DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A - Geral
1.1. A..., residente na Rua ..., n.º..., ...-... ..., contribuinte fiscal número ... (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou no dia 12.02.2019 um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando, por um lado, a declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação adicional de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (de ora em diante “IMT”), relativo a prédio que adquiriu, como adiante melhor se verá e, por outro, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios e de mora pelo pagamento indevido de prestação tributária.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (de ora em diante, “RJAT”), o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro o signatário, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.
1.3. Por despacho de 22.02.2019, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação das Senhoras Dra. B... e Dra. C... para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.
1.4. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído a 23.04.2019.
1.5. No mesmo dia 23.04.2019 foi notificado o dirigente máximo dos serviços da Requerida para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo que pudesse existir e, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.
1.6. No dia 27.05.2019 a Requerida apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo.
B – Posição da Requerente
1.7. A Requerente, no dia 30.05.2017, adquiriu com outro adquirente, em comum e partes iguais, o prédio urbano destinado a habitação sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., União das freguesias de ..., ... e ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... (de ora em diante, “Prédio”) no âmbito do Processo de Insolvência de D... e E..., que correu termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca do ..., sob o n.º .../14...TJ....
1.8. No dia 04.05.2017, a Requerente apresentou a declaração Modelo 1 para liquidação do IMT correspondente a metade do valor total da transmissão, à qual foi atribuída o número de registo ..., tendo a correspondente liquidação de imposto, com o número ..., sido emitida a zeros, por ter beneficiado da isenção de IMT prevista no n.º 2 do art.º 270.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de ora em diante, “CIRE”), constando o benefício dessa isenção da respectiva liquidação de IMT.
1.9. Foi a Requerente, porém, notificada pelo ofício n.º..., de 10.08.2018, da intenção da Requerida emitir uma liquidação adicional de IMT, no montante de € 15.060,38 (quinze mil e sessenta euros e trinta e oito cêntimos), em virtude da “incorrecta concessão de Isenção de IMT […] uma vez que o alienante é pessoa singular, não contemplando os requisitos dessa isenção”.
1.10. A Requerente exerceu o seu direito de audição, pugnando pela ilegalidade do acto de liquidação face à ilegal revogação do acto de concessão de isenção de IMT que tal acto comportaria.
1.11. A 15.10.2018, antes de qualquer resposta por parte da Requerida ao direito de audição, foi a Requerente notificada da liquidação adicional de IMT, tendo-lhe sido concedido o prado de 30 (trinta) dias para efectuar o pagamento.
1.12. No dia 26.10.2018, depois da emissão da liquidação adicional de IMT ora posta em crise, a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento (em resposta ao seu direito de audição).
1.13. No dia 19.11.2018 foi emitida a respectiva guia de pagamento do IMT, com a referência n.º..., no montante de € 15.060,38 (quinze mil e sessenta euros e trinta e oito cêntimos), que foi paga pela Requerente no mesmo dia.
1.14. A isenção de IMT prevista no n.º 2 do art.º 270.º do CIRE é de reconhecimento automático, competindo a sua verificação e declaração ao serviço de finanças onde for apresentada a declaração prevista no n.º 1 do artigo 19.º do CIMT, como se lê no n.º 8 do art.º 10.º do mesmo diploma.
1.15. A Requerente forneceu atempadamente todos os elementos legalmente exigidos tendentes à exacta liquidação do imposto, tendo os serviços da Requerida considerado que a transmissão do Prédio se inseria no âmbito de aplicação da isenção a que se refere o n.º 2 do art.º 270.º do CIRE.
1.16. Ainda que a isenção em causa constitua um benefício automático, a sua concessão configura um acto constitutivo de direitos, sendo certo que, nos termos do n.º 4 do art.º 14 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, “o acto administrativo que conceda um benefício fiscal não é revogável, nem pode (…) diminuir-se, por acto unilateral da administração tributária, os direitos adquiridos, salvo se houver inobservância imputável ao beneficiário das obrigações impostas, ou se o benefício tiver sido indevidamente concedido, caso em que aquele acto pode ser revogado”.
1.17. O acto pelo qual os serviços da Requerida, na posse de todos os elementos de que precisam, emitem guias de pagamento de imposto a € 0,00 é um acto administrativo constitutivo de direitos e o mesmo só poderá ser revogado ou anulado por acto unilateral da Requerida “se houver inobservância imputável ao beneficiário das obrigações impostas, ou se o benefício tiver sido indevidamente concedido”.
1.18. O prazo de que dispunha a Requerida para proceder à revogação ou anulação do acto de concessão da isenção era de um ano, contado da data da sua emissão, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 168.º do Código do Procedimento Administrativo (o “CPA”), de aplicação subsidiária.
1.19. Assim, tendo a isenção de IMT sido concedida a 04.05.2017, a respectiva anulação só poderia ter ocorrido até ao dia 04.05.2018.
1.20. Como decorre do próprio acto de liquidação ora posto em crise, a Requerente não omitiu quaisquer bens ou valores na Declaração modelo 1 de IMT, razão por que não é aplicável ao caso sub judice o art.º 31.º do CIMT, mas o n.º 4 do art.º 14.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (o “EBF”), em conjugação com o disposto no n.º 2 do art.º 19.º do CIMT, bem como as disposições especialmente aplicáveis do CPA.
1.21. Acresce que a actuação da Requerida viola o princípio da boa-fé, na sua vertente de tutela da confiança, que constitui um vício autónomo de violação de lei, em concreto do n.º 2 do art.º 266.º da Constituição da República Portuguesa e do art.º 10.º do CPA.
1.22. Assim, a liquidação de IMT sindicada deverá ser anulada, com fundamento em vício de violação de lei ordinária, devendo o montante indevidamente pago ser reembolsado, acrescidos de juros indemnizatórios contados desde a data de pagamento até à emissão e processamento da competente nota de crédito, assim como ao pagamento dos juros moratórios devidos.
C – Posição da Requerida
1.23. Entende a Requerida que a aquisição do Prédio pela Requerente não está isenta de IMT já que o n.º 2 do art.º 270.º do CIRE não abrange aquisições feitas a insolventes que sejam pessoas singulares e que não exerçam qualquer actividade empresarial.
1.24. Também não procede o argumento segundo o qual a revogação do benefício fiscal é ilegal por violação do art.º 168.º do CPA, pela simples razão de que não existiu qualquer acto constitutivo de direitos, porque o benefício constante do n.º 2 do art.º 270.º do CIRE é um benefício automático, nos termos do art.º 5.º do EBF.
1.25. No entender da Requerida, não existe uma análise prévia nem verificação prévia dos pressupostos da isenção. O contribuinte apresenta uma declaração prevista no n.º 1 do art.º 19.º do CIMT e só posteriormente é que a administração tributária e aduaneira promove uma fiscalização, analisando a verificação dos pressupostos da isenção, conforme dispõe o art.º 7.º do EBF.
1.26. Não se verificando os pressupostos legais para a Requerente poder beneficiar da isenção de IMT, nos termos do n.º 2 art.º 270.º do CIRE, não podia deixar de ser liquidado o imposto devido, desde que respeitado o prazo de caducidade.
1.27. Também não procede o argumento segundo o qual a liquidação ora posta em crise é violadora dos princípios da segurança e certeza jurídicas e da boa-fé, uma vez que estamos perante uma relação jurídica tributária em que está em causa aferir da verificação dos pressupostos do direito a um benefício fiscal.
D – Conclusão do Relatório e Saneamento
1.28. Por despacho de 19.10.2019 o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), por entender que as Partes haviam já carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, cujo prazo foi prorrogado por dois meses, tendo sido as partes convidadas a apresentar, querendo, as suas alegações, o que ambas fizeram sem alterar minimamente as posições assumidas nos articulados por cada uma anteriormente apresentados.
1.29. O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.
1.30. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, não padecendo o processo de qualquer nulidade.
1.31. A cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação mediatamente posta em crise.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
2.1.1. A Requerente, no dia 30.05.2017, adquiriu metade indivisa em compropriedade do prédio urbano destinado a habitação sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., União das freguesias de ..., ... e ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... .
2.1.2. O preço pago pela totalidade do Prédio foi de € 526.001,00 (quinhentos e vinte seis mil e um euros).
2.1.3. A aquisição referida em 2.1.1. foi feita no âmbito do Processo de Insolvência de D... e E... que correu termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca do ..., sob o n.º .../14...TJ....
2.1.4. Os insolventes são pessoas singulares e à data dos factos não se dedicavam a nenhuma actividade industrial, comercial ou agrícola.
2.1.5. No dia 04.05.2017, a Requerente apresentou a declaração Modelo 1 para liquidação do IMT correspondente a metade do valor total da transmissão, à qual foi atribuída o número de registo... .
2.1.6. A correspondente liquidação de imposto, com o número ..., foi emitida a zeros, constando do documento ... que o valor declarado é de € 263.000,50 (duzentos e sessenta e três mil e cinquenta cêntimos) e, no campo dos benefícios, o seguinte: “60 – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Transmissões integradas no âmbito da liquidação da massa insolvente (Art.º 270.º, n.º 2 do D-L 53/04)”.
2.1.7. A 20.08.2018, foi a Requerente notificada pelo ofício n.º..., de 10.08.2018, da intenção da Requerida emitir uma liquidação adicional de IMT, no montante de € 15.060,38 (quinze mil e sessenta euros e trinta e oito cêntimos), em virtude da “incorrecta concessão de Isenção de IMT […] uma vez que o alienante é pessoa singular, não contemplando os requisitos dessa isenção”.
2.1.8. A 31.08.2018, a Requerente exerceu o direito e audição.
2.1.9. No dia 15.10.2018, a Requerente, pelo ofício n.º ... de 12.10.2018, foi notificada da liquidação adicional de IMT, tendo-lhe sido concedido o prado de 30 (trinta) dias para efectuar o pagamento.
2.1.10. No dia 26.10.2018 foi a Requerente notificada, pelo ofício..., de 25.10.2018, do despacho do Director Adjunto do Serviço de Finanças de ... de 12.10.2018 do teor seguinte: “mantém-se a decisão de proceder à liquidação de IMT”.
2.1.11. No dia 19.11.2018 foi emitida a respectiva guia de pagamento do IMT, com a referência n.º..., no montante de € 15.060,38 (quinze mil e sessenta euros e trinta e oito cêntimos), que foi paga pela Requerente no mesmo dia.
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições por elas assumidas nos articulados apresentados.
3. Matéria de direito
3.1. Questões a decidir
Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, as seguintes:
a) A de saber se a aquisição do Prédio, tendo sido realizada no âmbito do processo de insolvência de não empresário e de não titular de empresa em cujo activo o Prédio se integrasse, está ou não isenta de IMT nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE;
b) A de dilucidar se a liquidação adicional de IMT, que respeita à guia de pagamento do IMT com a referência n.º..., no montante de € 15.060,38 (quinze mil e sessenta euros e trinta e oito cêntimos), constitui uma revogação de um acto de concessão de benefício fiscal;
c) A de esclarecer, por fim, se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente com a consequente anulação da liquidação de IMT mediatamente contestada, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios relativamente à quantia por si entregue para satisfação da prestação tributária por esta ilegalmente exigida.
3.2. A isenção do IMT e o art.º 270.º do CIRE
Pela Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, a Assembleia da República autorizou o Governo a aprovar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, revogando o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência. No n.º 3 do art.º 9.º do diploma de autorização pode ler-se:
3 — Fica, finalmente, o Governo autorizado a isentar de imposto municipal de sisa as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos ou realizadas no âmbito da liquidação da massa insolvente:
a) As que se destinem à constituição de nova sociedade ou sociedades e à realização do seu capital;
b) As que se destinem à realização do aumento do capital da sociedade devedora;
c) As que decorram da cedência a terceiros ou da alienação de participações representativas do capital da sociedade, da dação em cumprimento de bens da empresa e da cessão de bens aos credores, da venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimentos ou elementos dos seus activos, bem como dos arrendamentos a longo prazo;
Com a redacção aplicável à data a que se reportam os factos, o art.º 270.º do CIRE, sob a epígrafe “Benefício relativo ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis”, dispõe o seguinte:
1 - Estão isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência, de pagamentos ou de recuperação :
a) As que se destinem à constituição de nova sociedade ou sociedades e à realização do seu capital;
b) As que se destinem à realização do aumento do capital da sociedade devedora;
c) As que decorram da dação em cumprimento de bens da empresa e da cessão de bens aos credores.
2 - Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os actos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
Centremo-nos na interpretação a dar ao n.º 2 do art.º 270.º do CIRE.
Parece resultar do texto da norma a que vimos fazendo referência que a isenção de IMT é dispensada apenas às vendas de imóveis de empresas ou de estabelecimentos destas, integradas que estejam no plano de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, o que exclui as vendas de bens imóveis que não integrem o activo de empresas, nomeadamente os que sejam propriedade de pessoas singulares, não empresários ou titulares de empresas.
Interpretação diversa, ainda que defensável do ponto de vista do direito a constituir, não tem arrimo no teor literal do preceito aplicável, pelo que não pode ser acolhida.
Vale a pena atentar na doutrina a este propósito expendida no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25.09.2013, prolatado no processo n.º 866/13, ainda que a propósito do Imposto do Selo mas com total aproveitamento para a questão que nos ocupa:
“No caso está apenas em causa saber se a venda de um bem imóvel, que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de actividade empresarial alguma, mas que era propriedade de uma pessoa singular e com destino a habitação, não havendo notícia da sua afectação a actividade empresarial alguma, pode beneficiar de isenção de IS em razão de ter sido efectuada num processo de insolvência. A resposta, a nosso ver, não pode ser senão negativa, pois a hipótese não é subsumível à previsão da alínea e) do art. 169.º do CIRE, que se refere exclusivamente à venda de «elementos do activo da empresa».”
Assim, conclui o douto acórdão que “I - De acordo com o disposto no art. 269.º, alínea e), do CIRE, ficam isentas de IS as vendas de «elementos do activo da empresa». II - Assim sendo, a referida isenção não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de actos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, antes havendo de demonstrar-se que o bem vendido integra o activo de uma empresa”.
Idêntico entendimento tem sido igualmente sufragado nas decisões do CAAD, como se pode constatar, entre outras, pelas que foram proferidas nos processos 649/2015, 558/2015, 136/2016, 106/2016, 368/2016, 512/2016, 514/2016, 518/2016, 15/2017 e 23/2017. É também essa a posição do presente tribunal arbitral.
3.3. Da revogação ou anulação da isenção de IMT
Entende a Requerente que a liquidação de IMT com o número ..., a zeros, constando do documento..., no campo dos benefícios, “60 – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Transmissões integradas no âmbito da liquidação da massa insolvente (Art.º 270.º, n.º 2 do D-L 53/04)” configura um acto administrativo e, para mais, um acto constitutivo de direitos, pelo que só pode ser revogado, rectius, anulado no prazo de um ano a contar da sua prática, nos termos do n.º 2 do art.º 168.º do CPA.
Sustenta a Requerente que decorre do próprio documento de liquidação de IMT com o número ..., já referido, que ela prestou todos os elementos que eram necessários para a prática do respectivo acto. E diz ainda a Requerente que esses elementos “foram suficientes para a AT considerar que a transmissão in casu se inseria no âmbito da aludida isenção [a prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE], decidindo-se pela sua aplicação”. Como se percebe, a utilização das palavras não é inocente e força o próprio argumento. Tudo está em saber se, na verdade, a AT se decidiu, em sentido próprio, pela aplicação da dita isenção.
O benefício fiscal previsto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE é, nos termos do disposto no artigo 5.º do EBF, automático , na medida em que resulta directa e imediatamente da lei, ficando, porém, sujeito a fiscalização da Direcção-Geral dos Impostos, para controlo da verificação dos respectivos pressupostos.
Como se disse, a liquidação do IMT a zeros em virtude de ser declarado pelo contribuinte que a projectada aquisição beneficia da isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não configura, pela interpretação da norma adoptada pelo tribunal arbitral, um genuíno acto constitutivo de direitos, para os efeitos do previsto no n.º 2 do art.º 168.º do CPA.
O que estará em causa, como se disse já, é um benefício fiscal de natureza automática, que não opera através de requerimento do interessado dirigido à sua obtenção e com a inevitável instauração e decisão de procedimento próprio e autónomo para o efeito (como acontece com os benefícios dependentes de reconhecimento, inexistindo, assim, um acto administrativo de reconhecimento da isenção .
O automatismo associado à isenção a que se refere o art.º 270.º, n.º 2 do CIRE, não exime, antes impõe, a fiscalização da Direcção-Geral dos Impostos para controlo da verificação dos respectivos pressupostos. Ora, foi justamente isso que fez a administração tributária e aduaneira, nos termos conjugados do art.º 7.º do EBF e do n.º 2 do art.º 31º, do Código de Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis. Conforme resulta do disposto no artigo 7.º do EBF, todas as pessoas, singulares ou colectivas, a quem sejam concedidos benefícios fiscais, automáticos ou dependentes de reconhecimento, ficam sujeitas a essa fiscalização e foi na sequência dela que a Requerida concluiu não estarem reunidos os pressupostos para que a Requerente pudesse beneficiar da isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, sujeitando, consequentemente, a aquisição do Prédio à tributação em sede de IMT, de acordo com as regras gerais aplicáveis. A Requerida, de resto, não podia deixar de liquidar o imposto devido, desde que respeitasse, como sucedeu, o prazo de caducidade do direito à liquidação do imposto .
O n.º 2 do art.º 31.º do CIMT refere que quando se verificar, como se verificou, que nas liquidações se cometeu erro de facto ou de direito, de que resultou prejuízo para o Estado, o que terá acontecido com a liquidação a zeros a que se refere o documento ..., o chefe do serviço de finanças onde tenha sido efectuada a liquidação ou entregue a declaração para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 19.º do mesmo diploma, promove a competente liquidação adicional.
Não se vê como possa ser questionada a aplicação do preceito acabado de referir, sustentando-se, em termos alternativos, a aplicabilidade do n.º 4 do art.º 14.º do EBF. Esta disposição, sob a epígrafe “extinção dos benefícios fiscais”, refere que o acto administrativo que conceda um benefício fiscal não é revogável, nem pode rescindir-se o respectivo acordo de concessão, ou ainda diminuir-se, por acto unilateral da administração tributária, os direitos adquiridos, salvo se houver inobservância imputável ao beneficiário das obrigações impostas, ou se o benefício tiver sido indevidamente concedido, caso em que aquele acto pode ser revogado. Salvo melhor entendimento, não pode impor-se a estatuição normativa sem cuidar de surpreender a respectiva previsão. Isto porque parece, sem mais, precipitada a conclusão de que estamos, em sentido próprio, diante de um acto administrativo que conceda um benefício fiscal.
Esta norma – a constante do n.º 4 do art.º 14.º do EBF – carece de ser interpretada e não crê este tribunal que ela possa ser lida com o sentido e alcance que lhe dá a Requerente .
Vale ainda a pena visitar um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que muito embora respeite a outro benefício fiscal de natureza automática, expressa entendimento que se sufraga para efeitos de fundamentação do ora decido:
“Em suma, o aludido benefício não opera a pedido do interessado, isto é, através de requerimento autónomo dirigido especificamente à sua obtenção e com a inevitável instauração e decisão de procedimento próprio para o efeito (como acontece com os benefícios dependentes de reconhecimento – cfr. art.º 5º, nº 3, do EBF), inexistindo, por conseguinte, acto administrativo de reconhecimento em procedimento tributário próprio e autónomo.
Trata-se, aliás, de posição pacífica e reiterada, há muito consolidada na jurisprudência dos Tribunais Centrais Administrativos e do Supremo Tribunal Administrativo, como se pode constatar, a título exemplificativo, pela leitura dos acórdãos deste Tribunal nos processos n.º 0783/09, de 2/12/2009, n.º 0936/09, de 16/12/2009, n.º 0937/09, de 20/01/2010, n.º 01119/09, de 27/01/2010, n.º 0120/10, de 14/04/2010, n.º 0797/09, de 10/02/2010, todos no sentido de que as isenções previstas no nº 1 do art.º 20º do DL nº 423/83 têm aplicação automática verificados os condicionalismos legalmente impostos.
Inexistindo, no caso em análise, um acto administrativo a conceder um benefício fiscal, isto é, um acto administrativo em matéria tributária sujeito ao prazo de revogação de actos administrativos constitutivos de direitos previsto no art.º 104º do CPA, não pode, naturalmente, ocorrer a violação desta norma.
O que, no caso, se verificou foi que os sujeitos passivos, ao darem cumprimento ao dever declarativo imposto pelo art.º 19º do CIMT, fizeram operar, de forma directa e automática, a isenção de tributação ao declararem que a aquisição das frações se destinava à instalação de empreendimento turístico nos termos previstos no nº 1 do art.º 20 do DL 423/83, isto é, ao declararem a existência de uma realidade que faz automaticamente espoletar a isenção. O que levou o serviço de finanças a emitir documento único de cobrança (DUC) com o valor de 0,00 euros, atenta a inexistência de obrigação de imposto perante o teor dessa declaração e a necessidade de emissão de DUC para sua apresentação junto do notário, em conformidade com o disposto no art.º 49º do CIMT.
Mas vindo a administração tributária a verificar, posteriormente, através de acção inspectiva, que a aquisição das frações não se destinava, afinal, à declarada instalação de empreendimento turístico, e que, por conseguinte, não ocorriam os pressupostos para a isenção de que aqueles haviam beneficiado de forma automática mas indevida, a administração tinha o poder/dever de proceder, como procedeu, à liquidação do tributo devido, por não ter caducado o direito a essa liquidação à luz da norma que estabelece o prazo para o efeito (“oito anos seguintes à transmissão ou à data em que a isenção ficou sem efeito”– cfr. art.º 35º do CIMT), não havendo, por conseguinte, que convocar quaisquer normas e prazos previstos no CPA.
E ainda que se considerasse que ocorreu um prévio acto de liquidação ou de autoliquidação para efeitos de emissão do documento de cobrança de IMT (“a zeros” na expressão dos impugnantes), o certo é que esse acto se limitou a assimilar e a fazer actuar a isenção que decorria, de forma automática, da declaração fiscal dos sujeitos passivos. O que nunca poderia impedir a administração tributária de proceder, posteriormente, a uma liquidação correctiva/adicional, tendo em conta que dispõe, para o efeito, de um prazo de quatro anos contado da liquidação a corrigir (cfr. art. 31º, nº 3, do CIMT), não havendo, por conseguinte, que convocar as normas contidas nos arts. 78º e 79º da Lei Geral Tributária.”
Pelo exposto, julga o tribunal arbitral não assistir razão à Requerente quando pretende que a Requerida tinha apenas um ano a contar da prática do acto de liquidação a zeros para proceder à liquidação adicional de IMT ora posta em crise.
Entende ainda a Requerente que “ao emitir a liquidação adicional de IMT aqui em apreço, descurando o prazo legal previsto no artigo 168.º, n.º 2, do CPA, a AT agiu de forma ilegal e ao arrepio do princípio da boa fé, na sua vertente tutelar da confiança e das legítimas expectativas da Requerente, padecendo tal acto de vício de violação de lei, em concreto dos artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 10.º do CPA”. Salvo melhor opinião, esta conclusão encerra um raciocínio tautológico, já que não consegue dissociar-se a pretensa acção ilegal da violação do princípio da boa fé. Ou seja, parece resultar do exposto que a Requerida terá actuado ao arrepio da exigível boa fé, na medida em que a sua acção foi ilegal.
Mesmo que se admita que a violação das regras da boa fé pode consistir em vício autónomo de violação de lei, a Requerente baseia o seu juízo de censura na circunstância de ter sido emitida pela AT uma “liquidação adicional de IMT muito após o prazo de um ano de que dispunha para proceder a tal”. Como bem lembra a Requerente, “agir consoante as regras de boa fé – art.º 266.º, n.º 2, da CRP -, traduz-se no dever de actuar segundo um padrão de lealdade e correcção (…), pretende consagrar a ideia de previsibilidade”. Ora, a Requerente foi notificada do projecto de emissão de uma liquidação adicional de IMT cerca de três meses após o termo do sugerido prazo de “um ano de que [a AT] dispunha para proceder a tal”, o que dificilmente pode considerar-se, para estes efeitos, como “muito após” o que se expectável, sobretudo se os compararmos com o prazo de caducidade do direito à liquidação.
Assim, também não parece a este tribunal ter sido violado o princípio da boa fé, na sua vertente de tutela da confiança dos contribuintes.
3.4. Dos juros indemnizatórios
O acto impugnado, como se procurou demonstrar, não padece de qualquer ilegalidade. Assim, não se verificam os pressupostos para que haja lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.
4. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:
a) Julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação adicional de IMT de 19.11.2018, correspondente ao documento de cobrança número..., da mesma data, no montante de € 15.060,38 (quinze mil e sessenta euros e trinta e oito cêntimos);
b) Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;
c) Condenar a Requerente nas custas.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 15.060,38 (quinze mil e sessenta euros e trinta e oito cêntimos).
6. Custas
Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerente.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2019
O Árbitro
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(Nuno Pombo)
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.