DECISÃO
I – Relatório
1.1. A…, Lda., NIPC …, com sede no …, (doravante designada por «requerente»), tendo sido notificada do indeferimento da reclamação graciosa interposta de liquidações de IUC e correspondentes juros compensatórios e de mora de veículo, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, apresentou, em 14/3/2014, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista que seja declarada a "ilegalidade das liquidações e correspondentes juros compensatórios e de mora do veículo de categoria C, com a matrícula ..-..-.. do ano de 1991, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, no valor global de €3.984,86, que se consubstanciam nas liquidações oficiosas n.º ..., ..., ... e ...".
1.2. Em 20/5/2014 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 24/6/2014, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido da requerente.
1.4. Por despacho de 14/7/2014, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. As partes foram notificadas desta intenção, tendo em vista pronunciarem, no prazo estabelecido, se assim o entendessem. Não o fizeram.
1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Fundamentação: A Matéria de Facto
2.1. Vem a ora requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) "jamais se poderá onerar «alguém» pelo pagamento de IUC em anos posteriores à venda de um veículo que era da sua propriedade e estava devidamente registado em seu nome"; b) "a Administração Fiscal só deverá imputar a sujeição passiva do IUC aos efectivos proprietários do veículo"; c) "o registo tem efeitos meramente enunciativos"; d) "no ano de 2009, o sujeito passivo não era proprietário do veículo automóvel com a matrícula ..-..-.., desde 25 de Janeiro de 2009 "; e) "o sujeito passivo, ao lograr prova da transferência da propriedade do referido veículo automóvel no dia 25 de Janeiro de 2009, afastou [a] presunção proveniente do registo, demonstrando inequivocamente que não é o responsável pelo pagamento do IUC do anos de 2009 e seguintes."
2.2. Conclui a requerente que: a) "o contribuinte não é sujeito passivo deste imposto, não incidindo sobre si qualquer incidência subjectiva, quer nos termos do art. 3.º, quer nos termos do art. 6.º do CIUC"; b) "o pedido da Requerente [deve ser] julgado procedente e anuladas as liquidações dos impostos e dos juros acima mencionados."
2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na contestação: a) que "entender que o legislador consagrou [no art. 3.º do CIUC] uma presunção [...] seria inequivocamente uma interpretação contra legem"; b) que "o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pelo Requerente é intolerável, não encontrando [...] qualquer apoio na lei"; c) que, "à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pelo Requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade é manifestamente errada" face à "própria ratio do regime consagrado no Código do IUC"; d) que "os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2 do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era o Requerente, na qualidade de proprietário, o sujeito passivo do IUC, tal como atesta a Informação relativa ao histórico da propriedade dos veículos em causa"; e) que "a interpretação veiculada pelo Requerente se mostra contrária à Constituição".
Em síntese, a AT sustenta "a conformidade legal dos actos objecto do presente pedido, falecendo, consequentemente, as pretensões formuladas pelo Requerente." Conclui, por último, que "deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido."
2.4. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) A ora requerente actua no mercado de exploração florestal, possuindo veículos que são sujeitos ao pagamento do IUC.
ii) As liquidações ora em causa, no montante global de €3984,86, dizem respeito ao pagamento de IUC relativo aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, de veículo de categoria C, com a matrícula ..-..-.. (do ano de 1991).
iii) A viatura acima mencionada foi vendida em 25/1/2009 pelo preço de €4000,00 (a que acresceu IVA no montante de €800,00), à sociedade "B..., Lda.", com sede na Rua …, em Vagos, conforme se pode constatar pela leitura dos docs. 1 e 2 junto aos autos (por lapso, consta do doc. 2 a data de 25/1/2010).
iv) Em momento anterior à data do imposto (de 2009 e anos seguintes), a viatura em causa foi objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da requerente, conforme se pode observar pela leitura do doc. 1 acima referido. A venda encontra-se suportada pela respectiva factura de venda (factura n.º 175), a qual se encontra devidamente identificada.
v) A ora requerente interpôs reclamação graciosa a 21/1/2014, a qual foi indeferida por despacho do Chefe de Finanças datado de 7/3/2014 (vd. doc. apenso aos autos).
2.5. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
III – Fundamentação: A Matéria de Direito
No presente caso, são três as questões de direito controvertidas: 1) saber se, como alega a AT, "entender que o legislador consagrou [no art. 3.º do CIUC] uma presunção [...] seria [...] uma interpretação contra legem"; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora requerente não atende ao "elemento sistemático de interpretação da lei", e se vai contra a "interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC "; 3) saber se houve "interpretação desconforme à Constituição".
Vejamos, então.
1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; c) saber - admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) - se foi feita a ilisão da mesma.
a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:
"Artigo 3.º – Incidência Subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação".
A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).
Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o "pensamento legislativo". O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.
A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão "considerando-se como tais" significa algo diverso de "presumindo-se como tais". De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, "instintivamente", a identidade entre as duas expressões.
Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras "considerando" e "presumindo" (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão "considera-se", constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: "para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT" (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).
b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a "unidade do sistema jurídico" (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo "presumir" é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões "considera-se como" ou "considerando-se como" assumem, como se viu, destaque.
Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da requerente "ignora o elemento teleológico de interpretação da lei: a ratio do regime consagrado no artigo em apreço e, bem assim, em todo o CIUC".
Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: "O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária" (vd. art. 1.º do CIUC).
O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos "contribuintes" aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA n.º 73/2013-T: "na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade."
Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê "utilizadores", devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, "proprietários com registo em seu nome"...?
c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que se invoque o art. 6.º do CIUC, como o faz a AT, para alegar "que só as situações jurídicas objecto de registo [...] geram o nascimento da obrigação de imposto", é necessário ter presente que tal registo gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada mediante prova em contrário (prova de que o registo já não traduz, no momento da obrigação de imposto, a verdade material que lhe teria dado origem).
Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).
Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um "formalismo registral", ao pagamento de portagens ou coimas.
A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: "O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes."
No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA n.º 14/2013-T, em termos que aqui se acompanham: "a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda."
Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por via de "prova bastante" da venda) foi realizada (vd. factura n.º 175 junta aos autos). Com efeito, apesar do que a AT alega nos pontos 66.º a 75.º da sua resposta, o Tribunal não vê razão para questionar a factura apresentada pela requerente, sendo a mesma claramente demonstrativa de que a requerente não era, à data do imposto, a proprietária do veículo.
No mesmo sentido, ver a DA n.º 27/2013-T, datada de 10/9/2013: "os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [...] [dos] veículos atrás referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT."
3) Conclui-se, em face do que foi acima exposto [v. 1) e 2)], não existir "interpretação desconforme à Constituição", ao contrário do que é alegado pela requerida nos pontos 56.º a 65.º da sua resposta.
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IV – Decisão
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação impugnados e o reembolso das importâncias indevidamente pagas.
Fixa-se o valor do processo em €3984,86 (três mil novecentos e oitenta e quatro euros e oitenta e seis cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e no art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da requerida, no montante de €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, dado que o presente pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 30 de Julho de 2014.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
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Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 138.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.