DECISÃO
I – Relatório
1.1. A…, S.A. (doravante designada por «requerente»), submete à apreciação do presente Tribunal a legalidade dos actos de liquidação de IUC referentes aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, tendo, para o efeito, apresentado, em 24/2/2014, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 99.º do CPPT e 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a declaração da "ilegalidade das liquidações de IUC relativas aos períodos de tributação de 2009 a 2012, no valor de €2249,59, com a consequente anulação [e] o reembolso à requerente desta quantia, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde a data do respectivo pagamento até integral reembolso."
1.2. Em 30/4/2014 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 27/5/2014, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido da requerente. Na referida resposta, invocou duas excepções, a saber: "excepção peremptória [de falta de objecto], a qual se invoca para todos os efeitos legais, nos termos do disposto no artigo 577.º/3 do CPC, na redacção dada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, aplicável ex vi do art. 29.º/1-e) do RJAT, a qual dá lugar à absolvição da Requerida do pedido, nos termos e para os efeitos no disposto no artigo 576.º/3 do CPC"; e, "atendendo à inexistência de actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela Requerida, [...] excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.os 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT e do artigo 29.º/1-a) e e), do RJAT".
1.4. A requerente, notificada da resposta da AT, respondeu, por escrito, às excepções invocadas, em requerimento de 8/7/2014, o qual foi notificado à requerida.
1.5. Considerando que a requerente já se tinha pronunciado por escrito sobre eventuais excepções (através da referida resposta remetida por requerimento de 8/7/2014), o presente Tribunal considerou, ao abrigo do art. 16.º, al. c), do RJAT, dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse para decisão. No respeito pelo disposto nos arts. 16.º, al. c) e e), e 19.º, do RJAT, as partes foram notificadas a 20/7/2014 para dizerem, no prazo estabelecido, o que entendessem por conveniente, nada tendo dito.
1.6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
1.7. Considerando que foram invocadas duas excepções (supra referidas), justifica-se, previamente, a apreciação das mesmas, i.e., saber se, como alega a ora requerida, o Tribunal é "materialmente incompetente" e, ainda, se há "falta de objecto" (por, no seu entender, não existirem "actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela Requerida").
1.8. Quanto à invocação de que o presente Tribunal é "materialmente incompetente" por, alegadamente, não existirem os alegados "actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela Requerida", considera-se que não assiste razão à requerida, dado que a competência dos Tribunais Arbitrais compreende não apenas a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos cuja administração seja cometida à AT (não aplicável ao presente caso, dado que os actos em causa não foram praticados pela AT), como também [ainda segundo o art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT] a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação.
Não há dúvida de que, no caso em análise, se está diante de actos de autoliquidação, visto que estes ocorrem quando a liquidação do tributo é feita pelo próprio sujeito passivo, tendo por base as regras e elementos definidos para a referida liquidação (neste caso, as "notas de cobrança" constantes do sistema informático da AT, e que estão identificadas e juntas aos autos como docs. n.os 2 a 60). O facto de a requerente se referir a estes actos de autoliquidação como "liquidações oficiosas" é incorrecção que não altera a substância e a natureza dos actos em causa (tanto mais que a requerente também fez questão de afirmar, na sua petição, que procedeu ao "pagamento voluntário" do IUC), os quais, como se disse, caem no âmbito da competência material dos Tribunais Arbitrais, por via do que dispõe o já mencionado art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT.
Alega, contudo, a requerida, que ainda que "se entenda que, na realidade, se está perante autoliquidações [...], importa não esquecer que a reacção contra [estas] depende de prévia e necessária dedução de Reclamação Graciosa no prazo de 2 anos a contar da apresentação da declaração, conforme estatui o artigo 131.º/1 do CPPT. Ora, a Requerente não apresentou qualquer reclamação graciosa relativamente aos actos de autoliquidação subjudice, razão pela qual também por esta via não são susceptíveis de serem sindicados tais actos."
Com efeito, a requerente não apresentou, previamente, a referida reclamação graciosa. Contudo, estaria a requerente obrigada a fazê-lo? A resposta terá de ser negativa.
Como bem refere Jorge Lopes de Sousa, no seu "Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária", que está inserido no Guia da Arbitragem Tributária, coordenado por Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira (Almedina, 2013, p. 131), "as razões subjacentes à imposição legal e à dispensa de reclamação graciosa, prévia em relação à utilização de meios jurisdicionais, vale também em relação ao acesso aos tribunais arbitrais." Daqui decorre a conclusão, "por mera interpretação declarativa, [de] que a possibilidade de pedir aos tribunais arbitrais a declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação [...] prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, deve ser entendida em sintonia com o regime previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, sendo necessária a reclamação graciosa prévia nos casos em que ela também o é nos tribunais tributários."
Resta, portanto, a seguinte pergunta: nos tribunais tributários, e no que diz respeito a actos de autoliquidação, a reclamação graciosa prévia é sempre necessária? A resposta é, uma vez mais, negativa (e tem, consequentemente, aplicação aos casos que sejam submetidos aos Tribunais Arbitrais).
Como bem refere Jorge Lopes de Sousa (idem, 2013, p. 130), embora a regra seja a da necessidade da reclamação graciosa prévia, já "no que concerne a actos de autoliquidação e retenção na fonte, quando o fundamento de impugnação for exclusivamente matéria de direito e os actos tiverem sido efectuados de acordo com orientações genéricas emitidas pela Administração Tributária, deixa de ser obrigatória a reclamação graciosa prévia, como resulta do n.º 3 do artigo 131.º e do n.º 6 do artigo 132.º."
Ora, como tais condições estão preenchidas no caso ora em análise, conclui-se que não era obrigatória a reclamação graciosa prévia, pelo que os actos em causa são susceptíveis de serem sindicados.
Resumindo: não "falta de objecto" porque, embora não tenham sido emitidos "actos de liquidação oficiosa de IUC [...] pela Requerida", o objecto deste processo consiste em actos de autoliquidação; e o Tribunal não é "materialmente incompetente" porque a declaração de ilegalidade de tais actos se insere no âmbito das competências dos Tribunais Arbitrais, de acordo com o disposto no art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT.
1.9. Pelo acima exposto (em 1.8.), conclui-se que o Tribunal Arbitral é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Fundamentação: A Matéria de Facto
2.1. Vem a ora requerente alegar, na sua petição, que: a) "não é legítimo concluir que os sujeitos passivos [de IUC] são apenas os proprietários ou equiparados dos veículos, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados"; b) "a ratio legis do IUC antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, os efectivos proprietários ou, ainda, os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade"; c) "não poderá deixar de entender-se que a expressão «considerando-se como tais», utilizada no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, configura uma presunção legal, a qual é ilidível, nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT"; d) "por forma a ilidir a presunção decorrente da inscrição no registo automóvel, a requerente apresenta cópias das facturas/recibos de vendas (cfr. documentos n.º 61 a 106)"; e) "à data da exigibilidade do imposto a que respeitam as liquidações em apreço, não era esta o proprietário dos veículos naquelas identificados, por se ter já anteriormente operado as respectivas transferências, nos termos da lei civil"; f) "não preenchendo a AT os requisitos da noção de «terceiro» para efeitos de registo, não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda."
2.2. Conclui a ora requerente que: a) deve ser "declarada a ilegalidade [dos] actos de liquidação [de IUC relativos aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012] (e ser consequentemente anulados), no montante de €2.249,59"; b) deve ser reconhecido o direito ao "reembolso à requerente desta quantia, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data do respectivo pagamento até ao integral reembolso."
2.3. Por seu lado, a AT alega, na sua contestação: a) que "o entendimento propugnado pela Requerente incorre [em] enviesada leitura da letra da lei [e decorre da] adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC"; b) "[quanto ao] elemento sistemático de interpretação da lei [...] a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei"; c) que "à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel, o registo dessa qualidade, é manifestamente errada"; d) que "os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC"; e) que, "estabelecendo o disposto no artigo 3.º do CIUC que o proprietário que consta da Conservatória do Registo Automóvel [é o sujeito de imposto], entendemos que todo o raciocínio propugnado pelo Requerente se encontra eivado, não sendo possível elidir a presunção estabelecida"; f) que "a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição".
Conclui a AT que "devem ser julgadas procedentes, por provadas, as excepções peremptória de falta de objecto e dilatórias de incompetência do Tribunal Arbitral Singular e de preterição da necessária Reclamação Graciosa, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido."
2.4. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) A ora requerente é uma instituição financeira que tem por objecto social a prática das operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos, dispondo, para o efeito, de todas as autorizações legalmente exigíveis. No âmbito da sua actividade, a ora requerente celebra com os seus clientes contratos de aluguer de longa duração e contratos de locação financeira de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respectivos locatários ou a terceiros.
ii) Entre 10/12/2013 e 20/12/2013, a requerente procedeu ao pagamento voluntário de IUC alegadamente em falta, relativo às viaturas identificadas no pedido de pronúncia arbitral e relativo aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, no valor total de €2249,59 (vd. docs. n.os 2 a 60 apensos à petição inicial).
iii) Em data anterior àquela a que o imposto respeitava, as viaturas ora em causa foram objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da requerente, conforme se vê por docs. n.os 61 a 106 apensos à petição inicial, os quais, dada a sua extensão, aqui se darão por reproduzidos. Todas as vendas encontram-se suportadas pelas respectivas facturas de venda, as quais se encontram suficientemente identificadas.
2.5. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
III – Fundamentação: A Matéria de Direito
No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) a de saber se a interpretação defendida pela requerente "incorre [em] enviesada leitura da letra da lei"; 2) a de saber se a interpretação da requerente atende ao "elemento sistemático", e se ignora o "elemento teleológico" de interpretação da lei; 3) saber se há interpretação "contrária à Constituição" da parte da ora requerente; 4) saber se, no presente caso, são devidos juros indemnizatórios à requerente.
Vejamos, então.
1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que a norma estabelece uma presunção, tal desconsidera o elemento sistemático e teleológico; c) saber - admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) - se foi feita a ilisão da mesma.
a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:
"Artigo 3.º – Incidência Subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação".
A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Cód. Civil (CC).
Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o "pensamento legislativo". O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação para a mencionada tarefa.
A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão "considerando-se como tais" significa algo diverso de "presumindo-se como tais". De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, "instintivamente", a identidade entre as duas expressões.
Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras "considerando" e "presumindo" (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão "considera-se", constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: "para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT" (vd. Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-652).
b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a unidade do sistema jurídico (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo "presumir" é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões "considera-se como" ou "considerando-se como" assumem, como se viu, destaque.
Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da requerente ignora o elemento teleológico de interpretação da lei.
Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: "O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária" (vd. art. 1.º do CIUC).
O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos "contribuintes" aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA n.º 73/2013-T, de 5/12/2013: "na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade."
Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê "utilizadores", devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, "proprietários com registo em seu nome"...?
c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que se invoque o art. 6.º do CIUC, como o faz a AT, para alegar "que só as situações jurídicas objecto de registo [...] geram o nascimento da obrigação de imposto", é necessário ter presente que tal registo gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada mediante prova em contrário (prova de que o registo já não traduz, no momento da obrigação de imposto, a verdade material que lhe teria dado origem).
Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).
Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.
A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. …: "O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes."
No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA n.º 14/2013-T, de 15/10/2013, em termos que aqui se acompanham: "a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda."
Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por via de "prova bastante" das vendas alegadas) foi realizada (vd. docs. n.os 61 a 106 apensos à petição inicial).
É certo que, no ponto 122.º da sua resposta, a AT procurou refutar as facturas apresentadas, argumentando, em síntese, que as mesmas "levantam sérias dúvidas sobre a sua veracidade", por alegados desacertos entre as taxas praticadas à data dos factos e as taxas indicadas nas facturas ou por falta de indicação das taxas (docs. 67, 68, 78, 81, 82, 92 e 96).
O presente Tribunal, contudo, não vê razão para questionar as referidas facturas (nem entende que tenham sido apresentados elementos suficientes para permitir, fundadamente, duvidar da veracidade das mesmas e dos negócios a elas subjacentes), pelo que entende que as mesmas são demonstrativas de que a requerente não era, à data do imposto, a proprietária dos veículos em causa. Como bem se assinalou na DA n.º 27/2013-T, datada de 10/9/2013, "os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [...] [dos] veículos atrás referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT."
3) Conclui-se, em face do que foi acima exposto [em 1) e 2)], não existir qualquer "interpretação desconforme à Constituição", ao contrário do que alegou a requerida nos pontos 97.º a 103.º da sua resposta.
4) Uma nota final para apreciar, ao abrigo do disposto no art. 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).
A este respeito, lembrou a DA n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (a qual tratou de situação muito semelhante à aqui em análise): "O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados."
Atendendo a esta justificação, com a qual se concorda, conclui-se, também no presente caso, pela improcedência do mencionado pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
***
IV – Decisão
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação impugnados e o reembolso das importâncias indevidamente pagas;
- Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.
Fixa-se o valor do processo em €2249,59 (dois mil duzentos e quarenta e nove euros e cinquenta e nove cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da requerida, no montante de €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, dado que o presente pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 30 de Julho de 2014.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
***
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 138.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.