DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. No dia 18 de Abril de 2019 a A..., SA, Pessoa Coletiva n.º..., com sede na Rua da ..., n.º..., ...-... Porto (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral (Pedido de Pronúncia Arbitral - PPA), nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
2. Pretendia que fosse anulada a decisão administrativa do Senhor Chefe do Serviço de Finanças Porto-..., no uso da competência delegada pelo Senhor Diretor de Finanças do Porto, a qual indeferiu o procedimento de reclamação graciosa n.º ...2018..., apresentado contra as liquidações de IVA e correspondentes juros compensatórios n.º 2018..., n.º 2018... e n.º 2018..., referentes aos períodos de tributação 2014/12-T, 2016/09-T e 2016/12-T, num total de €32.453,18 .
3. Nomeado o presente árbitro e não tendo a Requerente, nem a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 2 de Julho de 2019.
4. Seguindo-se os normais trâmites, em 20 de Setembro a AT apresentou resposta em que, entre o mais, suscitou a excepção de incompetência material parcial do Tribunal Arbitral, e juntou o Processo Administrativo .
5. Notificada a Requerente, em 27 de Setembro, para se pronunciar, querendo, sobre tal excepção, veio apresentar a sua resposta em 3 de Outubro.
6. Notificadas ambas as Partes, no mesmo dia 27 de Setembro, sobre a intenção do presente árbitro dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e, do mesmo modo, dispensar a repetição das razões das Partes em alegações, nenhuma se pronunciou no prazo fixado.
7. Assim, no dia 12 de Outubro, foi proferido novo Despacho arbitral dispensando uma e outras, e fixando o dia 8 de Novembro de 2019 como data limite para a prolação da decisão arbitral.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
8. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.
9. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
10. A AT invocou uma excepção de incompetência parcial do Tribunal com fundamento em que a Requerente pretenderia discutir “uma fundamentação à posteriori, vertida em sede de reclamação graciosa”, matéria que extravasaria “as competências que lhe estão reservadas por lei”.
11. Retorquiu a Requerente, basicamente, que a chamada de atenção para a fundamentação aditada pela AT em sede de reclamação graciosa, sendo insusceptível de reforçar a fundamentação das liquidações originais, visava sublinhar a insuficiência dessa: se fosse adequada, não haveria necessidade de a ampliar. Citou jurisprudência em abono da irrelevância da fundamentação a posteriori – irrelevância que, de resto, já tinha invocado no seu PPA.
12. Na sua resposta ao PPA, a AT invocara também, todavia, que “a Requerente confunde dois conceitos perfeitamente distintos: a figura da fundamentação a posteriori e o mero reforço dos argumentos.”, e que “reforçar uma afirmação-base constante da fundamentação não é sinónimo de fundamentação a posteriori.”.
Decidindo:
13. Pode a AT ter razão quanto à incompetência do Tribunal arbitral para se pronunciar sobre vícios da fundamentação da decisão do procedimento de reclamação graciosa em segmentos não abrangidos pela fundamentação dos actos tributários reclamados. Não se vê é em que é que isso lhe poderia aproveitar, na medida em que tal falta de competência do Tribunal é correlativa da irrelevância de tais novos fundamentos para sustentar os actos de liquidação realizados anteriormente.
14. Ie: o que o Tribunal não pode fazer (conhecer de algo novo) é o mesmo que a AT não pode fazer (fundamentar com algo novo).
15. Por outro lado, invocar que a Requerente queria discutir uma fundamentação a posteriori que o Tribunal não poderia ajuizar, e invocar, simultaneamente, que afinal não se tratava de fundamentação a posteriori, mas apenas de “mero reforço dos argumentos”, implica um padrão duplo quanto à avaliação da fundamentação da decisão da reclamação graciosa: para efeito da justificação das liquidações efectuadas não seria fundamentação a posteriori; para efeito da competência deste Tribunal já seria fundamentação a posteriori.
16. Qualquer que fosse a autonomia e novidade da fundamentação da decisão da reclamação graciosa, muito embora o PPA tenha (como devia) abrangido essa subsequente decisão da AT, não há dúvida que visava também “as liquidações de IVA e respetivos juros n.º 2018..., n.º 2018... e n.º 2018...”, cuja a anulação parcial a Requerente também pediu (como também pediu o reembolso das “quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios à taxa legal;” e a condenação da AT “nas custas e demais encargos com o processo”).
17. Aliás, que o pedido da Requerente para que fosse “anulada a decisão administrativa impugnada” era instrumental da alteração das referidas liquidações resulta logo do que escrevia imediatamente a seguir a esse pedido de anulação: pedia que “por via disso” essas liquidações fossem anuladas.
18. Consequentemente, nada obsta a que o presente árbitro se pronuncie sobre a questão principal que a Requerente lhe colocou e que assenta, como escreveu no parágrafo 22.º do seu PPA, na sua convicção de que “a decisão e liquidações em apreço são ilegais, porque baseadas em pressuposto de facto errado.”
III. MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
a) A Requerente é um sujeito passivo de IVA, enquadrado no regime normal trimestral, que desenvolve como objeto principal a actividade de construção de imóveis, bem como a sua compra e venda.
b) No âmbito da sua actividade, a Requerente pratica, em simultâneo, operações tributadas que conferem o direito à dedução do IVA (e.g. vendas de mercadorias e prestações de serviços) e operações isentas que não conferem esse direito (e.g. venda de imóveis), sendo por isso um “sujeito passivo misto”.
c) Conforme documentos juntos aos autos, a Requerente celebrou, em 25 de Julho de 2014, dois contratos com a B..., S.A. (“B...”):
• um contrato promessa de compra e venda de terreno, sito no lugar de ..., concelho da ..., destinado à instalação do edifício industrial para fabricação de embalagens de papel e cartão, pelo montante de €500.000; e
• um contrato de prestação de serviços de gestão de obra (incluindo serviços técnicos necessários à aprovação do referido projeto de arquitetura e obras de terraplanagem e de construção de infraestruturas de acesso ao terreno), pelo montante de €125.000 mais IVA;
d) A transação constante na escritura de venda do terreno constitui uma operação isenta, sem direito à dedução de IVA, sendo que a prestação de serviços de gestão de obra de licenciamento e execução da terraplanagem constitui uma operação tributada que confere esse direito;
e) Tais contratos levaram à escritura de compra e venda, realizada a 29 de Dezembro de 2014, pelo valor acordado de € 500.000,00, que teve como segundo outorgante a instituição financeira C..., adquirente do imóvel em benefício da B...;
f) A 20 de Agosto de 2015 a Requerente emitiu a Factura n.º FA 2015/18 à C..., S.A., pelo valor de € 125.000, com a descrição “Execução de Trabalhos/ -De terraplanagem, nomeadamente: escavação, aterro e compactação, numa área 20.000 m2 por forma a idealizar a plataforma base de construção, da nova unidade fabril B... (conforme condições contratuais de negócio)/ Obra: Terreno para industria/ Sito no Lugar de ...-...”;
g) A Requerente registou nos anos de 2014 a 2016 diversas facturas relacionadas com serviços de construção prestados no referido terreno e compra de material, tendo deduzido o IVA suportado com estas despesas;
h) No decurso de uma acção inspectiva externa de âmbito parcial, desenvolvida sob as Ordens de Serviço ns. OI2017..., OI2017... e OI2017..., a AT promoveu, para o que agora importa, correcções em sede de IVA nos montantes de € 23.590,28 para 2014, e de € 8.717,00, para 2016, relacionadas com despesas incorridas no âmbito dos referidos contratos;
i) Por discordar dos fundamentos usados pela AT para justificar aquelas correcções/liquidações, e com intenção de as reclamar, a Impugnante pagou parte do respetivo montante e prestou garantia relativamente ao remanescente, conforme sumariado na tabela infra:
Ano Correção/liquidação a reclamar (€) Pago (€) Garantido (€)
---------------------------------------------------------------------------------------------------
2014 23.590,28 5.905,41 17.684,87
2016 8.717,00 8.717,00 0,00
---------------------------------------------------------------------------------------------------
j) Não se conformando com as liquidações atinentes ao procedimento inspectivo, a Requerente veio, em 22 de Junho de 2018, deduzir reclamação graciosa que correu termos com o n.º ...2018...;
k) No seguimento do indeferimento da reclamação graciosa, veio a Requerente, em 17 de Abril de 2019, intentar o presente pedido de pronúncia arbitral.
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Ao contrário do pretendido pela AT (nos pontos iv, xi) e xii) do que considerou, na sua Resposta, a “factualidade mais relevante para a decisão do mérito da causa”), não se provou que as despesas identificadas no relatório de inspecção tenham sido incorridas no âmbito do contrato de venda do terreno.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e, ou, do acordo das Partes.
O facto dado como não provado resulta da impossibilidade de ultrapassar o desacordo das Partes. Acrescente-se:
- que a parte final do ponto iv) daquilo que a AT considerou ser a “factualidade mais relevante para a decisão do mérito da causa” (“O preço de venda acordado foi de € 500.000, sendo da responsabilidade da Requerente os custos a suportar com a aprovação do projeto junto da Câmara Municipal, bem como de todas as despesas a incorrer com a execução dos acessos ao terreno.”) não encontra qualquer acolhimento no texto do contrato promessa;
- que, pelo contrário, a redacção do quarto ponto da Cláusula 1.ª do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Requerente e a B... previa a “Execução das infraestruturas do arruamento de acesso ao terreno.”;
- que não é comum que os contratos de compra e venda de terrenos incluam obras a cargo do vendedor posteriores à data de venda; e
- que a própria AT, no parágrafo 35.º da sua Resposta, reconheceu que “muito menos, ficou demonstrado da contabilidade da Requerente que os encargos suportados influenciavam o custo do terreno.”, o que constitui prática admissão de que as facturas controvertidas não poderiam ser enquadradas no âmbito do contrato de compra e venda desse terreno (ao contrário do que ainda se poderia pretender se o preço de venda tivesse subido por causa dessas obras).
IV. DIREITO
IV.1. Questões a decidir
Ainda que isso não parecesse dever ser a questão essencial, a questão principal que foi colocada ao Tribunal foi a de decidir em qual dos dois contratos celebrados em 2014 entre a Requerente e a B... é que se deviam enquadrar as facturas que estão na origem da correcção aplicada pela AT (nos montantes de € 23.590,28, em 2014, e de € 8.717,00 €, em 2016).
Só em segunda linha – e extemporaneamente – apareceu a questão do ónus da prova de cada uma das Partes nessa matéria. A ser esta relevante, importaria ainda estabelecer quais os requisitos das facturas emitidas para que pudessem ser enquadradas num dos tipos contratuais de uma coligação de contratos, e qual o regime de dedução de IVA aplicável no caso de essa coligação de contratos incluir contratos sujeitos a, e contratos isentos de, pagamento de IVA.
Subsidiariamente, caberia ainda ponderar da eventual falta de fundamentação dos actos de liquidação de IVA respeitantes a 2014 e 2016.
IV.2. Posição da Requerente
Na sua argumentação perante este Tribunal, a Requerente começou por invocar expressamente que “toda a fundamentação da AT está baseada (...) num pressuposto de facto errado – que o contrato de compra e venda de terreno celebrado com a B... estabelecia a obrigação contratual de execução de obras de acesso ao terreno;” Só em segunda linha invocou que tal fundamentação da AT estava baseada “em alegados erros ou omissões nos elementos das faturas emitidas pela Impugnante – que impedem a prova de que as obras de acesso a terreno se enquadram, efetivamente, no âmbito do contrato de prestação de serviços de gestão – e das faturas emitidas pelos seus fornecedores – que impedem a respetiva imputação entre obras de terraplanagem vs. obras de acesso ao terreno;”, acrescentando que estes outros argumentos tinham sido “(ilegalmente) acrescentados pela AT para fundamentar as liquidações em apreço já em sede do projeto de indeferimento da Reclamação Graciosa”.
Seguindo essa sequência, a Requerente entendeu, essencialmente, que:
a) “as despesas a incorrer com a execução dos acessos do terreno não figuram como uma obrigação contratual assumida pela Impugnante no âmbito do contrato (promessa) de compra e venda de terreno celebrado com a B...”, estando previstas, isso sim, na Cláusula 1.ª do contrato de prestação de serviços de gestão de obra, celebrado em simultâneo com aquele contrato;
b) As razões adicionadas pela AT em sede de indeferimento da Reclamação Graciosa configuram uma fundamentação a posteriori ilegal ;
c) A invocada (na decisão da Reclamação Graciosa) indefinição contratual foi especificamente imputada à aprovação do projecto de arquitectura, e as facturas desconsideradas pela AT não se referiam a isso;
d) Ao invocar (na decisão da Reclamação Graciosa) que não havia evidências de terem sido prestados quaisquer serviços inerentes a infraestruturas de acesso ao terreno, a AT estaria a admitir que as despesas cuja dedução do IVA desconsiderou só podiam ser respeitantes às obras de terraplanagem, devendo então o respectivo IVA ser dedutível – o que, por ser contraditório com o que decidiu, equivaleria a falta de fundamentação dessa decisão, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 153.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA);
e) Até por outra razão: quer se tratasse de facturas respeitantes a infraestruturas de acesso ao terreno, quer se tratasse de facturas respeitantes a obras de terraplanagem, sempre seriam actividades sujeitas a IVA e, portanto, incluídas no contrato de serviços de gestão de obra (sendo em ambos os casos a dedução do IVA legítima) e nunca num contrato de compra e venda;
f) Uma vez que a AT não teria demonstrado, de forma alguma, os pressupostos legais que poderiam legitimar a desconsideração dos elementos constantes da contabilidade da Requerente, a prova que caberia a esta fazer tinha sido feita com a junção de facturas de entidades terceiras;
g) A factura emitida à C... pela Requerente, em 2015, pela totalidade do montante do contrato de prestação de serviços celebrado com a B..., constituía um adiantamento “faturado, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 36.º do Código do IVA, aquando do recebimento, não estando o programa de faturação preparado para acautelar tais situações com uma texto diferente.”, e sendo esse programa “certificado pela AT”;
h) O TJUE já estabeleceu que, desde que preenchidos os requisitos materiais do direito à dedução, esta não pode ser negada por falta de certos requisitos formais , e que as exigências que constam do artigo 226.º da Directiva IVA (ou, por transposição, do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA) devem ser objecto de uma interpretação estrita, relevando no plano sancionatório, mas não no plano dos efeitos impeditivos ou extintivos do direito à dedução ;
i) Tal como entendido, aliás, pelo CAAD ;
j) Razão pela qual “mesmo na hipótese de se considerar que os requisitos formais expressamente estabelecidos na lei (e não outros, impostos pela AT) não se encontram suficientemente cumpridos, a sanção desse incumprimento nunca poderia ser a pura e simples recusa do direito à dedução do IVA.”
k) Até porque as dúvidas da AT (só evidenciadas na decisão da Reclamação Graciosa) poderiam ter sido atempadamente esclarecidas e supridas por forma diversa das facturas e respectivos contratos.
IV.3. Posição da Requerida
Em contrapartida a Requerida entendeu, em resposta:
a) Que a argumentação da Requerente assenta na “incoerência nos pressupostos de facto e de direito” da “decisão de indeferimento da reclamação graciosa, bem como dos actos de liquidação e IVA que se encontram subjacentes”, e ainda no “vício de fundamentação alicerçado por fundamentação à posteriori.”;
b) e, retomando a argumentação expendida pela primeira vez na decisão da reclamação graciosa,
i. Que os dois contratos constituíam “um negócio uno e incindível” mas que cada um deles seguia o seu próprio regime, ainda que com “alguma indefinição na afectação do que compete a cada [um] dos contratos”;
ii. Que a factura n.º FA 2015/18 – que tem o valor total previsto no contrato de prestação de serviços – afinal nada refere sobre uma parte desses serviços contratados, limitando-se a indicar descritivos genéricos de uma única actividade: terraplanagem
iii. ... e que, a propósito de várias facturas invocadas para obter deduções, “não há evidências de ter sido efectuada qualquer prestação de serviços inerente a infraestruturas de acesso ao terreno” (desde logo na factura n.º FA 2015/18); que não há “evidências de que a colocação do referido contentor se relacione com as obras de terraplanagem” (factura n.º CFA 2011/79, de 2014.12.04); que “a Requerente [não] logrou demonstrar tal imputação” (de 50% de uma factura para serviços de terraplanagem e os restantes 50% para acessos ao terreno – factura n.º 132/1-2014, de 2014.12.31); e que o descritivo de duas outras facturas (n.º 81A, de 2016.08.02 e n.º 3784, de 2016.07.26) não permitia estabelecer a sua ligação à sua suposta utilidade, muito menos a obras no acesso ao terreno;
iv. Que o facto de haver facturas supostamente referentes a obras de acesso ao terreno em 2016 – depois de ter sido facturada a integralidade do contrato de prestação de serviços em Agosto de 2015 (na factura n.º FA 2015/18) – também descredibiliza a sua afectação a esse contrato;
v. Que, estando em causa o exercício de um direito de dedução invocado pela Requerente, era a esta que cabia o ónus de prova da verificação dos pressupostos em que assenta tal direito (artigos 87.º, n.º 1, e artigo 19.º do Código do IVA, combinados com o artigo 74.º da Lei Geral Tributária - LGT),
vi. como, aliás, tem sido decidido pela jurisprudência e ficou “consignado no Acórdão do Pleno do STA, no âmbito do Proc. n. 0587/15, de 16.03.2016”;
vii. Demais, a decisão do procedimento gracioso teria apenas reforçado “uma afirmação-base” e usado a mesma prova documental para “suscitar dúvidas e incongruências dos documentos.”;
viii. Que o argumento da Requerente de que as falhas formais apontadas pela AT às facturas “não podem ser sancionadas com a recusa do direito à dedução do imposto” claudica no confronto com o disposto na alínea a) do n.º 2, no n.º 6, do artigo 19.º do Código do IVA – que remete para os artigos 36.º e 40.º do mesmo diploma – e com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA. (Como, de resto, com o disposto nos artigos 168.º, 178.º – que remete para os artigos 220.º a 236.º, e 238.º a 240.º – da Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro);
ix. No mesmo sentido, invocou jurisprudência do TJUE e dos nossos tribunais, incluindo o STA .
c) Finalmente: aplicando ao caso dos autos o entendimento de que “No âmbito do contrato de prestação de serviços as partes usarão do rigor que lhes aprouver, no que à medição dos serviços prestados diz respeito, mas para obterem a dedução do imposto sobre o valor acrescentado facturado as facturas hão-de permitir reconstituir que serviço foi prestado e qual o seu custo.” (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2017-10-04, Proc. n.º 01141/16), a AT concluiu que “a Requerente não logrou demonstrar que tipo de encargos, em concreto, estão afectos a cada uma das actividades.”
IV.4. Ponderação dos argumentos das Partes
A) Sobre os argumentos da Requerente:
a) Tem razão a Requerente quanto à total ausência de previsão, no contrato promessa de venda, de referência a quaisquer obras – que, em contrapartida, eram objecto de um contrato específico;
b) Uma vez que foi unicamente com base em tal suposta previsão que a AT fundamentou, nas páginas 18-19 do Relatório de Inspeção Tributária (RIT), a inclusão de tais despesas no âmbito de um contrato que, sendo isento de IVA, não permitia o direito à sua dedução, é verdade que houve erro sobre os pressupostos de facto, tal como invocado pela Requerente;
c) A argumentação da Requerente dirigida a outras razões invocadas na decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa – muito embora com a ressalva de que essas razões, na medida em que constituíssem novos fundamentos para as liquidações impugnadas, não poderiam proceder – era, assim, supérflua.
B) Sobre os argumentos da AT:
a) A propósito da questão da competência do Tribunal, já se viu que os argumentos novos usados na decisão da reclamação graciosa, ainda que auto-gerados pela AT – são inaproveitáveis para fundamentar (necessariamente de forma retroactiva) os actos de liquidação.
b) Como decorre das pp. 18-19 do RIT, a única fundamentação para as liquidações efectuadas foi a seguinte (os negritos foram aditados):
Na sequência destas duas operações, a empresa registou nos anos de 2014 a 2016, diversas faturas relacionadas com serviços de construção prestadas no referido terreno e compra de material, tendo deduzido o IVA suportado com estas despesas. Porém, parte destes gastos foram suportados pela empresa no âmbito do contrato de venda do terreno, nomeadamente, as despesas incorridas com a aprovação do projeto junto da Câmara e com a realização das infraestruturas de acesso ao terreno.
Deste modo, o IVA suportado pelo sujeito passivo, relacionado com despesas que são da sua responsabilidade no âmbito de contrato de compra e venda do imóvel em questão, não é dedutível nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, uma vez que respeita a despesas associadas a uma operação isenta (venda de terreno), que não confere direito à dedução.
De acordo com os documentos registados e a informação prestada pelo contribuinte, as despesas abaixo elencadas foram incorridas no âmbito do contrato de venda do terreno sito no lugar de ..., em ..., pelo que foi indevidamente deduzido o IVA suportado com as mesmas, nos montantes de 23.590,28 €, em 2014, e 8.717,00 €, em 2016
c) Em parte alguma do contrato promessa se faz qualquer referência à “realização das infraestruturas de acesso ao terreno”. Bem ao contrário, no Considerando G desse contrato o que se escreve é que “Constitui ainda pressuposto e condição essencial da realização de compra e venda objecto do presente contrato que a PROMITENTE-VENDEDORA proceda à gestão da obra de terraplanagem pelo que as ora CONTRATANTES celebram na presente data um contrato de serviços de gestão de obra, cuja minuta se junta ao presente contrato como ANEXO V;”
d) Assim, ao contrário do que ficou consignado no RIT, não só não havia previsão de obras no âmbito do contrato de venda (isento de IVA), como a Requerente e a adquirente tinham acordado expressamente sujeitar as obras a haver a um outro contrato (sujeito a IVA);
e) A única parte da fundamentação utilizada no indeferimento da reclamação graciosa que é nesta altura relevante – por constituir, pode dizer-se, reforço da argumentação previamente utilizada e não produção de nova fundamentação – reside, portanto, na imputação de tais despesas ao âmbito do contrato de venda do terreno. Como se escreveu na Informação de 18 de Dezembro de 2018, do Serviço de Finanças do Porto-... (que serviu de fundamento ao indeferimento da Reclamação Graciosa):
“De acordo com o contrato promessa de compra e venda, celebrado em 2014.07.25, este terreno foi adquirido para ser vendido à empresa B..., S.A., para lá ser instalado um edifício para indústria, tipo 2, destinado à fabricação de embalagens de papel e cartão. O preço de venda acordado foi de € 500.000,00, sendo que era da responsabilidade da promitente vendedora (A...) os custos a suportar com a aprovação do projecto junto da Câmara Municipal, bem como de todas as despesas a incorrer com a execução dos acessos ao terreno.” (negrito aditado);
f) Esta última conclusão é destituída de qualquer amparo contratual, constituindo mera reiteração do fundamento invocado nos actos de liquidação – em que pode ter resultado de um mero lapso interpretativo ou eventual confusão do conteúdo dos textos contratuais;
g) Tirando na passagem citada na penúltima alínea, a fundamentação dos actos de liquidação diferia significativamente da que foi subsequentemente usada no indeferimento da reclamação graciosa, e que veio a ser reiterada perante este Tribunal; ora, uma vez que – como a AT não deixou de sublinhar – o Tribunal não pode conhecer da fundamentação do acto de indeferimento da reclamação graciosa (excepto na medida em que esta se apresente como um “mero reforço” do anteriormente invocado), essa nova argumentação não pode ser considerada – mas também não aproveita à AT;
h) Em consequência, não é agora relevante, como invocou a AT, que a Requerente não tenha logrado “demonstrar que tipo de encargos, em concreto, estão afectos a cada uma das actividades”: só o seria se a AT já assim tivesse concluído na fundamentação das decisões de liquidação dos montantes de IVA tidos como indevidamente deduzidos. E o mesmo se diga quanto aos demais argumentos invocados, incluindo o referente à data e dizeres da factura emitida pela totalidade do preço acordado para o contrato de gestão de obra.
IV.5. Conclusões
a) A primeira conclusão a retirar da discussão entre as Partes é a de que uma questão que ambas reconheceram ser de facto (a Requerente invocou essencialmente um erro sobre os pressupostos de facto da decisão, e a AT acabou por centrar a sua argumentação em juízos sobre a materialidade – o tipo concreto – das despesas) volveu-se numa questão de interpretação contratual (ou seja: sobre a subsunção dessas despesas a um dos dois contratos celebrados entre a Requerente e a B... em 2014: o de compra e venda ou o de prestação de serviços).
Assim, a Requerente entendeu que “aquilo que está em discussão no presente pedido de pronúncia arbitral é o enquadramento, para efeitos do IVA, dos serviços de execução de obras de acesso a terreno prestados pela Impugnante à sociedade B... .”, e a AT assentou a sua posição na conclusão de que “as despesas identificadas no relatório de inspecção foram incorridas no âmbito do contrato de venda do terreno, sito no lugar de ..., em ..., pelo que foi indevidamente deduzido o IVA suportado com as mesmas”).
b) A segunda conclusão – derivada e explicativa da anterior – tem a ver com a existência de dois planos de facto:
- num primeiro plano a questão relevante é a da adequação das facturas à realidade (os gastos foram ou não incorridos? E tendo-o sido, foram-no em quê?), podendo eventualmente prolongar-se nos requisitos da evidenciação dessa adequação (como é que se comprova essa correspondência do facturado ao executado?);
- num segundo plano, a questão relevante é a da adequação dessas facturas a um certo contexto contratual (os gastos incorridos foram-no no contexto do contrato de prestação de serviços de gestão de obra – como seria normal – ou – de forma anómala – no contexto do contrato de compra e venda anterior? ).
c) A terceira conclusão é a de que, embora a AT tenha sublinhado, quer na decisão da reclamação graciosa, quer na resposta ao PPA, que cabia à Requerente fazer prova adequada do que estava em causa no primeiro plano referido, na fundamentação dos actos de liquidação não fez qualquer referência a isso: tanto quanto é possível perceber , limitou-se a imputar os valores das quatro facturas (CFA 2011/79; 132/1 - 2014; 81A e 3784) ao contrato que assumiu – sem fundamento aparente – ser mais adequado a elas.
d) A quarta conclusão é a de que, porque essa foi a única fundamentação dos actos de liquidação, é só sobre essa actividade subsuntiva que cabe pronúncia deste Tribunal – como a própria AT reclamou, em sede da questão de incompetência suscitada.
e) E a quinta e última conclusão é a de que – em consonância com a posição das Partes – a questão ficou resolvida com a decisão da matéria de facto: ao constatar que não era possível dar como provado (ao contrário do pretendido pela AT) que “parte dos gastos” das facturas desconsideradas “foram suportados pela Requerente no âmbito do contrato de venda do terreno”, tornou-se evidente que havia um erro sobre os pressupostos de facto nas liquidações impugnadas, e todas as questões de Direito discutidas pelas Partes – correspondendo embora ao que deveria ser o adequado enquadramento da questão – perderam oportunidade.
V. JUROS
O artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que
“São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
Uma vez que já se estabeleceu que o pagamento indevido resultou de erro imputável aos serviços da Administração Tributária, os juros são devidos.
Como a Requerente procedeu ao pagamento de apenas uma parte da importância indevidamente liquidada (constituindo garantia em outra parte, mas nada pedindo em relação a isso), tem direito, segundo a jurisprudência uniforme do CAAD, e como pediu, à devolução do montante de €14.622,42, bem como ao recebimento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos do n.º 2 do artigo 99.º do CIVA e do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
VI. DECISÃO
Em face do exposto, julga-se procedente o pedido formulado pela Requerente e, consequentemente, decide-se
a) Anular a decisão tomada pela AT em sede de Reclamação Graciosa, por erro nos pressupostos de facto;
b) Anular, por erro nos pressupostos de facto, as liquidações de IVA, e respectivos juros, n.º 2018..., n.º 2018 ... e n.º 2018..., com todas as consequências legais;
c) Condenar a AT à devolução das quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios à taxa legal, e à libertação da garantia no remanescente;
d) Condenar a AT nas custas do processo, nos termos indicados infra.
VII. VALOR DO PROCESSO
Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) deve ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT). Uma vez que, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 8, da Lei Geral Tributária, “Os juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados.”, aceita-se o valor indicado pela Requerente (e não discutido pela AT), fixando-se o valor do processo em €32.453,18 (trinta e dois mil quatrocentos e cinquenta e três euros e dezoito cêntimos).
VIII. CUSTAS
Custas a cargo da Requerida (AT), no montante de €1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 4, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o presente pedido foi julgado inteiramente procedente.
Lisboa, 8 de Novembro de 2019
O Árbitro Singular
Victor Calvete
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.