Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 275/2019-T
Data da decisão: 2019-12-18  IVA  
Valor do pedido: € 36.547,84
Tema: IVA – Vícios do procedimento inspetivo; direito à dedução.
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

 

A Árbitro Filipa Barros (árbitro singular), designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído a 27 de junho de 2019, acorda no seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            Em 13 de março de 2019, A..., S.A., NIF ..., com sede na Rua ..., ...-..., ..., doravante designada por Requerente, solicitou a constituição de tribunal arbitral e procedeu a um pedido de pronúncia arbitral, nos termos das alíneas a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), com vista à declaração de ilegalidade dos atos tributários de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) respeitantes ao exercício de 2016, sob os n.ºs 2018..., 2018..., 2018... e 2018..., nos montantes, respectivamente, de € 5.630,91, € 14.470,15, € 12.008,32 e € 690,00, totalizando € 32.799,38, com data limite de pagamento de 16 de Janeiro de 2019, bem como das correspetivas liquidações de juros de mora com os n.ºs 2018..., 2018..., 2018... e 2018..., nos montantes, respectivamente, de € 743,47, € 1.668,17, € 1.280,64 e € 56,18, totalizando € 3.748,46, igualmente com data limite de pagamento de 16 de Janeiro de 2019 (cfr. documento n.º 1 junto em anexo ao Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA)), totalizando o valor a pagar de € 36.547,84.

2.            Verificada a regularidade formal do pedido apresentado, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT e não tendo a Requerente procedido à nomeação de árbitro, foi designada pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, a signatária, que aceitou o cargo no prazo legalmente estipulado.

3.            O presente Tribunal foi constituído no dia 27 de junho de 2019, na sede do CAAD, sita na Av. Duque de Loulé, n.º 72-A, em Lisboa, conforme comunicação do tribunal arbitral que se encontra junta aos presentes autos.

4.            A Requerida, depois de notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, no dia 16 de setembro de 2019.

5.            No dia 20 de setembro de 2019, por despacho, o Tribunal notificou a Requerente para informar nos autos se mantinha interesse na realização da prova testemunhal que indicou, devendo, em caso afirmativo, indicar quais os pontos de facto de entre os alegados, sobre os quais pretende a prestação dos depoimentos.

6.            No dia 01 de outubro de 2019, a Requerente vem informar que face à resposta da Requerida se lhe afigura desnecessária a inquirição de testemunhas, não se opondo à dispensa da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

7.            Por despacho de 03 de outubro de 2019, o Tribunal decidiu, em aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, e da simplificação (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º desse Regime e determinar o prosseguimento do processo para alegações escritas de facto e de direito, a apresentar pelas partes no prazo sucessivo de vinte dias.

8.            Adicionalmente, o Tribunal indicou o dia 20 de dezembro de 2019 como data previsível para a prolação da decisão arbitral, devendo até essa data a Requerente pagar a taxa de arbitragem subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

9.            Nesta sequência, no dia 29 de outubro de 2019, a Requerente apresentou alegações escritas de facto e de direito.

10.          Seguidamente, no dia 14 de novembro de 2019 a Requerida apresentou as suas contra-alegações, remetendo e dando por integralmente reproduzido os argumentos aduzidos na sua resposta.

 

 

II. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, no seguinte:

 

1.            A Requerente sustenta o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação adicional de IVA, referentes ao ano de 2016, no montante de € 32.799,38 (trinta e dois mil setecentos e noventa e nove euros e trinta e oito cêntimos) e respetivos juros de mora totalizando € 3.748,46 (três mil setecentos e quarenta e oito euros e quarenta e seis cêntimos), no seguinte:

 

a)            Invoca a Requerente, como questão prévia, a ILEGALIDADE DO PROCEDIMENTO DE INSPEÇÃO, por entender que: «O âmbito da acção inspectiva subjacente às liquidações em crise (IVA), como está documentalmente provado, circunscreve-se ao IRC. Por essa razão, estava legalmente vedado aos Serviços de Inspecção Tributária correcções em matéria de IVA.» A Requerente entende que não foi levado ao seu conhecimento qualquer despacho nesse sentido, nem portanto é possível aferir a respetiva fundamentação, tendo sido violado o disposto no artigo 15.º do RCPIT. A este respeito, entende que a fundamentação legalmente exigida deverá explicar qual a razão pela qual a entidade competente optou por determinar a extensão do procedimento inspetivo, o que não se verificou no caso em apreço. A Requerente alega não ter sido notificada de qualquer despacho de extensão do procedimento pela Requerida, nem, portanto, de qualquer fundamentação, tendo a AT violado o disposto no artigo 15.º do RCPIT, e preterido uma formalidade legal que não pode deixar de ter como consequência a anulação dos atos tributários subsequentes em matéria de IVA.

b)           Defende ainda a Requerente que o Relatório de Inspeção Tributária não contém a fundamentação legalmente exigida, fazendo assentar as correções em sede de IVA em critérios não previstos na Lei, concretamente «A tese do interesse alheio invocada pela AT para suprimir o direito à dedução é acima de tudo ilegal, visto que não tem qualquer correspondência nas normas do Código do IVA que consagram o direito à dedução.» A este respeito recorda que «as apreciações manifestadas pelos Serviços de Inspecção a respeito de interesses paralelos ou sobrepostos aos do sujeito passivo, sem todavia nunca alegar, e muito menos demonstrar, a ausência de interesse da Requerente, nem sequer colocar em causa o nexo directo com a sua actividade – toda ela tributável em IVA, não podem sobrepor-se à lei, a que os contribuintes devem obediência tal como a Administração fiscal, que está subordinada ao princípio da legalidade.»

c)            Ora, segundo a Requerente qualquer ato de liquidação deve conter a fundamentação legal e constitucionalmente exigida de acordo com o disposto no artigo 268.º n.º 3 da CRP e artigo 77.º n.º 1 da LGT. No entanto, no caso concreto, a AT alheou-se dos citados imperativos ao fundamentar os seus atos de uma forma incongruente, usando critérios obscuros – o interesse de terceiros –  sendo absolutamente contraditória com os factos em que se baseia e não cuidando de clarificar a racionalidade da decisão, o que, segundo a Requerente tem sido entendido como um vício de fundamentação.

d)           Para este efeito, entende que a AT não explica por que razão reputa de “indevida” a dedução do IVA que o fornecedor da Requerente havia declarado e pago a favor do Estado, exigindo-o em duplicado à Requerente ao suprimir o correspetivo direito à dedução na esfera desta. A tese que a AT defende da imputação de despesas a hipotéticos interesses de terceiros, não está prevista na lei, nem a AT procede ao respetivo enquadramento.

e)           Porquanto, conclui a Requerente que a simples remissão para fundamentos que não atestam com exatidão – antes contradizem em toda a linha – as conclusões da inspeção tributária, o ato não se encontra fundamentado, conduzindo à sua anulabilidade por vício de forma com todas as consequências legais.

f)            A Requerente nota ainda que apesar de lhe ter sido dada oportunidade para exercer o direito de audições prévia, viria a ser notificada do Relatório Final de Inspeção elaborado nos precisos termos do projeto de correções, desconsiderando por completo os argumentos apresentados e os documentos carreados para o procedimento, o que equivale ao não exercício do direito de participação na formação da decisão administrativa.

g)            Relativamente à questão de fundo, no que toca, por um lado, à negação do direito à dedução do IVA incorrido em despesas faturadas à Requerente pela aquisição de serviços jurídicos e de consultoria e, por outro, do IVA suportado em comissões com uma conta Escrow, vem a Requerente contestar as respetivas liquidações de imposto e de juros de mora com base no seguinte:

h)           As despesas em referência estão relacionadas com os serviços prestados pelas seguintes entidades: i) B...; ii) C...; iii) D...; e iv) E..., tendo a AT considerado que o IVA não era dedutível, uma vez que, as despesas em causa teriam interesse exclusivo para os acionistas, ou seja, os vendedores e/ou compradoras, excluindo o interesse da Requerente, por serem aqueles os principais interessados nos resultados do exame à empresa.   

i)             Ora, a Requerente não vislumbra como pode o seu interesse na aquisição dos serviços supra mencionados ser desviado para a esfera dos acionistas, com a consequente negação do direito à dedução do IVA.

j)             Começa por lembrar que os trabalhos foram adquiridos em data muito anterior à assinatura do MOU (memorandum of understanding) com o adquirente «por reputar de essencial ter um conhecimento apurado da sua situação legal, operacional e financeira, tendo em vista o afinamento da sua gestão com a consequente incrementação da sua eficiência – algo que, de resto, sempre se revelou uma decisão acertada, tendo em conta o já aludido crescimento que se registou em 2016, 2017 e 2018. »

k)            Em segundo lugar, aduz que para além da necessidade geral de conhecimento da empresa por razões de eficiência, impunha-se a realização destes trabalhos para conhecer o “estado da empresa” aquando do processo de saída de dois administradores (um dos quais era CFO da empresa), com diferente estratégia e visão para a sociedade, mudança que originou acesas discussões e ações de contencioso, importando assim averiguar, o que estava bem e mal e, por outro lado, partir para uma etapa de maior crescimento, como veio efetivamente a ocorrer.

l)             Com efeito, a Requerente através da sua presente administração, considerou que a contratação da B... tinha um papel estratégico, podendo ajudar a refletir e redimensionar a empresa, averiguar da necessidade de encontrar capital e/ou parceiro e, finalmente, a redesenhar o seu “Business Plan”.

m)          Refere que na sequência do novo “Business Plan” concebido pela B... foi possível assegurar um financiamento obtido junto do Banco F..., o que permitiu a valorização da Requerente, e bem assim a aquisição e preparação de novas instalações;

n)           No que respeita à comissão que lhe foi debitada aquando da entrado do fundo ... no capital da Requerente refere que este pagamento «acabou por remunerar o trabalho realizado em prol da empresa aquando da entrada desta última; o que, como se vê pelos resultados subsequentes, veio a produzir bons rendimentos que têm originado mais tributação.»

o)           Quanto às despesas suportadas com comissões bancárias numa “Escrow account”, defende a Requerente, que mais uma vez, a AT confunde o interesse dos acionistas com o interesse da sociedade, ainda que muitas vezes estes sejam perfeitamente coincidentes. Porém, precavendo a situação de interesses divergentes, esclarece que foi constituída uma escrow de acções, permanente, com o objetivo de salvaguardar e evitar bloqueios resultantes de eventuais conflitos entre acionistas, que poderiam paralisar a gestão da Requerente, refletindo-se de imediato na sua saúde financeira e nos seus resultados.

p)           A Requerente sublinha a importância da celebração do contrato de “Escrow” tendo em vista o contexto de entrada no seu capital de um investidor institucional – Fundo G..., H...– e a transição de um modelo de gestão pessoal para um modelo de gestão institucional, onde se utilizam outro tipo de mecanismos garantísticos, designadamente para prevenção dos interesses da sociedade.

q)           Finalmente, e tendo por base a jurisprudência do TJUE, a Requerente defende que a supressão do direito à dedução do IVA «com base numa pretensa «dedução indevida de IVA» (cit.) por suposta imputação de interesses nas despesas oneradas com imposto, alegada em abstracto sem a mínima concretização (cf. Relatório de Inspecção), ademais em circunstância em que está assegurada e nem é questionada a entrega do imposto pelo fornecedor, os actos de liquidação ora contestados violaram as normas reguladoras do exercício do direito à dedução consagradas na Directiva 2006/112/CE, tal como vêm sendo interpretadas pela jurisprudência constante e reiterada do TJUE.» 

r)            Conclui, pela ilegalidade das liquidações em sede de IVA, de 2016 sub judice, reiterando que a atuação da AT é contrária ao disposto no Código do IVA e na Diretiva IVA, resultando numa supressão ilegítima do direito à dedução que ofende o princípio da neutralidade na base do imposto.

s)            Sem prejuízo de se afigurar claro que a atuação da AT é incompatível com o Código do IVA e com o direito da União Europeia, no que respeita à negação do direito à dedução do IVA para os fins da atividade tributável da Requerente, caso ainda assim subsistam dúvidas, requer o reenvio prejudicial ao TJUE.     

 

III. Na sua Resposta a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:

 

 

a)            Rebate a Requerida os argumentos da Requerente, começando por se pronunciar sobre a alegada ILEGALIDADE DO PROCEDIMENTO DE INSPECÃO, no que respeita à violação do disposto no na alínea b), do n.º 1 do artigo 14.º e artigo 15.º do RCPIT. Neste domínio, esclarece a Requerida que todas as ordens de serviço já com inclusão do âmbito em IVA foram assinadas por responsável da Requerente (administrador), e que a alteração do âmbito da inspeção de forma a incluir IVA, foi alvo de despacho superior não exigindo a lei que seja dado conhecimento ao sujeito passivo das razões da alteração do âmbito do procedimento. Por conseguinte, sendo o sujeito passivo notificado como foi, da alteração da Ordem de Serviço, autorizando a fiscalização de novos tributos, encontram-se assegurados os direitos e garantias do sujeito passivo.

b)           Acresce salientar que, durante o procedimento inspetivo, a Requerente já tinha pago o imposto adicional decorrente de outras irregularidades em sede de IVA e de outros impostos (I.Selo e RFIRS), sem contestar o âmbito da ação inspetiva, só vindo a alegar a suposta falta de notificação da fundamentação da alteração do âmbito das Ordens de Serviços após ter efetuado o pagamentos dos impostos sem alegar qualquer ilegalidade.

c)            E continua aludindo que «A Requerente remete para o n.º 1 do artigo 15.ºdo RCPITA para exigir que lhe fosse notificada fundamentação (...) Ora, o n.º 1 do artigo 15.º do RCPITA não exige que seja dado conhecimento à Requerente das razões da alteração do âmbito do procedimento de inspeção para um tributo adicional não previsto na Ordem de Serviço inicial. (...) o sujeito passivo não tem de, nem deverá previamente, ser informado dos fundamentos da inspeção, da mesma forma que não o é aquando da carta-aviso ou da Ordem de Serviço inicial, porquanto poderia claudicar a investigação dos Serviços de Inspeção Tributária.»

d)           Porquanto é falso que a Requerente não foi notificada do despacho que autorizou a fiscalização de novos tributos, tanto que a Ordem de Serviço foi assinada por Responsável da Requerente, havendo evidencia nos autos de que tomou conhecimento da ampliação do âmbito da inspeção a outros tributos onde se incluía o IVA.

e)           A este respeito, alega a Requerida que as decisões arbitrais citadas pela Requerente bem como a decisão do STA não sustentam a tese da preterição de formalidade essencial por falta de fundamentação do despacho de extensão, prendendo-se antes com a falta de notificação do despacho, situação que não ocorreu no caso dos autos.      

f)            Não colhe igualmente a alegação de preterição do direito de audição por falta de pronúncia sobre os argumentos apresentados pela Requerente e por desconsideração completa dos mesmos. Com efeito, os SIT ouviram a Requerente, analisaram os elementos de prova trazidos aos autos em sede de audição, foram realizadas várias reuniões com a Requerente e concedido um prazo máximo de resposta para o direito de audição, no entanto, por discordarem com a tese da Requerente, mantiveram a posição inicialmente transmitida no Projeto de Relatório.

g)            Pronunciando-se sobre o vício de ausência de fundamentação formal legalmente exigida, entende a Requerida que a tese do “interesse alheio para suprimir o direito à dedução” invocada no RIT e que a Requerente refuta, foi devidamente comprovada, sendo por demais evidente que os serviços contratados e as comissões pagas apenas ocorreram no âmbito de operações de partes de capital nas quais a Requerente nunca participou como  parte.

h)           Sustenta a Requerida que as correções às deduções indevidas foram devidamente fundamentadas no RIT, tendo sido invocado o n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, uma vez que segundo defende, os documentos ainda que emitidos à ordem da Requerente respeitavam a despesas cuja natureza não se relaciona com a atividade da Requerente, não se consubstanciando em operações que conferem direito à dedução.

i)             Recorda que ao contrario da visão redutora da Requerente, «o mecanismo do IVA não se limita a controlar “IVA não entregue por sujeitos passivos faltosos” e muitos casos há em que o simples facto do IVA liquidado por fornecedor/prestador ser entregue ao Estado não significa o imediato direito à dedução na esfera do adquirente (p.ex.: isento artigo 9.o do Código do IVA).» 

j)             Neste contexto, e que toca à questão de fundo entende a Requerida que os serviços debitados pela B..., C..., D... e E... e as comissões da “escrow account” foram contratados no âmbito de um processo de sucessão de operações de compra e venda de participações sociais, nas quais os imediatos interessados em tais serviços foram precisamente as partes compradoras e vendedoras das ações e, em nenhum momento, a Requerente. Assim, entende a Requerida que o «que está em causa é o âmbito em que foram contratados tais serviços às entidades acima listadas, não se percebendo que se queira justificar a aceitação dos gastos fiscais simplesmente porque foram "reconhecidos, tratados e registados pela Requerente”. »

k)            Relativamente à entidade B... refere a Requerida que o objeto da sua atividade é a «prestação de serviços em processos de compra venda de empresas, fusões, management buy-outs, operações de capitalização e de obtenção de recursos financeiros» tendo o seu trabalho consistido na realização de um relatório «datado de dezembro de 2015 (ver Anexo 8 do RIT), separado em 3 capítulos principais, do qual constam a estrutura com os 4 acionistas e um plano de crescimento e expansão, no qual se prevê a reestruturação interna com a concentração da administração nos 2 acionistas J... e K..., para além de um plano de negócio, onde se perspetivam demonstrações financeiras previsionais (2016-2020). »

l)             Assim, a Requerida defende que os serviços efetivamente prestados pela B... são claramente direcionados para a avaliação da Requerente, em paralelo com o trabalho da C..., os quais, em conjunto, permitiram aos acionistas vendedores (J... e K...) e ao comprador E... alcançarem um justo valor para a compra e venda das participações sociais da Requerente.

m)          Na mesma linha de raciocínio refere que os serviços de due diligence da C... nunca poderiam  ser imputados à Requerente, uma vez que, se consubstanciaram na validação dos dados financeiros «de forma a auxiliar na formação de preço na operação de compra e venda das ações da Requerente, negócio este a que o sujeito passivo é completamente alheio.», acrescentando, a este respeito, que pouco importaria se os serviços foram ou não contratados e pagos pela Requerente.

n)           Em relação ao serviços prestados pela Sociedade de Advogados D... entende a Requerida que a due diligence legal foi realizada por ocasião da saída dos administradores L... e M..., aos quais J... e K... viriam a comprar as ações, e ainda na perspetiva da entrada de um parceiro estratégico, sendo que esta operação, ao contrário do alegado pela Requerente, já estaria delineada, preconizando-se a subsequente venda de ações de J... e K... à E..., com grandes mais-valias para aqueles dois primeiros acionistas. Apoiada no texto emitido pela Sociedade de Advogados D..., a Requerida conclui que a venda da Requerente era um plano há muito tempo engendrado, para gerar avultadas mais-valias na esfera de J... e K... sendo estes juntamente com a entidade compradora, os verdadeiros interessados na operação, e o único motivo pelo qual foi realizada a auditoria documental, bem como a elaboração dos contratos de compra e venda de ações. Acresce que a fatura relativa aos serviços prestados foi emitida após a concretização da venda de ações pelo que os contratos de compra e venda elaborados por esta sociedade de advogados foram os que suportaram tais operações de transmissão de partes sociais.

o)           Relativamente à entidade E... refere a Requerida que esta foi adquirente das partes sociais da Requerente aos acionistas J... e K..., «tendo debitado à Requerente uma "comissão de negociação no âmbito do investimento do Fundo G..." pelo valor de 52.742,48 euros (isento de IVA), em fatura emitida no dia 01 de abril de 2016, passadas 2 semanas da concretização das operações de compra e venda das partes sociais.», sendo certo que a Requerente «não viu um cêntimo do "investimento do Fundo G...".»

p)           Neste âmbito a Requerida contesta a tese da Requerente segundo a qual tal factura remuneraria os serviços prestados por esta entidade no apoio estratégico desenvolvido para captação de investimentos, quer através de dívida quer através de investimento acionista. Assim, refere que, por um lado, não houve aumento de capital nem empréstimos concedidos à Requerente pela E..., por outro  todos os meios monetários da E... (Fundo G...) tiveram como beneficiários os acionistas vendedores das ações J... e K... e não a Requerente.»

q)           No que respeita às despesas suportadas com comissões bancárias “escrow account”, e apoiando-se no contrato celebrado entre as partes entende a Requerida, ser evidente que «a finalidade primária da constituição desta "escrow account no seu ponto i): "execução do direito de aquisição do Fundo como meio alternativo de cumprimento da obrigação de indemnizacão por Dano, tal como previsto nas cláusulas 6.4. Ora, esta "indemnização por Dano" corresponde à obrigação dos acionistas vendedores (J... e K...) serem responsáveis pelo igual montante dos danos incorridos pela Requerente, "por forma a que o segundo contratante (Fundo) fique na mesma posição em que estaria se o Dano não tivesse ocorrido"».

r)            Concluindo que o contrato de depósito Escrow pretende a salvaguarda dos interesses dos acionistas J..., K... e E... (fundo), no âmbito da operação de compra e venda de ações à qual a Requerente foi completamente alheia.

s)            A Requerida conclui pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, defendendo que a liquidação adicional de IVA não viola as normas de direito comunitário, pois, neste caso, os serviços prestados pelas referidas entidades não foram utilizados para os fins das operações tributáveis da Requerente

 IV. SANEAMENTO

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e dos artigos 5º e 6º, todos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, encontram-se regularmente representadas e o processo não enferma de nulidades.

 

V. MATÉRIA DE FACTO

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).

Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de pronúncia arbitral e alegações da Requerente e Resposta da Requerida), e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

a.            Factos dados como provados

 

Com interesse para a decisão, dão-se por provados os seguintes factos:

 

A.           A Requerente tem por objeto social o fabrico, comércio, importação, exportação, instalação e manutenção de máquinas e equipamentos para a indústria, e de exploração de gabinete de engenharia e de mecânica. 

B.            Em sede de IVA, a Requerente é um sujeito passivo enquadrado no regime normal, com periodicidade mensal praticando exclusivamente operações com direito à dedução (cf. Processo Administrativo (doravante PA));

C.            A Requerente foi sujeita a uma ação inspetiva tributária ao abrigo das ordens de serviço n.ºs OI 2017... (2014), OI 2018 ... (2015) OI 2018... (2016) levada a cabo pelos Serviços de Inspeção Tributária da Requerida (cf. projeto de correções, junto como doc. n.º 2 ao Pedido de Pronúncia Arbitral (doravante PPA)).

D.           A Requerente foi notificada, através do ofício n.º..., de 17 de Novembro de 2017, da visita a curto prazo dos Serviços de Inspeção Tributária, ao abrigo da ordem de serviço OI2017..., com o seguinte “ÂMBITO E EXTENSÃO DA ACÇÃO INSPECTIVA / ANOS / EXERCÍCIOS A INSPECCIONAR”: ) i) “Parcial (alínea b) do art. 14.º do RCPIT)”; ii) “IRC”; iii) “2014” (cf. doc. n.º 3 junto, ao PPA);

E.            A Requerente foi notificada, através do ofício n.º..., de 1 de Março de 2018, da visita a curto prazo dos Serviços de Inspeção Tributária, ao abrigo da ordem de serviço OI 2018..., com o seguinte “ÂMBITO E EXTENSÃO DA ACÇÃO INSPECTIVA / ANOS / EXERCÍCIOS A INSPECCIONAR”: ) i) “Parcial (alínea b) do art. 14.º do RCPIT)”; ii) “IRC”; iii) “2015” (cf. doc. n.º 4 junto ao PPA);

F.            A Requerente foi notificada, através do ofício n.º..., de 20 de Julho de 2018, e Março de 2018, da visita a curto prazo dos Serviços de Inspeção Tributária, ao abrigo da ordem de serviço OI 2018..., com o seguinte “ÂMBITO E EXTENSÃO DA ACÇÃO INSPECTIVA / ANOS / EXERCÍCIOS A INSPECCIONAR”: ) i) “Parcial (alínea b) do art. 14.º do RCPIT)”; ii) “IRC”; iii) “2016” (cf. doc. n.º 4 cit. junto ao PPA);

G.           Ao abrigo das referidas ordens de serviço, a inspeção de âmbito parcial, abrangia os anos de 2014, 2015 e 2016 e exclusivamente o IRC;

H.           Em 27 de Junho de 2018, a Requerente foi notificada da Ordem de Serviço OI2017..., de alteração do procedimento de inspeção externa, com inclusão do âmbito em IVA, assinada pelo seu   administrador J... (cf. docs. constantes do Anexo A);

I.             Os fundamentos para a ampliação do âmbito das Ordens de Serviço, de forma a incluírem IVA (entre outros tributos), foram alvo de despacho superior, o qual não foi mencionado na respetiva ordem de serviço, constando esse espaço em branco (cf. docs. constantes do Anexo B e doc. n.º 5 junto com o PPA);

J.             A Requerente nunca foi notificada das razões que determinaram a extensão do âmbito do procedimento de inspeção ao IVA (cf. doc. n.º 5 junto com o PPA);

K.            No decurso da ação inspetiva, e de acordo com o respectivo projeto de correções foi imputada à Requerente a dedução indevida de IVA incorrido em serviços adquiridos junto das entidades B..., C..., e E..., assim como as comissões debitadas de uma “escrow account” (cf. projeto de correções, junto como doc. n.º 2 do PPA);

L.            Através dos ofícios n.º..., de 20-07-2018, e n.º..., de 16-10-2018, a Requerente foi notificada de sucessivas prorrogações do prazo de conclusão da inspeção, iniciada ao abrigo das referidas ordens de serviço OI2017..., OI2018... e OI2018... (cf. doc. 6 junto ao PPA).

M.          A Requerente foi notificada do projeto de correções, em sede de IVA, considerando-se na parte mais relevante o seguinte:

«11.3.2. Dedução indevida de imposto — despesas não imputáveis ao sujeito passivo

Nos termos do n.º 1 do artigo 20.° do Código do IVA, só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo. Deste modo, infere-se que o imposto constante de documentos, ainda que emitidos à ordem do sujeito passivo, cuja natureza da despesa não se relacione com a atividade é excluído da dedução, por não se consubstanciar numa operação que confere o direito à dedução.

Conforme descrito no ponto 111.1.1.5, a pág. 28, o sujeito passivo registou vários documentos na sua contabilidade relativos a despesas imputáveis aos seus acionistas, relacionados com a operação de compra e venda de partes de capital com base nos quais procedeu à contabilização indevida de gastos e à também indevida dedução de IVA (ver documentos em Anexo 5):

(...)

Conforme foi comprovado no ponto III 1.1.5, pág. 28 nenhuma das despesas em causa poderá ser imputável ao sujeito passivo A..., na medida em que nem sequer é parte interveniente ou interessada no processo de compra e venda de ações ocorrido entre a E... e os quatro referidos acionistas, sendo eles os verdadeiros interessados nos resultados das prestações de serviço daquelas entidades.

Deste modo, o imposto liquidado nas faturas emitidas pela C..., pela B... e pelas sociedades de advogados D... e N..., não será dedutível na esfera do sujeito passivo A..., uma vez que o imposto deduzido não incidiu “sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo, conforme exige o n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

(...)

«111.3.3. Dedução indevida de imposto - comissões "escrow account"

Nos termos do n.º 1 do artigo 20.o do Código do IVA, só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo. Deste modo, infere-se que o imposto constante de documentos, ainda que emitidos à ordem do sujeito passivo, cuja natureza da despesa não se relacione com a atividade é excluído da dedução, por não se consubstanciar numa operação que confere o direito à dedução.

Conforme descrito no ponto III.1.1.6 a pág. 33, o sujeito passivo registou comissões bancárias decorrentes da constituição e manutenção de “escrow account", com a associação de três contas tituladas pelos acionistas vendedores J... e K... e pela sociedade compradora E... (G... Fundo Capital Risco), conforme print parcial de documento bancário emitido pelo O...:

Descrição                                                                                           Comissão IVA 23%           Total

Conta ... J...

Comissão Semestral Manutenção conta.... 1.000,00                        230,00                 1.230,00

Conta ... K...

Comissão Semestral Manutenção conta ....1.000,00        230,00                   1.230,00

Conta ... G... FUNDO CAPITAL RISCO

Comissão Semestral Manutenção conta ....... 1.00000    230,00                   1.230,00

 

Para além da contabilização de gastos por tais comissões, o sujeito passivo procedeu, ainda, à dedução do IVA liquidado pelo O..., conforme lançamentos contabilísticos abaixo (ver documentos em Anexo 14):

Ora uma vez que a constituição da “escrow account” pretende apenas salvaguardar os riscos e garantias das partes envolvidas no contrato de compra e venda de ações, ao qual a A... é totalmente alheia, não se poderá afirmar que o imposto deduzido “tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos importados ou utilizados pelo sujeito passivo, conforme exige o n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

(...)

Assim, nos termos do artigo 20.° do Código do IVA, importa que o sujeito passivo proceda à anulação da dedução de imposto indevidamente incluída no campo 24 das declarações periódicas de IVA dos seguintes períodos e montantes(...)».

 

N.           No dia 19 de Novembro de 2018, deu entrada nos Serviços de Inspeção Tributária o direito de audição exercido pela Requerente invocando a ilegalidade das correções com base em múltiplos vícios de forma e de violação de lei (cf. Audição sobre o projeto de correções junta ao PPA, como doc. n.º 7);

O.           O prazo inicial para o exercício do direito de audição foi fixado em 15 dias, tendo posteriormente sido alargado para 25 dias, após requerimento da Requerente (cf. PA junto aos autos);

P.            Perante a audição da Requerente a AT no ponto IX.2 “Abordagem à resposta do sujeito passivo” refutou os argumentos apresentados tendo mantido os fundamentos e as correções propostas no projeto de relatório (cf. ponto IX.2, a págs. 142 a 166 do RIT);

Q.           Em relação a serviços prestados pela B..., C..., D... e E..., a AT entendeu que o IVA contido nestas despesas não seria dedutível porque as mesmas teriam interesse exclusivo para os acionistas (os vendedores e/ou compradores), para daí extrair que tais interesses excluiriam o interesse da Requerente (cf. projeto de correções, junto como doc. n.º 2 do PPA);

R.            Todas estas entidades emitiram declarações contextualizando o interesse da Requerente na aquisição dos serviços em causa (cf. Declarações juntas como docs., n.º 8, 9, 10 e 11 em anexo ao PPA).

S.            O prestador de serviços B... produziu um relatório datado de 15 de dezembro de 2015, separado em 3 capítulos principais, do qual constam a estrutura com os quatro acionistas e um plano de crescimento e expansão, no qual se prevê a reestruturação interna com a concentração da administração nos dois acionistas J... e K..., assim como um plano de negócios onde se perspectivam demonstrações financeiras e previsionais (...); (cf. Relatório Final de Inspeção págs. 147, junto com PA);

T.            O prestador de serviços B... afirmou que os serviços prestados à Requerente ao abrigo do contrato celebrado em Outubro de 2015 tiveram como objeto “a assessoria para encontrar opção de apoio financeiro à empresa com vista a suportar o seu plano de expansão, nomeadamente a mudança para novas instalações, com maior capacidade produtiva” que possibilitassem à Requerente “dar respostas à crescente procura do mercado por Maquinaria... . O foco do nosso trabalho foi efetivamente dotar a gestão da empresa de documentação de suporte para a procura de investidores e/ou financiadores para suportar o plano estratégico e de expansão da empresa. No âmbito dos trabalhos encontrava-se a preparação, conjuntamente com a gestão, de um plano de negócios que fosse posteriormente utilizado junto de diversas entidades financiadoras ou investidoras” (cf. doc. n.º 8 junto ao PPA).

U.           O prestador de serviços C... afirmou que “os serviços de due dilligence financeira e fiscal prenderam-se com a validação dos dados financeiros” da Requerente, “tendo estes trabalhos sido efectuados no interesse da própria empresa” e que “foram efectuados a pedido” da Requerente, “tendo os mesmos sido contratados e pagos pela mesma sociedade” (cf. doc. n.º 9 junto ao PPA).

V.           Ao abrigo do contrato de prestação de serviços de assessoria legal celebrado com a Requerente, o prestador de serviços D... afirmou o seguinte: “Ainda que elaborada (a auditoria legal) também sob a perspetiva de valorar aquilo que fosse mais importante na ótica de um eventual parceiro estratégico, razão pela qual se menciona no relatório que o mesmo teve a finalidade de fornecer informação necessária a permitir sustentar uma decisão de adquirir ações representativas do capital social da A..., a abrangência da auditoria e o modo como foram identificadas as diversas questões nela assinalada reveste uma evidente utilidade económica para esta última sociedade, independentemente da entrada, ou não, de algum parceiro estratégico. Com efeito esse trabalho obedeceu ao propósito, que é patente no texto do relatório, de identificar as diversas matérias que exigiam correção e as medidas que deviam ser tomadas pela sociedade de modo a corrigir a deficiências que foram detetadas. Entre elas destacam-se as seguintes: identificação das correções formais do livro de atas (págs. 20), as deficiências das atas da sociedade (págs. 25 e seguintes), riscos para a sociedade decorrentes dos diversos contratos (págs. 37 seguintes), alerta para as limitações relativamente ao uso dos imóveis decorrentes do contrato de arrendamento (págs 40 e seguintes), insuficiência de seguros (págs. 123 e seguintes)”.

W.          Em relação aos serviços adquiridos à E..., esta afirmou que o seu trabalho consistiu na “discussão e revisão do Plano de Negócios da Empresa, assim como da sua estratégia de crescimento futura e que por isso no nosso entender, beneficiou e foi no interesse da empresa. Confirmamos, ainda, que é comum na nossa actividade que estas comissões sejam suportadas pelas Empresas” (cf. doc. n.º 11 junto com PPA).

X.            A assessoria prestada pela B... veio acabar por permitir à gestão da Requerente entrar numa nova fase de desenvolvimento do negócio, tendo também servido, na sequência do plano de negócios preparado para a empresa, para assegurar o financiamento de 1.5. milhões de euros obtido junto do Banco F..., o que foi crítico em finais de 2015 e hoje é reconfirmado pelo próprio banco (cf. doc. n.º 12  junto ao PPA);

Y.            O financiamento obtido junto do F... viria a ser canalizado para a aquisição e preparação de novas instalações consideradas importantes para o exercício da atividade da empresa (cf. Relatório Final de Inspeção junto ao PA);

Z.            No último trimestre de 2015, momento em que a Requerente contratou os serviços dos consultores e da sociedade de advogados, não havia qualquer contrato com a entidade que a veio a adquirir.

AA.        Em 18 de março de 2016 foi celebrado um contrato de depósito escrow entre J... e Mulher, K..., o Fundo G..., H..., a sociedade ora Requerente, e o Banco O... S.A, tendo por objeto o depósito de ações de que cada um dos acionistas  (cf. contrato de depósito “escrow” junto ao PPA como doc. n.º 13);

BB.         Constituem finalidades do contrato referido em AA, entre outras, as seguintes: “Não disposição de ações durante o período de lock up ou em violação do tag alone nos termos previstos no acordo parassocial; A execução do direito de drag along, em caso de oferta de terceiros ou de situação de bloqueio; A execução do direito de aquisição pela Sociedade ou por quem esta indicar tal como previsto na cláusula 5.2.2 do contrato de Administração” (cf.  cláusula 1.3. do contrato de depósito escrow);

CC.         No âmbito da alteração do paradigma de gestão de pendor pessoal para um pendor institucional,  a constituição da conta depósito de “escrow”, visou criar um mecanismo de prevenção de disputas acionistas, e evitar bloqueios estratégicos à atividade da Requerente que pudessem prejudicar o seu crescimento (cf. contrato de “escrow” junto ao PPA como doc. n.º 13);

DD.        Na sequência das conclusões do Relatório Final de Inspeção, a Requerente viria a ser notificada das liquidações de IVA ora contestadas (cf. doc. n.º 1 junto ao PPA);

EE.          Em 16 de Janeiro de 2019, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade das liquidações contestadas (cf. comprovativos juntos como doc. n.º 15 junto ao PPA);

FF.          Os pagamentos a título de IVA totalizaram o valor de €36.547,84 correspondente à soma dos valores das liquidações contestadas  (cf. doc. 1 junto com o PPA).

GG.        No dia 13 de Abril de 2019 a Requerente apresentou pedido de constituição do presente Tribunal Arbitral (cf. requerimento electrónico submetido no CAAD).

 

b.            Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

VI- DO DIREITO

 

 

1. DELIMITAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR

 

Como fundamento do pedido anulatório a Requerente invoca vários vícios de ordem formal e de ordem substantiva.

A título prévio no seu pedido a Requerente invocou a ilegalidade do procedimento inspetivo por ter sido inicialmente circunscrito ao âmbito do IRC, tendo a AT operado a extensão do procedimento de inspeção para incluir o IVA, sem que para tal, o sujeito passivo tenha sido devidamente notificado da extensão através de despacho fundamentado, nos termos do artigo 15.º n.º 1 do RCPIT.

A Requerente alega ainda a preterição do direito de audição prévia e, como vício autónomo, a ausência de fundamentação por falta de base legal.

Além dos suscitados vícios invocados, caberá apreciar o pedido principal da Requerente, relativo à ilegalidade das liquidações de IVA, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito atinentes à negação do direito à dedução do IVA incorrido num conjunto de serviços prestados pelas entidades B..., C..., D... e E..., assim como na constituição de uma conta “Escrow” para depósito de ações, com a consequente inaplicabilidade do critério de exclusão daquele direito proposto pela AT.

 

 

1.1          DA ILEGALIDADE DA INSPEÇÃO TRIBUTÁRIA

A título prévio, a Requerente vem invocar, nos termos do artigo 15.º n.º 1 do RCPIT, que o  âmbito da ação inspetiva subjacente às liquidações em crise foi circunscrito ao IRC e que por essa razão estava legalmente vedado aos SIT efetuar correções em matéria de IVA.

A Requerente invoca ainda que o artigo 15.º, n.º 1, do RCPIT estabelece que «os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada». Ora, não tendo a Requerente sido notificada de qualquer despacho de extensão de do procedimento, nem de qualquer tipo de fundamentação para essa extensão, a AT agiu completamente à margem da Lei, preterindo uma formalidade essencial que tem como consequência a anulação dos atos tributários subsequentes por incompetências dos agentes de fiscalização em matéria de IVA.

 

Vejamos.

               

                 O procedimento de inspeção tributária e aduaneira abreviadamente designado procedimento de inspeção tributária ou procedimento de inspeção é regulado pelo Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira , que define, «sem prejuízo de legislação especial, os princípios e as regras aplicáveis aos atos de inspeção» (artigo 1.º do RCPITA).

Segundo o RCPIT «O procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infracções tributárias» (n.º 1 do artigo 2.º), para o que compreende, designadamente «A confirmação dos elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários» e «A indagação de factos tributários não declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários» (alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 2.º).

O procedimento tributário deve obedecer aos princípios da verdade material, da proporcionalidade, do contraditório e da cooperação (artigos 5.º a 10.º).

A classificação do procedimento varia de acordo com os fins, o lugar, o âmbito e a extensão (capítulo III do título I), sendo que os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspeção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada  nos termos do n.º 1 do artigo 15.º do referido Código.

 

Vertendo aos autos, constata-se do teor das comunicações efetuadas pelos SIT ao abrigo das ordens de serviço mencionadas nos pontos D, E, F do probatório continham a menção de inspeção de âmbito parcial, abrangendo os anos de 2014, 2015 e 2016 incidindo, exclusivamente, sobre o IRC;

Sucede que em 27 de junho de 2018, a Requerente foi notificada da Ordem de Serviço OI2017..., para alteração do procedimento de inspeção externa, com inclusão do âmbito em IVA, constando do probatório que tal ordem de serviço foi assinada pelo seu administrador J... (vide, ponto H do probatório).

Por conseguinte, e ao contrário do alegado pela Requerente, encontra-se provado que a AT notificou a Requerente da alteração do procedimento de inspeção externa com a inclusão do IVA.

No entanto, e não obstante tal notificação ter em vista a extensão do procedimento para a inclusão do IVA (entre outros tributos), encontra-se igualmente provado que a Requerente não tomou conhecimento de despacho superior fundamentando as razões para a referida extensão, pois o local onde deveria constar o correspondente despacho de extensão do procedimento contendo os respetivos fundamentos, encontrava-se em branco. 

Por conseguinte, é facto assente e não contestado pela Requerida que a Requerente nunca foi notificada das razões que determinaram a extensão do âmbito do procedimento de inspeção ao IVA, sendo de notar, de acordo com a tese desenvolvida pela AT na sua resposta, que não tinha de o ser, tornando-se «óbvio que caso a ordem de serviço passe a contemplar outros tributos (IVA, Imposto do Selo, etc.) distinto do tributo inicialmente previsto (IRC) é porque se impunha aferir a existência de correções em sede de tais impostos.»

Ora, a este respeito, não assiste razão à AT.

O artigo 15.º n.º 1 do RCPIT, prevê expressamente e de forma cristalina que «os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspeção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspecionada. » (sublinhado nosso).  

Por conseguinte, se posteriormente à primeira determinação dos fins e extensão do procedimento inspetivo os SIT consideram que há razões para alargar o âmbito da ação, devem, nos termos da Lei, notificar sujeito passivo dos fundamentos para a referida extensão, não se considerando minimamente justificado um despacho que apenas refere «proceda-se à inspeção EXTERNA autorizando a fiscalização de novos tributos para além do inicialmente previsto». Com efeito, no despacho em causa, nada se diz sobre as razões determinantes para alterar o procedimento de forma a abranger outros impostos, sendo certo que a justificação exigida por lei deverá expressar um conteúdo mínimo quanto ao motivo subjacente à extensão operada, sob pena de invalidade de uma eventual liquidação, levando à sua anulação.  

No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência do STA no Acórdão de 15/06/2016, proferido no processo n.º 01101/15, onde se observa a este respeito que «III - Tendo em conta, que o sujeito passivo, não foi devidamente notificado através de despacho fundamentado, da alteração dos fins, do âmbito e da extensão do procedimento inspectivo pela entidade que o ordenou, todas as conclusões referentes ao relatório de inspecção, relativas a tal alargamento são ilegais e, não poderão ter validade fiscal, nem fundamentar qualquer acto de liquidação. »

Assim, não tendo a Requerente sido notificada das razões porque se decidiu alargar o âmbito da inspeção inicial em matéria de IRC, por forma a abranger também a matéria de IVA, não pode deixar de se concluir que foi ilegal a decisão da extensão da inspeção quanto ao IVA, o que constitui um vício com repercussão nos atos de liquidação praticados (IVA e juros moratórios) com base no procedimento de inspeção.  

 

1.2          VIOLAÇÃO DO DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA

Nesta sede a Requerente invoca que não obstante as várias reuniões havidas em sede inspetiva e todos os documentos carreados para os autos quando do exercício do direito de audição, a AT ignorou totalmente o esforço probatório da Requerente bem como todas as explicações concedidas, tendo mantido inalteradas as conclusões alcançadas em sede de projeto de relatório.

Segundo defende a Requerente, a lei é expressa e clara ao determinar que os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes serão tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão, sendo a participação nas decisões da AT uma forma de obstar a que esta proceda a determinada liquidação – como as que aqui são impugnadas – quando bastaria uma análise menos precipitada e de acordo com a lei, para evitar cometer certas ilegalidades. 

 

Vejamos.

 

O artigo 60.º, n.º 1, alínea a) da Lei Geral Tributária (LGT), densifica a garantia constitucional de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes digam respeito, em particular as impositivas, concedendo aos contribuintes o direito de serem ouvidos previamente à emissão dos atos tributários de liquidação.

Relativamente ao relatório de inspeção tributária, o direito de audição prévia é concretizado no artigo 60.º do RCPIT que, na redação vigente em 2016, estabelecia o seguinte:

 

“Artigo 60.º

Audição prévia

     1 - Concluída a prática de atos de inspeção e caso os mesmos possam originar atos tributários ou em matéria tributária desfavoráveis à entidade inspeccionada, esta deve ser notificada no prazo de 10 dias do projeto de conclusões do relatório, com a identificação desses atos e a sua fundamentação.

     2 - A notificação deve fixar um prazo entre 15 e 25 dias para a entidade inspecionada se pronunciar sobre o referido projeto de conclusões, devendo o prazo, no caso de incluir a aplicação da cláusula geral antiabuso constante do n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária, ser de 30 dias. (redação da Lei n.º 75-A/2014 - 30/09)

3 - A entidade inspeccionada pode pronunciar-se por escrito ou oralmente, sendo neste caso as suas declarações reduzidas a termo.

4 - No prazo de 10 dias após a prestação das declarações referidas no número anterior será elaborado o relatório definitivo.”

 

Na situação vertente, a Requerente foi notificada para o exercício do direito de audição, resultando do probatório que lhe foi concedido um prazo máximo de 25 dias. Resulta igualmente provado que a Requerente exerceu de forma diligente e cooperante o seu direito de participação no processo de formação de uma decisão que lhe dizia respeito, tendo para o efeito mantido diversos contactos com os SIT que, por seu turno, formularam pedidos de esclarecimentos adicionais, ouviram as explicações da Requerente em reuniões tidas com os seus responsáveis e concederam prorrogações de prazo para resposta a pedido desta. 

Ora, no caso em apreço, é manifesto que o exercício do direito de audição foi plenamente assegurado, tendo a Requerente sido ouvida e manifestado em várias ocasiões do procedimento tributário os seus pontos de vista, não obstante, a AT ter refutado os argumentos apresentados e decidido manter as correções propostas.

Note-se que o facto de a AT não ter alterado a sua posição em face dos elementos de prova carreados para os autos pela Requerente, não se pode daí concluir pela violação de princípios da boa fé, da cooperação e da negação do direito de audição. Com efeito, no caso em apreço, a AT dedica em sede de Relatório Final, todo o ponto IX.2 sob epígrafe “Abordagem à resposta do sujeito passivo” à análise dos documentos apresentados pela Requerente, e à discussão argumentativa sobre o enquadramento das operações apresentadas, designadamente em matéria de IVA.

Por conseguinte, na vertente organizatória do procedimento inspetivo, foram garantidos os direitos de defesa da Requerente, tendo sempre tomado conhecimento das diligências efetuadas pelos SIT e sido notificada das decisões proferidas no âmbito do procedimento de inspeção.

 Posto que os referidos direitos foram devidamente assegurados pela AT, como se comprova no caso vertente, não é exigível que no final do procedimento esta concorde com a posição do sujeito passivo ou que altere argumentos anteriormente esgrimidos, desde que estes, no seu entender, se mantenham pertinentes.

Assim, improcede este segmento da argumentação da Requerente.

 

1.3          AUSÊNCIA OU VÍCIO DA FUNDAMENTAÇÃO LEGALMENTE EXIGIDA

 

No seu pedido a Requerente invoca o vício, também formal, de falta de fundamentação, alicerçada no disposto nos artigos 77.º da LGT e 268.º, n.º 3 da CRP.

A este respeito a Requerente invoca que a tese defendida no relatório de inspeção baseada no “interesse alheio” dos serviços adquiridos pela Requerente é acima de tudo ilegal e obscura no critério utilizado, uma vez que, não tem qualquer correspondência nas normas do Código do IVA que consagram o direito à dedução. Por seu turno, a Requerida defende que a contratação dos serviços em causa e as comissões pagas não conferem direito à dedução, na medida em que não correspondem a serviços “utilizados” pela Requerente para a realização das operações ativas. 

Ora, no âmbito da questão em análise, interessa salientar que o dever de fundamentação desempenha a função primordial de permitir que o destinatário do ato se inteire das razões que subjazem à decisão administrativa, permitindo o controlo da sua validade, através da análise dos respetivos pressupostos, e o acesso à garantia contenciosa, dando a conhecer ao sujeito passivo o itinerário cognoscitivo e valorativo para a AT ter decidido no sentido em que decidiu.

Segundo a jurisprudência do STA, deve considerar-se «fundamentado o ato quando ele se insira num quadro jurídico-normativo perfeitamente cognoscível por um destinatário normal colocado na posição em que se encontra o seu real destinatário.»

Com efeito, esclarece a jurisprudência daquele Tribunal que a fundamentação é um conceito relativo que varia em função do tipo legal de ato, visando responder às necessidades de esclarecimento do contribuinte, permitindo-lhe conhecer as razões de facto e de direito que determinaram a sua prática e por que motivo se decidiu num sentido e não noutro.

Compulsados os autos arbitrais, constata-se que o RIT contém, com clareza e suficiente grau de detalhe os argumentos, de facto e de direito, nos quais a AT alicerçou as correções de IVA impugnadas, que se prendem com o pretendido direito à dedução na esfera da Requerente de um conjunto de serviços e comissões pagos em relação aos quais a AT entende terem sido contratados no âmbito de operações sobre partes de capital, nas quais a Requerente nunca participou como parte interessada. 

Estes argumentos apresentados pela AT, o seu sentido e alcance, foram devidamente percepcionados pela Requerente que os refuta de forma circunstanciada.

Por conseguinte, improcede, pelas razões expostas, o vício de falta de fundamentação suscitado pela Requerente.

Questão distinta é a de saber se a Requerente discorda da fundamentação por não considerar verificados os pressupostos de tributação nela retratados situação que «tem já a ver com o mérito da decisão e com a legalidade «stricto sensu» do próprio ato».   Neste caso, não se trata de aferir o vício formal de ausência de fundamentação legalmente exigida, mas a validade substantiva do ato tributário, por erro nos pressupostos de facto de direito, que de seguida de aprecia.

 

1.4            VÍCIOS MATERIAIS

1.4.1      DIREITO À DEDUÇÃO DO IVA  

Importa seguidamente determinar o direito aplicável aos factos subjacentes à principal questão colocada nos presentes autos, a saber: aferir que os gastos suportados e o IVA correspondentemente incorrido nos serviços jurídicos e de consultoria objeto das faturas que são apresentadas pela Requerente no seu PPA, bem como as comissões bancárias suportadas numa conta “Escrow”, satisfazem os pressupostos legais necessários ao exercício do direito à dedução do imposto, atento o contexto material invocado pela Requerente da necessidade de conhecimento do estado da empresa, aquando do processo de saída de dois administrados e de entrada de novos detentores de capital. 

Assim,  é controvertida a questão de saber se as referidas aquisições de serviços e comissões bancárias apresentam uma relação direta e imediata com as operações ativas da Requerente, na medida em que, de acordo com a tese da AT, os interessados primários e imediatos na contratação dos mesmos foram os acionistas envolvidos nas operações de compra e venda de ações, não existindo indícios de que tais serviços tenham tido qualquer utilidade para o exercício da atividade da Requerente.  

Antes da apreciação da argumentação desenvolvida, justifica-se proceder a um breve enquadramento do regime jurídico do direito à dedução tendo em consideração as regras que regem este imposto de acordo com o direito da União Europeia, com a respetiva transposição a nível interno e com a interpretação judicial que sobre as mesmas tem sido levada a cabo especialmente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

 

1.4.2      DO REENVIO PREJUDICIAL PARA O TJUE

Uma vez enquadrada a questão que se discute nos autos, importa antes de mais analisar um segmento do pedido da Requerente, em que solicita o reenvio do processo ao TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), caso se entenda que a desconformidade das liquidações de IVA em causa com o Direito da União Europeia não é suficientemente clara ou pacífica na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

Como se refere no Ponto 7 das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), do TJUE :

«o papel do Tribunal no âmbito de um processo prejudicial consiste em interpretar o direito da União ou pronunciar-se sobre a sua validade, e não em aplicar este direito à situação de facto subjacente ao processo principal. Esse papel incumbe ao juiz nacional e, por isso, não compete ao Tribunal pronunciar-se sobre questões de facto suscitadas no âmbito do litígio no processo principal nem sobre eventuais divergências de opinião quanto à interpretação ou à aplicação das regras de direito nacional.»

Mais se recorda, no Ponto 12 daquelas mesmas recomendações que o reenvio prejudicial para o referido Tribunal, não se deverá dar quando:

i)             já exista jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou

ii)            quando o modo correto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco.

Consequentemente, continua-se no Ponto 13, «um órgão jurisdicional nacional pode, designadamente quando se considere suficientemente esclarecido pela jurisprudência do Tribunal, decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece.»

Por fim, conforme consta do Ponto 18 das mesmas recomendações, «O órgão jurisdicional nacional pode apresentar ao Tribunal um pedido de decisão prejudicial, a partir do momento em que considere que uma decisão sobre a interpretação ou a validade é necessária para proferir a sua decisão.»

No caso, não se considera que uma decisão sobre a interpretação das normas comunitárias seja necessária para proferir decisão, nem a Requerente o demonstra, baseando em grande parte, a sua própria argumentação na interpretação que faz da jurisprudência abundante proferida pelo TJUE sobre a matéria que se discute nos autos.

Por conseguinte, e como se demonstrará infra, entende-se que a Jurisprudência disponível do TJUE esclarece suficientemente, em termos de se poder decidir da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que se conhece.

Deste modo, e pelo exposto, indefere-se o pedido de reenvio prejudicial.

 

1.4.3      O DIREITO À DEDUÇÃO COMO ALICERCE DO SISTEMA COMUM DO IVA

A dedução do imposto incorrido pelos sujeitos passivos constitui a essência do IVA.

Assim, o regime das deduções faz parte integrante do mecanismo deste imposto e visa libertar os sujeitos passivos de tal encargo no âmbito das suas atividades económicas, por forma a garantir a neutralidade fiscal «quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA.»  O direito à dedução é exercido imediatamente em relação à totalidade do imposto que incidiu sobre as operações efetuadas a montante (aquisições de bens e serviços) e não pode, em princípio, ser limitado.

Este tem princípio tem igualmente plena consagração na jurisprudência nacional dos tribunais superiores e no âmbito do CAAD em sentido que acompanhamos.

Neste contexto, transcreve-se parcialmente um excerto ilustrativo do Acórdão Arbitral proferido no processo n.º 148/2012, acerca dos princípios e pressupostos do direito à dedução:

 

 «As situações expressas de exclusão do direito à dedução são excepcionais e reportam-se a casos específicos enunciados pelo legislador nacional em termos taxativos, de acordo com o estatuído na DIVA, em função do tipo de despesas em causa.

As regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objectivos, mais ligados ao tipo de despesas, subjectivos, relativos ao sujeito passivo e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo para se exercer o direito à dedução.

 

     Como requisitos objectivos do exercício do direito à dedução do imposto temos, nomeadamente, o facto de o imposto suportado dever constar de factura passada na forma legal (ou seja, deverá obedecer, nos seus requisitos, aos termos gerais previstos no artigo 36.º, n.º 5, do CIVA), de se tratar de IVA português, e de a despesa, por si, conferir o direito à dedução do IVA (isto é, não se deve tratar de uma despesa excluída do direito à dedução, nos termos do disposto no artigo 21.º do CIVA).

     […]

     Como requisitos subjectivos do exercício do direito à dedução do imposto determina-se, nomeadamente, que os bens e serviços deverão estar directamente relacionados com o exercício da actividade em causa. Em conformidade com o disposto no artigo 168.º da DIVA, transposto, em parte, pelo artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIVA, o sujeito passivo pode deduzir o IVA suportado no Estado-membro em que se encontra estabelecido, nas transmissões de bens e prestações de serviços, assim como operações assimiladas nas aquisições intracomunitárias de bens e nas importações ali localizadas, “Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas (…)».

 

     Ora, o artigo 20.º n.º 1, alínea a), em conformidade com as regras do Direito da União Europeia, vem exigir que exista um nexo de causalidade entre o bem ou serviço adquirido –input – e o output tributado, para que o IVA seja susceptível de ser dedutível. Isto é, o IVA suportado a montante numa determinada operação só é dedutível na medida em que possa estar relacionada a jusante com uma operação efetivamente tributada, devendo a relação ser aferida em função do reporte e inclusão do custo suportado, no preço da operação tributada.

Neste contexto, o TJUE, no Caso BLP, concluiu que os bens ou serviços a montante devem apresentar uma relação direta e imediata com uma ou diversas operações sujeita(s) a imposto a jusante, sendo que o direito à dedução do IVA pressupõe que as despesas em causa devam constituir parte integrante dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas.

Inevitavelmente, a análise do alcance daquela expressão «relação direta e imediata», deverá ser efetuada casuisticamente, competindo aos órgãos jurisdicionais nacionais aplicar o critério aos factos de cada processo que lhes seja presente e tomar em consideração todas as circunstâncias em que se desenrolam as operações em causa.

Note-se, como concluiu o Advogado-geral no Caso Midland Bank, o emprego dos dois adjetivos «direto» e «imediato» não pode deixar de significar uma relação especialmente próxima entre as operações tributáveis efetuadas por um sujeito passivo e os bens ou serviços fornecidos por outro sujeito passivo.

Contudo, a densidade dessa relação pode ser diferente consoante a qualidade do sujeito passivo e a natureza das operações efetuadas e estas variáveis podem também ter repercussões sobre o ónus da prova da existência da relação, o qual cabe ao operador interessado na dedução.

Assim, de acordo com a jurisprudência do TJUE, sempre que um sujeito passivo exercer atividades económicas destinadas a realizar exclusivamente operações tributáveis, não é necessário, para que se possa deduzir na totalidade o imposto, estabelecer, quanto a cada operação a montante, a existência de uma relação direta e imediata com a operação específica sujeita a imposto.

O que o legislador apenas exige é que os bens e serviços sejam utilizados ou susceptíveis de o ser «para os fins das próprias operações tributáveis». Não é necessária a existência de uma relação com uma operação específica tributável, sendo suficiente que exista uma relação com a atividade da empresa.

É reconhecido de forma unânime pela jurisprudência do TJUE que o mecanismo do direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do IVA tal como foi desenhado nas Diretivas IVA, assumindo um papel fundamental de garantia da neutralidade do imposto e da igualdade de tratamento fiscal.  Assim, é jurisprudência constante do TJUE que, sendo o direito à dedução um elemento fundamental do regime de IVA, só é possível limitar este direito nos casos expressamente previstos pela DIVA e, ainda assim, com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade, não se podendo esvaziar o sistema comum do IVA do seu conteúdo.

Tal como se salienta no Acórdão BP Soupergaz, o chamado método subtrativo indireto, das faturas, do crédito de imposto ou sistema dos pagamentos fraccionados, é o mecanismo essencial de funcionamento deste tipo de imposto. Como se refere nas conclusões deste Acórdão, «A este respeito, o direito à dedução previsto nos artigos 17º. e seguintes da Sexta Directiva, que faz parte integrante do mecanismo do imposto sobre o valor acrescentado, não pode, em princípio, ser limitado e exerce-se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efectuadas a montante, tem incidência no nível do encargo fiscal e deve aplicar-se similarmente em todos os Estados-Membros, de modo que só são permitidas derrogações nos casos expressamente previstos pela directiva.»

E no Acórdão Comissão/França, o TJUE acrescenta que «As características do imposto sobre o valor acrescentado (…) permitem inferir que o regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA, devido ou pago, no âmbito de todas as suas actividades económicas. O sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado garante, por conseguinte, a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas actividades, na condição de as referidas actividades estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA».

Note-se ainda que, conforme se salienta no Acórdão Metropol, as disposições que preveem derrogações ao princípio do direito à dedução do IVA, que garante a neutralidade deste imposto, são de interpretação restrita.

     A amplitude do direito à dedução em IVA é tão grande, que constitui ato claro na jurisprudência do TJUE que este deve inclusive ser concedido no tocante às chamadas atividades preparatórias, não se exigindo que a atividade tenha já começado para se poder deduzir o IVA, podendo ser deduzido relativamente a este tipo de atividades.

Note-se, a este propósito que, de acordo com o entendimento do TJUE, posição que já foi, aliás, subscrita pela Administração Tributária , o direito à dedução, uma vez adquirido, subsiste mesmo que a atividade económica projetada não dê origem a operações tributáveis ou o sujeito passivo, por motivos alheios à sua vontade, não tenha podido utilizar os bens ou serviços que deram origem à dedução no âmbito de operações tributáveis.

Como o TJUE salienta, é a aquisição do bem pelo sujeito passivo, agindo nessa qualidade, que determina a aplicação do sistema do IVA e, portanto, do mecanismo de dedução.  O sujeito passivo atua nessa qualidade quando age para os fins da sua atividade económica, na acepção do artigo 9.° n.º 1, segundo parágrafo, da DIVA. Acresce que, como se conclui no Caso Intiem, o mecanismo da dedução do IVA regulado pela Sexta Diretiva deve ser aplicado de tal forma que o seu âmbito de aplicação corresponda, na medida do possível, ao âmbito das atividades profissionais do sujeito passivo.

Isto é, como nota o TJUE, o princípio da neutralidade do IVA, no que se refere à carga fiscal da empresa, exige que as despesas de investimento efetuadas para as necessidades e para os objetivos de uma empresa sejam consideradas atividades económicas conferindo um direito à dedução do IVA imediato.

Importa ainda notar que, em conformidade com a jurisprudência do TJUE, o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida caso os requisitos substanciais tenham sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Neste contexto, de acordo com o TJUE, desde que a AT disponha dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das operações, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito.

Em resumo, da jurisprudência do TJUE resulta claro que o exercício do direito à dedução do IVA é um direito fundamental, que não pode ser limitado senão nos casos expressamente permitidos pelas normas do Direito da União Europeia ou pelos princípios gerais de direito aceites neste domínio, como o princípio do abuso de direito.

 

1.4.4      APRECIAÇÃO CONCRETA – PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS SUBSTANTIVOS DO DIREITO À DEDUÇÃO

A AT colocou em causa o direito à dedução de IVA da Requerente em dois tipos de despesas:

 

a)            Despesas de consultoria (concretamente, relativas a serviços de auditoria e de gestão estratégica) e de serviços jurídicos, contratados pela Requerente junto das entidades B..., C..., D... e E...;

b)           Comissões bancárias decorrentes da constituição e manutenção de uma conta Escrow, constituída no âmbito de um processo negocial de alteração da estrutura acionista da Requerente, por forma a evitar bloqueios estratégicos à respetiva atividade económica.

Comecemos pela factualidade provada.

 

A Requerente cumpriu o ónus que sobre si recaía de comprovar que a aquisição dos serviços em causa se inseriu num contexto de avaliação da empresa, de reestruturação e de optimização da sua gestão, em certa medida decorrente de processo litigioso de saída de dois administradores, sendo um deles o anterior CFO da sociedade Requerente.

Num cenário de litigância no seio da administração, e perante diferentes visões para o futuro da sociedade, a gestão da Requerente entendeu que se justificava desenvolver um conjunto de ações tendentes por um lado, à avaliação crítica dos problemas e dos riscos existentes e, por outro, a uma assessoria de gestão que lhe permitisse definir uma nova trajetória, passando, designadamente, pela entrada de novos investidores. Note-se que a AT não indicou quaisquer meios de prova que infirmassem o contexto factual apresentado pela Requerente.

Neste âmbito, a Requerente demonstrou ainda que os contratos de prestação de serviços com as entidades que desenvolveram análises financeiras, legais e de consultoria estratégica foram por si celebrados, foram por si contratados, e que estas ações ocorreram em data muito anterior à concretização da operação de compra e venda de ações entre os acionistas J... e K... e a Sociedade E..., factos uma vez mais não contestados pela AT, seja na informação reunida no RIT, seja na sua Resposta.

Para este efeito, a Requerente juntou aos autos os contratos celebrados com os prestadores de serviços, e bem assim declarações explicativas sobre o conteúdo dos trabalhos efetivamente realizados a pedido da Requerente.

Ora, o referido contexto é um aspecto que deve merecer particular atenção quando se trata de analisar o conteúdo concreto dos serviços prestados, os objetivos pretendidos e o nexo causal entre o custo destes serviços e o conjunto da atividade económica exercida pela Requerente.

Como vimos supra, regra geral, para serem passíveis de dedução os bens e serviços adquiridos a montante devem apresentar uma relação direta e imediata com as operações a jusante que conferem direito à dedução, sendo indiferente o objetivo final do sujeito passivo. Aliás, no caso Intiem,  o TJUE sublinha que o princípio da neutralidade do IVA, no que se refere à carga fiscal da empresa, exige que as despesas (ainda que tratando-se de despesas de investimento) efetuadas para as necessidades e para os objetivos de uma empresa sejam consideradas atividades económicas conferindo um direito à dedução do IVA imediato. Por conseguinte, o mecanismo da dedução do IVA deve ser aplicado de tal forma que o seu âmbito de aplicação corresponda, na medida do possível, ao âmbito das atividades profissionais do sujeito passivo, consideradas estas em sentido amplo. 

Ora, os serviços cuja dedução do IVA a AT não aceitou têm uma relação direta e imediata com a atividade económica prosseguida pela Requerente, uma atividade económica integralmente tributada em sede de IVA, pelo que o imposto incidente sobre tais serviços deve ser deduzido feita a demonstração da existência de um nexo entre as despesas incorridas e atividade tributável, ainda que não numa ótica contabilística da afetação de cada gasto a um bem vendido ou serviço prestado, mas a atividade económica considerada no seu conjunto. Aliás, a ser de outra forma, estariam imediatamente excluídas do direito à dedução quaisquer despesas incorridas por um sujeito passivo em matéria de atos preparatórios ou despesas de investimento.  

No que respeita ao conteúdo dos serviços prestados, resulta do probatório que visaram apoiar a gestão da Requerente em várias vertentes, a saber:

i)             Na necessidade de reestruturação interna resultante de possíveis alterações na estrutura do capital com entrada de novos investidores institucionais, (vide ponto S do probatório); 

ii)            Na definição de um plano de negócios visando o crescimento futuro da atividade (vide pontos S e W probatório);

iii)           Na necessidade de procura de financiadores para apoiar (financeiramente) o plano de expansão da empresa incluindo a compra de novas instalações e de maquinaria visando o aumento da capacidade produtiva (vide pontos T e V do probatório);

iv)           A identificação de contingências financeiras e fiscais com o objetivo de dotar a gestão de elementos financeiros credíveis quanto a eventuais responsabilidades futuras com impacto no valor da empresa (vide ponto U do probatório);

v)            Identificação de contingência legais visando medidas corretivas a implementar pela sociedade ao nível de relações contratuais existentes, incluindo na perspectiva de fornecer informação necessária que permitisse sustentar uma eventual decisão de compra de ações representativas do capital da Requerente (vide ponto V do probatório);   

O que AT defende é que o IVA em causa não pode ser deduzido na esfera da Requerente, uma vez que, a estratégia dos acionistas J..., K... e o novo investidor E... estava delineada ab initio, sendo um plano preconcebido para gerar “grandes mais-valias” para os dois primeiros. Por conseguinte, segundo a AT os verdadeiros interessados nos serviços prestados foram os acionistas vendedores das ações e a entidade compradora, os quais, entre si, engendraram um plano com vantagens pessoais, sendo a Requerente totalmente alheia aos benefícios resultantes das ações de reestruturação desenvolvidas. 

Ora, salvo devido respeito, conforme temos vindo a demonstrar, não podemos acompanhar a tese da AT, que peca, desde logo, por fazer uma errónea interpretação do disposto no artigo 20.º n.º 1 do Código do IVA, mas também por se revelar infundada e assente em opiniões valorativas não sustentadas pelo conteúdo dos documentos que se encontram juntos aos autos.  

Admitamos (facto por demonstrar) a existência de uma intensão primeira e exclusiva de encontrar novos parceiros estratégicos para formar parte do capital da Requerente. Como demos amplamente nota, segundo a jurisprudência do TJUE, onde o resultado final da operação não ponha em causa que os serviços adquiridos mantém uma relação direta e imediata com a atividade económica do sujeito passivo – concebida pelo TJUE em termos abrangentes – é de aceitar, para efeitos do exercício do direito à dedução, a existência de um nexo causal entre o IVA incorrido nas referidas prestações serviços e a atividade económica da Requerente.

De facto, a realização dos trabalhos de consultoria e de auditoria nas várias vertentes legal, financeira e fiscal, foi necessária não só para a obtenção do financiamento atribuído para efeitos de compra de novas instalações, como também para concretizar a operação de reestruturação da Requerente, com entrada de um investidor institucional, factores que no conjunto, maximizaram a sua eficiência e valor, fazendo parte integrante da atividade económica lucrativa que prossegue, e, em ultima análise, um elemento constitutivo do preço dos produtos que comercializa.

Destarte, no quadro de uma operação de reorganização empresarial envolvendo a necessidade de alterar os titulares dos órgãos de administração de uma sociedade, contratar financiamentos, investir em novas instalações, avaliar ativos, medir contingências, procurar novos investidores – entre outros objetivos – não se consegue compreender o argumento da AT no sentido do interesse exclusivo dos serviços prestados para as partes compradoras, ou acionistas.

Temos, assim, por certo, face aos elementos de prova trazidos aos autos que os termos em que os serviços foram adquiridos, contratados e prestados pelas entidades fornecedoras permitiram indubitavelmente a respetiva utilização pela Requerente no exercício da sua atividade económica tributada em IVA, pelo que o IVA incidente sobre os mesmos deve ser diretamente deduzido pela Requerente.            

Se, noutro prima, a AT pretendia por em causa o conteúdo dos serviços prestados nos termos declarados documentalmente pelas partes, nesse caso impunha-se comprovar a falsidade das operações tituladas pelos contratos e faturas por não ocorrerem ou não corresponderem aos termos descritos, ónus que a AT claramente não cumpriu.   

 

                No seguimento da mesma argumentação, considera a AT não ser dedutível o IVA suportado pela Requerente com as comissões associadas à constituição e manutenção do contrato de depósito escrow, uma vez que, a sua finalidade primária é a «execução do direito de aquisição do Fundo como meio alternativo de cumprimento da obrigação de indemnização por dano», tal como previsto na cláusula 6.4.

Por seu turno, a Requerente alega que o contrato escrow foi celebrado com o objetivo principal de salvaguardar os interesses da sociedade e garantir a estabilidade das operações e a geração de proveitos futuros, caso venha a ocorrer algum conflito entre os acionistas. 

Vejamos.

Nas palavras de Engrácia Antunes, o depósito escrow é um «contrato pelo qual uma das partes (depositante) confia a guarda de determinados bens móveis (v.g. dinheiro, títulos, documentos) a um banco ou outra entidade (depositário) que se obriga, de acordo com as instruções irrevogáveis acordadas, a restituir os bens ao depositante ou a entregar estes a terceiro (beneficiário)» . Trata-se de um contrato que tem a sua origem numa enraizada tradição anglo-saxónica, onde é prática corrente as partes recorrerem a depositários, a quem entregam os objetos das prestações a que se hajam obrigado por contrato. São estes depositários quem assegura o regular cumprimento mútuo das obrigações de cada parte.

No caso do autos, o objeto do depósito fiduciário foi constituído por ações representativas do capital social da Requerente, as quais foram entregues à guarda do banco depositário até ao cumprimento integral das condições previstas no contrato de investimento e enquanto vigorar o acordo parassocial.

Importa ainda notar que são partes do contrato de depósito escrow os acionistas administradores da Requerente, o fundo investidor institucional E..., a própria sociedade ora Requerente e o banco depositário (vide ponto AA do probatório).

Nestes termos, a sociedade Requerente não é apenas chamada a tomar conhecimento da existência do contrato escrow, mas, sendo parte contratante do mesmo, ficará sujeita ao cumprimento das obrigações dele decorrentes, em observância dos seus estatutos sociais.  

Acresce notar, que o objeto material do depósito fiduciário são as ações representativas do capital social da Requerente, e não por hipótese, determinadas quantias em dinheiro destinadas a proteger os interesses pecuniários diretos e exclusivos dos alienantes ou dos adquirentes. 

Parece-nos, igualmente, inequívoco que as finalidades constantes da cláusula 1.3 do contrato de depósito escrow (vide ponto BB do probatório) apontam no sentido de criar mecanismos que evitem situações de bloqueio entre os acionistas, o que, por seu turno, salvaguarda diretamente os interesses da sociedade ora Requerente, garantindo um maior controlo dos riscos de litigância durante o processo de entrada de novos investidores, associada a uma maior estabilidade das operações e, consequentemente, à ausência/minimização de bloqueios no exercício da atividade geradora de proveitos tributáveis.

Dir-se-á, finalmente, a respeito da tutela dos interesses da Requerente, que a constituição de contratos de depósito escrow ocorre de forma frequente no contexto de transações financeiras de maior dimensão, designadamente envolvendo a entrada de investidores institucionais no seio de empresas que operavam segundo um modelo de gestão pessoal, sendo certo que a celebração deste tipo de contrato “garantia” surge em regra como condição sine qua non para a realização de um negócio que permitirá um crescimento exponencial da empresa alvo e a transição para um novo patamar de gestão.

Pelos motivos expostos, e face à comprovação pela Requerente das realidades materiais subjacentes às operações objeto dos autos, não poderá deixar de surpreender a negação do direito à dedução do IVA incorrido, com base no entendimento de que aquela não foi parte interessada nem tão pouco  beneficiária das referidas operações.

Termos em que assiste à Requerente o direito à dedução do IVA respeitante ao exercício de 2016, pelo que as liquidações de IVA e de juros de mora devem ser anuladas, com todas as consequências legais, por erro nos pressupostos.

 

 

 

1.4.5      PAGAMENTO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS

A Requerente pede o reembolso das quantias pagas a título de liquidação adicional de IVA e juros de mora, acrescidas de juros indemnizatórios à taxa legal até integral reembolso.

No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os atos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

No caso em apreço, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação do IVA, a Requerente não só viu inviabilizado o direito à dedução daquele imposto, como teve que pagar a importância liquidada indevidamente pela AT. Nesta medida, tem a Requerente direito a reembolso do imposto indevidamente pago, por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado», o que deverá ser determinado em execução de julgados.

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, que «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.»

A ilegalidade das liquidações é imputável à AT, como se demonstrou.

Em termos normais deveria ter sido reconhecido o direito à dedução do IVA, de acordo com o disposto no artigo 20.º n.º 1 do Código IVA o que não veio a acontecer por responsabilidade da AT, pelo que, consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.

 

VI- DECISÃO

 

Termos em que se acorda neste Tribunal Arbitral:

 

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de declaração de ilegalidade das liquidações adicionais de IVA, e, nesta sequência,

b)           Anular as liquidações adicionais de IVA n.º sob os n.ºs 2018..., 2018..., 2018... e 2018..., nos montantes, respetivamente, de € 5.630,91, € 14.470,15, € 12.008,32 e € 690,00, totalizando € 32.799,38, bem como as correspetivas liquidações de juros de mora com os n.ºs 2018..., 2018..., 2018... e 2018..., nos montantes, respectivamente, de € 743,47, € 1.668,17, € 1.280,64 e € 56,18, totalizando € 3.748,46,;

c)            Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar a Requerente das quantias de imposto e juros indevidamente pagas e a pagar juros indemnizatórios, relativamente este montante, à taxa legal, desde a data do pagamento indevido (16 de janeiro de 2019) até ao seu efetivo reembolso.

 

               

***

 

VII- VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 36.547,84 de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

VIII. CUSTAS

 

Custas no montante de € 1.836,00 a cargo da Requerida, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Lisboa, 18 de dezembro de 2019

 

A Árbitro

 

Filipa Barros