DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A...– SUCURSAL EM PORTUGAL”, sediada na ..., n.º ... andar, ...-... ..., com o número fiscal ..., e B..., sociedade de direito alemão, com sede em ..., ... ...-Alemanha, com registo para efeitos de IVA em território nacional, com o número fiscal 980.516.129, vêm, em coligação, requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IVA e de liquidação de juros compensatórios, no valor global de € 198.241,78, referentes ao período de Janeiro a Agosto de 2014, quanto à primeira Requerente, e de Setembro a Dezembro de 2014, quanto à segunda Requerente, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.
Como fundamentos do pedido, as Requerentes invocaram os vícios de falta de fundamentação e de violação de lei por errónea interpretação e aplicação do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 3.º, no n.º 5 do artigo 7.º, e na alínea e) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA.
Notificada para responder por despacho de 28 de Junho de 2019, a Autoridade Tributária, ainda dentro do prazo fixado para a apresentação da resposta, veio comunicar que os actos tributários impugnados foram revogados por despacho do Subdirector-Geral do IVA, datado de 30 de Julho de 2019.
Por despacho de 14 de Setembro de 2019, as Requerentes foram notificadas para se pronunciarem sobre o acto revogatório e as suas consequências para o prosseguimento do processo, vindo requerer que se declare a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide e a condenação da Autoridade Tributária em custas e na restituição das quantias indevidamente pagas acrescidas de juros indemnizatórios.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 26 de Junho de 2019.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades nem foram invocadas excepções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
3. Na sequência de acções inspectivas tituladas pelas ordens de serviço n.ºs OI 2018 ... e OI 2018 ..., que tiveram por objecto a análise conjunta de procedimentos adoptados pelas Requerentes no que se refere liquidação e entrega de IVA, foram promovidas correcções em sede de IVA, incluindo juros compensatórios, no valor global de € 198.241,78.
A Requerente deduziu um pedido de pronúncia arbitral para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional com base em falta de fundamentação e de violação de lei por errada interpretação e aplicação do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 3.º, no n.º 5 do artigo 7.º, e na alínea e) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA.
Ainda dentro do prazo para apresentar a resposta, a Administração Tributária veio comunicar a revogação dos actos tributários impugnados por despacho do Subdirector-Geral do IVA.
O despacho de revogação, datado de 30 de Julho de 2019, é do seguinte teor: “Concordo. Revogo os actos tributários objecto do pedido arbitral. Não há lugar ao pagamento dos juros indemnizatórios”. O mesmo despacho foi exarado sobre uma informação dos serviços de IVA que se pronuncia no sentido da anulação dos actos de liquidação impugnados e restituição das importâncias indevidamente pagas com base em vício de falta de fundamentação, não havendo lugar ao pagamento de juros indemnizatórios por não estar em causa um erro nos pressupostos de facto ou de direito imputável aos serviços.
Neste contexto, cabe analisar os efeitos processuais do dito acto revogatório.
4. A esse propósito, importa preliminarmente referir que o novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º do CPA, a revogação é “o acto administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro acto, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o acto administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro acto, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto que a anulação administrativa, tendo por objecto a eliminação do mundo jurídico de actos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroactivos (artigo 171.º, n.º 3).
No caso vertente, a Autoridade Tributária entendeu considerar-se verificado o vício de falta de fundamentação, pelo que praticou, segundo a nova terminologia, um acto de anulação administrativa, isto é, um acto que tem como fundamento considerações de legalidade administrativa e não de mera discricionariedade. Assim sendo, o falado despacho de 30 de Julho de 2019, embora adopte a fórmula verbal anteriormente aplicável, corresponde a um verdadeiro acto anulatório.
A questão que primeiramente poderia colocar-se é a de saber - atendendo ao disposto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT - se é possível proceder, na pendência do processo arbitral, à anulação administrativa dos actos tributários impugnados.
O citado artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, sob a epígrafe “Efeitos do pedido de constituição do tribunal arbitral”, dispõe o seguinte:
Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objecto a apreciação da legalidade dos actos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do acto tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, acto tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º
O prazo previsto a alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º a que essa disposição se refere é o que respeita à comunicação às partes da constituição do tribunal arbitral, o que permite concluir que esse é um prazo procedimental, inserido no procedimento de constituição do tribunal, e que decorre ainda antes de ter início o processo arbitral (cfr. artigo 15.º).
Tal não significa, no entanto, que à Administração esteja vedado a anulação administrativa do acto impugnado já na pendência do processo arbitral.
A Autoridade Tributária, enquanto entidade administrativa, encontra-se subordinada às disposições do Código de Procedimento Administrativo (artigo 2.º, n.º 1), e, por outro lado, como resulta do disposto no artigo 29.º do RJAT, são de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, de acordo com a natureza do caso omisso, entre outras, as normas sobre o processo nos tribunais administrativos.
O artigo 168.º do CPA, que define os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa, no seu n.º 3, estabelece que “quando o ato tenha sido objecto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”. Deve entender-se como encerramento da discussão, em correspondência com o estabelecido no artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC, o momento em que as partes produzam alegações orais ou o termo do prazo para alegações escritas ou o termo da fase dos articulados quando as partes tenham dispensado as alegações finais e o estado do processo permita sem necessidade de mais indagações a apreciação do pedido.
Haverá de concluir-se, por conseguinte, que o CPA alargou os poderes de disposição da Administração na pendência do processo, permitindo, na linha do que já vinha sugerido pela doutrina, que a anulação administrativa, quando o acto tenha sido objecto de impugnação jurisdicional possa ter lugar até ao encerramento da discussão, e não apenas até à resposta, como estava previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA de 1991.
Seja como for, nada obsta a que a Administração, ao abrigo do citado artigo 168.º, n.º 3, possa anular o acto tributário impugnado na pendência do processo, desde que dentro do limite temporal definido nessa disposição, e essa faculdade nada tem a ver com o regime específico a que se refere o artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, que confere a possibilidade de a Administração anular o acto impugnado ainda no âmbito do procedimento de constituição do tribunal arbitral.
Dito isto, não pode deixar de reconhecer-se que a anulação administrativa é tempestiva, visto que a Autoridade Tributária praticou o acto anulatório ainda dentro do prazo para a apresentação da resposta, havendo de atribuir-se à anulação, nesse condicionalismo, os correspondentes efeitos de direito.
No que concerne às consequências processuais da anulação administrativa interessa considerar a norma do artigo 64.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, que, entre outros dispositivos, se refere às situações em que, na pendência do processo impugnatório, o acto impugnado é objecto de anulação administrativa acompanhada ou seguida de nova definição da situação jurídica, caso em que se admite que o processo impugnatório prossiga contra o novo acto com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades. Prevê-se aí a hipótese típica de ampliação do objecto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o acto impugnado praticando um novo acto em sua substituição contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em reagir.
É patente, no entanto, que não é essa a situação do caso.
A Administração anulou os actos sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica. Ora, a anulação do ato impugnado pela própria Administração, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância (artigo 277.º, alínea e), do CPC).
Coloca-se ainda a questão do pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT o direito a juros indemnizatórios, em resultado da anulação judicial de um acto de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Tributária.
No caso, a anulação de um acto de liquidação baseou-se em falta de fundamentação, nada obstando a que a Administração, em execução de sentença, possa praticar um acto com o mesmo conteúdo, devidamente fundamentado, desde que respeite os princípios e as normas legais aplicáveis. Nestes termos, a anulação com o apontado fundamento não implica a existência de qualquer erro sobre os pressupostos de facto ou de direito do acto de liquidação, pelo que não existe o direito de juros indemnizatórios a favor do contribuinte (cfr., neste sentido, em situação paralela, o acórdão do STA de 12 de fevereiro de 2015, Processo n.º 01610/13, o acórdão do Pleno da Secção do CT do STA de 28 de Novembro de 2018, Processo n.º 087/18.0BALSB, e a decisão arbitral proferida no Processo n.º 150/2018-T).
III – Decisão
Termos em que se decide julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 198.241,78, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).
Notifique.
Lisboa, 7 de Outubro de 2019
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
João Taborda da Gama
(Vencido apenas quanto ao pagamento dos juros indemnizatórios. Entendo que não há qualquer razão jurídica substancial para que a falta de fundamentação – uma omissão culposa da Administração – a exima do pagamento de juros indemnizatórios, pelas razões que detalhei em “João Taborda da Gama, Erros, Serviços e Vícios na Atribuição de Juros Indemnizatórios – Comentário ao Acórdão do STA n.º 114/02, de 29-05 (REL.: Almeida Lopes), e ao Acórdão do STA n.º 772/04, de 17-11 (REL.: Baeta de Queiroz), Fiscalidade, 23, Julho-Setembro 2005”, 113 ss).
O Árbitro vogal
Henrique Nogueira Nunes