DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Marisa Almeida Araújo, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 5 de julho de 2019, decide:
I. Relatório
A A... – Lda., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa, (adiante apenas “Requerente”) veio, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante apenas designado por RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”).
A Requerente pretende que o Tribunal declare a anulabilidade das liquidações adicionais de IVA dos períodos de 201703T, 201709T e 201806T, com a consequente consideração do crédito de imposto no valor de € 33.101,40 e, em consequência ser devolvido o valor de IVA e juros compensatórios pagos no valor total de € 6.348,40 referente ao período de 201709T, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.
A Requente alega que é uma sociedade que tem por objecto o comércio de outros veículos automóveis e o comércio a retalho de artigos de desporto, campismo e lazer tendo em 09/08/2018 apresentado um pedido de reembolso de IVA no valor de € 33.947,64.
A Requerente foi objeto de inspecção tributária e foi emitido o Relatório Final da Inspecção tendo-se concluído pela falta de liquidação de IVA no montante de € 36.110,00 e IVA deduzido indevidamente no montante de € 2.974,79”, totalizando uma correcção de imposto no montante de € 39.084,79.
Quanto à alegada falta de liquidação de IVA as facturas em causa são: factura n.º 2018/1 de 03/06/2018, no valor de € 125.000,00, referente a uma viatura ligeira de passageiros, ... usada, com matrícula ... e, factura n.º 2017/1 de 07/07/2017, no valor de € 32.000,00 referente à venda de uma embarcação de recreio ..., registada na Capitani Marítima de ... sob o n.º..., com 2 motores fixos marca ... com os n.os de série ... e ... .
A Requerente não liquidou IVA por referência a tais facturas já que, quanto à factura n.º 2018/1, a mesma refere “isento artigo 9.º do CIVA (ou similar), isento de IVA ao abrigo do artigo 9.º do CIVA” e quanto à factura n.º 2017/1 consta “isento artigo 9.º do CIVA (ou similar), isento de IVA ao abrigo do artigo 9.º do CIVA – bens em segunda mão”. Ao contrário, a AT considerou que sobre as duas transmissões deveria ter sido aplicado IVA à taxa normal de 23%.
Quanto ao alegado IVA indevidamente deduzido a AT analisou as facturas que deram origem às deduções: factura n.º FT 116/734, de 31/12/2017 no valor de € 11.737,07 referente à reparação (mão de obra e material) de uma embarcação; factura n.º 2/91 de 18/06/2018 no valor de € 4.171,55 relativa a aquisição de equipamento ... .
A AT conclui que não foi identificado qual o bem onde era efectuada a reparação (na factura n.º FT 116/734) e, quanto à factura n.º 2/91 não foi identificado o bem onde o equipamento adquirido foi utilizado. Concluindo pela desconsideração do valor de € 2.74,74 relativo ao IVA deduzido.
A Requerente não concorda com tal conclusão alegando que: quanto à venda do automóvel, apesar da menção que consta da factura referida não estar correcta, foi aplicado o regime regra dos revendedores de sujeição de IVA nas operações relativas à margem bruta, não havendo obrigação de liquidar IVA já que a margem da operação foi negativa. É aplicável o Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, Objectos de Arte, de Colecção e Antiguidades (RETBSM), na medida em que a Requerente tem como uma das suas atividades principais a venda de veículos usados (CAE principal, com o n.º 45190) e, ainda que incorrecta a menção constante da factura, estão verificados os pressupostos de aplicação do regime.
Quanto à venda da embarcação, a Requerente conclui que a venda é isenta de IVA, havendo, também neste caso uma menção incompleta na factura pelo que, sempre teria de se entender como opção pela tributação através do regime da margem. Mas ainda que assim não fosse deveria ter sido considerado a opção que foi declarada pela Requerente em sede de inspecção e, nesse caso, a margem bruta foi de € 10.000,00 e o IVA devido de € 2.300,00 pela aplicação do RETBSM.
Quanto à dedução do IVA a Requerente entende que dos inventários apenas consta um barco e uma viatura ... pelo que é inequívoco a que bens se referem.
Foi instaurado processo de execução fiscal, com os n.os ...2019... e ...2019... nos valores de € 6.066,55 e € 281,85 pagos pela Requerente a 03/04/2019.
Em 23 de abril de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, em 29 de abril de 2019. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral Singular, aqui signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes, notificadas dessa designação em 14 de junho de 2019, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
O Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 5 de julho de 2019.
Em 19 de setembro de 2019, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por excepção e por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição do pedido, e juntou o processo administrativo.
A Requerida defende-se por excepção invocando a incompetência material do tribunal já que no processo foi sindicado o acto de deferimento parcial de reembolso solicitado pela Requerente, e não pretensos actos de liquidação adicional de IVA. Não se subsumindo os actos de indeferimento de pedidos de reembolso na definição de actos de liquidação de imposto.
Por impugnação a AT alega que, para efeitos de aplicação do CIVA ou Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, Objetos de Arte, de Coleção e Antiguidades (doravante somente RETBSM), há que distinguir duas situações, i.e., a. A venda de bens usados pelas empresas, pelo facto de, normalmente, os mesmos já não cumprirem o propósito para que foram adquiridos, e b. A venda de bens usados por sujeitos passivos que fazem desse tipo de vendas a sua actividade.
No (a) primeiro caso, aplica-se o regime normal do CIVA, com as contingências que decorrem do próprio Código e de doutrina sobre o assunto e, no (b) segundo caso, aplica-se o denominado RETBSM, o qual foi aprovado pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 199/96, de 18 de Outubro.
Ou seja, repristinando e concretizando, no (a) primeiro caso, as transmissões de bens das empresas referem-se a bens do imobilizado e não de inventários (antes apelidado de existências ou mercadorias) e, no (b) segundo caso, apenas a inventários. De acordo com a informação constante no cadastro da AT e conforme vem referido pelo Requerente, “…A empresa tem a atividade de Compra, Venda e Aluguer de Veículos automóveis e Embarcações de Recreio…”. No período objeto de análise o sujeito passivo adquiriu, para venda, uma viatura ligeira de passageiros e uma embarcação de recreio, relativamente às quais não deduziu IVA, pelo facto de nas faturas de compra constar a menção “Isento art.º 9.º do (CIVA) ou similar”. O que significa que a Requerente sendo um sujeito passivo que, no âmbito da sua actividade, compra, afecta às necessidades da sua empresa ou importa, para revenda, bens em segunda mão (sujeito passivo revendedor), deverá nas posteriores transmissões aplicar o RETBSM, caso as respetivas aquisições reúnam as condições do art.º 3.º daquele Regime (podendo, contudo, optar, bem a bem, pela aplicação do regime geral do imposto, nos termos do n.º 1 do art.º 7.º do RETBSM). O que, segundo a Requerida, não sucedeu.
No que concerne ao IVA indevidamente deduzido, a Requerida conclui que da análise efetuada às facturas mencionadas, verificou-se que não foi identificado qual o bem onde: a. Foi efetuada a reparação, cuja discriminação dos trabalhos e material utilizado, consta da Fatura nº FT 116/734 (pt.1), b. Foi utilizado o equipamento adquirido através da Fatura nº 2/91 (pt.2), nem tão pouco a que tipo de equipamento a mesma se refere.
Não identificando qual bem onde os serviços foram prestados nem o material adquirido foi utilizado, não é passível de confirmação se a Requerente está a adquirir bens e serviços para serem utilizados no exercício da sua actividade, ou se fazem parte do seu activo fixo tangível ou de bens do inventário e, se estão ou não excluídos do direito à dedução, nos termos do art.º 21.º do CIVA.
Pugnando, assim a Requerida pela improcedência do pedido arbitral.
Depois de notificada para o efeito por despacho de 19 de setembro de 2019, a Requerente respondeu à matéria de excepção por requerimento de 01/10/2019 e na mesma data juntou documentos aos autos (referido no pedido de pronúncia arbitral mas que a junção foi omitida).
Quanto à matéria de execpção a Requerente invoca que foram inequivocamente praticados actos de liquidação dos quais resulta um reembolso parcial mas também uma liquidação adicional de IVA que a Inspecção Tributária considerou ser de liquidar. Tendo, aliás, a própria AT indicado na notificação dos actos tratarem-se de liquidações de IVA.
A 21/10/2019 foi dispensada a reunião a que alude o art. 18.º do RJAT e foi concedido o prazo de 15 dias para alegações. A Requerente e Requerida não apresentaram alegações.
Por despacho de 4 de dezembro de 2019 foi designado o dia 5 de janeiro de 2019 para a prolação da decisão final.
II. Saneamento
a) Excepção da incompetência do Tribunal em razão da matéria
Inova a AT a incompetência material do tribunal arbitral para se pronunciar quanto ao pedido formulado considerando que não estamos, no que diz respeito ao pedido da Requerente em sede arbitral, face a um acto tributário de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta susceptível de ser apreciado por esta jurisdição arbitral. A AT considera que a Requerente não entregou quaisquer quantias nos cofres do Estado, pois não foi notificada de actos de liquidação, expressando valores em dívida. Foi, isso sim, segundo a Requerida, notificada de deferimentos parciais de reembolsos, com os quais não se conforma, e, dada a manifesta inconformidade, peticiona, nesta sede, o reembolso das quantias que lhe foram negadas pela Autoridade Tributária.
Interpretação que a Requerente expressamente se opõe considerando que é inequívoco da análise das liquidações adicionais a própria AT emitiu as liquidações adicionais, denominadas “demonstração de liquidação de IVA” com um “número de liquidação” e uma “data de liquidação”. Acrescentado que, mesmo que assim não se entendesse nunca o contribuinte poderia ser prejudicado no exercício dos seus direitos quando foi, segundo a Requerente, induzido em erro pela AT que conduziu a Requerente à utilização de um meio processual adequado à respectiva impugnação arbitral.
Cumpre apreciar,
Nos termos do previsto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT:
Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
“1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais;”
Por sua vez, segundo o artigo 2.º alínea a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, pela qual a Administração Tributária se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD, excluem-se expressamente do âmbito de vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais, as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário”.
Desta forma, concluímos que a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD se limita à declaração de ilegalidade de actos dos tipos referidos no artigo 2.º do RJAT, estando-se, assim, perante um mero contencioso de anulação de actos.
Por outro lado, seguindo o comentário ao RJAT, do Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, entende-se que a competência dos tribunais arbitrais se restringe “à atividade conexionada com atos de liquidação de tributos, ficando fora da sua competência a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação do ato de liquidação, a que se refere a alínea p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT” (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p. 105).
Importa averiguar os actos sub judice:
De facto o pedido da Requerente redunda na apreciação da legalidade de actos de reembolso, que são independentes dos actos de liquidação. É de facto a própria Requerente que configura o peticionado na esteira de um procedimento interno de inspecção instaurado no seguimento de um pedido de reembolso apresentado nos termos do artigo 22.º do CIVA, tendente à análise do pedido de reembolso do crédito de IVA.
Em causa nos presentes autos foi configurada uma pretensão pela Requerente relativamente a um acto de indeferimento parcial de um pedido de reembolso que não traduz um acto tributário de liquidação, independentemente do nomen juris.
Neste âmbito acompanhamos a posição que resulta da decisão do CAAD no âmbito do processo n.º 48/2015-T (in www.caad.org.pt) no sentido que, “segundo alguma doutrina, o conceito de reembolso de IVA utilizado para os efeitos dos números 4 e seguintes do artigo 22.º do Código de IVA corresponde uma situação em que, do saldo apurado no período, resulta um crédito de IVA a favor do sujeito passivo que será utilizado em períodos seguintes (numa lógica de conta- corrente), a menos que use a faculdade de solicitar o reembolso do mesmo, obviando ao seu reporte e aplicação nos períodos seguintes. De tal modo que “o pedido de reembolso, assim como a sua apreciação pela Autoridade Tributária não constituem factos jurídicos, uma vez que não constituem per si qualquer facto que determine uma alteração jurídica da situação de qualquer uma das partes” (Cfr. AFONSO ARNALDO/TIAGO ALBUQUERQUE DIAS, “Afinal qual o prazo para Deduzir IVA? Regras de Caducidade e (In) segurança Jurídica”, Cadernos IVA 2014, Almedina, p. 33).
“Doutrina esta que acompanha a jurisprudência do STA, consignada no Acórdão de 12/7/2007, processo n.º 0303/07, onde se pode ler, entre o mais, que apenas “os actos de liquidação, em sentido estrito”, provocam “uma modificação na situação tributária do contribuinte, definindo a existência de uma obrigação (que através desse acto se torna certa, líquida e exigível, inclusivamente por via coerciva no caso de não cumprimento voluntário)”, o que não é o caso dos actos que recusam o reembolso de IVA, pois deles não resulta para os contribuintes qualquer obrigação que não tivessem anteriormente.” No mesmo sentido, cfr., entre outros, o Acórdão Arbitral, de 4 de Abril de 2014, processo n.º 238/2013-T, onde se pode ler que no que concerne ao pedido de reembolso, não se prevê expressamente a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciação da legalidade de actos de indeferimento de pedidos de reembolso de quantias pagas, em cumprimento de anteriores actos de liquidação”.
Quanto ao mais, de facto, pode aceitar-se que a Requerida falhou na forma como notificou a Requerente – como aquela confessa aliás – mas também acompanhamos a posição que a consequência de eventual falha quanto à designação do acto e direitos de defesa, não pode ter como consequência “atribuir” competência material ao tribunal quando, de facto, não a tem.
A responsabilidade da AT – caso haja – pela “errada designação do acto” que é, de facto, de indeferimento de reembolso, não tem como consequência que o “transformação” do mesmo num acto de liquidação nem, muito menos, legitimar que o Tribunal arbitral conheça de matéria que lhe não pertence.
Nestes termos, decide-se que assiste razão à Requerida quanto à incompetência absoluta deste Tribunal para conhecer da matéria a que se reporta, nos presentes autos, o segundo pedido da Requerente, se julga procedente a excepção dilatória por aquela alegada.
Não obstante, não podemos olvidar, que é a AT – considerando a designação errada que dá aos actos aqui em apreço – que conduz a Requerente a dar entrada do pedido de pronúncia arbitral pelo que, quanto a isto, entendemos que a AT é a responsável pelas custas do processo uma vez que dá causa aos presentes autos considerando o disposto no art. 527.º do CPC, no seu n.º 1, afastando-se o entendimento do n.º 2, nos termos referidos, ainda que não seja a parte vencida.
Fica, assim, prejudicada a apreciação dos demais pressupostos processuais e do mérito da causa.
III. Decisão
Termos em que se decide,
- Julgar procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, para conhecer do pedido, absolvendo-se a Requerida da instância.
- Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
Valor do processo
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.º - A, n.º 1 do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 39.345,37 Euros.
Custas
Custas a suportar pela Requerida, no montante de 1.836,00 Euros, cfr. artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de dezembro 2019
O Tribunal Arbitral,
Marisa Almeida Araújo