DECISÃO ARBITRAL
Acorda o Árbitro Suzana Fernandes da Costa, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar Tribunal Arbitral, na seguinte:
1. Relatório
No dia 08-05-2019, A..., contribuinte n.º..., residente em ..., ..., ..., ..., ..., Austrália, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista, de forma imediata, à declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa interposta, e de forma mediata, à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2018... do ano de 2017, no valor de 12.527,57 €.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD no dia 09-05-2019 e notificado à Requerida na mesma data.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º n.º 2 alínea a) do RJAT, foi designada como árbitro, pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em 01-07-2019, a Dra. Suzana Fernandes da Costa, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.
Na mesma data foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6º e 7º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 22-07-2019.
Em 23-07-2019, foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional e remeter ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta.
Em 30-09-2019, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
No dia 02-10-2019, foi proferido despacho, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais, a dispensar a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, e a conceder prazo de 15 dias para as partes apresentarem alegações, iniciando-se com a notificação do despacho o prazo para as alegações da Requerente e com a notificação da apresentação das alegações da Requerente o prazo para as alegações da AT. No mesmo despacho, foi ainda fixado o dia 15-12-2019 para a prolação da decisão arbitral, e foi advertido a Requerente para, até àquela data, efetuar o pagamento da taxa arbitral subsequente.
Em 16-10-2019, a Requerente juntou aos autos o comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.
Em 22-10-2019, a Requerente veio juntar as suas alegações.
A Requerida optou por não apresentar alegações.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março).
O pedido arbitral é tempestivo, nos termos do artigo 10º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro e do artigo 102º n.º 1 alínea a) do Código do Procedimento e do Processo Tributário.
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias.
2. Posição das partes
A Requerente começa por referir que é cidadã portuguesa residente na Austrália e que designou como seu representante fiscal em Portugal, o Sr. B..., contribuinte n.º... .
A Requerente refere que o seu representante procedeu à entrega da declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, do ano de 2017 da sua representada declarando a mesma como não residente.
Na declaração modelo 3, refere a Requerente que foram declarados rendimentos no anexo F (rendimentos prediais) e no anexo G. Neste anexo G, a Requerente alega que foi declarado o rendimento das mais-valias obtidas com a alienação de um imóvel, em 04-2017, no valor de 43.230,01€, correspondente à quota-parte da Requerente (25%).
A Requerente alega que a AT procedeu ao cálculo do imposto através da aplicação da taxa de 28% à totalidade do valor da mais-valia obtida, tendo emitida a liquidação de IRS em causa nestes autos.
A Requerente refere que, não concordando com a liquidação de IRS, apresentou reclamação graciosa da mesma, através do seu representante fiscal, em 27-12-2018, no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia ... .
De acordo com a Requerente, esta reclamação graciosa foi expressamente indeferida, tendo a mesma sido notificada da decisão de indeferimento através de ofício datado de 04-02-2019.
A Requerente alega que a AT considera que o n.º 2 do artigo 4º do Código do IRS, que refere que o saldo apurado entre as mais e as menos-valias respeitante a transmissões efetuadas por residentes é apenas considerado em 50%, não se aplica a cidadãos não residentes.
Para a Requerente, este entendimento consagra uma discriminação entre cidadãos residente e cidadãos não residentes, além de uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Para sustentar a sua posição, a Requerente faz referência ao acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 16-03-1999 Trummer e Mayer C.222/97, segundo o qual não podem os residentes na União e os residentes em território português ter tratamento diferente.
A Requerente refere ainda os acórdãos de 07-09-2004, Manninen, 0319/02, de 14-09-2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer, C-386/04), e de 11-10-2007, processo C-443/06, “acórdão Hollmann”.
Em relação a jurisprudência de Portugal, a Requerente refere o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2016, do processo n.º 01172/14, e as decisões do CAAD dos processos n.º 45/2012-T, 127/2012-T, 748/2015-T, 89/2017-T, 644/2017-T, 617/2017-T.
A Requerente menciona que, ainda que se argumentasse que se trata de uma cidadã portuguesa residente num Estado que não é membro da União Europeia, tal argumento não teria acolhimento, quer pela letra da lei, quer pelo constante do acórdão proferido pelo TJUE de 06-09-2019, processo C-184/18.
Para a Requerente, o que se verifica neste caso é uma discriminação entre residentes e não residentes na tributação das mais-valias, sem qualquer motivo para tal porque as situações são em tudo comparáveis.
A Requerente refere que os seus irmãos, com a alienação do referido imóvel, foram tributados em termos de mais-valias em apenas 50% do seu valor.
A Requerente conclui que a liquidação em crise está inquinada por vício de violação de lei.
A final, a Requerente alega que procedeu ao pagamento integral da liquidação de IRS em causa, e requer o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º da LGT.
Já a Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na sua resposta, apresentou defesa por impugnação, referindo, em suma, que os Requerentes poderiam beneficiar da limitação a 50% da tributação das mais valias obtidas, desde que tivessem optado pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território.
A Requerida pede ainda a suspensão da instância arbitral e a sujeição da questão ao Tribunal de Justiça, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267º do TFUE), com o fundamento de se desconhecer jurisprudência do TJUE que se debruce sobre a questão a dirimir nos presentes autos, designadamente proferida em casos com todas as caraterísticas factuais apontadas.
3. Matéria de facto
3. 1. Factos provados:
Analisada a prova documental produzida e a posição das partes constante das peças processuais, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:
1. A Requerente é cidadã portuguesa, e era em 2017 residente na Austrália.
2. A Requerente designou como seu representante legal o Sr B..., contribuinte n.º... .
3. A Requerente era detentora de uma quota-parte correspondente a 25%, do imóvel artigo rústico inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo ... .
4. A Requerente alienou, juntamente com os restantes comproprietários, o referido imóvel, em abril de 2017.
5. A Requerente submeteu, através do seu representante fiscal, a declaração de rendimentos modelo 3, do ano de 2017, tendo indicado que era não residente e indicado os rendimentos da categoria F e G obtidos.
6. No anexo G da referida modelo 3 de 2017 foi declarado o valor de 43.230,01 €, que corresponde à mais-valia obtida pela alienação do referido imóvel.
7. A Requerente foi notificada da liquidação de IRS n.º 2018..., do ano de 2017, no valor de 12.527,57 €, conforme documento 1 junto ao pedido arbitral.
8. A Requerente interpôs, em 27-12-2018, reclamação graciosa da liquidação de IRS supra identificada, conforme documento 3 junto ao pedido arbitral.
9. A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, através do ofício datado de 04-02-2019, conforme documento 6 junto ao pedido arbitral.
10. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto, em 29-08-2018, conforme documento 2 junto ao pedido arbitral.
11. A Requerente interpôs o presente pedido de pronúncia arbitral em 08-05-2019.
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
3.2. Factos não provados
Não se verificaram quaisquer factos que não tenham sido provados.
3.3. Fundamentação da matéria de facto provada:
A convicção do árbitro fundou-se nos documentos juntos aos autos pela Requerente e na posição das partes demonstrada nas peças processuais produzidas.
4. Matéria de direito:
4.1. Objeto e âmbito do presente processo
A questão essencial de direito que se coloca neste processo é a de saber se a norma estabelecida na legislação nacional, nomeadamente, no artigo 43º n.º 2 do Código do IRS, consagra uma diferenciação entre residentes e não residentes contrária ao Direito da União Europeia. Concretamente, pretende-se saber se a base de incidência em IRS das mais-valias derivadas da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis é (in)compatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes.
4.2 Da legislação aplicável
Em sede de IRS, determina a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS que, «Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (…), sendo o ganho constituído pela diferença entre o valor da realização e o valor de aquisição, líquidos das partes qualificada como rendimento de capitais (…)» (cfr. n.º 4 do artigo 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, doravante Código do IRS).
No que respeita à tributação de não residentes em território português, o artigo 13.º, n.º 1 do Código do IRS dispõe que «Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos», acrescentando o artigo 15.º, n.º 2 do mesmo diploma legal que, quanto aos não residentes, aquele imposto «incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português».
Assim sendo, de acordo com o artigo 18.º, n.º 1, alínea h) do Código do IRS, as mais-valias resultantes da transmissão de imóveis nele situados constituem rendimentos obtidos em território português.
De harmonia com a declaração de rendimentos da Requerente, a AT liquidou o imposto à taxa de 28%, prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 72.º do Código do IRS.
Determina este normativo o seguinte: “Taxas especiais” «1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %: a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;».
A taxa de 28% foi aplicada à totalidade do rendimento global, o que determinou um imposto a pagar por parte da Requerente no valor de 12.527,57 €.
4.3. Da compatibilidade do regime nacional de tributação de mais-valias imobiliárias com o Direito da União Europeia:
O artigo 63.º, n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) apresenta a livre circulação de capitais como elemento estruturante do processo de integração europeia, determinando-se que “são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”.
De harmonia com o disposto no artigo 18.º do TFUE, “No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação.”
É ao abrigo do disposto no referido artigo 63º do TFUE, que a Requerente invoca a desconformidade da tributação das mais-valias obtidas com a legislação da União Europeia.
O TJUE, no acórdão de 11-10-2007, no processo C-443/06, Hollman versus Fazenda Pública, considerou incompatível com o Direito da União Europeia, por se tratar de um tratamento indiferenciado incompatível com a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63º do TFUE, o regime do artigo 72.º, n.º 1 do CIRS, na redação anterior à Lei n.º 67-A/2007 de 31-12, por tributar as mais-valias de contribuintes não residentes a uma taxa fixa, enquanto os residentes estão sujeitos a um imposto progressivo sobre o rendimento.
Refere o TJUE naquele acórdão que é incompatível com a norma que assegura a liberdade de circulação de capitais um regime que “sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que indiciaria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel”.
Este entendimento foi também recentemente defendido no acórdão do TJUE (sétima secção) de 06-09-2018, processo C-184/18, em que se entendeu que “uma legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado-Membro, efetuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais valias realizadas por um residente naquele Estado-Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela exceção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.
Esta última decisão foi também proferida tendo como pressuposto a redação do artigo 72.º introduzida pela Lei n.º 109/2001, de 27 de dezembro, anterior à Lei n.º 67-A/2007, pelo que como afirma a Requerida, não há jurisprudência específica do TJUE sobre a compatibilidade do regime introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, nos n.ºs 7 e 8 do CIRS com o artigo 63.º do TFUE.
No entanto, o TJUE entendeu naquele acórdão do processo C-443/06, que o essencial da incompatibilidade do regime do artigo 71.º, n.º 1, com o direito de União resulta de instituir “um tratamento fiscal desigual para os não residentes, na medida em que permite, no caso de realização de mais valias, uma tributação mais gravosa e, por isso, uma carga fiscal superior à que é suportada pelos residentes numa situação objectivamente comparável”.
Assim, o que essencialmente releva para este efeito é saber se existe ou não uma discriminação negativa na aplicação à Requerente do regime que lhe foi aplicado.
Ora, no caso de venda de um bem imóvel sito em Portugal, ocorrendo a obtenção de mais-valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos.
Assim, enquanto que a um não residente é aplicada a taxa de 28% sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria coletável correspondente às mais-valias realizadas por um residente permite que este beneficie de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 48%.
Dito de outro modo, o regime previsto, na falta de opção, no n.º 1 do artigo 72.º, é mais oneroso para os não residentes do que para os residentes, pois enquanto a taxa máxima aplicável às mais-valias realizadas por residentes é de 24% do seu valor (taxa máxima de 48% prevista no artigo 68.º, aplicável a 50% do saldo das mais-valias), a taxa prevista no n.º 1 do artigo 72.º é de 28%, aplicável à totalidade do saldo.
Assim, é seguro que o regime de tributação a taxa liberatória previsto no artigo 72.º do CIRS, na redação em vigor em 2017, é incompatível com o artigo 63.º do TFUE, pois torna a transferência de capitais menos atrativa para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo tratado.
Esta diferença de tratamento não pode ser justificada em função da verificação de qualquer das exceções previstas no artigo 65.º do TFUE, não podendo a discriminação da norma nacional daí decorrente ser justificável pelo objetivo de evitar penalizar os residentes, porque, sendo o escalão mais elevado 48%, conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento coletável do residente, não existindo, objetivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos.
Foi este regime negativamente discriminatório para os não residentes que foi aplicado na liquidação impugnada.
O facto de atualmente este regime poder ser afastado pelos sujeitos passivos, se manifestarem uma opção, como alega a Requerida, não afasta a discriminação negativa, pois é nele imposta uma obrigação de opção que não é extensiva aos residentes.
Um regime facultativo como aquele que está previsto no artigo 72.º do CIRS faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não sendo a opção de equiparação suscetível de excluir a discriminação em causa.
A este propósito, a jurisprudência do TJUE no acórdão de 28-02-2013, processo C168/11 refere que “Mesmo admitindo que tal sistema seja compatível com o direito da União, resulta contudo da jurisprudência que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode permanecer incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, acórdão de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 162, e de 18 de março de 2010, Gielen, C-440/08, Colet., p. I-2323, n.º 53). A este respeito, a existência de uma opção que permitiria eventualmente tornar uma situação compatível com o direito da União não tem assim por efeito sanar, por si só, o carácter ilegal de um sistema, como o previsto pela regulamentação controvertida, que compreende um mecanismo de tributação não compatível com este direito. Importa acrescentar que tal ocorre por maioria de razão no caso em que, como no caso em apreço, o mecanismo incompatível com o direito da União é aquele que é automaticamente aplicado na inexistência de escolha efetuada pelo contribuinte.” (no mesmo sentido se pronunciou o TJUE no acórdão de 18-03-2010, processo C-440/08 e acórdão de 08-06-2016, processo C-479/14).
Com efeito, o regime de equiparação atualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de optar por dois regimes, um legal e outro ilegal. Neste sentido, refere o TJUE no acórdão de 18-03-2018, no processo C-440/08, “a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (…) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente mais discriminatório”.
Neste sentido se pronunciaram também as Decisões do CAAD proferidas, nomeadamente, nos processos 74/2019-T, 67/2019-T, 65/2019-T, 63/2019-T, 617/2018-T, 613/2018-T, 594/2018-T, 590/2018-T, 583/2018-T, 577/2018-T, 562/2018-T, 548/2018-T, 370/2018-T, 307/2018-T, 644/2017-T, 520/2017-T, 89/2017-T, 748/2015-T, 45/2012-T e 127/2012-T.
DO REENVIO PREJUDICIAL
É à luz da jurisprudência referida que se deverá analisar a pretensão da Requerida de reenvio prejudicial.
O instituto do reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.º do TFUE, pode ser utilizado por este Tribunal Arbitral como, aliás, já foi reconhecido pelo TJUE no processo C-377/13, de 12 de junho de 2014.
Nestes termos, e de acordo com o referido artigo 267.º, os tribunais nacionais – onde se inclui, naturalmente, este Tribunal – devem proceder ao reenvio de questões prejudiciais quando se coloquem questões ou dúvidas relativas à validade, interpretação e compatibilidade das normas de direito interno com direito da União Europeia.
Tal significa que, não se suscitando quanto às normas em questão quaisquer dúvidas ou tendo as mesmas sido já esclarecidas pelo TJUE – considerando, nomeadamente a chamada “teoria do acto claro” (cfr. acórdão do TJUE CILFIT, de 6 de outubro de 1982, processo C-283/81) –, não devem os tribunais nacionais proceder ao reenvio prejudicial.
Assim, se já existir (i) jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou (ii) quando o modo correto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco, um órgão jurisdicional nacional pode “decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece”, conforme pontos 12 e 13 das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), do TJUE.
No presente caso, conclui-se, perante a jurisprudência do TJUE acerca da matéria sub judice, não ser necessário proceder ao reenvio ao TJUE de supostas dúvidas sobre interpretação de normas de Direito da União Europeia.
Face o que vem de dizer-se procede o pedido de pronúncia arbitral deduzido pela Requerente por estar a liquidação em clara violação do artigo 63.º, n.º 1 do TFUE.
Nestes termos, é ilegal o ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2018 ... do ano de 2017, no valor de 12.527,57 €, devendo ser anulado nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c) da LGT.
5. Juros indemnizatórios
A Requerente pede que seja condenada a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º n.º 1 da LGT.
O artigo 43º n.º 1 da LGT determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 4 do art. 61.º do CPPT que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.
Nos presentes autos, verifica-se que a ilegalidade da liquidação controvertida é imputável à AT.
Assim, a Requerente tem direito, em conformidade com o disposto nos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, ao reembolso do montante de imposto indevidamente pago e aos juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos arts. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados desde a data do pagamento do imposto, à taxa resultante do n.º 4 do art. 43.º da LGT, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que serão incluídos.
5. Decisão
Em face do exposto, determina-se:
a) Julgar procedente o pedido formulado pela Requerente no presente processo arbitral, quanto à liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2018 ... do ano de 2017, referente à Requerente mulher, e do ato de liquidação de IRS n. 2018 ... do ano de 2017, no valor de 12.527,57 €;
b) Julgar procedente o pedido de condenação da AT a reembolsar à Requerente o valor do imposto indevidamente pago, e ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data em que tal pagamento foi efetuado até à data do integral reembolso do mesmo;
c) Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
6. Valor do processo:
De acordo com o disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se o valor da ação em 6.219,34 €.
7. Custas:
Nos termos do artigo 22º, n.º 4, do RJAT, e da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 612,00 €, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 22º n.º 4 do RJAT.
Notifique.
Lisboa, 13 de dezembro de 2019.
Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, por mim revisto.
A Juiz-Árbitro
(Suzana Fernandes da Costa)