com o Técnico de Contas (atualmente Contabilista Certificado) para saber porque é que aparecia na contabilidade um valor de € 113. 1198,69 na conta de Caixa e que até à data não tinha recebido qualquer montante a título de distribuição de lucros da Requerente.
I) Em carta datada de 2015-11-02 remeteu à AT esclarecimentos adicionais (cf. Anexo 7 pg.11 do RIT e pg. 63 e 64 do PA) onde comunicou, nomeadamente, que houve lugar a regularizações contabilísticas efetuadas na contabilidade (através de lançamentos) nos exercícios de 2013 e 2014 (cf. pg.81 do PA) como consequência das reconciliações bancárias entre a contabilidade e os extratos bancários a nível das contas bancárias e a nível da conta de Caixa no sentido desta no final dos exercícios de 2013 e 2014 apresentar um saldo 0 (zero) devido ao facto de não haver qualquer movimento através de caixa. Adicionalmente, a nível de mútuos celebrados entre a Requerente e o seu sócio-gerente houve uma correção dos valores declarados, tendo em conta os montantes pagos pela Requerente àquele no montante de € 531.500 reportado a 2014-12-31(cf. PA-Parte 4.PDF no documento “Extrato entre as datas 01.01.2013 e 31.10.2015” em Euros da conta de Sócios “2685121”). Apresentou para o efeito, uma relação de recibos de quitação dos mútuos existentes relativos a 2013 - € 431.000 - e 2014 - € 112.500 - totalizando os mesmos € 543.500,00 (cf. pg.12 do RIT).
J) Como consequência deste trabalho a nível da área contabilística, apresentou um novo balancete reportado a 2014-12-31 onde se apura um saldo de € 204.835,26 na conta – “121 –D...”(cf. Anexo 13 do RIT pg.114 do PA), a conta relativa a Caixa – “111- Caixa A” aparece saldada, i.e., com um saldo 0 (zero) e ainda um saldo de € 531.500 na conta “2685121-C...” correspondente aos montantes mutuados pela Requerente àquele nos exercícios de 2013 e 2014 identificados no quadro 3, cf. pg. 12 do RIT. Os saldos de abertura de 2015 das contas mencionadas anteriormente eram iguais aos saldos de encerramento a 2014 (cf. pg.75 e 76 do PA_PARTE 1.PDF).
K) A Requerente enviou à AT os extratos das contas “111-Caixa” e da conta “121-D...” referentes ao período 2013-01-01 a 2015-10-31 assim como o extrato bancário do D... referente ao mesmo período. Relativamente aos mútuos de 2013, a Requerente procurou demonstrar que todo o movimento relacionado com os mesmos, dava origem a movimentos na conta de caixa (“conta 111”), posição que a Requerida contestou, cf. pg. 13 do RIT, uma vez que a Requerente tinha defendido a não existência de saldos físicos em caixa, conforme “Termo de Declarações” (pontos D e H da matéria de facto). Relativamente aos mútuos de 2014, a Requerente cruzou os movimentos constantes da contabilidade na conta 121 –D... com os movimentos das saídas de dinheiro a favor do seu sócio-gerente constante no extrato bancário do banco D..., havendo diferenças entre os valores declarados nos recibos relativos aos mútuos e os valores identificados pela Requerente cf. quadro 4 pg. 13 do RIT e pg. 96 a 98 do PA_PARTE 1. PDF.
L) Também foi apresentado pela Requerente um balancete a outubro de 2015 em que a conta 121 –D... apresentava um saldo de € 233.372,57 e a conta 1431 – Outros Ativos Financeiros apresentava um saldo de €56.194,35 totalizando a conta do razão Meios Financeiros Líquidos (Caixa+Depósitos à Ordem+Outros Ativos Financeiros) um montante de € 289.566,92, cf. pg.77 PA_PARTE 1.PDF.
M) Através do ficheiro Saft relativo aos exercícios 2013 e 2014 prova-se que os mútuos identificados no quadro 2 constante da pg. 10 do RIT, respetivamente, nos montantes de €125.000 e € 195.0000 foram contabilizados em 1 de outubro de 2015 tendo sido debitada a conta “2685121- Sócios –C...” e creditada a conta “111 – Caixa”, cf. pg. 101 e 102 do PA. No quadro 3 constante da pg. 12 do RIT estão identificados os novos montantes dos mútuos relativos a 2013 - €431.000 – e a 2014 - € 112.500 – que foram contabilizados, respetivamente, em 4 de novembro de 2015 e 30 de outubro de 2015 e que corrigem os montantes do quadro 2 constante na pg. 10 do RIT. Em qualquer dos mútuos a conta debitada foi sempre a “2685121- Sócios –C...” enquanto a conta a ser creditada foi a “111- Caixa” relativamente a 2013 e a conta “121 –D...”, cf. pg. 14 do RIT e anexo 11 do RIT pg. 104 a 109 do PA_PARTE 1.PDF.
N) No exercício de 2015, período de tributação no qual a Requerente obteve um resultado líquido do exercício de € 42.896, 97, lucro tributável, matéria coletável de IRC de € 106.767,17 e imposto a pagar no montante de 4.217,68, apurados na declaração Modelo 22 de IRC relativa a 2015 identificada pelo n.º ... e submetida em 19 de maio de 2016 (cf. Doc. n.º 2 anexo à PI). Também foi entregue declaração anual IES – Informação Empresarial Simplificada do mesmo exercício (cf. Doc. n.º 4 anexo à PI).
O) A Requerente aprovou as suas contas de 2013 (ata n.º 9) e 2014 (ata n.º10) nas respetivas assembleias gerais realizadas, respetivamente, em 2014-03-30 e 2015-03-30, cf. PA_PARTE 3.PDF. Relativamente ao exercício de 2014, a Requerente obteve um resultado líquido do exercício no montante de € 72.398,09 tendo submetido a respetiva IES onde não constava qualquer valor na conta de sócios. Posteriormente em 2015-10-02 entregou uma IES de substituição relativa ao exercício de 2014, cf. Doc. 5 anexo à PI, onde na conta de sócios era declarado um montante de € 431.000 a favor da Requerente resultante dos valores dos mútuos contabilizados conforme referido no ponto G da matéria de facto.
P) Pela análise das IES de 2015, a Requerente apresentou um montante elevado de Outras Reservas (€ 707.048,01) refletindo uma política de retenção de lucros e de não distribuição de lucros, cf. artigo 8.º da PI.
Q) De acordo com a aprovação de contas de 2014 foi obtido um resultado líquido de exercício conforme balancete de apuramento de resultados reportado a 2014-12-31(cf. PA_PARTE 3.PDF) correspondendo em termos de Meios Monetários Líquidos (caixa e depósitos à ordem) a um montante total de €748.335,36 igual ao somatório de € 741.400,41, montante relevado em caixa na conta “111 – Caixa A” e de € 6.934,85, montante relevado em bancos (D.O.) na conta “1211-D...”. Uma vez que a contagem física de caixa foi efetuada em setembro de 2015, a AT ao montante de € 748.335,36 (montante de Meios Monetários reportado a 2014-12-31) adicionou o montante de € 21.515,40 resultante da variação positiva dos Meios Monetários Líquidos (caixa e depósitos à ordem) correspondente ao período de janeiro a setembro de 2015, cf. explicação do apuramento do montante de € 21.515,40 nas rúbricas de caixa e depósitos à ordem na p.17 do RIT. Assim, à data da contagem física de caixa, segundo a AT o montante que deveria constar na contabilidade a título de Meios Monetários Líquidos devia ser €769.850,66 (Meios Monetários Líquidos a 2014-12-31: € 748.335,26, cf. PA_PARTE 3.PDF + Variação de Meios Monetários Líquidos entre janeiro-setembro de 2015: € 21.515,40, cf. pg. 17 do RIT). Posteriormente, o montante de € 748.335,36 foi alterado nos exercícios de 2013 e 2014, já depois do encerramento das contas, pelas razões acima descritas relativamente aos mútuos. Conforme extrato bancário do D... carreado para os autos, a Requerente referente a 2014-12-31 era titular de um saldo no montante de € 204.136,57 referente a um depósito à ordem e no início do mês de setembro de 2015 apresentava um saldo de € 183.761,18 , cf. pg.17 do RIT e Anexo 8 pg. 95 do PA_PARTE 1.PDF e Anexo 14 pg.123 do PA_PARTE 2.PDF e igualmente com base em informação bancária do D... “Consulta de Movimentos por Conta” cujo titular é a Requerente, a mesma tinha investido até setembro de 2015 efetuado aplicações financeiras no montante de € 56.194,35 (€40.000+€16.194,35), cf. Anexo 14 do RIT pg. 124 e 125 do PA) totalizando € 239.955,53, montante que a AT considera disponível à data da contagem, conforme informação externa prestada pelo Banco D... e carreada para os autos. Ora, segundo a AT, existe um diferencial de € 529. 895, 23 (€769.850,66 - € 239.955,53) que deveria estar na posse da Requerente, uma vez que a Requerente tinha Resultados Transitados/Outras Reservas elevados (€ 707.048,01), e não está, cf. pg.17 do RIT. Assim sendo, o montante de € 529.895,23 deverá para efeitos fiscais ser uma despesa não documentada devendo o mesmo ser tributado a uma taxa de 50%, para os efeitos previstos no artigo 88.º n.º1 do CIRC, dando origem a uma coleta de tributação autónoma de € 264.947,62 aos quais acresce €26.828,66 dando origem a um valor total a pagar de € 291.776,27 conforme resulta da demonstração de liquidação de IRC de 2015 com o n.º 2018... e sobre o qual foram calculados juros compensatórios no montante de € 26.828,66 dando origem a um valor total a pagar de € 291.776,27 (cf. Doc. n.º 1 anexo à PI).
R) Em 14 de fevereiro de 2019, ou seja, no termo do prazo de pagamento voluntário constante da demonstração de acerto de contas que constitui parte integrante da liquidação de IRC de 2015 n.º 2018..., a Requerente efetuou o pagamento de um total de € 291.776,27 (cf. Doc. n.º 10 anexa à PI).
S) Em 23 de abril de 2019, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo tendo o Tribunal Arbitral Coletivo sido constituído em 8 de julho 2019.
2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e no processo administrativo, cuja autenticidade não foi colocada em causa.
Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.
IV. Matéria de Direito
1. Posições das Partes
A Requerente defende, em suma:
- que “No cerne da liquidação adicional de IRC (tributação autónoma) de 2015 está a diferença entre aquilo que a AT considera que na passagem do exercício de 2014 para o exercício de 2015 deveria estar nas contas de meios financeiros líquidos da sociedade – € 769.850,66, ou seja, € 748.335,26 indicados como saldo das contas da classe 1 (caixa e depósitos) no balancete geral original relativo a 31 de dezembro de 2014 mais € 21.515,40 que correspondem ao valor acrescido às contas de meios financeiros líquidos entre janeiro e setembro de 2015 – e aquilo que efetivamente estava nas contas de depósitos à ordem e outros ativos financeiros em setembro de 2015 – € 239.955,53, ou seja, € 183.761,18 depositados à ordem, mais € 56.194,35 relativos a outros meios”;
- que a “diferença entre € 769.850,66 e € 239.955,53, que ascende a € 529.895,23, foi qualificada pelos serviços de inspeção da AT como despesa não documentada e tributada como tal (cf. artigo 88.º, n.º 1, do CIRC)”;
- que se trata de “um erro de qualificação que inquina a solução jurídica, ou seja, a tributação preconizada pelos serviços de inspeção e concretizada pela emissão da liquidação de IRC aqui impugnada”;
- que “as saídas de meios que provocaram a redução dos montantes em caixa e depósitos bancários se verificaram, lógica e necessariamente, antes de 1 de janeiro de 2015”;
- que “de nenhum ponto do RIT e da documentação anexa ao mesmo (e.g. extratos bancários) é possível extrair, de forma cabal, como era dever da AT por força das regras gerais de distribuição do ónus da prova, mormente do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, que as (hipotéticas) despesas de € 529.895,23 foram realizadas no ano de 2015”;
- que “Ainda que se considerasse (…) que foram efetuadas pela Requerente despesas não documentadas no montante preconizado pela AT, por força do princípio da especialização dos exercícios ou da periodização do lucro tributável consagrado no artigo 18.º, n.º 1, do CIRC a legalidade da correção e da liquidação adicional de imposto dependiam de essas (hipotéticas) despesas terem sido realizadas no exercício de 2015”, pelo que “deveria, pois, ser demonstrado pela AT o nexo de causalidade entre a existência das (alegadas) despesas não documentadas e o exercício em que as mesmas (supostamente) foram efectuadas”, o que não sucedeu;
- que “o argumento esgrimido pelos serviços de inspeção de que “os mútuos não existiam nos exercícios de 2013 e 2014” não é suficiente para atestar uma saída de numerário de € 529.895,23 no período de tributação aqui em análise (2015);
- que a AT deveria “comprovar que a saída de meios financeiros líquidos na ordem de € 529.895,23 teve lugar no exercício de 2015”;
- que “os serviços da AT utilizam uma metodologia que inquina a correção e a liquidação subsequente por erro quanto aos seus pressupostos de facto e, consequentemente, de direito”;
- que “No limite, e sem conceder, estar-se-ia diante de uma dúvida quanto à ocorrência da (suposta) despesa e ao período em que a mesma foi efetuada que teria de ser valorada a favor do sujeito passivo em virtude do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”)”;
- que “não se está diante de um fluxo monetário que se reconduza à noção prototípica de despesa não documentada ou confidencial”;
- que “Competia à AT comprovar que a (hipotética) saída de meios líquidos correspondentes a € 529.895,23 no ano de 2015 e somente neste ano consubstanciava o pagamento de dividendos ao sócio-gerente ou, não sendo este o caso, que se tratava de uma (ou mais) despesa não documentada ou confidencial”, sendo que “a AT não demonstrou uma coisa, nem outra”;
- que “as insuficiências ou irregularidades na contabilidade e a dificuldade ou impossibilidade que daí derivam para apurar a real situação fiscal do sujeito passivo são pressupostos não da tributação autónoma, mas sim da aplicação de métodos indiretos (cf. artigos 81.º, n.º 1, 85.º, 87.º, n.º 1, alínea b), e 88.º, alíneas a) a c), da LGT)”;
- que “a diferença que a AT qualifica como despesa não documentada não tem origem em nenhum facto verificado no decurso do ano de 2015”;
- que “a correção e a liquidação subsequente, por incidirem sobre o exercício de 2015, enfermam de erro nos seus pressupostos de facto, vício conducente à sua anulação (cf. artigo 99.º, alínea a), do CPPT e artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo ou “CPA”)”;
- que “inexiste despesa não documentada ou confidencial no exercício de 2015 suscetível de ser tributada autonomamente nos termos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC”.
A AT defende o seguinte, em suma:
– que “em momento algum o Requerente prova o que cauciona ao longo do seu pedido de pronúncia arbitral”, “i.e., em momento algum ficam provadas as saídas de dinheiro a favor de um dos sócios”;
- que, apesar de datados de 2013 e 2014, os contratos de mútuo não existiam;
- que “não fica cabalmente demonstrado que a diferença, de €528.895,23, apurada entre o montante dos meios financeiros – em Caixa e depósitos bancários – existentes à data do início do exercício de 2015, de €748.335,26, e o montante dos meios financeiros existentes à data da verificação física, de €239.955,53, correspondia a transferências para o sócio Dr. C..., efectuadas, a título de mútuos, no decurso dos exercícios de 2013 e de 2014”;
- que “a Requerente não logrou alcançar o objectivo de justificação da diferença identificada no decurso do procedimento inspetivo, realizada através da formalização de contratos e emissão de recibos de mútuos 2015, com datas de 2013 e de 2014, e das regularizações aos registos contabilísticos, porquanto, nenhuma certeza deles emana sobre a ocorrência dos fluxos financeiros nas datas neles mencionadas”;
- que “o princípio do ónus da prova consubstancia-se no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem a necessidade de prová-lo. (cf. art.º 342.º do Código Civil – CC e n.º 1 do art.º 74.º da LGT)”;
- que “não podem ser tidos como válidos os contratos de mútuo apresentados, nem validados os movimentos contabilísticos que daí resultaram.”;
- que “não ficou cabalmente demonstrado que a diferença, de €528.895,23, apurada entre o montante dos meios financeiros – em Caixa e depósitos bancários – existentes à data do início do exercício de 2015, de €748.335,26, e o montante dos meios financeiros existentes à data da verificação física, de €239.955,53, correspondia a transferências para o sócio Dr. C..., efectuadas, a título de mútuos, no decurso dos exercícios de 2013 e de 2014. 55. Resta então dar por assente que a manutenção nas demonstrações financeiras de 2014 aprovadas e depositadas dos valores dos saldos de caixa e de depósitos bancários, €748.335,26, no início de 2015, permite inferir de acordo com as regras da experiência a convicção de que a totalidade daqueles valores pertenciam ao património societário”;
- que “a Requerente não logrou alcançar o objectivo de justificação da diferença identificada no decurso do procedimento inspectivo, realizada através da formalização de contratos e emissão de recibos de mútuos 2015, com datas de 2013 e de 2014, e das regularizações aos registos contabilísticos, porquanto, nenhuma certeza deles emana sobre a ocorrência dos fluxos financeiros nas datas neles mencionadas”;
- que “não existe prova de que tenha ocorrido por efeito dos alegados contratos de mútuo a transferência de valores monetários para o sócio nas datas e pelos montantes indicados, sendo que a entrega é característica essencial do contrato de mútuo”;
- que “da desconsideração dos alegados mútuos resulta que a divergência identificada pelos serviços de inspecção, de €528.895,23, revela que, no período compreendido entre 01.01.2015 e a data em que foi efectuada a contagem de caixa e validação dos saldos bancários, ocorreram saídas de meios financeiros as quais não foram contabilizadas nem documentadas, desconhecendo-se o seu destino e natureza, estando assim preenchidos os pressupostos tipificados na norma de incidência de tributações autónomas constante do n.º 1 do art.º 88.º do Código do IRC sobre «despesas não documentadas»”;
- que “a saída de meios monetários identificada no decurso do procedimento inspectivo não pode ter enquadramento no n.º 4 do art.º 6.º do CIRS, porquanto a presunção de lucros distribuídos ou adiantamento por conta de lucros pressupõe que os valores em causa se encontrem lançados em quaisquer contas correntes dos sócios”;
- que “A divergência apurada pelos serviços de inspecção, ao contrário do que defende a Requerente não constitui uma suposição mas antes resulta do confronto entre os valores inscritos nas demonstrações financeiras do exercício de 2014, devidamente aprovadas pelos sócios, e os valores que efectivamente estavam na sua disponibilidade à data da contagem física”;
- que “os serviços de inspecção tributária não detectaram, na contabilidade de 2015, irregularidades ou omissões que, nos termos dos artigos 87.º e 88.º da LGT, fossem susceptíveis de impossibilitar o controlo do apuramento da matéria tributável pelo método do directo, pelo que não procede a alegação da Requerente a esse respeito”;
- que “O que está em causa são, tão só, saídas de meios monetários da esfera patrimonial da Requerente que não foram objecto de contabilização e sobre quais não se conhece, por não documentada, a sua finalidade ou destino, o que configura a existência de «despesas não documentadas» sujeitas a tributação autónoma, à taxa de 50%, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 88.º do Código do IRC”;
- pelo que “não havendo justificação plausível para as verbas “desviadas” da actividade empresarial, à data em que o foram, no montante de €529.895,23, nem título jurídico ou documento fiscalmente relevante que comprove a sua utilização, ou registo contabilístico que as suporte, subsumem-se no conceito de despesas não documentadas”.
Vejamos:
Uma vez que a liquidação controvertida de IRC de 2015 n.º 2018... no total de € 291.776,27 paga pela Requerente tem como fundamento a existência de despesas não documentadas efetuadas por parte daquela, há que delimitar o conceito de despesas não documentadas com vista a concluir se estamos em presença ou não das referidas despesas não documentadas.
2. Conceito de «despesas não documentadas»
a) De acordo com o n.º1 do artigo 88.º CIRC, as despesas não documentadas são um tipo de tributação autónoma às quais é aplicada uma taxa de tributação de 50% e que não são consideradas gasto do exercício por força da previsão legal estabelecida na alínea b) do n.º1 do artigo supra.
b) A Requerente para demonstrar que houve um erro de qualificação como despesa não documentada por parte da Requerida quanto ao montante de € 529.895,23 que deu origem à liquidação controvertida no montante de € 291.776,27, refere que de acordo com a posição assumida pela Requerida (cf. ponto 20 do RIT), no conceito de despesa não documenta está subjacente uma “(…) saída efetiva de valores existentes em caixa ou depósitos bancários, nomeadamente notas de banco ou moedas metálicas de curso legal, cheques ou vales postais, nacionais ou estrangeiros. Estes movimentos de saída de fundos traduzem-se necessariamente em pagamentos, e/ou a aquisição de bens e/ou serviços, e/ou ainda, em liberalidade ou conjunto de liberalidades” e ainda adicionalmente utilizando o conceito de despesa defendido pela Requerida igualmente no referido ponto 20 do RIT, uma despesa é um (…) 1. Ato de gastar dinheiro, de despender. 2. Quantia que se gasta, montante a pagar a outro″ (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa”.
c) Por outro lado traz à colação diversa jurisprudência, nomeadamente, quer a nível do Tribunal Constitucional (artigos 110.º, 111.º112.º, 121.º, 158.º, todos da PI), Supremo Tribunal Administrativo (artigos 128.º, 133.º, 135.º 158.º, todos da PI) Tribunal Central Administrativo Sul (artigo 119.º da PI), Tribunais Arbitrais (Processo n.º7/2011-T) transparece transversalmente às diversas decisões jurisprudenciais o seguinte:
i) No cerne da tributação autónoma está uma despesa que visa reduzir a capacidade contributiva do sujeito passivo. Despesa deverá ser entendida como um ato de disposição ou redução de liquidez, como argui a Requerente;
ii) As despesas não documentadas, que são um tipo de tributação autónoma, serão aquelas que não apresentam qualquer documento de suporte que as justifique o que será o caso de saída de caixa ou de meios monetários sem que haja emissão de qualquer documento justificativo ou de suporte para efetuar pagamentos sem emissão do correspondente recibo de quitação;
iii) A despesa não documentada como despesa tem que ser imputada a um determinado exercício, uma vez que, traduzindo-se numa saída de caixa ou de meios monetários, a mesma deverá situar-se num determinado e específico horizonte temporal.
d) Aliás, também a Requerida no artigo 63 da Resposta defende que “É que literalmente o significado de «despesas não documentadas», reconduz-se a saídas de meios financeiros do património empresarial, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias desprovida de suporte documental que permita identificar o motivo e a natureza do dispêndio.”
Tendo isto presente, impõe-se perguntar se foi isto que aconteceu relativamente aos € 529.895,23 para estarmos perante uma despesa não documentada?
e) Como ficou provado, cf. pontos D a Q da matéria de facto, a Requerente a nível da sua contabilidade relativamente às contas de Caixa (conta 111- Caixa A), Depósitos à Ordem (conta “1211- Banco D...”) e Sócios (conta “2685121- Sócios –C...”) deparou-se com irregularidades e insuficiências contabilísticas que tiveram que ser regularizadas. A AT estava a par da situação, uma vez que houve troca de correspondência com a Requerente conforma consta dos autos a nível do PA.
f) Assumido isto, há que perceber donde é que surgiu esta diferença dos €529.895,23. Como ficou provado, pontos F e Q da matéria de facto, o valor de €529.895,23 resultou da diferença entre € 769.850,66 (valor suportado pela contabilidade a setembro de 2015) e € 239.955,53 (valor suportado pelos extratos bancários a setembro de 2015) reportados ao momento da contagem física.
g) Ora, o valor de € 769.850,66 resulta do somatório do saldo contabilístico da conta de Meios Monetários Líquidos reportados a 2014-12-31 no montante de € 748.335,26 para efeitos de aprovação de contas de 2014 ao qual a AT, aquando da contagem física de Caixa, adicionou um montante de € 21.515,40 resultante da variação positiva dos Meios Monetários Líquidos (caixa e depósitos à ordem) correspondente ao período de janeiro a setembro de 2015, cf. explicação do apuramento do montante de € 21.515,40 nas rúbricas de caixa e deposito à ordem na p.17 do RIT.
h) Assim, à data da contagem física de caixa (setembro de 2015), o montante que a AT defendia que deveria constar na contabilidade a título de Meios Monetários Líquidos devia ser €769.850,66 (Meios Monetários Líquidos a 2014-12-31: € 748.335,26, cf. PA_PARTE 3.PDF + Variação de Meios Monetários Líquidos entre janeiro-setembro de 2015: € 21.515,40, cf. pg. 17 do RIT. E a nível do extrato bancário do D... qual era a situação?
i) Ora, como ficou provado no ponto Q da matéria de facto, a Requerente era titular de um depósito à ordem cujo saldo a 2014-12-31 ascendia a €204.136,57 enquanto na contabilidade com base nas contas aprovadas de 2014, o valor era de €748.335,26 segundo a AT. Ora, como se provou no ponto J, após a correção das irregularidades e insuficiências contabilística através de lançamentos efetuados na contabilidade dos exercícios de 2013 e 2014, o valor da conta “121 – D...” era de € 204.835, 26, valor esse que se aproxima do valor do extrato bancário a 2014-12-31 (€204.136,57).
j) Relativamente a 2015, partindo do saldo de 2014 dos Meios Financeiros Líquidos aprovados em Assembleia Geral (mas contendo as irregularidades e insuficiências provadas na matéria de facto relativamente às contas de caixa e depósitos à ordem que mais tarde deram origem a lançamentos de regularização reconhecidos pela Requerida cf. pg.17 do RIT) - € 748.335,26 – adicionando-se as Variação de Meios Monetários Líquidos correspondentes ao período janeiro-setembro de 2015: € 21.515,40 chega-se a um total de €769.850,66, que é o montante que a AT entende que a Requerente deveria ter em caixa/depósitos à ordem devido ao elevado montante relevado contabilisticamente na rúbrica de Outras Reservas/Resultados Transitados - € 707.048,01, cf. ponto P da matéria de facto. Ora, como se provou, ponto Q da matéria de facto, segundo o extrato bancário do Banco D..., o montante de depósitos à ordem que a Requerente é titular à data da contagem física de caixa (setembro de 2015) ascende a € 187.761,18 ao qual se for adicionado o valor de € 56.194,35 relativo a aplicações financeiras relevadas contabilisticamente na conta 1431 – Outros Ativos Financeiros conforme com informação bancária prestada pelo Banco D..., obtemos um valor total de Meios Financeiros Líquidos de € 239.955, 53, valor reconhecido pela AT como estando na posse da Requerente. Assim sendo, como afirmado supra, o valor de €529.895,23 resultou da diferença entre € 769.850,66 (contabilidade a setembro de 2015) e € 239.955,53 (extratos bancários + informação bancária a setembro de 2015) reportados ao momento da contagem física. Assim colhe junto deste tribunal os fundamentos da Requerente expressos nos artigos 143.ºa 149.º da PI conduzindo à conclusão expressa no artigo 150.º da PI relativamente à existência de erro nos pressupostos de facto avançados pela AT, cujo vício conduz à anulação da liquidação adicional relativa ao exercício de 2015 (cf. artigo 99.º, alínea a) do CPPT e artigo 163.º, n.º1 do Código do Procedimento Administrativo ou “CPA”).
k) Repare-se que o ónus da prova da existência da tributação autónoma através da figura da despesas não documentadas, cabe à AT por força do artigo 74.º n.º1 da LGT. Para isso, a AT teria que provar a saída de meios líquidos da sociedade e sem suporte documental. Ora, o que se provou é que de facto havia irregularidades contabilísticas que levaram a que num primeiro momento os saldos das contas de caixa, bancos (depósitos à ordem) estivessem errados, em particular a conta de Caixa com o reconhecimento de elevados montantes, por exemplo em 2014 com um valor de €741.400,41, o que motivou a realização de um procedimento inspetivo por parte da AT ao exercício de 2015, cf. pg.6 do RIT. Posteriormente, a Requerente fez um levantamento interno do porquê de saldos muito elevados a nível de Caixa. O sócio-gerente quando indagado pela AT acerca da existência do elevado saldo a nível de Caixa, disse que era procedimento interno da Requerente não haver saldos físicos de caixa, conforme provado. Assim sendo, houve necessidade de corrigir a situação contabilística através da reconciliação bancária entre a contabilidade e os bancos tendo dado origem a lançamentos de correção nos exercícios de 2013, 2014 e 2015 a nível das contas de caixa, depósitos à ordem e sócios e daí a necessidade de se registar na contabilidade a existência de mútuos e respetivas saídas de meios líquidos bem como cruzar essa informação registada na contabilidade com a constante a nível do extrato bancário as saídas de meios líquidos . Veja-se que por exemplo reportado a 2014-12-31, conforme consta da matéria de facto (pontos J e Q), na contabilidade, o saldo de caixa foi zero e o de depósito à ordem baixou de €741.400,41 para € 204.835,26 enquanto a nível do extrato bancário a Requerente provou com conhecimento da AT de que era titular de um saldo reportado à mesma data de € 204.136,57. Ora a conclusão que se pode tirar é que o valor constante em depósitos à ordem de €741.400,41 estava errado e não correspondia à realidade e à verdade material dos factos, apesar de te sido aprovado em assembleia geral aquando do encerramento de contas de 2014. O facto de ter havido por parte da Requerente a preocupação de corrigir as irregularidades contabilísticas como consequência da indagação por parte da AT do porquê de saldos elevados na conta de conta, implicava qua a AT ao abrigo do princípio do inquisitório, desenvolvesse todos os procedimentos necessários à descoberta da verdade material. De facto, procedeu à contagem física de caixa, chegando à conclusão que era 0 (zero), isto é, não havia saldos físicos de caixa. O que aconteceu foi a AT vir argumentar que uma vez que as contas de 2013 e 2014 foram aprovadas por unanimidade conforme deliberação da Assembleia Geral, mesmo que estivessem erradas, as mesmas já não poderiam ser alteradas. Aliás, pode questionar-se se uma sociedade comercial da dimensão da Requerente poderia ter em Caixa um montante - € 741.400, 41- que foi aprovado em A. Geral.
l) A Requerente ao entregar a declaração de substituição da IES de 2014 não fez mais do que cumprir com o estatuído no artigo 121.º do CIRC ao procurar que os elementos constantes das declarações de declarações de informações contabilística e fiscal concordem/cruzem com a informação obtida na contabilidade ou registos de escrituração.
m) Por outro lado, ainda ao abrigo do artigo 74.º da LGT, a AT teria, depois, de alegar e demonstrar no próprio RIT, que consubstancia a fundamentação da liquidação , que a situação de facto se reconduzia ao pagamento encapotado de rendimentos a terceiros, nomeadamente, a pessoas singulares, sem a correspondente tributação na esfera destes, conforme é arguido pela Requerente no artigo 174.º da PI. O que não aconteceu no caso em apreço.
n) Com efeito, este tribunal julga que não, uma vez que a AT lançou a dúvida sobre a hipotética despesa não documentada de € 529.895,23 sob a forma de distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros quando afirma ” (…) somos levados a concluir pela falta de relevação contabilística de eventual distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros e/ou saída de meios líquidos sem qualquer documento de suporte”, cf. pg. 19 do RIT. O que significa que não há certeza. A única certeza que a AT tem é que existe uma diferença de €529.825,23 e que a mesma é explicada pela saída de meios líquidos sem qualquer documento de suporte num período compreendido entre 2015-01-01 e a data de contagem. Ora como já referido acima, isso não é possível devido ao erro do pressuposto de facto relativamente ao exercício de 2014 e que vai também ter implicações no exercício de 2015. Assim, não colhe a pretensão da Requerida que houve despesas não documentadas que ocorreram entre 2015-01-01 e a data da contagem de caixa.
o) Adicionalmente como se afirmou anteriormente ao caracterizar-se uma despesa documentada tem que se ter em conta a existência de despesa que se traduz em saída de meios líquidos e alocar essa saída especificamente a um exercício, mais especificamente, a um momento temporal especifico. No caso controvertido, a Requerida alocou ao período compreendido entre 2015-010-01 e a data da contagem de caixa. Ora pelas razões descritas acima, a Requerida não conseguiu provar e fundamentar ao abrigo do ónus da prova constante do artigo 74.º da LGT que a referida despesa documentada ocorreu entre 2015-01-01 e a data da contagem de caixa. Porquê? Pura e simplesmente, não existiu a mesma naquele período devido ao erro quanto ao pressuposto de facto acima explicado, estando-se também perante um erro quanto ao pressuposto de direito devido à inexistência da referida despesa não documentada.
p) Adicionalmente pelo acima exposto, faz todo o sentido invocar, como fez a Requerente, o artigo 100.º n.º1 do CPPT ao abrigo do qual fica a dúvida quanto à existência e quantificação do facto tributário – existência e ocorrência da despesa não documentada no período compreendido entre 2015-01-01 e a data da contagem de caixa, devendo por isso anular-se a liquidação controvertida nesta processo arbitral devido ao facto do mesmo ser ilegal.
Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, impõe-se concluir que a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2019..., de 3 de janeiro de 2019 (e a respetiva demonstração de acerto de contas e de liquidação de juros compensatórios, todas associadas à compensação n.º 2019..., de 3 de janeiro de 2019), relativas a IRC do ano de 2015, no valor total de € 291.776,28 (duzentos e noventa e um mil setecentos e setenta e seis euros e vinte e oito cêntimos), são ilegais, devendo ser anuladas.
Pelo exposto, conclui-se que as liquidações impugnadas enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, como defende a Requerente.
Este vício justifica a anulação das liquidações, por forma do disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
3. Juros compensatórios
Quanto à liquidação dos juros compensatórios, €26.828,66, os mesmos foram liquidados ao abrigo dos artigos 102.º do CIRC e 35.º da LGT. Para eles existirem tem de haver uma liquidação legal de imposto devido pela Requerente. Ora, no caso controvertido pelas razões supra, improcedendo a liquidação de imposto efetuada pela AT com o fundamento da existência de despesas não documentadas efetuadas no período compreendido entre 2015-01-01 e o período da contagem de caixa porque a mesma é ilegal.
Os juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que a liquidação de juros compensatórios é afetada pelo vício que afeta a liquidação de IRC, como referido acima em 2, devendo a liquidação de juros compensatórios no montante de € 26.828,66 ser anulada.
4. Juros indemnizatórios e reembolso da quantia paga
À luz do disposto no n.º 5 do artigo 24.º do RJAT – na parte em que se diz que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, tem-se entendido que tal norma permite o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios em processos arbitrais.
Justifica-se assim, pelo exposto, a análise do pedido de pagamento de juros indemnizatórios à ora Requerente.
São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vd. artigo 43.º, n.º 1, da LGT).
É, por isso, condição necessária para a atribuição dos referidos juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços. Nesse sentido, vejam-se, por ex., os seguintes arestos: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse ato está afetado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Acórdão do STA de 30 de maio de 2012, proc. 410/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação «houve erro imputável aos serviços», entendido este como o «erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal»” (Acórdão do STA de 10 de abril de 2013, proc. 1215/12).
Ora, tendo havido, como decorre do que foi atrás dito, erro imputável aos serviços – o qual conduz à anulação dos atos tributários em causa e à consequente devolução do montante pago pela Requerente, nos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 1, do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT –, conclui-se, sem necessidade de mais considerações, pela procedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios à Requerente.
V. Decisão
De harmonia com o exposto, acorda-se neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, nesta sequência;
b) Anular a liquidação de IRC (incluindo a liquidação de juros compensatórios) n.º 2019..., de 3 de janeiro de 2019, no valor total de € 291.776,28 (duzentos e noventa e um mil setecentos e setenta e seis euros e vinte e oito cêntimos);
c) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao reembolso e ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente, em virtude do imposto indevidamente pago, e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia que for liquidada em execução do presente acórdão, desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento (14/02/2019) até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado, à taxa legal.
VI. Valor do Processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 291.776,28.
VII. Custas
De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 5.202,00, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 7 de janeiro de 2020
Os árbitros,
Maria Fernanda dos Santos Maçãs
Júlio Tormenta (relator)
Pedro Miguel Bastos Rosado