DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
CAAD: Arbitragem Tributária
1. No dia 24.02.2014, a Requerente, A (“A” ou “Requerente”), pessoa coletiva n.º …, com sede na …, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do art. 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação de 45 Liquidações Oficiosas de Imposto Único de Circulação (“IUC”), identificadas nos documentos nº 2 a n.º 46, juntos com a petição inicial, relativos aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012, que somam o valor total de € 1.697,39. Peticiona, ainda, a Requerente o pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal desde a data do pagamento dos tributos em causa, até efetivo reembolso.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do art. 6.º do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 30.04.2014.
3. A reunião prevista no artigo 18º do RJAT teve lugar no dia 3.07.2014 de 2014, pelas 15.30 horas.
4. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, são, sinteticamente, os seguintes:
4.1. A Requerente é uma instituição financeira que tem por objeto social a prática das operações permitidas aos bancos, com exceção da receção de depósitos, dispondo, para o efeito, de todas as autorizações legalmente exigíveis.
4.2. No âmbito da sua atividade, a Requerente celebra com os seus clientes contratos de Aluguer de Longa Duração e Contratos de Locação Financeira, de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respetivos locatários ou a terceiros.
4.3. Entre 10 e 20 de Dezembro de 2013, foi a Requerente notificada de Liquidações Oficiosas de IUC relativas às viaturas identificadas no presente pedido de pronúncia arbitral e aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012.
4.4. A Requerente procedeu ao pagamento voluntário do IUC alegadamente em falta.
4.5. Não obstante o exposto, a Requerente discorda da prática dos referidos atos de liquidação, na medida em que, os veículos relativamente aos quais impendia o pagamento do IUC não eram sua propriedade à data identificada pela ATA como data da ocorrência do facto gerador do imposto.
4.6. De acordo com o disposto no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
4.7. O recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do funcionamento do IUC evidencia-se, de resto, ao longo de todo o Código.
4.8. Da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode deixar de concluir que a norma de incidência subjetiva na parte em que considera como proprietário a pessoa em nome do qual o veículo se encontre registado constitui uma mera presunção (legal) de incidência.
4.9. É certo que o atual texto não usou o termo “presumem-se”, ao contrário do que constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos.
4.10. Contudo, examinando o ordenamento jurídico português, encontramos diversos exemplos de normas que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”.
4.11. Também no ordenamento jurídico tributário podemos encontrar o verbo “considerar” com um sentido presuntivo como é o caso do artigo 21.º, n.º 2 do Código do IRC e do 89-A.º, n.º 4 da LGT tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, acompanhados da doutrina e jurisprudência indicadas, por apelo ao elemento sistemático, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões podem, igualmente, servir de base a presunções, nomeadamente o termo “considera-se”, mostrando-se desta forma cumprida a condição estabelecida no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil.
4.12. Se é certo, porém, que o elemento literal, por si só, não pode ser considerado inteiramente decisivo, quando acompanhado de outros elementos é bastante relevante e indicador do verdadeiro sentido da norma em análise, apontando para que a expressão “considerando-se como tais” seja equivalente à expressão “presumindo-se como tais”.
4.13. Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1.º do Código do IUC que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
4.14. Como é, aliás, referido na Proposta de Lei n.º 118/X, os veículos devem, pois, ser tributados em função, nomeadamente, do seu potencial poluidor e dos níveis de segurança apresentados.
4.15. Por todo o exposto, e atendendo, por um lado, ao lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa no Código do IUC, ao elemento histórico corporizado na mencionada Proposta de Lei e, bem assim, ao elemento racional subjacente à reforma da tributação automóvel referido nos parágrafos anteriores, só faz sentido conceber a expressão “considerando-se como tais”, no contexto do artigo 3.º do Código do IUC, como reveladora da presença de uma presunção ilidível.
4.16. A ratio legis do IUC antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, os efetivos proprietários ou, ainda, os locatários financeiros, pois são estes que, como utilizadores dos veículos, têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade e simetricamente obtêm o benefício da utilização.
4.17. Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis.
4.18. Assim, não poderá deixar de entender-se que a expressão “considerando-se como tais” utilizada no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, configura uma presunção legal, a qual é ilidível, nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT.
4.19. Por todo o exposto, bem como dos elementos ora fornecidos pela Requerente conclui-se que à data da exigibilidade do imposto a que respeitam as liquidações em apreço, não era esta a proprietária dos veículos naquelas identificados, por se ter já anteriormente operado as respetivas transferências, nos termos da lei civil.
4.20. De acordo com o disposto no artigo 874.º do Código Civil, define-se por compra e venda “(…) o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” .
4.21. Por sua vez, o artigo 879.º do Código Civil prevê que “(…) a compra e venda tem como efeitos essenciais: (a) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; (b) a obrigação de entregar a coisa; (c) a obrigação de pagar o preço”.
4.22. Pese embora esta disposição contribua para responder à questão em análise, o Decreto-Lei n.º 54/75 é, no entanto, omisso quanto ao valor jurídico do registo de propriedade automóvel.
4.23. Importa, pois, socorrer-nos das disposições relativas ao registo predial conforme aponta o artigo 29.º daquele diploma.
4.24. Assim, e de acordo com o disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial, “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
4.25. Ora, da leitura conjugada de ambas as disposições legais, resulta que a função essencial do registo é, precisamente, dar publicidade à situação dos veículos, isto é, ao ato registado, não surtindo o registo, conforme aponta o Acórdão do STJ de 19 de Fevereiro de 2004 “(…) eficácia constitutiva funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção juris tantum) da existência do direito (art.s 1º, nº1 e 7º, do CRP84 e 350º,nº 2, do C. Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.
4.26. Esta interpretação veio, de resto, a receber consagração legal no n.º 4 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, nos termos do qual “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.
4.27. Atenta a noção legal e jurisprudencial de “terceiro”, não podemos deixar de concluir que a ATA não preenche os requisitos da referida noção de “terceiro” não podendo, desta forma, invocar a ausência de registo para justificar a ineficácia dos contratos de compra e venda de veículos automóveis.
4.28. Caso o comprador (novo proprietário do veículo) não providencie o registo do seu direito de propriedade, presume-se que este direito continua a ser do vendedor podendo, todavia, esta presunção ser ilidida mediante prova em contrário.
4.29. Em face do exposto, é legitimo concluir que a ATA não poderá prevalecer-se da ausência de atualização do registo do direito de propriedade, para exigir o pagamento do imposto ao anterior proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado se e quando, por qualquer meio, lhe for apresentada prova bastante da despectiva venda.
5. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação e por exceção.
Como questão prévia, a Requerida invocou, ainda, a irregularidade da procuração conferida à mandatária da Requerente, pelo facto de se encontrar certificada pela própria advogada à qual foram conferidos os poderes forenses o que, no seu entender, se mostra contrário ao parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados nº …-G, de 2008-07-30.
Por outro lado, relativamente ao veículo automóvel com a matrícula …, declarou que constatou que a propriedade do mesmo se encontra registada em nome de outrem que não a Requerente desde 13.12.2006, data anterior à da exigibilidade do imposto em causa, pelo que, quanto a este veículo declarou que irá proceder à revogação da “pretensa liquidação oficiosa em causa”.
Na defesa por exceção, invocou a Requerida, em síntese, o seguinte:
5.1. A requerente labora em erro quando veio reagir contra aquilo que ela própria apelida de “liquidações oficiosas” de IUC.
5.2. Os documentos juntos pela Requerente não constituem liquidações oficiosas. Para tal, teriam de ser gerados e enviados pela Requerida à Requerente, o que não sucedeu no caso vertente.
5.3. Na realidade, os documentos 2 a 46 juntos à p.i. constituem meras notas de cobrança geradas e extraídas pela própria Requerente no Portal das Finanças através da Internet pelo que, relativamente aos veículos automóveis sub judice, a Requerida não gerou nem enviou à Requerente quaisquer liquidações oficiosas com vista ao IUC referente aos anos de 2009 a 2012.
5.4. Foi a Requerente que, sem ter sido notificada para o efeito, procedeu à emissão das notas de cobrança aqui em causa relativamente a cada uma das viaturas e para os anos de 2009 a 2012 pelo que, o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral não se escora sobre atos de “liquidação oficiosa” emitidos pela Requerida, mas sim sobre notas de cobrança que a Requerente de forma totalmente voluntária extraiu do Portal das Finanças sobre as quais procedeu ao pagamento.
5.5. Liquidação e cobrança são realidade distintas e apenas a primeira (e não a segunda) é passível de reação mediante a dedução de pedido de pronúncia arbitral.
5.6. Não constituindo a nota de cobrança um ato tributário, naturalmente que se verifica no caso vertente uma situação de falta de objeto, a qual constitui exceção perentória, pois que o meio de reação contra as notas de cobrança, enquanto meros atos em matéria tributária, deverá ser a Ação Administrativa Especial.
5.7. Concluindo-se, assim que o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub judice.
5.8. Ainda que assim se não julgue – o que só por mera hipótese se admite – e se entenda que, na realidade, se está perante autoliquidações geradas pela própria Requerente no Portal das Finanças, sempre se dirá que o presente pedido de pronúncia arbitral não poderá proceder.
5.9. É certo que as autoliquidações configuram atos tributários, mas a reação contras os mesmos, através do pedido de pronúncia arbitral depende de prévia e necessária dedução de Reclamação Graciosa no prazo de 2 anos a contar da apresentação da declaração, conforme estatui o artigo 131º, nº 1 do CPPT.
5.10. Ora, a Requerente não apresentou qualquer Reclamação Graciosa relativamente aos atos de autoliquidação sub judice, razão pela qual também por esta via não são suscetíveis de serem sindicados tais atos.
6. Por impugnação, alegou a Requerida, ainda em síntese, o seguinte:
6.1. O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são o sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados, não tendo o legislador usado a expressão “presume-se”, como poderia ter feito.
6.2. O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº 1 do art. 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros.
6.3.Também o elemento sistemático de interpretação da lei, demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável estabelecendo o artigo 6º, nº 1, do CIUC que “O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”.
6.4. No mesmo sentido milita a solução legislativa adotada pelo legislador fiscal no artigo 3º, nº 2 do CIUC ao fazer coincidir as equiparações aí consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respetivo registo.
6.5. A aceitar-se a posição defendida pela Requerente, a Requerida teria de proceder à liquidação de IUC relativamente a outrem indicado pela pessoa constante do registo automóvel como proprietário, que por sua vez poderia alegar e provar que entretanto já havia vendido a terceiro, que poderia declarar o mesmo e assim sucessivamente e indefinidamente, ficando em causa, inclusivamente, o prazo de caducidade do imposto.
6.6. A aprovação do Dec-Lei 20/2008, de 31 de Janeiro teve como objetivo estabelecer procedimentos tendentes a adaptar o registo automóvel ao novo regime de tributação, de molde a evitar os problemas existentes, nomeadamente, os relacionados com o facto de existirem muitos veículos não registados em nome do real proprietário.
6.7. Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC, o legislador quis intencionalmente e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome dos quais os veículos se encontrem registados.
6.8. A não atualização do registo, nos termos do artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito ativo deste imposto.
6.9. A interpretação proposta pela Requerente do art. 3º, nº 1 do CIUC é contrária à Constituição da Republica Portuguesa na medida em que desvaloriza a realidade registal face a uma “realidade informal”, violando o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
6.10. Mesmo que assim não se entendesse, as 33 faturas juntas pela Requerente não constituem prova suficiente para abalar a (suposta) presunção legal estabelecida no art. 3º do CIUC, pois não é apta a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois não revelam a imprescindível declaração de vontade do pretenso adquirente, tanto mais que as próprias faturas juntas ao pedido de pronúncia referem expressamente que as mesmas só são validas como recibo “após boa cobrança”.
6.11. Por outro lado, as faturas corporizadas nos documentos 47 e 75 levantam sérias dúvidas sobre a sua veracidade, podendo-se especular que a sua junção constituirá uma tentativa apressada para demonstrar uma realidade inexistente, já que incluem taxas de imposto sobre o valor acrescentado que não existiam à época ou não sequer incluem qualquer taxa, pois que:
a) A fatura junta sob o documento 47, supostamente emitida a 2007-03-08, não indica sequer a taxa de IVA, quando naquela data a taxa deveria ser a de 21% (Lei 39/2005, de 24 de Junho);
b) A fatura junta sob o Documento 75, supostamente emitida a 2004-03-09, indica uma taxa de IVA de 23%, quando naquela data a taxa deveria ser de 19% (Lei nº 16-A/2002, de 31 de Maio).
6.12. Em suma, a Requerente não logrou provar a pretensa transmissão do veículo aqui em causa.
7. Notificada da resposta apresentada pela Requerida, veio a Requerente apresentar resposta por escrito à exceção suscitada alegando, em síntese:
7.1. A requerente foi confrontada na sua parte privativa do Portal das Finanças, com uma série de dívidas de IUC, documentadas naquilo a que a AT chama de notas de cobrança (documentos de cobrança).
7.2. Para efeitos da sua situação fiscal, as dívidas de IUC documentadas pelas referidas notas de cobrança eram já passíveis de pagamento, e foram pagas pela requerente conforme consta da documentação anexa ao pedido de constituição de Tribunal Arbitral.
7.3.Foi uma prioridade para a requerente proceder ao pagamento daquelas dívidas de IUC aparecidas no sistema, uma vez que a lesividade decorrente da impossibilidade de obter, para os mais variados efeitos da sua atividade comercial, uma certidão negativa de dívidas (certidão de situação contributiva regularizada), ultrapassava em muito a lesividade das concretas liquidações de imposto, pressupostas naquelas dívidas e que lhe são logicamente antecedentes.
7.4. No mais, a requerente não sabe, não tem como saber, e acha altamente preocupante que a AT, com respeito a uma pluralidade de situações de dívidas em sede de IUC que a requerente desconhecia e não inventou, constantes do sistema informático da AT em estádio que permitia e permitiu o seu pagamento, venha dizer agora que não tem nada a ver com isso, e que teria sido a requerente a responsável pela geração das notas de cobrança.
7.5. As dívidas de IUC aparecidas no sistema informático da AT (na área de acesso reservado à requerente), são um facto indesmentível da criação da AT, a possibilidade do seu pagamento é também um facto indesmentível da responsabilidade da AT, e a quantificação dos seus montantes muito concretos, ano e matrícula do imposto, é também da inteira responsabilidade da AT e respetivo sistema informático.
7.6. Estas dívidas de IUC pressupõem lógica e necessariamente uma série de liquidações de IUC, sendo irrelevante para o caso o meio pelo qual a requerente tomou delas conhecimento: o facto é que tomou, e na forma mais lesiva possível (imputação pela AT de uma dívida de imposto à requerente), e o facto é que contra elas reagiu via pedido de constituição de Tribunal Arbitral.
7.7. A terminar, mais constata a requerente que pagou as dívidas de IUC em Dezembro de 2013 e, até à data (Junho de 2014), não foi ainda notificada diretamente ou ex professo, das liquidações.
8. Na mesma peça processual a Requerente apresentou nova procuração e requereu a ratificação do processado, o que foi deferido por despacho arbitral de 3.07.2014.
9. As partes apresentaram alegações escritas nas quais mantiveram as suas posições.
10. A cumulação de pedidos relativa aos atos tributários de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral mostra-se admissível em face do art. 3.º, n.º 1 do RJAT, uma vez que a procedência dos pedidos depende, essencialmente, da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito.
11. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
II – A matéria de facto relevante
12. O Tribunal considera provados os seguintes factos:
12.1. A Requerente é uma instituição financeira que tem por objeto social a prática das operações permitidas aos bancos, com exceção da receção de depósitos, dispondo, para o efeito, de todas as autorizações legalmente exigíveis.
12.2. No âmbito da sua atividade, a Requerente celebra com os seus clientes contratos de Aluguer de Longa Duração e Contratos de Locação Financeira, de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respetivos locatários ou a terceiros.
12.3. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre 16.10.2013 e 20.12.2013, a requerente tomou conhecimento mediante acesso à sua parte privativa do Portal das Finanças, de um conjunto de dívidas de IUC, documentadas por quarenta e cinco notas de cobrança, associadas a outras tantas demonstrações de liquidação e demonstração de liquidação de juros compensatórios, conforme documentos números 2 a 46 juntos com a petição inicial que se dão por integralmente reproduzidos.
12.4. Estas liquidações e documentos de cobrança respeitavam aos períodos de tributação de 2009, 2010, 2011 e 2012.
12.5. Os documentos de cobrança em causa são datados de 16.10.2013.
12.6. Nas liquidações, os juros compensatórios foram contabilizadas até 16.10.2013.
12.7. A Requerente pagou a liquidações em causa, com referência aos respetivos documentos de cobrança, em 10.12.2013, com exceção da liquidação correspondente ao doc. nº 29, correspondente à viatura com a matrícula …, que foi paga em 20.12.2013.
12.8. A requerente não foi notificada das liquidações.
12.9. O fim do prazo para liquidação e pagamento dos tributos em causa pelo sujeito passivo ocorreu entre 2.03.2009 e 2.11.2012.
12.10. Os veículos a que respeitam as liquidações constantes dos documentos números 3 a 40 e 42 a 46 juntos com a petição inicial não eram propriedade da Requerente nas datas da ocorrência dos factos geradores das obrigações tributárias em causa no presente processo, por terem sido vendidos anteriormente.
12.11. Nas datas da ocorrência dos factos geradores das obrigações tributárias em causa no presente processo, todos os veículos a que respeitam as liquidações em causa no presente processo estavam registados na Conservatória do Registo Automóvel a favor da Requerente.
13. Factos não provados.
Com interesse para a decisão da causa não se considera provado, relativamente às liquidações a que respeitam os documentos 2 e 41 juntos com a petição inicial, que os veículos a que as mesmas respeitam tenham sido vendidos pela Requerente em data anterior à da ocorrência do facto gerador das respetivas obrigações fiscais.
14. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos juntos com a petição inicial sob os números 3 a 40 e 42 a 79, bem como nas posições manifestadas pelas partes nos seus articulados e requerimentos relativamente à matéria de facto.
Os números 12.1 e 12.2 da matéria de facto provada foram admitidos por acordo e resultam ainda dos documentos juntos pela Requerente.
Dos documentos juntos pela Requerente na petição inicial sob os números 2 a 46, que não foram objeto de qualquer impugnação pela Requerida (bem pelo contrário a Requerida sustenta no art. 13º da resposta que estes documentos sustentam a posição que defende, o que pressupõe a sua aceitação), resulta a prova da existência não só dos documentos de cobrança, mas também das liquidações que as originaram.
A este respeito, a tese da Requerida de que “os documentos 2 a 46 juntos à p.i. constituem meras notas de cobrança”, não encontra apoio em tais documentos. Destes constam, expressamente, quer a liquidação do imposto, quer a liquidação dos respetivos juros, com explícita menção, quer à taxa, quer à data de início e fim de contagem e ao número de dias.
O facto de não se ter provado que tais liquidações foram legalmente notificadas à Requerente (que na resposta às exceções retificou afirmação constante da p.i. nesse sentido, esclarecendo que apenas teve conhecimento das mesmas por consulta à sua área reservada do “Portal das Finanças” e que não foi notificada das mesmas) não contende com a prova do ato tributário, mas apenas com a sua notificação ao interessado.[1]
O essencial dos factos dados como provados sob os números 12.3 a 12.7 e 12.9 resulta dos referidos documentos juntos com a petição sob os números 2 a 46 e não impugnados, resultando a prova do facto nº 12.8 de acordo das partes nesse sentido (considerando a referida retificação feita pela Requerente).
O facto nº 3 do probatório, ainda, resulta da conjugação da admissão por acordo da inexistência de notificação da liquidação, com os aludidos documentos nºs 2 a 46 junto com a petição inicial. Na verdade, tendo as liquidações a data de 16.10.2013, conforme resulta dos documentos e os pagamentos sido efetuados em 10.12.2013 (quarenta e quatro liquidações) e 20.12.2013 (uma liquidação), o conhecimento das liquidações pela Requerente só poderá ter-se verificado em tal intervalo de tempo.
A prova dos factos vertidos no nº 12.10 resulta das faturas juntas pela Requerente sob os números 48 a 74 e 76 a 79.
Apesar de tais documentos serem emitidos unilateralmente pelo vendedor, segundo as regras da experiência, nada aponta, antes pelo contrário, para a não coincidência de tais faturas com a realidade que representam.
Por outro lado, a Requerida não aponta qualquer concreta falta de correspondência das faturas com as transações nelas representadas, acrescendo ainda que, nas mesmas, foi liquidado imposto sobre o valor acrescentado, não tendo sido alegado que o mesmo não tenha sido levado às respetivas declarações, ou que os adquirentes, destinatários das mesmas, não as tenham tomado em consideração as mesmas para efeitos jurídico-fiscais.
O facto nº 12.11 resulta de acordo das partes, expresso nos articulados.
Relativamente à matéria de facto considerada não provada, diversamente do que ocorre com as demais faturas, não se considera que das faturas números 47 e 75 resulte a prova de que os veículos em causa foram vendidos nas datas aí mencionadas.
Sobre este ponto veio a Requerida na sua resposta levantar dúvidas sobre a veracidade das mesmas alegando que:
a) A fatura junta sob o Documento 47, supostamente emitida a 2007-03-08, não indica sequer a taxa de IVA, quando naquela data a taxa deveria ser de 21% (Lei 39/2005, de 24 de Junho);
b) A fatura junta sob o documento 75, supostamente emitida a 2004-03-09, indica uma taxa de IVA de 23%, quando naquela data a taxa deveria ser de 19% (Lei 16-A/2002, de 31 de Maio).”
Convidada a pronunciar-se sobre estas observações na reunião arbitral realizada, a Requerente explicou que a anomalia se deveu a um problema de natureza informática mas que, na realidade, o valor do IVA liquidado corresponde à taxa em vigor nas datas em questão.
Acontece que a fatura nº 75 refere apenas a taxa de 23% e não discrimina o IVA liquidado, pelo que não é possível aferir se o IVA liquidado corresponde à taxa em vigor à data do facto tributário (19%) ou à indicada na fatura (23%) e quanto à fatura 47, não tem IVA liquidado.
As explicações dadas pela Requerente não foram, pois, idóneas a ultrapassar as incoerências intrínsecas, certeiramente apontadas pela Requerida.
Assim e porque não foi apresentada qualquer outra prova relativamente às alegadas vendas, consideram-se não provados os factos que tais documentos se destinavam a provar.
III- O Direito aplicável
A. Das exceções
15. Veio a Requerida suscitar a questão da incompetência material do Tribunal arbitral, invocando que as notas de cobrança não constituem atos tributários e que o meio de reação contra as mesmas, enquanto meros atos em matéria tributária deverá ser a ação administrativa especial.
A posição da Requerida é a de que os documentos 2 a 46 juntos à p.i. constituem meras notas de cobrança, geradas e extraídas pela própria Requerente no Portal das Finanças através da Internet e que as mesmas não constituem liquidações oficiosas.
Sustenta ainda que “Ainda que assim se não julgue – o que só por mera hipótese se admite – e se entenda que, na realidade, se está perante autoliquidações geradas pela própria Requerente no Portal das Finanças, sempre se dirá que o presente pedido de pronúncia arbitral não poderá proceder”, pois que “a Requerente não apresentou qualquer Reclamação Graciosa relativamente aos atos de autoliquidação sub judice, razão pela qual também por esta via não são suscetíveis de serem sindicados tais atos.”
16. Como decorre da matéria de facto provada, a tese principal da Requerida de inexistência de liquidações, mas tão só de notas de cobrança, carece de aderência à realidade pois que tais liquidações constam dos documentos juntos pela Requerente à petição inicial, que foram expressamente aceites pela Requerida.
Por outro lado, a tese subsidiária da Requerida (cujos factos fundamentadores a própria Requerida nega mas de seguida admite apenas por mera hipótese), de se estar perante autoliquidações da Requerente, para além de estar em contradição com a afirmação da inexistência de qualquer liquidação e da mera existência de notas de cobrança, não tem aderência à realidade.
As liquidações em causa são inequivocamente da autoria da Autoridade Tributária, contendo, além da liquidação do imposto, a demonstração de liquidação dos juros compensatórios.[2]
17. Verifica-se, assim, que foram praticados pela ATA os atos de liquidação em causa e que estas, apesar de não notificadas à Requerida, derem origem a notas de cobrança constantes da área reservada da Requerente no Portal das Finanças, pelo que constituem atos lesivos e, portanto, impugnáveis pela Requerente.
Assim, improcede a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, improcedendo, ainda, a exceção de falta de pressuposto processual, consistente na reclamação prévia necessária contra a hipotética autoliquidação, porquanto não se demonstrou que a mesma tenha ocorrido.
B. Do Mérito da causa
18. Nos termos do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
Dispõe o nº 2 do mesmo preceito que “São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”
O problema jurídico a decidir prende-se com a questão de saber se a pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo, poderá provar, apesar de tal circunstância, que não era proprietária do mesmo à data do facto tributário, para efeitos de afastar a qualidade de sujeito passivo do imposto.
19. A fim de dar resposta ao problema em questão afigura-se-nos pertinente indagar se o art. 3º, nº 1, do CIUC consagra uma presunção, posição sustentada pela Requerente ou se diferentemente se trata meramente da configuração do tipo legal de imposto, no âmbito da liberdade de conformação legislativa, conforme defende a Requerida.
A resposta a esta questão poderá ser decisiva, dado que, de acordo com o art. 73º da Lei Geral Tributária “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. Acresce, conforme se refere na Decisão arbitral proferida no processo 286/2013-T o “entendimento do Tribunal Constitucional, afirmado no acórdão n.º 348/97, de 29.4.1997 e reiterado no acórdão n.º 311/2003, de 28.4.2003, quanto à inconstitucionalidade do “estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção juris et de jure” já que “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária”.[3]
20. Na doutrina tem sido analisada a distinção entre as ficções e as presunções, na perspetiva do direito fiscal.
Assim, ANA PAULA DOURADO, (O Princípio Da Legalidade Fiscal: Tipicidade, Conceitos Jurídicos Indeterminados e Margem de Livre Apreciação”, Editora Almedina, colecção Teses, 2007 )escreve:
“No que diz respeito às ficções, enquanto técnica utilizada nas leis fiscais, e à sua função, diz-nos Karl Larenz que “as ficções legais têm normalmente por fim a aplicação da regra dada para um facto previsto (F1) a outro facto previsto (F2)... a lei “finge” que F2 é um caso de F1” (p. 603).
“A ficção distingue-se da presunção simples e da presunção absoluta por não se basear “numa probabilidade que normalmente se transforma em verdade”, pois “deforma («uma verdade legal») conscientemente” (p. 604)
Também sobre esta questão, em termos convergentes com ANA PAULA DOURADO, JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, (“TRIBUTAÇÃO PRESUNTIVA DO RENDIMENTO, Um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável, Almedina, Teses, 2010, pp. 48-49) considera que o critério de distinção entre a duas realidades deve ser “eminentemente jurídico” e que “À luz desse critério a diferença essencial entre presunção e ficção legal passa a residir no facto de a primeira ter como ponto de partida a verdade de um facto, ou seja, uma ligação à ordem natural das coisas, dado que de um facto conhecido se infere um facto desconhecido provável; enquanto a ficção, contrariamente, nasce de uma falsidade ou de algo irreal, desligado da ordem natural das coisas. Isto é, na ficção cria-se uma verdade jurídica distinta da real; na presunção cria-se uma relação causal entre duas realidades ou factos naturais.(…).
A despeito de tanto a presunção como a ficção constituírem o resultado de técnicas legislativas, através das quais se depreendem consequências de factos jurídicos tomados como verdadeiros, o que verdadeiramente as distingue é a circunstância de, na presunção legal, o facto presumido ter um alto grau de probabilidade de existir, e de, na ficção, o facto presumido ser muito improvável. “
CASALTA NABAIS, também se debruçou sobre esta questão (“O dever fundamental de pagar impostos”, Almedina, 2004, p. 500-501) escrevendo que “(...) há que separar as situações em que estamos face a presunções legais, em que de um facto conhecido (real ou até jurídico) se infere um facto jurídico naturalmente provável, caso em que se há-de admitir prova em contrário, para as compatibilizar com o princípio da capacidade contributiva, das situações em que nos deparamos com a assunção de regras da experiência comum como regras de tributação, verificando-se assim a construção de normas jurídicas (ou de tipos legais) com o (eventual) recurso a ficções legais. Nestas, o princípio da capacidade contributiva sofre o natural embate dos princípios da praticabilidade e da eficaz luta contra a evasão fiscal, havendo de contentar-se com uma válvula de segurança relativamente aqueles casos que, por atingirem tais rigores de iniquidade, não podem deixar de permitir o afastamento das referidas regras da experiência”
21. No caso em apreço, e à luz da autorizada doutrina citada, afigura-se claro que, no art. 3º, nº 1, do CIUC, estamos perante uma presunção, na medida em que resulta (muito) provável do facto duma pessoa ter um veículo registado em seu nome, que ela seja, efetivamente, proprietária da mesma.
É esta mesma probabilidade que está na base da presunção derivada do registo consignada no art. 7º do Código de Registo Predial, aplicável por remissão do art. 29º do Regulamento do Registo automóvel.
É certo que a lei não usa a expressão “presumindo-se como tais, até prova em contrário”, que constava do art. 3.º, n.º 1 do Regulamento do Imposto Municipal Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho e revogado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho), (“o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados”. Mas tal não se afigura impeditivo de estarmos materialmente perante uma presunção.
Como se escreveu na já citada decisão proferida no processo arbitral nº 286/2013-T, “tal como já se encontra assinalado em outras decisões arbitrais proferidas neste CAAD em relação à mesma matéria (cfr. as decisões proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T, 170/2013-T, nas quais é possível encontrar exemplos de disposições legislativas, distintas das acima invocadas, em que igualmente ocorre o uso da expressão “considerando-se” ou “considera-se” com o significado de presunção), não só não se pode dizer, de modo algum, que a atribuição de um significado presuntivo à expressão “considerando-se” não possui “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art. 9.º do Cód. Civil), como, mais do que isso, deve mesmo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo.
Por isso, não assume peso decisivo o facto de, diferentemente do que sucedia com a enunciação literal “presumindo-se” que antes se encontrava no artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos, o legislador ter passado a usar no CIUC a fórmula “considerando-se” que consta do atual art. 3.º desse Código, porquanto esta expressão tem perfeita virtualidade semântica para envolver a consagração de uma presunção”. [4]
22. O acórdão do STA de 4-11-2009, proferido no processo 0553/09, aplicando o art. 73.º da Lei Geral Tributária, em sede de imposto sobre o rendimento, vai ainda mais longe considerando que esta regra “não parece aplicável apenas as normas de incidência tributária em sentido próprio, mas também a todas as normas que estabelecem ficções que influenciam a determinação da matéria colectável (quer directamente, através de valores ficcionados para a matéria colectável, quer indirectamente, ao fixarem ficcionadamente os valores dos rendimentos relevantes para a sua determinação). É este, parece, o alcance do advérbio «sempre» utilizado no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, que arvora esta regra em princípio basilar da globalidade do ordenamento jurídico tributário, corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, assente no princípio da capacidade contributiva”.
É certo que o IUC não está, essencialmente, subordinado ao princípio da capacidade contributiva, mas sim ao princípio da equivalência. Todavia, tal não parece impor soluções diferentes na medida em que ambos os princípios estão intrinsecamente ligados ao princípio geral da igualdade tributária, onde encontram o seu fundamento.
Na verdade, “O princípio da capacidade contributiva representa o critério material de igualdade adequado aos impostos”[5] ao passo que “O princípio da equivalência representa o critério material de igualdade adequado às taxas e contribuições”.[6]
23. De referir ainda que, para além do art 1.º do Código do IUC dispor que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”, outras normas reforçam e concretizam o peso deste princípio no sistema interno deste imposto.
Desde logo, o art. 3º, nº 1, da Lei que aprovou o CIUC (Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho), concretizando esta ideia de equivalência determina que: “ É da titularidade do município de residência do sujeito passivo ou equiparado a receita gerada pelo IUC incidente sobre os veículos da categoria A, E, F e G, bem como 70 % da componente relativa à cilindrada incidente sobre os veículos da categoria B, salvo se essa receita for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, caso em que deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador.”
E, para efeitos de concretização efetiva desta intenção legislativa dispõe o art. 19º, do CIUC que: “Para efeitos do disposto no artigo 3.º do presente código, bem como no n.º 1 do artigo 3.º da lei da respectiva aprovação, ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados.”
Por outro lado, concretiza ainda este princípio da equivalência o nº 2, do art. 3º do mesmo Código ao dispor que “São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”
24. Fica assim, bem clara a importância decisiva conferida pela Lei ao princípio da equivalência, quer do lado do causador do custo ambiental e viário, quer do lado do Município que tendencialmente suporta tais custos e que, por essa razão é o beneficiário da receita do imposto.
Como salienta Sérgio Vasques: “É claramente comutativa também a estrutura do novo imposto único de circulação, que desde 2007 oneram os automóveis em função dos níveis de emissão de CO2, apelando abertamente ao princípio da equivalência e a uma relação de troca com os contribuintes”[7]
Caso não fosse possível à pessoa inscrita como proprietário no registo automóvel afastar a qualidade de sujeito passivo, mediante a prova de que não era ele o proprietário à data do facto tributário, esta ideia de equivalência poderia ser decisivamente posta em causa, tributando-se quem não causou os custos ambiental e viário e não se afetando a receita ao Município que tendencialmente suportou aqueles custos.
25. A Requerida sustenta que a interpretação proposta pela Requerente do art. 3º, nº 1 do CIUC é contrária à Constituição da Republica Portuguesa, na medida em que desvaloriza a realidade registal face a uma “realidade informal”,[8] violando o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
Não se vislumbra, salvo o devido respeito, como é que a posição que sustenta estarmos perante uma presunção ilidível, poderá pôr em causa os princípios da confiança e da segurança jurídica, sendo que os mesmos impõem deveres e restrições da atuação jurídico-pública[9].
O mesmo se poderá dizer, no essencial, do princípio da proporcionalidade.[10]
Aliás, relativamente a este princípio, diríamos, até, que a questão que se poderia colocar seria se tal princípio não seria violado com a interpretação preconizada pela Requerida na medida em que, se se admitisse que o cidadão poderia ficar impedido, para efeitos de tributação, de provar que apesar do registo não é o efetivo proprietário do veículo, tal equivaleria sofrer a consequência da omissão dum ato (o registo automóvel) cujo interessado, em termos em termos de segurança jurídica, na perspetiva jurídico-civil é outra pessoa (o comprador).
Na verdade, mesmo que se admita que tal solução seja idónea a alcançar o fim público em vista, não resulta clara a ausência de medidas alternativas igualmente aptas.
Por outro lado, do ponto de vista do equilíbrio ou da proporcionalidade em sentido estrito, entende-se que uma regra com a interpretação sustentada pela requerida, teria custos excessivos, do ponto de vista dos direitos e interesses dos particulares (neste caso dos antigos proprietários do veículos) face aos benefícios que se visam alcançar com o interesse público, considerando-se não verificada esta exigência fundamental do princípio da proporcionalidade.
Na realidade, o benefício alcançado, na perspetiva da gestão do imposto, com a presunção ilidível, é já significativa, sendo os casos de ausência de registo pelos compradores seguramente situações em número certamente pouco relevante no universo das transações de veículos, atento a natural motivação dos compradores em realizar o registo, uma vez que tal é do seu próprio interesse.
Note-se, também, que a presunção ilidível já representa algum sacrifício para os legítimos interesses do vendedor, na medida em que, para se eximir a uma tributação ofensiva do princípio da equivalência, tem o ónus de ilidir a mesma.
No entanto, ponderando, designadamente, as exigências de praticabilidade da gestão fiscal, considera-se que a mesma é apta, necessária e razoável do ponto de vista do princípio da proporcionalidade, o que já não sucederia com uma presunção absoluta, explícita ou implícita, que não permitisse, sequer, que ao cidadão fosse permitido fazer a prova contrária à presunção.
26. A Requerida invocou, ainda, que a regra em causa, na interpretação sustentada pela Requerente, violaria o princípio da eficiência do sistema tributário.
Afigura-se-nos que a Requerida terá em mente a ideia de eficiência no direito fiscal, relacionada com a eficiência administrativa[11]. Há que observar, contudo, que a relevância dum princípio na solução dum caso concreto não deve ser operar isoladamente mas em ponderação conjunta com os demais princípios e, na sequência do que acima foi dito, a propósito dos princípios da igualdade, da equivalência e da proporcionalidade, a ideia de eficiência não é suficiente para postergar a possibilidade do contribuinte afastar a presunção resultante do registo automóvel. Acresce que a eficiência e a praticabilidade são suficientemente salvaguardadas pela existência duma presunção ilidível, nos termos acima referidos.
27. Assim sendo, conclui-se que o art. 3º, nº 1, do CIUC, consagra uma presunção ilidível tendo o interessado, para a afastar, o ónus de provar que, apesar do registo, não era o real proprietário, por entretanto o ter vendido.
Neste sentido, foram as decisões proferidas nos processos arbitrais números 26/2013-T, 27/2013-T, 14/2013-T, 170/2013-T, 256/2013-T, 286/2013-T e 289/2013-T, cujo entendimento, assim, se sufraga.
Assim sendo, no que respeita aos impostos incidentes sobre veículos, relativamente aos quais se provou terem sido vendidos pela Requerente antes do facto tributário, não pode o pedido de pronúncia arbitral deixar de proceder.
Apenas improcede a impugnação relativamente aos impostos incidentes sobre veículos a respeito dos quais tal prova não foi feita, liquidações constantes do documento nº 2 junto com a petição inicial, respeitante ao veículo com a matrícula …no valor de 16,40 € e do documento número 41, respeitante ao veículo com a matrícula …, no valor de 29,00 €.
28. A Requerente veio, ainda, peticionar o direito a juros indemnizatórios.
Cabe ainda apreciar a pretensão da Requerente, à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1, daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
No caso “sub judice” não foi demonstrado (nem sequer alegado pela Requerente) que a Requerida tivesse conhecimento, à data das liquidações, de que os veículos em causa tivessem sido vendidos em data anterior à do facto tributário.
Ao efetuar as liquidações, a Requerida cumpriu o disposto no art. 3º, nº 1, do CIUC, aplicando a presunção estabelecida nesta disposição legal.
Tendo-se limitado a aplicar a presunção, na ausência de prova que a afastasse, não se pode concluir que se verifique a ocorrência de “erro imputável aos serviços”.
Assim sendo, improcede o pedido de condenação da Requerida a pagar juros indemnizatórios à Requerente.
IV - Decisão
Assim, decide o Tribunal arbitral:
Julgar parcialmente procedente a impugnação nos seguintes termos:
a) Julgar improcedente o pedido relativamente às liquidações constantes do documento nº 2 junto com a petição inicial, respeitante ao veículo com a matrícula … (no valor de 16,40 €) e do documento número 41, respeitante ao veículo com a matrícula … (no valor de 29,00 €).
b) Julgar procedente a impugnação, relativamente a todas as demais liquidações, declarando-se a anulação das mesmas.
Valor da ação: 1.697,39 € (Mil seiscentos e noventa e sete euros e trinta e nove cêntimos) nos termos do disposto no art. 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A,n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerente na proporção de três por cento e pela Requerida na proporção de noventa e sete por cento, nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.
Lisboa, CAAD, 8 de Setembro de 2014
O Árbitro
(Marcolino Pisão Pedreiro)
[1] Como escreve Jorge Lopes de Sousa “a notificação de um acto, é um acto exterior a este e, por isso, os vícios que afectem a notificação, podendo determinar a invalidade da notificação e a consequente ineficácia do acto notificado, não afectam a validade deste” (Código de Procedimento e Processo Tributário, anotado e comentado, 5ª Edição, áreas Editora, 2006, Vol. I, pag. 327, sublinhado nosso).
[2] Aliás, salvo melhor opinião, não poderia ser doutro modo.
Nos termos do art. 16º, nº 1 do CIUC “ A competência para a liquidação do Imposto é da Direcção-Geral dos Impostos” sendo que nos termos do nº 2 do mesmo artigo “A liquidação do imposto é feita pelo próprio sujeito passivo através da internet, nas condições de registo e acesso às declarações electrónicas, sendo obrigatória para as pessoas colectivas”.
Ainda nos termos do nº 3 “A liquidação do imposto pode ser feita por qualquer serviço de finanças, em atendimento ao público, sempre que o sujeito passivo o solicite ou quando se verifiquem as seguintes circunstâncias (…)”
Por sua vez, determina o nº 2, do art. 18º que “(…) na falta ou atraso de liquidação imputável ao sujeito passivo (…) a Direcção-Geral dos Impostos procede à liquidação oficiosa”.
Da conjugação destas normas, resulta que o sujeito passivo só pode proceder à autoliquidação do imposto desde que o faça no prazo legal para o efeito. Caso tal não suceda, já só pode ser feita pela ATA, nos termos do art. 18º, nº 2, do CIUC.
Dos nºs 1 e 2 do art. 17º donde decorre que o imposto deve ser liquidado pelo sujeito passivo até ao termos do mês em que se torna exigível.
No caso, tendo as liquidações em causa sido feitas (muito) para além deste prazo, as mesmas não poderiam, legalmente, ter sido efetuadas pelo sujeito passivo, mas apenas pela Direcção-Geral dos Impostos.
[3] Disponível no site “https://caad.org.pt”
[4] Acresce que, como sustentam Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao artigo 73.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”) “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real” (Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, Encontros da Escrita, 4ª Edição, 2012, pag. 651).
[5] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pag. 251.
[6] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pag. 260.
Como nota ainda este autor a pag. 227 da mesma obra “Até final do sec. XX, os impostos especiais sobre o álcool, tabaco, produtos petrolíferos ou automóveis não tinham outro objectivo se não o da angariação de receita, mostrando os contornos unilaterais típicos de qualquer imposto.
A partir dos anos 80 e 90 (…), no entanto, estas figuras tributárias passaram a ser instrumentalizadas à compensação dos custos que o consumos destes traz à saúde pública e ao meio ambiente, com o que os impostos especiais de consumo têm vindo a ganhar a natureza para comutativa que é típica das contribuições”
[7] Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pag. 229.
[8] De notar, porém, que vigora no direito português o princípio da liberdade da forma ou da consensualidade (art. 219º do Código Civil). Salvo quando a lei o exigir, a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial. A “realidade informal” a que alude a requerente é na verdade a realidade material que resulta das normas do direito civil.
[9] Jorge Bacelar Gouveia refere que o princípio da segurança jurídica exige “a publicidade dos actos do poder público, assim como a clareza e a determinabilidade das fontes de direito” e que o princípio da proteção da confiança requer “que o quadro normativo vigente não mude de modo a frustrar as expectativas geradas nos cidadãos acerca da sua continuidade, com a proibição de uma intolerável retroactividade das leis, assim como a necessidade da sua alteração em conformidade com as expectativas que sejam constitucionalmente tuteladas” (Manual de Direito Constitucional, Almedina, 4ª Ed., Vol. II,pag. 821)
[10] Segundo mesmo autor a configuração deste princípio “assenta numa limitação material interna à actuação jurídico-pública de carácter discricionário, contendo os efeitos excessivos que eventualmente se apresentem na edição das providências de poder público de cariz ablatório para os respetivos destinatários” (ob. Cit. pags 839-840)
[11] E não, manifestamente, o princípio da eficiência do direito fiscal pois, como escrevem Jónatas E.M. Machado e Paulo Nogueira da Costa “Do princípio da Eficiência decorre que o sistema tributário não deve ter efeitos distorcionários e não deve interferir com o funcionamento dos mercados, salvo quando, devido à existência de falhas de mercado, os mesmos não funcionam eficientemente.” (Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, 2009, pag. 28.)