ACÓRDÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Professor Doutor João Zambujal Oliveira e Dr. José Coutinho Pires (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 17-7-2019, acordam no seguinte:
I – RELATÓRIO
A..., SGPS, S.A., doravante designada por “A...” ou “requerente”, pessoa coletiva número ... matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o mesmo número, estando abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de Lisboa ..., com sede na ..., n.º..., ....º, ...-... Lisboa, sociedade dominante de grupo (Grupo B...) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades previsto no (na numeração atual) artigo 69.º e segs. do Código do IRC,
veio, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, pedindo:
a) Para ser declarada a ilegalidade e anulado o ato de indeferimento da reclamação graciosa que apresentou, na medida em que recusou a anulação da autoliquidação de IRC nas partes produzidas pelas taxas de tributação autónoma, do exercício de 2014, no montante de € 1.692.278,47, com isso violando o princípio da legalidade;
b) Para ser declarada a ilegalidade desta autoliquidação (e ser consequentemente anulada), na parte correspondente ao identificado montante de € 1.692.278,47 (no que respeita à última causa de pedir – créditos de IRC dedutíveis à coleta da tributação autónoma –, “(...)na medida em que a coleta de tributação autónoma aqui em causa subsista após a apreciação das, e decisão sobre as, causas de pedir elencadas supra - precedência lógica das primeiras causas de pedir, donde nessa medida e dos montantes aí implicados, a subsidiariedade desta última causa de pedir quanto a parte do montante de pedido a ela associado) (...)”;
c) Para ser, consequentemente, reconhecido o direito ao reembolso deste montante e, bem assim, o direito a juros indemnizatórios pelo pagamento de imposto indevidamente liquidado e pago, contados, até integral reembolso, desde 20 de Dezembro de 2016.
A requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral coletivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
Foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 17-7-2019.
A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA apresentou resposta, defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.
Por inútil ou desnecessária foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.
Ambas as partes apresentaram por escrito as suas alegações finais, de facto e de direito.
Saneamento
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Os factos provados
Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos, com relevância para apreciar as questões suscitadas:
a) A requerente é uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS) que entregou no dia 26 de Outubro de 2016 declaração agregada de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2014 do seu Grupo Fiscal, onde procedeu à autoliquidação de tributação autónoma sobre os bónus de administradores, no montante de € 225.000,00, por aplicação da taxa de 45% (cfr. Docs. n.ºs 4 e 5, e o artigo 88.º, n.º 13, alínea b), e n.º 14, do CIRC e ainda os Docs. n.ºs 20 e 21) ...
b) ...donde, entre outros acrescentos ao nível da tributação autónoma, o acrescer do total autoliquidado da mesma, por referência à anterior autoliquidação, de € 29.561,80 (Docs. n.ºs 1 e 2 campo 365 do quadro 10) para € 1.721.840,27 (Doc. n.º 4, campo 365 do quadro 10), num total de tributação autónoma acrescida, isto é, autoliquidada pela primeira vez em 26 de Outubro de 2018, de € 1.692.278,47.
c) O valor desta liquidação adicional, incluindo tributação autónoma sobre bónus de administradores, encontra-se pago, conforme quadro demonstrativo (Doc. n.º 8) do montante a pagar de € 1.534.842,60, onde se computa, a subtrair, as diminuições de imposto aí referenciadas, resultantes desta declaração de substituição, e conforme comprovativo de pagamento do montante a pagar comunicado à AT (UGC – Doc. n.º 9) junto como Doc. n.º 10.
d) Quer no exercício de 2014, quer nos exercícios posteriores até à data, incluindo os três exercícios subsequentes a 2014 [conforme o teor da norma constante da alínea b) do nº 13 do artigo 88º do CIRC], os resultados/lucro consolidado do exercício da A... foram sempre positivos, numa escala ou ordem de grandeza superior à centena de milhão de euros, a saber:
2014: € 152.266.770;
2015: € 130.786.499;
2016: € 189.305.370;
2017: € 193.599.630;
1º semestre de 2018: € 96.406.588.
e) No exercício fiscal em causa nestes autos havia disponíveis para dedução à coleta do IRC (incluindo a parte dessa coleta gerada pelas tributações autónomas), € 1.171.648,56 em créditos de IRC decorrentes do regime contratual dos grandes projetos de investimento, € 16.624.044,38 em créditos de IRC decorrentes do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (“SIFIDE”), € 1.285.422,39 em créditos de IRC decorrentes do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), e € 938.054,10 em créditos de IRC decorrentes do regime do Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI), tudo num total de € 20.019.169,43, valor esse que, tomando em linha de conta a correção efetuada pela Requerente, se cifra em €19.599.396,41.
f) A sobredita autoliquidação de tributações autónomas sobre bónus ocorreu em 26 de Outubro de 2016, através de declaração de substituição apresentada para o efeito pela requerente – cfr. o Doc. n.º 4, designadamente o campo 365 do quadro 10, e ver ainda complementarmente a declaração de IRC Modelo 22 individual da A... apresentada na mesma data (Doc. n.º 5, com o PPA).
g) Em 26 de Outubro de 2018, a ora requerente apresentou reclamação graciosa contra este segmento do ato tributário de autoliquidação de IRC do seu Grupo Fiscal referente ao exercício de 2014 (Doc. n.º 6).
h) Na sequência de apresentação da referida reclamação graciosa, foi a requerente notificada do seu indeferimento em 12 de Fevereiro de 2019, por despacho proferido pelo Exmo. Senhor Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), datado de 8 de Fevereiro de 2019 (Doc. n.º 7).
i) Em 6 de maio de 2019, a requerente apresentou, no CAAD, o presente pedido de pronúncia arbitral.
Não há outros factos essenciais para o objeto do litígio, provados ou não provados.
Motivação
A convicção do tribunal arbitral assentou na prova documental constante dos autos e na posição tomada relativamente a cada facto pelas partes nos articulados.
II – FUNDAMENTAÇÃO (cont.)
O Direito
Thema decidendum
Submete a Requerente à apreciação do Tribunal Arbitral (i) a legalidade da decisão de indeferimento da sobredita reclamação graciosa, na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade da autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2014 do Grupo Fiscal B... no segmento relativo às tributações autónomas adicionadas em 26 de Outubro de 2016 (tributação autónoma indevida sobre bónus, agravamento indevido da taxa de tributação autónoma e afastamento indevido da dedução de créditos de IRC à tributação autónoma em IRC), (ii) e bem assim a legalidade deste segmento das tributações autónomas, que ascende ao montante de € 1.692.278,47.
Vejamos então.
A questão da natureza das tributações autónomas e o seu grau de conexão com o IRC
Há que recuar ao ano de 1990 para encontrarmos a primeira intervenção do legislador no sentido de sujeitar determinadas despesas a tributação autónoma, ocorrida com a publicação do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, cujo artigo 4.º previa que «as despesas confidenciais ou não documentadas efetuadas no âmbito do exercício de atividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respetivo Código são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10%, sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC.»
Esta norma foi objeto de diversas alterações posteriores que, sucessivamente, procederam ao aumento da taxa de tributação nela prevista.
Com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a segurança social.
Saldanha Sanches (Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 407), a propósito da tributação autónoma prevista no então artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, escreveu o seguinte:«Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de interseção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida da taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal. Se na declaração do sujeito passivo não há lucro, o custo pode ser objeto de uma valoração negativa: por exemplo, temos uma taxa de 15% aplicada quando o sujeito passivo teve prejuízos nos dois últimos exercícios e foi comprada uma viatura ligeira de passageiros por mais de € 40 000 (artigo 81.º, n.º 4).
Com esta previsão, o sistema mostra a sua natureza dual (sublinhado nosso), com uma taxa agravada de tributação autónoma para certas situações especiais que se procura desencorajar, como a aquisição de viaturas para fins empresariais ou viaturas em princípio demasiado dispendiosas quando existem prejuízos. Cria-se, aqui, uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. Em resumo, o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido, mas, sim, um custo transformado – excecionalmente – em objeto de tributação.» (sublinhado nosso).
Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e, por isso, passível de tributação.
Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).
Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.
Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).
Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.
Neste caso estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, as taxas de tributação autónoma aqui em análise não se referem a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser efetuado periodicamente, num determinado momento, conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta influa no seu resultado.
Por esta razão, Sérgio Vasques ( Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 293, nota 470) chama a atenção para a circunstância de os impostos sobre o rendimento contemplarem elementos de obrigação única, como as taxas liberatórias do IRS ou as taxas de tributação autónoma do IRC (sublinhado nosso).
As tributações autónomas, de acordo com a sua regulamentação inicial, constituíram como que um sucedâneo do regime da não dedutibilidade anteriormente previsto no CIRC.
Com efeito, na sua génese estava a não aceitação fiscal de uma percentagem de certas despesas, constituindo as tributações autónomas uma forma alternativa e mais eficaz de correção dos custos sempre que se trate de áreas mais propícias à evasão fiscal (ajudas de custo, despesas de representação, despesas com viaturas, etc.).
Assim, não seria razoável, antes até contrário ao motivo que levou o legislador a tributar autonomamente aquelas despesas que, através da sua dedução ao lucro tributável a título de gastos, fosse eliminado o fundamento da existência das tributações autónomas (sublinhado nosso).
A jurisprudência arbitral tem decidido no sentido de que as tributações autónomas pertencem, por regra, sistematicamente, ao IRC, e não ao IVA, ao IRS, ou a um qualquer outro imposto do sistema fiscal português. É o caso, entre outros, dos processos Arbitrais n.ºs 166/2014-T, 246/2013-T, 260/2013-T, 282/2013-T, 6/2014-T, 36/2014-T e 697/2014-T.
Elas estão, por isso, fortemente ligadas aos sujeitos passivos do imposto sobre o rendimento respetivo, e, mais especificamente, à atividade económica e empresarial por eles levada a cabo. Do que se trata, nas tributações autónomas é, com efeito, de tributar certas despesas ou encargos (gastos), vistas estas na sua relação com a ideia geral de lucro real e efetivo e a tributação do rendimento.
Com efeito, parece-nos fora de dúvida que o mecanismo de tributação autónoma do conjunto das realidades previstas no artigo 88.º do CIRC visa, primacialmente, acautelar os equilíbrios gerais do próprio sistema fiscal, os equilíbrios específicos do IRC e a receita do próprio imposto. Isto é, visa impedir que através da relevação significativa de encargos como os previstos no artigo 88.º, se não introduzam entorses afetadoras do sistema e a expetativa sobre o que deverá ser a receita “normal” do imposto não saia gorada. No caso, como é igualmente consabido, do que se trata é de desincentivar a realização / relevação dessas despesas, desde logo porque, pela sua natureza e fins, elas podem ser mais facilmente objeto de desvio para consumos que, na essência, são privados ou correspondem a encargos que não deixam de ter, também, como finalidade específica e última, o evitamento do imposto. Realidades que apresentam alguma medida de censurabilidade já que, não violando diretamente a lei, geram desequilíbrios sensíveis e importantes sobre a ideia geral de justiça, sobre o dever fundamental de contribuir na proporção dos seus haveres, da igualdade, do sacrifício, da proporcionalidade da medida do imposto em face das manifestações possíveis de riqueza, da tributação do rendimento real e da justiça.
Funcionando de um modo diferente do que constitui o escopo essencial do IRC – que tributa os rendimentos – as tributações autónomas, reafirma-se, tributam certas despesas ou encargos específicos – e constituem uma realidade instrumental, acessória desse imposto, na justa medida em que é em função dele que foram instituídas e são, por isso, passíveis de lhes ser reconhecida uma instrumentalidade ou acessoriedade de fins, radicada na salvaguarda dos fins do próprio imposto onde se manifestam.
Tem-se assim como certo que as tributações autónomas não constituem IRC em sentido estrito mas encontram-se a este (IRC) imbricadas, devendo conter-se nos “outros impostos” de que nos dá conta a parte final da alínea a) do nº 1 do artigo 45º do CIRC [redação então vigor e atual artigo 23º-A/1-a), do CIRC) (sublinhado nosso)].
Revelações dessa ligação de funcionalidade, e no quadro da intenção do legislador no seu todo, sobressaem, por exemplo da disciplina do artigo 12º do CIRC a propósito das entidades sujeitas ao regime da transparência fiscal, ao não as tributar em IRC, “salvo quanto às tributações autónomas”, relação essa que igualmente se manifesta face ao nº 14 do artigo 88º do CIRC, no sentido em que as taxas de tributação autónoma têm em consideração o facto do sujeito passivo apresentar ou não prejuízo fiscal.
Analisada ainda sob outro prisma, haverá que considerar as tributações autónomas no contexto de normas anti-abuso específicas e a sua similitude com o regime previsto sob o nº 1 do artigo 65º do CIRC, na redação de 2011 (“não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizada e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado”).
Visando então as tributações autónomas reduzir a vantagem fiscal alcançada com a dedução ao lucro tributável dos custos sobre os quais incidem e ainda combater a evasão fiscal que este tipo de despesas, pela sua natureza, potencia, não poderão ser elas mesmas através da sua dedução ao lucro tributável a título de custo do exercício constituir fator de redução dessa diminuição de vantagem pretendida e determinada pelo legislador.
Escreveu-se ou assinalou-se no processo arbitral do CAAD nº 292/2013-T, que “(...)
além de parecer inesperada a sugestão da solução de recusa pura e simples de dedução de custo (...) tudo leva a crer que a intenção do legislador foi mesmo optar, nalguns casos, pela aceitação de custos das despesas, mitigada pela tributação autónoma. Já não teria lógica, efectivamente, que esta tributação fosse, por sua vez, mitigada pela sua dedução na determinação do lucro tributável. (...) A admitir-se a tributação autónoma como custo fiscal estar-se-ia a desfazer, afinal, o efeito dissuasor que com elas o legislador visou atingir, a anular essa mesma tributação autónoma, uma vez que o montante pago seria compensado pela redução do mesmo ao lucro tributável, logo, sobre o IRC a pagar ou sobre os prejuízos a reportar.» Excerto de onde sai ressalvada a destrinça entre o mecanismo do apuramento do lucro ou do prejuízo fiscal (para o que concorrem gastos e rendimentos) e o mecanismo de tributação de despesas empresariais, (supostamente) incorridas na prossecução do objecto social.
E nesta mesma linha de pensamento se encontra também o Professor Casalta Nabais quando qualifica as tributações autónomas como uma espécie de “(...)impostos sobre despesas realizadas pelas empresas. Tendo começado por incidir sobre despesas não documentadas e confidenciais e, depois, sobre as despesas de representação e com viaturas, foram entretanto as mesmas alargadas a diversas despesas e, em sede de IRC, a alguns rendimentos como lucros distribuídos e certas indemnizações ou compensações. O que nos leva a reconhecer que no IRC temos tributações autónomas sobre determinados rendimentos, sobre despesas que não são gastos fiscais e sobre despesas que são considerados gastos fiscais (...)”.
Concluindo: as tributações autónomas, que incidem sobre encargos dedutíveis em IRC, integram o regime e são devidas a título deste imposto, não constituindo as despesas com o pagamento daquelas tributações encargos dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável.
Este entendimento foi, aliás, clarificado pelo artigo 3º da Lei nº 2/2014, de 16 de Janeiro, que aditou o artigo 23º A) ao CIRC (ao mesmo tempo que o seu artigo 13º revogou o artigo 45º), com a seguinte redação:
Artigo 23º A)- Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
“1. Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:
a) o IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros” .
Não subsistindo dúvidas quanto ao carácter interpretativo do preceito transcrito, de acordo com as regras de hermenêutica jurídica, na prática, tal norma, vem expressar o que o legislador sempre entendeu e continua a entender, ou seja que os encargos decorrentes com o custo associado às tributações autónomas, não relevam para efeitos de apuramento do lucro tributável.
Assim é que, no caso sub juditio, não se antolha qualquer violação pela AT das regras de procedimento e/ou de forma de liquidação previstas no artigo 90º, do CIRC com a desconsideração, para o efeito, das tributações autónomas liquidadas e pagas pela requerente.
Daí que não ocorram as pretendidas ilegalidades no cálculo da coleta relativa a IRC no exercício de 2014 nem no ato de indeferimento da reclamação graciosa.
E igualmente nesta linha de entendimento, embora com cambiantes no discurso argumentativo, é que foram proferidas várias decisões dos Tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, designadamente nos processos nºs 127/2019-T, 166/2014-T, 246/2013-T, 260/2013-T, 280/2013-T, 6/2014-T, 36/2014-T, 697/2014-T, 108/2019-T,
Ou seja, e em conclusão: no caso sub juditio, não se antolha qualquer violação pela AT das regras de procedimento e/ou de forma de liquidação previstas no artigo 90º, do CIRC com a desconsideração, para o efeito, das tributações autónomas liquidadas e pagas pela requerente.
Daí que não ocorram as pretendidas ilegalidades dos atos de indeferimento da reclamação graciosa identificada supra e do ato de autoliquidação de IRC na parte impugnada, ou seja, no que respeita ao montante de taxas de tributação autónoma relativa ao exercício de 2014.
III. DECISÃO
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar totalmente improcedentes os pedidos formulados pela requerente [“(...)ser declarada a ilegalidade e anulado o indeferimento de reclamação graciosa supra melhor identificado e bem assim a ilegalidade da autoliquidação de IRC, incluindo taxas de tributação autónoma, do Grupo Fiscal B..., relativa ao exercício de 2014, no que respeita ao montante de taxas de tributação autónoma em IRC de €1.692.278,47 (...)”], com a consequente manutenção desses atos na ordem jurídica;
b) Julgar prejudicada apreciação do pedido de reconhecimento do direito ao reembolso daquela importância liquidada e paga, com juros indemnizatórios e
c) Condenar a Requerente nas custas do processo, por ter ficado totalmente vencida.
Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.692.278,47.
Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 22.338,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da requerente, A..., SGPS, conforme condenação supra.
Lisboa e CAAD, 9-12-2019
O Tribunal Arbitral Coletivo,
O Árbitro Presidente
(José Poças Falcão)
O Árbitro Vogal
(João Zambujal Oliveira)
O Árbitro Vogal
(José Coutinho Pires)