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REENVIO PREJUDICIAL   |
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DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros que constituem o Tribunal Arbitral coletivo, Professor Doutor António Carlos dos Santos (árbitro-presidente), Dr. Jesuíno Alcântara Martins e Professora Doutora Clotilde Celorico Palma (árbitros vogais), acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A. A marcha do processo
1. A A..., SA., doravante designada por “Requerente”, com o número de identificação fiscal ..., e com domicílio fiscal em ..., ...-... ..., apresentou um pedido de constituição de Tribunal Arbitral coletivo, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01 (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante designado por RJAT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada por “Requerida”), com o objetivo de obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IVA, n.º 2018..., consubstanciado na demonstração de liquidação de IVA n.º 2018..., referente ao período de tributação 2017.11, do qual resultou imposto a reembolsar no valor de € 237.333,97, em vez dos solicitados € 424.137,95, nos termos do n.º 8 do artigo 22.º do CIVA , conforme resulta da inscrição deste valor no campo 95 do respetivo formulário.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exm.º Presidente do CAAD em 26.07.2018 e automaticamente notificado à Requerida.
3. No pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 5.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, a Requerente procedeu à designação, como árbitro, da Professora Doutora Clotilde Celorico Palma. Indicou ainda como testemunha B..., economista.
4. Por sua vez, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 11.º do RJAT, a Requerida designou como árbitro o Dr. Jesuíno Alcântara Martins, decisão que foi notificada pelo CAAD à Requerente em 27.09.2018.
5. Os árbitros indicados pelas partes aceitaram o encargo e, não se tendo verificado qualquer oposição à sua designação, estes informaram o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD que, conforme resulta do n.º 6 do artigo 11.º do RJAT, por acordo, pretendiam designar como árbitro presidente o Professor Doutor António Carlos dos Santos.
6. Em conformidade com o preceituado no normativo do n.º 7 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01.2011, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 12.10.2018.
7. Considerando o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, em articulação com os normativos da alínea a) do artigo 99.º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo e, de acordo com os preceitos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n,º 112-A/2011, de 22.03, as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e estão representadas nos termos da lei.
8. Em 18.10.2018 foi notificada a Exm.ª Diretora-Geral da AT nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT.
9. Em 21.11.2018, a Requerida apresentou a sua resposta e, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º do RJAT, remeteu, para ser junto aos autos, o processo administrativo. Na sua resposta, a Requerida pronunciou-se pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral e, quanto à prova testemunhal, pronunciou-se no sentido desta ser dispensada, uma vez que a matéria controvertida, pela sua natureza, exigiria que a prova produzida fosse documental, pelo que a inquirição da testemunha indicada pela Requerente seria suscetível de configurar, nos termos do artigo 130.º do Código de Processo Civil (CPC), um ato inútil. À cautela, porém, a Requerida indicou como sua testemunha o Inspetor Tributário C..., com domicílio profissional na Direção de Finanças de ... .
10. Por despacho de 14.11.2018, o Tribunal Arbitral convocou para o dia 14.12, pelas 14H30, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo a inquirição das testemunhas ficado marcada também para este dia.
11. Em 30.11.2018, a Requerente apresentou um requerimento no qual solicita ao Tribunal que dê sem efeito a inquirição de testemunhas marcada para o dia 14.12, porquanto, quer a Requerida na sua resposta, quer agora a Requerente, consideram ser de prescindir da prova testemunhal atenta a natureza da matéria controvertida.
12. Perante esta solicitação da Requerente e a resposta da Requerida, por Despacho de 09.12.2018, o Tribunal deu sem efeito a reunião marcada para o dia 14.12, e determinou a notificação das partes para, no prazo de 10 dias sucessivos, procederem à apresentação de alegações escritas.
13. Em 02.01.2019, a Requerente apresentou as suas alegações, com junção de um documento novo, sendo as alegações da Requerida apresentadas em 17.01.2019.
14. Em face da avaliação que, entretanto, fez dos factos, e tendo em consideração que continuavam a persistir divergências quanto à sua descrição e leitura, não sanadas na fase das alegações, por Despacho de 21.03.2019, o Tribunal decidiu proceder à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, B..., economista, e C..., inspetor tributário, tendo designado para o efeito o dia 09.04, pelas 10H15, nas instalações do CAAD, data que foi posteriormente alterada para o dia 30.04 pelas 14H00.
15. No dia e hora designados, o Tribunal Arbitral procedeu à diligência de inquirição de testemunhas, tendo estas respondido às questões colocadas pelos representantes das Partes, bem como às questões que os membros do Tribunal entenderam por bem fazer. O depoimento das testemunhas foi recolhido em suporte magnético e foi elaborada a ata que foi assinada por todos os intervenientes na diligência e ficou a fazer parte integrante do processo arbitral.
16. Em 17.05.2019, a Requerente solicitou a junção aos autos do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), datado de 08.05.2019, proferido no processo n.º C-127/2018, a qual foi autorizada por Despacho de 27.05.2019 do Tribunal Arbitral.
17. Dada a complexidade da matéria decidenda, e perante a necessidade de fixar, por consenso, os factos dados como provados, o Tribunal prorrogou, ao abrigo do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, por duas vezes, o prazo para a emissão da decisão arbitral, conforme consta dos registos da aplicação de gestão processual do CAAD.
18. Atento o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, o Tribunal Arbitral é materialmente competente para decidir a matéria controvertida.
19. Não foram invocadas exceções e o processo não enferma de nulidades.
B. A causa de pedir
Constituem causa de pedir do pedido de pronúncia arbitral, reafirmada nas alegações:
20. A desconsideração, pela Requerida, de um reembolso de IVA, no valor de € 186.804,03, incluído no pedido formulado pelo sujeito passivo, agora Requerente, no período de tributação de 2017.11, no montante de € 424.137,95.
21. O facto de a Requerida ter decidido que o pedido formulado pelo sujeito passivo, em relação àquele valor de € 186.804,03, regularizado ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do 78.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), não tinha enquadramento no quadro legal vigente, porquanto, não obstante resultar de créditos incobráveis, o processo de insolvência da devedora (D..., SA., sociedade domiciliada em Espanha) não correra os seus termos ao abrigo do Código de Insolvência de Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18.03.
22. Nesta conformidade, a Requerida não reconheceu o direito ao reembolso total do valor de € 424.137,95, pedido pela Requerente na declaração referente ao período de tributação de 2017.11, apenas tendo reconhecido e procedido ao pagamento do reembolso no valor de € 237.333,92 (€424.137,95 - € 186.804,03).
23. A Requerente discorda da posição da Requerida, dado que o IVA foi liquidado em resultado de operações comerciais consubstanciadas em fornecimento de bens pela Requerente à D..., foi, nos termos da Lei, entregue, nos cofres do Estado, não havendo razões juridicamente válidas para ser negado o direito ao seu reembolso.
24. A Requerente contesta ainda a posição da Requerida, para quem o exercício do direito à dedução teria tido lugar há mais de quatro anos após o nascimento desse direito que, segundo a Requerida, não poderia ter ocorrido após a entrada da D... em liquidação em 2010.
25. Contesta ainda a posição da Requerida que entende haver contradição entre o pedido do reembolso e o preenchimento dos formulários necessários para efetuar esse pedido e de não ter sido cumprida, de forma válida, a obrigação de comunicar ao adquirente a dedução a seu favor do IVA em causa.
26. Por fim, a Requerente invoca ter direito ao reembolso daquele valor global, porquanto, não conseguiu obter a cobrança dos seus créditos junto da D..., não obstante ter promovido todas as diligências necessárias para o efeito.
27. Sustenta, pois, contra a posição da Requerida, haver prova inequívoca de que as faturas que suportam o pedido de reembolso foram por si reclamadas no processo de liquidação da D... e confirmadas pelo Tribunal espanhol competente.
C. Argumentação das Partes
I. A posição da Requerida
28. A Requerida considera que o pedido de reembolso no valor de € 186.804,03 é ilegítimo, atenta a circunstância da devedora dos créditos (a D...) ser uma empresa não residente em Portugal e a existência de erros formais cometidos no processo de regularização.
28. A Requerida defende que a regularização do IVA ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA apenas pode ocorrer em relação a insolvências que ocorram no âmbito do ordenamento jurídico nacional, não sendo tal possibilidade acessível ao IVA relativo a créditos decorrentes de processos de insolvência que corram seus termos em instâncias de outros Estados.
29. Acresce que a regularização do IVA ao abrigo do artigo 78.º do CIVA, com o consequente reconhecimento do reembolso, implicava, de forma inelutável, um prejuízo para o Estado português, uma vez que a D..., na qualidade de sujeito passivo não estabelecido em território nacional, havia solicitado e obtido, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 408/87, de 31.12, a restituição do IVA suportado com base nas faturas emitidas pela ora Requerente, IVA esse que já não lhe poderia ser exigido, não só por ausência de enquadramento legal, como também pelo facto da D... já não existir.
30. A Requerida considera inaplicável, no caso sub judice, a regularização do IVA ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, porquanto se trata de uma insolvência que não correu termos ao abrigo do CIRE.
31. A Requerida alega ainda que, mesmo se assim não fosse, a Requerente não cumprira, nos termos previstos no n.º 11 do artigo 78.º do CIVA, com a obrigação de comunicar à adquirente a regularização do IVA liquidado e não pago, devendo, em consequência, ser mantida no ordenamento jurídico a liquidação de IVA controvertida, no valor de € 186.804,03.
32. Com efeito, segundo a Requerida, o CIVA (artigoº 78.º, n.º 7) impõe duas condições quando se trata de uma dedução de IVA faturado em créditos sobre clientes considerados incobráveis, a saber:
"1. Que a insolvência tenha sido decretada – para o que é necessário uma certidão emitida pelo Tribunal que certifique:
a. Que a sentença de insolvência foi proferida e a respetiva data;
b. Se a sentença de insolvência já transitou em julgado e a respetiva data;
c. Os montantes reclamados no âmbito do processo judicial; e,
d. Se no âmbito do processo de insolvência foram recuperados alguns dos créditos reclamados.
2. Que tenha sido comunicado ao adquirente dos bens a anulação do IVA" .
33. Para a Requerida resulta da forma como a lei estabelece esta segunda condição (comunicação ao adquirente para este regularizar, a favor do Estado, o IVA deduzido pelo credor, inscrevendo-o no campo 41 da declaração periódica) que o adquirente terá necessariamente que ser residente no território nacional, de onde resulta o facto de o regime de regularização previsto no n.º 7 do artigo 78.º do CIVA apenas ser aplicável " quando ambos os sujeitos passivos (credor e devedor) sejam sujeitos passivos de IVA" em Portugal, facto que "não se verifica na situação sub judice, na medida em que o devedor não está registado para efeitos de IVA em Portugal, não é aí tido como sujeito passivo, não está obrigado ao envio de declarações periódicas de IVA" por aplicação do CIVA; pelo contrário, o devedor D... " é residente em Espanha, aí considerado como sujeito passivo, onde entregará declarações de IVA e cumprirá com outras obrigações que decorrem da Ley del Impuesto sobre el Valor Añadido".
34. Segundo a Requerida, a Requerente "parte do princípio de que as regras estabelecidas pelo Código do IVA, nomeadamente, no artigo 78.º, no seu n.º 7, alínea b), são aplicáveis, mesmo que o devedor não seja residente no território nacional", quando "este princípio não tem suporte legal, uma vez que este artigo se refere objetivamente a insolvências que tenham enquadramento no âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas", ficando assim, por falta de enquadramento legal, "afastada a possibilidade de considerar dedutível o IVA inerente a créditos considerados incobráveis por insolvências tramitadas por qualquer outra via".
35. A Requerida aduz ainda outros argumentos em favor da sua posição. Assim, afirma que, para exercerem o direito à regularização previsto no n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, devem os sujeitos passivos reunir diversos requisitos e dar cumprimento às obrigações estabelecidas nos n.ºs 11, 12 e 16 do mesmo artigo, em particular a comunicação ao adquirente do bem ou serviço que seja um sujeito passivo do imposto, sendo que sem esta comunicação não é possível ao credor proceder à referida regularização (n.º 11 do artigoº 78.º), a anulação total ou parcial do imposto para efeitos de retificação da dedução inicialmente efetuada, a obtenção de uma certificação por revisor oficial de contas (prevista no n.º 9 do artigoº 78.º) e, finalmente, atender ao condicionalismo de ordem temporal estabelecido no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA (prazo de quatro anos) para o exercício daquele direito.
36. Deste modo, mesmo que fosse aplicável o disposto no n.º 7 do artigo 78.º do CIVA (nas suas sucessivas versões), tese que a Requerida afasta, a verdade é que, para esta Parte, o prazo para efetuar a regularização já havia caducado ou em junho de 2014, caso a insolvência fosse considerada de caráter limitado, ou em fevereiro de 2016, caso o fosse de caráter pleno (qualificação que entende ser mais plausível).
37. Com efeito, para a Requerida, decorre das diferentes alterações ao artigoº 78.º, n.º 7 do CIVA, que o momento determinante para regularizar o IVA difere consoante a versão em vigor, conforme sintetiza no quadro apresentado no ponto 33 das suas alegações:
38. Sublinha a Requerida que "de acordo com o CIRE, a insolvência é decretada no início do processo (artigos 28.º e 36.º, ambos do CIRE) e não no fim (quando é efetuado o registo de encerramento definitivo da liquidação). Por outro lado, nenhum destes momentos corresponde ao trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos (artigos 128.º e 140.º, ambos do CIRE) que intermeia o início e fim do processo".
39. Quando a insolvência é de carácter pleno, isto é, quando o procedimento prossegue para liquidação, é necessário aguardar pela homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do CIRE. Esta ocorrência corresponde à deliberação da Assembleia de credores destinada a apreciar o relatório do administrador de insolvência de onde deve constar a lista provisória de credores (artigosº 154.º e 155.º, n.º 2 CIRE).
40. Assim, segundo crê a Requerida, se for feito um paralelismo entre o procedimento espanhol e o procedimento de insolvência em Portugal, concluir-se-ia que:
- o momento em que o "procedimiento concursal" da D... foi decretado (07.07.2010) equivaleria ao momento em que a insolvência foi decretada;
- o momento da aprovação do plano de liquidação da D... (07.03.2012) aproximar-se-ia do momento da sentença de verificação e graduação de créditos relevante no CIVA para efeitos de regularização do IVA de créditos incobráveis.
41. Decorreria daqui que, se estivesse em causa uma insolvência de carácter limitado, como a insolvência foi decretada em 07.07.2010 e consagrando a redação do artigo 78.º, n.º 7 do CIVA em vigor à data que o direito à regularização do IVA se constituía com a ocorrência desse momento, teríamos que o direito à dedução do IVA do crédito incobrável se teria iniciado no período de julho de 2010 e, consequentemente, estaria extinto em junho de 2014.
42. Se estivesse em causa uma insolvência de carácter pleno, dado o facto do plano de liquidação ter sido aprovado em 07.03.2012 e a redação em vigor à data fazer coincidir o direito à regularização do IVA dos créditos com a ocorrência desse momento, teríamos que o direito à dedução do IVA do crédito incobrável se teria iniciado no período de março de 2012 e extinguido em fevereiro de 2016.
43. Ou seja: em qualquer dos casos, teria passado o prazo de 4 anos, previsto no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA, para reclamar o reembolso do IVA, ao abrigo do artigo 78.º, n.º 7 do mesmo diploma.
44. Segundo a Requerida, acresce ainda que a documentação necessária para suportar a regularização no âmbito de um procedimento de insolvência implicaria a obtenção de determinados documentos, sem os quais não estariam reunidas as condições para fundamentar o direito à referida dedução pela Requerente. É o caso de:
- Nos casos de insolvência de carácter limitado, uma certidão judicial que declare a data da sentença, data do trânsito em julgado e reconhecimento dos créditos;
- Nos casos de insolvência de carácter pleno, uma certidão judicial de onde conste a data da sentença, a data do trânsito em julgado, a verificação e graduação dos créditos, bem como, caso seja aplicável, o teor da deliberação dos credores, bem como a lista anexa ao relatório do administrador de insolvência e a respetiva certidão judicial de homologação e reconhecimento dos créditos.
II. A posição da Requerente
Quanto à não aplicação do artigoº 78, n.º 7, al. b) do CIVA a entidades estrangeiras
45. Segundo a Requerente, a posição da Requerida segundo a qual o artigo 78.º do CIVA não é aplicável quando estejamos perante empresas estrangeiras levaria a que fossem afetadas não apenas as transações com sociedades não residentes sem estabelecimento estável em Portugal, como também aquelas que o têm e todas as demais que tenham registo de IVA em Portugal, ainda que aqui não possuam estabelecimento estável, uma vez que, em caso de insolvência, será sempre aplicável a lei de insolvência do respetivo país de domicílio – tipicamente, o da sua sede.
46. Deste modo, a "restrição preconizada pela AT, a ser validada, constituiria uma frontal violação, em geral, do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade (ou, no caso das empresas, da localização da sede ou local onde foram constituídas) e, em especial, da liberdade de estabelecimento (cfr. artigo 49.º do Tratado que institui o funcionamento da União Europeia – TFUE), ou mesmo da livre prestação de serviços (cfr. artigo 56.º do TFUE), na medida em que trata de forma discriminatória uma empresa nacional, agravando a sua situação em termos de IVA, se ela transmitir bens (ou prestar serviços) a uma empresa residente noutro país da União e se, por qualquer motivo, essa empresa não pagar total ou parcialmente o preço dos bens (ou serviços) adquiridos em território nacional".
47. Sendo que, "ceteris paribus, não é inverosímil que um comprador estrangeiro seja preterido em relação aos nacionais ou tenha condições menos favoráveis na aquisição precisamente porque, compreensivelmente, o seu risco de crédito no tocante ao IVA é muito mais agravado se, em cenário de insolvência daquele, não houver como recuperar o IVA não pago".
48. Embora a Diretiva de Consolidação do IVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28.11.2006, doravante DCIVA) permita que, no caso de operações total ou parcialmente não pagas, "os Estados possam derrogar a faculdade de regularização do IVA a favor do prestador/vendedor (cfr. n.º 2 do artigo 90.º), é igualmente certo que não o podem fazer de forma discriminatória comprometendo de alguma forma essa possibilidade quando o sujeito incumpridor não seja uma entidade nacional", antes devendo "observar escrupulosamente os princípios comunitários, em geral, como o da não discriminação e o da proporcionalidade, e os privativos do IVA, em particular, como são os princípios gerais do direito à dedução e da neutralidade".
49. Se assim não fosse, estaríamos perante "um condicionamento de ordem fiscal que afronta a liberdade de estabelecimento, não sendo necessário provar que houve efetivamente uma restrição nessa liberdade – ie., que a norma em causa prejudicou, comprovadamente, empresas não domésticas – bastando que haja uma discriminação ou uma restrição potencial".
50. Assim, prossegue a Requerente, "as normas que exigem a comprovação de que um adquirente como a D... está em situação de insolvência e que requerem determinados comprovativos quanto à forma de demonstrar que esses créditos são incobráveis têm de ser olhadas à luz da sua função e dos interesses que visam acautelar (ou seja, exigindo-se a adequação, necessidade e proporcionalidade ao fim visado), e não interpretadas de modo discriminatório e formalístico, como se essas funções e interesses não pudessem ser logrados mediante prova, no ordenamento em que se situa o adquirente, de que o mesmo adquirente é oficialmente e para todos os efeitos insolvente, de que os créditos em causa foram reclamados e de que uma entidade de administração da justiça comprovou que os mesmos créditos não serão pagos".
51. E a Requerente prossegue: "Assim, tal como não é possível, perante o TFUE, e com vista à atribuição de benefícios numa situação que envolve uma sociedade de outro EM, ser mais exigente em termos de prova do que acontece numa situação puramente doméstica (como era o caso que deu origem ao Acórdão Bent Vestergaard, C-55/98), também no caso presente é totalmente ilegal proibir a regularização relativamente a créditos de IVA sobre sociedades insolventes não residentes sem primeiro provar que a informação a que a AT tem acesso não é suficiente para cumprir os fins de controlo visados pelo legislador ao estabelecer as exigências probatórias constantes do CIVA, tanto mais que dispõe hoje de todos os meios para obter essa informação (nomeadamente, por via da Diretiva 2010/24/UE do Conselho, de 16 de Março de 2010, relativa à assistência mútua em matéria de cobrança de créditos respeitantes a impostos, direitos e outras medidas)."
52. É precisamente nesse sentido que advoga o artigo 273.º da DCIVA, ao dispor: “Os Estados-Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados-Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados-Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira”, ou seja, "embora os Estados-Membros tenham a faculdade de adotar, ao abrigo do referido artigo 270.º da Diretiva do IVA, medidas para assegurar a cobrança exata do imposto e evitar a fraude, não devem, contudo, ir além do que é necessário para atingir tais objetivos e, muito menos, pôr em causa a neutralidade do IVA."
53. Acresce que, tal como é sublinhado pelos nossos Tribunais Superiores, nomeadamente o STA [cfr., por todos, o Acórdão de 07/10/2015, proferido no processo n.º 1455/12 (Relator Francisco Rothes)], “[o] princípio da dedução do IVA, enquanto meio de concretizar a neutralidade do imposto, impõe que todas as restrições ao direito de dedução sejam interpretadas de forma restritiva e reduzidas ao mínimo”.
Quanto ao prazo e aos documentos necessários à regularização
54. A Requerente faz notar que, embora até à entrada em vigor da Lei de Orçamento do Estado (LEO) para 2013 (Lei n.º 66-B/2012, de 31.12), a regularização do IVA pelo credor na sequência da insolvência do devedor não estivesse articulada com o CIRE, limitando-se o artigo 78.º. n.º 7 do CIVA a estatuir que “os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis: (…) al. b) em processo de insolvência quando a mesma seja decretada”, diversas orientações administrativas vinham exigir aos sujeitos passivos de IVA um conjunto de requisitos adicionais, para que pudessem proceder à sua regularização.
55. Assim, na informação vinculativa proferida no processo CO20 2007006, que mereceu despacho do Subdiretor-geral dos Impostos em 24.04.2008, pode ler-se que “para proceder à respetiva regularização, será necessário estar na posse de uma certidão passada pelo Tribunal, que certifique a sentença declarada, se a mesma transitou em julgado e a respetiva data, bem como prova, se for caso de insolvência, de que os créditos foram reclamados.”
56. Desta condição resultava, desde logo, uma situação de desfasamento temporal, pois enquanto a declaração de insolvência ocorre no início do processo de insolvência, a reclamação de créditos só tem lugar num momento posterior, pelo que, na prática, poderiam mediar meses ou anos entre aquela declaração de insolvência e a reclamação de créditos por parte do credor, sem esquecer que nem sempre o credor conseguiria reclamar atempadamente os seus créditos, porquanto a publicidade que era dada ao estado de insolvência era relativamente parca.
57. Para além disso, e tal como frisa a própria Requerida no RIT (págs. 14 e 15, pár. 12. a 15), haveria que exigir mais em termos de prova da incobrabilidade de créditos do que uma mera sentença de insolvência que acaba por não demonstrar se, a despeito da insolvência, ainda assim o adquirente em causa dispõe de massa insolvente para solver os créditos e o correspondente IVA.
58. Aliás, nem mesmo literalmente o artigo 78.º do CIVA se satisfazia com uma sentença de insolvência, porquanto não deixava de falar em “créditos considerados incobráveis”, o que significa que não bastava que uma sociedade se encontrasse numa situação em que não conseguia cumprir todas as obrigações, sendo necessária a demonstração de que os créditos cujo IVA se pretende regularizar não seriam pagos com os bens da massa insolvente, pelo que, conforme bem sublinha o RIT (cfr. pág. 15), o tribunal deve emitir certidão, e o crédito deve ser reconhecido.
59. Para além disso, exigia ainda a Requerida a certificação da incobrabilidade por parte de um ROC (embora na lei pareça que essa prescrição só se aplicaria aos créditos enunciados no n.º 8 do artigo 78.º do CIVA), exigência essa que o RIT enfatiza.
60. A Requerente recorda que a LOE para 2013 «veio dar à alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA uma nova redação, a saber: "Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis: b) Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado ou após a homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março."»
61. Por sua vez, o artigo 196.º da mesma LOE aditou ao CIVA os artigos 78.º-A a 78.º-D. Quanto à alínea b) do n.º 4 do artigo 78.º-A, a sua redação é idêntica à da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do mesmo diploma, mas tem aplicação apenas a créditos vencidos após 1 de Janeiro de 2013 (artigo 198.º, n.º 6 da LEO para 2013).
62. Procedeu-se, por via desta alteração legislativa, de forma mais clara, à distinção entre regularização do IVA nos processos de insolvência de carácter limitado e nos processos de insolvência plena, sendo as diferenças as seguintes: nas insolvências de carácter limitado basta para a regularização do IVA a sentença que declare a insolvência, o que ocorre quando o tribunal reconhece a inexistência de bens do devedor que permitam saldar ou efetuar qualquer plano de pagamentos aos respetivos credores, enquanto nas insolvências de carácter pleno, é necessário aguardar pela homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do CIRE, isto é, pela deliberação da assembleia de credores destinada a apreciar o relatório do administrador de insolvência (que em anexo contém uma lista provisória de credores) e a deliberar sobre o encerramento ou a manutenção em atividade do estabelecimento ou estabelecimentos compreendidos na massa insolvente (artigo 156.º, n.º 2 do CIRE).
63. Ou seja, o legislador optou por fixar um momento dentro do processo de insolvência em que é já possível conhecer os créditos reclamados no prazo legal e os créditos que o administrador de insolvência reconheceu (constantes da lista provisória de credores), e em que se verifica se haverá plano de insolvência.
64. Segundo a Requerente, a nova redação da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA não resolve totalmente as fragilidades identificadas na redação anterior: por um lado, não determina os efeitos a retirar das diferentes deliberações da assembleia de credores, nem que elementos deverão constar da certidão a emitir pelo tribunal; por outro, mantém-se, igualmente, a omissão quanto aos efeitos da ação para verificação ulterior de créditos em sede de IVA.
65. Nas insolvências de carácter limitado deve ser regularizado o IVA com base na certidão judicial que declare a data da sentença e a data do trânsito e que confirme tratar-se de uma insolvência de carácter limitado, enquanto nas insolvências com liquidação da massa, em que já ocorreu a assembleia prevista no artigo 156.º do CIRE, podem os credores pedir agora certidão ao tribunal contendo a data da sentença que decretou insolvência, a data do trânsito em julgado e a data da homologação da deliberação da assembleia referida no artigoº 156.º CIRE.
66 A LOE para 2015 introduziu mais tarde uma nova alteração que visou, uma vez mais, sublinhar a necessidade de certificação dos créditos pelo tribunal nas insolvências de carácter limitado, alteração essa que, em virtude de o artigo 78.º do CIVA se continuar a aplicar somente aos créditos vencidos antes de 1.01.2013, deve ter-se por aplicável aos créditos vencidos antes dessa data mas ainda não passíveis de regularização antes de 01.01.2015.
Sintetizando quanto à aplicação da Lei no tempo
67. A LOE para 2013 entrou em vigor em 01.01.2013, distinguindo a regularização do IVA de créditos vencidos até 31.12.2012 da regularização de créditos vencidos posteriormente: Assim, aos créditos vencidos até 31.12.2012 aplica-se a disposição transitória do n.º 6 do artigo 198.º da Lei 66-B/2012, segundo a qual (sem prejuízo das posteriores alterações legislativas) “o disposto nos n.ºs 7 a 12, 16 e 17 do artigo 78.º do Código do IVA aplica-se apenas aos créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013.”; para os créditos vencidos até 31.12.2012, aplicar-se-á o artigo 78.º do CIVA; para os vencidos em data posterior, o artigo a aplicar será o 78.º-A do mesmo diploma.
68. Para a Requerente, o momento relevante é, pois, o do vencimento do crédito e não o momento do início do processo de insolvência, da sentença que a decretou ou da assembleia de credores.
69. Por isso, a Requerente não pode vir defender, como o fez no âmbito da inspeção, que o paralelismo entre o processo português e o espanhol levaria a considerar-se como data relevante para início do prazo para o exercício do direito à dedução, a data em que, segundo o Boletim de registo mercantil que junta ao RIT, teve início o denominado “proceso concursal” (cfr. Anexo 16 do RIT), na medida em que a abertura deste processo não implicou, per se, qualquer reconhecimento dos créditos da Requerente – o qual só veio a ocorrer em setembro de 2015, por parte da “administración concursal” e, mais tarde, por parte do Tribunal competente.
70. Não pode fazê-lo porque estaria a incumprir o requisito legal de que os “créditos têm de ser considerados incobráveis” (cfr. artigo 78.º do CIVA) e a derrogar as suas próprias instruções administrativas que, até 2012, complementavam a lei e estabeleciam que (sic) “no processo de insolvência é necessário que o crédito seja reconhecido e como tal conste da relação dos créditos incobráveis na totalidade ou parcialmente (…)” (cfr. RIT, pág. 15), violando o estabelecido no artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária quanto à sua vinculação às suas orientações genéricas.
71. Assim, e quando muito, o exercício do direito à regularização do IVA seria contado a partir de setembro de 2015, pois só a partir dessa data se encontraram reunidas as respetivas condições legais, tendo, por isso, sido exercido dentro do prazo de quatro anos a que alude a Requerente.
72. A mera abertura daquele “processo concursal” não atesta a incobrabilidade do crédito, porquanto ela nada garante ou certifica quanto à possibilidade de o credor recuperar a totalidade ou parte do IVA, não há então qualquer verificação ou homologação pelo juiz competente ou qualquer sentença e não se conhece qualquer verificação, homologação de créditos e avaliação da massa insolvente.
73. É, aliás, patente no seu próprio texto que a declaração do administrador de insolvência de 2015 constitui a primeira verificação dos créditos da Requerente e o primeiro atestado da sua incobrabilidade.
74. O paralelismo que a AT propugna acaba por ter o resultado de equiparar créditos cuja cobrança ainda é duvidosa a créditos incobráveis e esse resultado não está em linha com o exigido pelo artigo 78.º do CIVA, sendo ilegítimo.
75. Finalmente, sendo a caducidade do direito à regularização um facto impeditivo do exercício desse direito, caberia à AT provar a verificação desse mesmo facto impeditivo, nos termos das regras gerais de distribuição do ónus da prova, o que não só não aconteceu como, ao invés, ficou demonstrada a ausência de tal impedimento.
76. Por tudo o que ficou exposto, deve a liquidação em apreço ser anulada por erro nos seus pressupostos de direito e de facto, nos termos apontados, aceitando-se, por conseguinte, a regularização do IVA suportado pela Requerente, referente ao crédito incobrável, com todas as demais consequências legais.
III DO MÉRITO: A QUESTÃO DE FACTO
77. Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme os artigos 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
78. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).
79. Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de constituição arbitral e alegações da Requerente e Resposta e contra alegações da Requerida), à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida em audiência, consideram-se provados com relevo para a decisão os factos seguidamente identificados.
A. Factos Provados
80. A Requerente estabeleceu, em 03.07.1997, uma relação comercial com a D..., sociedade domiciliada em ..., Espanha, consistente num contrato de distribuição em exclusivo que terminou no final do ano de 2009 (cf. extratos de conta-corrente e sistema VIES).
81.Esse contrato previa o fornecimento de bens a crédito pela requerente à D..., normalmente a título de transmissões intracomunitárias de bens (com aplicação de "taxa zero" em Portugal), com recebimento na data de vencimento prevista no acordo de representação celebrado entre ambas as empresas, um prazo de 150 dias refletido nas faturas, bem como a concessão pela Requerente à D... de um tipo de desconto praticado no sector da distribuição, e negociado caso a caso (rappel) em função das vendas efetuadas.
82. Com o tempo, o recebimento das faturas emitidas passou a ocorrer num prazo médio superior ao convencionado e o crédito à empresa espanhola chegou a ascender quase os dez milhões de euros.
83. Em 2007, a Requerente forneceu bens à D..., entregues em Portugal e, consequentemente, enquanto transmissões (internas) de bens, com aplicação de IVA português à taxa legal em vigor à data dessas operações que deram origem a créditos faturados (IVA incluído) e vencidos nesse mesmo ano, os quais, apesar da existência de algumas diligências da Requerente no sentido da sua cobrança não foram pagos pela D... .
84. Este IVA, embora não tenha sido recebido, foi pela Requerente entregue nos cofres do Estado conjuntamente com as declarações periódicas dos respetivos períodos de tributação determinados em função da exigibilidade do imposto por referência à data de emissão das faturas referentes às transmissões de bens efetuadas pela Requerente à D... .
85. Em julho de 2007, a D... foi objeto de um processo voluntário de insolvência que correu termos em instância judicial espanhola (Tribunal Mercantil de...), com aplicação do direito espanhol (abertura de um "proceso concursal"), distinto do quadro legal definido, entre nós, pelo CIRE. (RIT, pág. 13, par. 7).
86. Em 23.09.2008, a D... emitiu um "pagaré" (uma espécie de título de crédito sem total correspondência no direito português que, como a livrança, incorpora uma promessa de pagamento) no valor de € 2.726.133,76 com vista ao pagamento parcial das dívidas à Requerente cujo total chegou, como se disse, a ultrapassar largamente os 9 milhões de euros (anexo 11 ao RIT e Doc. 3 junto com o requerimento de 17.09.2018).
87.Esse "pagaré" dizia apenas respeito a faturas emitidas pela Requerente entre 19.04 e 27.06.2007 (Doc. n.º 4 do requerimento de 17.09.2018), não tendo sido qualquer pagamento efetuado em 31.12.2008, data do seu vencimento (como resulta do "escrito de comunicación de créditos" e nexos 10 do RIT).
88. A listagem de faturas não pagas pela D... à Requerente consta do Doc. 3, estando realçadas a amarelo as faturas objeto do presente litígio e constando do Doc. n.º 4 o extrato contabilístico representativo das mesmas faturas que foram abrangidas pelo referido “pagaré”.
89. Em 2010, a Requerente reclamou os seus créditos no referido "proceso concursal", tendo sido sempre acompanhada por consultores espanhóis, que não só aconselharam como assessoraram a reclamação de créditos e demais acompanhamento do processo em Espanha.
90. Em 2015, em face das diligências promovidas pela Requerente, foi confirmada pela administración concursal, a inexistência de bens suscetíveis de saldar qualquer valor reclamado pelos credores, nomeadamente pela Requerente.
91. Em 2016, o tribunal de jurisdição espanhola profere decisão, nos termos da qual declara inexistirem bens na massa insolvente capazes de fazer face aos créditos da D... reclamados.
92. A D... efetuou, porém, posteriormente à emissão do “pagaré”, alguns pagamentos pontuais no total de €1.191.485,93, relativos a faturas emitidas pela Requerente a partir de 18.07.2007 (vide Anexo 18 do RIT), pagamentos esses que foram imputados pela Requerente a créditos que se venceram depois dos créditos ora em discussão, uma vez que os créditos titulados pelas faturas em análise estavam abrangidos pelo referido “pagaré”.
93. Em 2017, a Requerente, ao abrigo do n.º 8 do artigo 22.º do CIVA, solicitou à AT, na declaração periódica do período de tributação de novembro de 2017, o reembolso de IVA no montante de € 424.137,95, decorrente de créditos sobre a D..., relativos a fornecimentos diversos.
94. Este pedido foi acompanhado de diversos anexos e documentos, nomeadamente uma relação com identificação dos clientes e uma outra com identificação, por campo da declaração periódica, dos fornecedores de bens ou serviços e de importações, aos quais se refere o n.º 1 do artigo 2.º do Despacho Normativo n.º 18-A/2010, de 01.07.
95. Perante este pedido de reembolso de IVA, a AT, após ter efetuado um procedimento interno de análise que foi inconclusivo, tendo em vista a aferição da legitimidade do pedido de reembolso, procedeu, em 29.11.2018, à realização de um procedimento externo de inspeção tributária justificado face às irregularidades existentes no preenchimento da declaração periódica de novembro de 2017 (doc. 2 junto com a petição inicial).
96. Em 20.04.2018, através do ofício n.º..., a Divisão de Inspeção Tributária I da Direção de Finanças de ... deu conhecimento da conclusão da referida ação de inspeção, tendo o representante legal da Requerente sido notificado do relatório final do procedimento de inspeção tributária (RIT) que conduziu à decisão de deferimento parcial do pedido de reembolso de IVA no valor de € 237.333,92, com rejeição pois do reembolso de créditos considerados com incobráveis pela Requerente no valor de €186.804,03, agora objeto do presente pedido.
97. O IVA, cujo reembolso no valor de € 186.804,03 foi recusado pela Requerida, foi liquidado pela Requerente em seis faturas emitidas em nome da D... entre 19.04 e 01.06 de 2007 (abaixo discriminadas), por efeito de igual número de transmissões de bens, operações tributáveis em Portugal que foram incluídas nas respetivas declarações periódicas de IVA, tendo sido o imposto entregue pela Requerente nos cofres do Estado conjuntamente com as declarações periódicas dos períodos de tributação determinados em função da exigibilidade do imposto por referência à data de emissão das faturas que titularam as transmissões de bens efetuadas à D... .
Faturas Data Base Tributável Taxa IVA Valor total da Fatura
VAF 27001072 19.04.2007 € 725.000,00 21% € 152.250,00 € 877.250,00
VAF 27001135 23.04.2007 € 24.816,32 21% € 5.211,43 € 30.027,75
VAF 27001136 23.04.2007 € 25.916,76 21% € 5.442,52 € 31.359,28
VAF 27001599 30.05.2007 € 195,40 21% € 41,03 € 236,43
VAF 27001600 30.05.2007 € 76.800,50 21% € 16.128,11 € 92.928,61
VAF 27001636 01.06.2007 € 36.814,00 21% € 7.730,94 € 44.544,94
Totais € 889.542,98 € 186.804,03 € 1.076.307,01
98. A D... nunca chegou a efetuar o pagamento desses créditos à Requerente, tal como não efetuou o pagamento de muitos outros.
99.A Requerente incluiu esta regularização de IVA a seu favor, no montante de € 186.804,03, no campo 40 da declaração periódica do referido período de tributação, tendo, todavia, indicado a regularização no quadro 3 do anexo à declaração periódica, quadro este que se refere a “outras regularizações não abrangidas pelo artigo 78.º e pelo regime previsto nos artigos 78.º-A a 78.º-D do CIVA”, em vez de a ter inscrito no campo e linha relativa ao normativo da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, que estabelece que os sujeitos passivos podem deduzir o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no CIRE ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º deste diploma.
100. Não obstante, a Requerente instruiu o pedido de reembolso com todos os elementos exigidos no normativo do n.º 9 do artigo 78.º do CIVA, inclusive, com uma certificação do revisor oficial de contas no sentido de atestar que se encontravam verificados os requisitos legais para a dedução do imposto respeitante a créditos considerados incobráveis nos termos do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA.
101.Do parecer do chefe de equipa exarado no RIT, integrado no processo arbitral por via da junção do processo administrativo (conforme previsto no n.º 2 do artigo 17.º do RJAT), consta que “(…) não existe enquadramento legal para a regularização de IVA efetuada, no valor de 186.804,03 euros, pelo que o valor de reembolso solicitado deverá ser corrigido na mesma proporção. (…)”.
102. Perante o indeferimento do pedido de reembolso na parte relativa ao IVA regularizado a favor da Requerente, a empresa foi notificada da demonstração de liquidação de IVA n.º 2018..., referente ao período supracitado, de que resultou um reembolso de IVA no valor de € 237.333,92, e da qual emergiu a liquidação de IVA n.º 2018..., no valor de € 186.804,03, que constitui o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
103. A D..., na qualidade de entidade não residente, pediu, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 408/87, de 31.12, o reembolso do IVA suportado nas seis faturas emitidas pela ora Requerente.
104. Este pedido (n.º...), começou por ser indeferido pela AT portuguesa por decisão de 17.10.2008, para posteriormente, em face da prova produzida (originais das faturas) e em sede de reapreciação do pedido, ter sido, por decisão de 11.01.2010, autorizada a restituição à D..., do IVA suportado com base nas faturas emitidas pela Requerente.
105. Em virtude de não ter obtido o pagamento das faturas, no valor de € 1.076.307,01, a Requerente, em 07.10.2010, através de advogados espanhóis, procedeu à reclamação dos créditos no mencionado "processo concursal", a título de créditos ordinários derivados de fornecimentos de bens à D... nos anos de 2007 a 2009, a quantia de € 9.220.661,34 e de € 4.807.574,36, a título de juros vencidos relativamente àqueles créditos ordinários (conforme o documento constante do anexo 10 do RIT à petição do pedido de pronúncia arbitral, intitulado "escrito de comunicación de créditos").
106. No valor dos créditos ordinários reclamados está contido o valor referente ao "pagaré" (€ 2.726.133,76, constante do Anexo 11) emitido pela D... em 23.09.2008 para pagamento das faturas referidas no quadro supra, que não foram pagas em 31.12.2008, data do seu vencimento. O conjunto das faturas abrangidas pelo “pagaré”, não foi pago aquando do seu vencimento (Docs. 3 e 4; págs. 3 e 4 do Anexo 10 do RIT). (vide Doc. n.º 4 junto ao requerimento de 17.09.2018 e Anexo 10 do RIT, pp. 3-4).
107. A Requerente na imputação dos pagamentos créditos a créditos sem qualquer garantia observou o disposto no artigo 784.º do Código Civil) e os princípios da gestão racional e prudente, uma vez que os créditos referentes às faturas subjacentes ao pedido de reembolso estavam garantidos por um “pagaré”.
108. Em 27.06.2011, foi aberta a fase de liquidação, tendo em 07.03.2012, as instâncias espanholas aprovado o "plano de liquidación” da D..., altura em que ainda se dava conta da possibilidade desta empresa poder obter eventuais indemnizações ou compensações de terceiros geradores de fundos para a massa insolvente (cfr. referências a “F...” e “E...”) e pagar determinados créditos, como veio a ocorrer em setembro de 2014 (cfr. referências à Orado Investments Sarl e Anexo 13 do RIT e artigoº 51.º da resposta da Requerida).
109. Em 04.09.2015, um despacho do Tribunal Mercantil de ..., pronunciado a pedido da Requerente dirigido a esse tribunal em 29.07.2015, certificou que esta não iria receber qualquer quantia do produto da liquidação da D..., como se referia no Relatório do “Administrador Concursal”, onde era atestado o seguinte: “Mesmo com as receitas que possam ser obtidas da liquidação da E... e da ação judicial contra a F..., não será possível fazer face aos créditos contra a massa e privilegiados da insolvência, pelo que, em nenhum caso, se conseguirá pagar os créditos ordinários e subordinados” Neste despacho foi ainda referido que “Existem créditos contra a massa que serão satisfeitos, de acordo com os critérios da Lei de insolvências, e, caso sobre algum capital, serão pagos os créditos privilegiados conforme critérios legais. (…). Roga-se ao Tribunal, Se digne considerar como apresentado o presente documento e o Relatório Trimestral sobre as operações de liquidação que tinha sido requerido pelo Despacho de vinte e três de julho de dois mil e quinze e, por conseguinte, emitido em devido tempo e forma, assim como emitida a diligência de informação no que respeita ao credor “A...” (Anexo 13 do RIT, fls. 104).
110. Em 04.11.2016 foi pronunciada a “Decisão Final do Juzgado de lo Mercantil n.º...–...” que concluiu pela ausência de bens para pagar aos credores (Anexo 14 do RIT, fls. 110).
111. A certidão desta decisão está apostilada ao abrigo da Convenção de Haia (Anexo 14 do RIT, fls. 113).
112. No Boletín Oficial del Estado espanhol, datado de 07.03.2017 (https://boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-B-2017-14476), foi publicado um documento intitulado “Letrada de la Administración de Justicia”, datado de 02.02.2017 que declara concluído o processo de insolvência nos termos seguintes: “Que en el procedimiento concursal número 69/2009-J se ha dictado Auto de fecha 02.02.2017 en el cual se ha acordado la conclusión por inexistencia de bienes y derechos, del concurso del deudor D..., SA., con C.I.F. número ...” (vide p.121 do anexo à petição do pedido de pronúncia arbitral de onde consta uma cópia do referido Boletín).
113. No ponto 2 do dito anúncio pode ainda ler-se o seguinte: "En dicho Auto, se ha acordado la conclusión del concurso y el archivo de las actuaciones, el cese de las limitaciones de las facultades de administración y disposición del deudor hasta ahora subsistentes, se ha aprobado la rendición de cuentas presentada por la Administración concursal y se ha acordado el cierre de la hoja de inscripción en el Registro Mercantil”.
114. A Requerente procedeu, em finais de 2017 e início de 2018, ao envio da correspondência a seguir discriminada, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 11 do artigo 78.º do CIVA (anexo 12 à petição do pedido de pronúncia arbitral):
Tipo Data Destinatário
e-mail 18.12.2017 D...
Carta 18.12.2017 D..., SA. – Ao cuidado do Administrador Judicial
Carta 15.01.2018 D..., SA. – Ao cuidado do Administrador Judicial
115. De acordo com documento (datado de 26.01.2018) e também anexo à petição, esta correspondência foi devolvida por frustração da sua receção em virtude da empresa D... já não estar sediada no local da entrega.
116. Ainda que seja considerada a data do ano de 2015 no tocante ao reconhecimento da incobrabilidade dos créditos, por inexistência de rendimentos e bens da D..., a Requerente procedeu à regularização do imposto, na declaração periódica de 2017.11, ie., dentro do prazo de 4 anos previsto no artigo 98.º do CIVA.
117. Em momento algum a Requerida acionou mecanismos de troca de informações ou de assistência à cobrança junto da Administração Tributária espanhola.
118. Os factos foram relatados no RIT e em relação àqueles que foram considerados constitutivos de ilícitos fiscais foi efetuada a respetiva qualificação penal e foi promovido o seu sancionamento em função da tipificação legal consagrada no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
B. Factos não provados
119. Nem nos autos nem na inquirição das testemunhas ficou provado ter havido qualquer conluio ou concertação entre a Requerente e a D... ou qualquer forma de planeamento fiscal abusivo para lesar o Estado Português.
120. Não consta dos autos ter havido qualquer processo de revisão e confirmação da sentença espanhola, ao abrigo do art. 978.º do Código de Processo Civil.
121. Não há outros factos essenciais com relevo para apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.
IV. DO MÉRITO: A QUESTÃO DE DIREITO
1. QUESTÕES DECIDENDAS
122. Tendo em vista a decisão a tomar, ao tribunal arbitral coletivo cumpre analisar as seguintes questões:
a) A legalidade da liquidação de IVA, no valor de € 186.804,03, decorrente da desconsideração parcial do pedido de reembolso no valor de € 424.137,95, feito pela Requerente na declaração periódica do período de tributação de 2017.11;
b) Da relevância da empresa devedora dos créditos ser uma entidade não domiciliada em território nacional e se esta circunstância é impeditiva da entidade credora proceder à regularização, ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, do IVA liquidado nas faturas que titularam as transmissões de bens, e entregue nos cofres do Estado pela Requerente;
c) Se está vedado às entidades credoras, titulares de créditos incobráveis, proceder, nos termos do artigo 78.º do CIVA, à regularização do IVA não recebido se os devedores forem declarados insolventes em processo de insolvência que corra termos em jurisdição que não a nacional, isto é, se a circunstância da empresa D... ser uma sociedade de direito espanhol e, consequentemente, uma sociedade não residente, e o processo da sua insolvência ter corrido no Tribunal de ... (Espanha), impede a Requerente, na qualidade de credora, de proceder à regularização a seu favor do IVA que não lhe foi pago;
d) Se a circunstância da entidade devedora ser uma empresa não residente é impeditiva do Estado português ser ressarcido do IVA anulado e regularizado pela Requerente, o qual, nos termos do n.º 11 do artigo 78.º do CIVA, deve ser liquidado pela D... e entregue nos cofres do Estado português, sob pena da Requerida ter de proceder às respetivas liquidações oficiosas e de promover a cobrança dos respetivos créditos tributários;
e) Se houve ou não caducidade do exercício do direito à regularização e qual a importância da inobservância de certas formalidades legais pela Requerente;
f) Qual o enquadramento da regularização do IVA pela Requerente, tendo em conta o sistema comum de IVA (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28.11.2006), a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, desde logo a trazida aos autos pela Requerente (acórdão de 08.05.2019, proc. C-127/18) e os princípios gerais de Direito da União Europeia, bem como os princípios específicos do IVA.
V. REENVIO PREJUDICIAL AO TJUE – SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Discute-se na presente ação se o legislador nacional pode limitar o exercício do direito à dedução de despesas comprovadamente afetas ao exercício da atividade profissional tributada do sujeito passivo, ao prever no n.º 7, al. b) do artigo 78.º do CIVA o seguinte:
“Artigo 78.º
Regularizações (…)
7 - Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis:
(...)
b) Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º do mesmo Código;
(…) “
De acordo com o disposto no artigo 90.º da DCIVA:
“Artigo 90.º
1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.”
Por sua vez, o artigo 273.º da DCIVA vem determinar o seguinte:
“Artigo 273.º
Os Estados-Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados–Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados-Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.
A faculdade prevista no primeiro parágrafo não pode ser utilizada para impor obrigações de faturação suplementares às fixadas no Capítulo 3.”
Num recente acórdão do TJUE (Acórdão de 08.05.2019, Proc. C 127/18, Caso A–PACK CZ), é afirmado haver uma jurisprudência constante do TJUE quanto à interpretação do referido artigo 90.°, n.° 1, da DCIVA, que nos casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação que deu origem ao pagamento do imposto, "obriga os Estados membros a reduzirem o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contrapartida". Diz o TJUE, na esteira do Acórdão de 06.12.2018, Tratave, Proc. C 672/17, EU:C:2018:989, n.° 29 e jurisprudência aí referida, que esta disposição "constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contrapartida efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu". E o TJUE, valendo-se, nesse sentido, de jurisprudência anterior (Acórdãos de 03.07.997, Goldsmiths, Proc. Proc. C 330/95, EU:C:1997:339, n.° 18; de 23.11.2017, Di Maura, Proc. C 246/16, EU:C:2017:887, n.° 17; e de 22.02.2018, T 2, Proc. C 396/16, EU:C:2018:109, n.° 37), prossegue, afirmando que a permissão da DCIVA, constante do seu n.º 2 do artigo 90.º, para os Estados-Membros usarem a faculdade de derrogação desta regra em caso de não pagamento total ou parcial do preço da operação, "baseia se na ideia de que o não pagamento da contrapartida pode, em determinadas circunstâncias e em virtude da situação jurídica existente no Estado-Membro em causa, ser difícil de verificar ou ser meramente transitório", pelo que "o exercício dessa faculdade de derrogação deve ser justificado por forma a que as medidas adotadas pelos Estados Membros para lhe dar execução não perturbem o objetivo de harmonização fiscal prosseguido pela Diretiva 2006/112" (v., neste sentido, Acórdãos de 03.07.1997, Goldsmiths, Proc. C 330/95, EU:C:1997:339, n.° 18; de 23.11.2017, Di Maura, Proc. C 246/16, EU:C:2017:887, n.° 18; e de 22.02.2018, T 2, Proc. C 396/16, EU:C:2018:109, n.° 38) e que esta Diretiva "não pode permitir a estes últimos excluir pura e simplesmente a redução do valor tributável do IVA em caso de não pagamento" (v., neste sentido, Acórdão de 23.11.2017, Di Maura, Proc.C 246/16, EU:C:2017:887, n.ºs 20 e 21).
De acordo com o TJUE, esta conclusão "é confirmada por uma interpretação teleológica do artigo 90.°, n.° 2, da Diretiva 2006/112. Com efeito, embora seja pertinente que os Estados Membros possam combater a incerteza quanto ao não pagamento de uma fatura ou ao carácter definitivo desta, tal faculdade de derrogação não pode ser alargada para além dessa incerteza, designadamente à questão de saber se a redução do valor tributável pode não ser efetuada em caso de não pagamento" (Acórdãos de 23.11.2017, Di Maura, Proc. C 246/16, EU:C:2017:887, n.° 22, e de 22.02. 2018, T 2, Proc. C 396/16, EU:C:2018:109, n.° 40). Além disso, - defende o TJUE - "admitir a possibilidade de os Estados Membros excluírem qualquer redução do valor tributável do IVA seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA, do qual resulta, designadamente, que, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o empresário deve ficar totalmente aliviado do peso do imposto devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas sujeitas ao IVA" (v., neste sentido, Acórdão de 23.11.2017, Di Maura, Proc. C 246/16, EU:C:2017:887, n.° 23).
Na situação sub judice, importa determinar, face às regras que regem o IVA na União Europeia, em particular os artigos 90.º e 273.º da DCIVA, e tendo em consideração os princípios da neutralidade do IVA e da proporcionalidade, e à forma como se processou a transposição destes normativos para a ordem jurídica portuguesa, pelo artigo 78.º do CIVA, se é ou não possível que o sujeito passivo (a Requerente) possa regularizar créditos considerados incobráveis em processo de insolvência que teve o seu curso em Espanha, ao abrigo do direito aí vigente, e no qual o Tribunal espanhol declarou a situação de insolvência da empresa aí sediada (a D...). .
A questão a resolver afigura-se pertinente, permanecendo dúvidas sobre a exata interpretação destas normas e princípios europeus, cujo esclarecimento é necessário para a aplicação de um direito nacional em conformidade com o Direito da União Europeia.
Ora, como decorre do Acórdão Schwarze (Proc. 16/65 de 01.12.1965), o reenvio prejudicial é "um instrumento de cooperação judiciária pelo qual um juiz nacional e o juiz comunitário são chamados, no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos estados membros".
Como se refere nas Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais ,
1
“O reenvio prejudicial é um mecanismo fundamental do direito da União Europeia, que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros o meio de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes deste direito em toda a União.
“
Não se desconhece que é doutrina oficial do TJUE, a partir do Acórdão Cilfit (Proc. 283/81 de 06.10.1982), que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação possa ser dispensada quando:
i) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal;
ii) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma;
iii) o juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.
Ora não se verifica no caso sub judice o preenchimento destas condições. De facto, não se pode afirmar que o ato em questão seja claro ou esteja devidamente aclarado pela jurisprudência do TJUE de forma firme ou por meio de jurisprudência consolidada, permanecendo assim "dúvida razoável" sobre a questão de saber se o CIVA pode ou não, através de uma remissão para um diploma distinto (o CIRE), vedar a aplicação de uma sentença de um Tribunal de um Estado-Membro que certifica a incobrabilidade de créditos a favor do sujeito passivo e, desde modo, limitar o direito à dedução.
Ora, em caso de “dúvida razoável” sobre a interpretação do Direito da União Europeia, e não estando claramente preenchidos os critérios do Acórdão Cilfit, o juiz nacional é obrigado a efetuar o reenvio prejudicial.
Com efeito, atento o princípio comunitário da interpretação conforme, entende-se necessária a obtenção de pronúncia do TJUE, nos termos do disposto no artigo 267.º do TFUE, sendo o reenvio obrigatório, uma vez que da decisão deste Tribunal não cabe recurso, salvo no caso, que pode não se verificar, de oposição com Acórdão do Tribunal Central Administrativo ou do Supremo Tribunal Administrativo, quanto à mesma questão fundamental de direito ou devido a inconstitucionalidade.
Termos em que se impõe a formulação da seguinte questão ao TJUE:
A correta interpretação dos artigos 90.º e 273.º da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28.11.2006 (DCIVA), e dos princípios da neutralidade do IVA e da proporcionalidade e, bem assim das liberdades económicas fundamentais, permite que o legislador português, na alínea b) do n.º7 do artigo 78.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26.12, restrinja a regularização do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativa a créditos considerados incobráveis em processo de insolvência, aos casos nele previstos (ou seja, quando tenha sido decretada insolvência de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18.03, ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º do mesmo Código), com a consequente não aceitação, para esse efeito, de decisões de Tribunais de outros Estados membros que certifiquem serem incobráveis os créditos reclamados em processo de insolvência?
Termos em que acordam em suspender a instância até à pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre as questões referidas, ordenando-se a passagem de carta, a dirigir pela secretaria do CAAD à secretaria daquele Tribunal, com pedido de decisão prejudicial, acompanhado de traslado do processo, incluindo cópias do presente acórdão, do pedido de pronúncia arbitral, da resposta a Autoridade Tributária e Aduaneira e das alegações das Partes, bem como cópia do processo administrativo e dos documentos juntos com as peças processuais.
Notifique-se.
Lisboa, 08 de outubro de 2019
Árbitro presidente
António Carlos dos Santos
Árbitro vogal
Jesuíno Alcântara Martins
Árbitro vogal
Clotilde Celorico Palma
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2.ª DECISÃO |
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DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros que constituem o Tribunal Arbitral coletivo, Professor Doutor António Carlos dos Santos (árbitro-presidente), Dr. Jesuíno Alcântara Martins e Professora Doutora Clotilde Celorico Palma (árbitros vogais), acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A. A marcha do processo
1. A A...,SA., doravante designada por “Requerente”, com o número de identificação fiscal..., e com domicílio fiscal em ..., ...-.... ..., apresentou um pedido de constituição de Tribunal Arbitral coletivo, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01 (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada por “Requerida”), com o objetivo de obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IVA, n.º 2018..., consubstanciado na demonstração de liquidação de IVA n.º 2018..., referente ao período de tributação 2017.11, do qual resultou imposto a reembolsar no valor de € 237.333,97, em vez dos solicitados € 424.137,95, nos termos do n.º 8 do artigo 22.º do CIVA , conforme resulta da inscrição deste valor no campo 95 do respetivo formulário.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exm.º Presidente do CAAD em 26.07.2018 e automaticamente notificado à Requerida.
3. No pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 5.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, a Requerente procedeu à designação, como árbitro, da Professora Doutora Clotilde Celorico Palma. Indicou ainda como testemunha C..., economista.
4. Por sua vez, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 11.º do RJAT, a Requerida designou como árbitro o Dr. Jesuíno Alcântara Martins, decisão que foi notificada pelo CAAD à Requerente em 27.09.2018.
5. Os árbitros indicados pelas partes aceitaram o encargo e, não se tendo verificado qualquer oposição à sua designação, estes informaram o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD que, conforme resulta do n.º 6 do artigo 11.º do RJAT, por acordo, pretendiam designar como árbitro presidente o Professor Doutor António Carlos dos Santos.
6. Em conformidade com o preceituado no normativo do n.º 7 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01.2011, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 12.10.2018.
7. Considerando o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, em articulação com os normativos da alínea a) do artigo 99.º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo e, de acordo com os preceitos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n,º 112-A/2011, de 22.03, as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e estão representadas nos termos da lei.
8. Em 18.10.2018 foi notificada a Exm.ª Diretora-Geral da AT nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT.
9. Em 21.11.2018, a Requerida apresentou a sua resposta e, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º do RJAT, remeteu, para ser junto aos autos, o processo administrativo. Na sua resposta, a Requerida pronunciou-se pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral e, quanto à prova testemunhal, pronunciou-se no sentido desta ser dispensada, uma vez que a matéria controvertida, pela sua natureza, exigiria que a prova produzida fosse documental, pelo que a inquirição da testemunha indicada pela Requerente seria suscetível de configurar, nos termos do artigo 130.º do Código de Processo Civil (CPC), um ato inútil. À cautela, porém, a Requerida indicou como sua testemunha o Inspetor Tributário B..., com domicílio profissional na Direção de Finanças de ... .
10. Por despacho de 14.11.2018, o Tribunal Arbitral convocou para o dia 14.12, pelas 14H30, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo a inquirição das testemunhas ficado marcada também para este dia.
11. Em 30.11.2018, a Requerente apresentou um requerimento no qual solicita ao Tribunal que dê sem efeito a inquirição de testemunhas marcada para o dia 14.12, porquanto, quer a Requerida na sua resposta, quer agora a Requerente, consideram ser de prescindir da prova testemunhal atenta a natureza da matéria controvertida.
12. Perante esta solicitação da Requerente e a resposta da Requerida, por Despacho de 09.12.2018, o Tribunal deu sem efeito a reunião marcada para o dia 14.12, e determinou a notificação das partes para, no prazo de 10 dias sucessivos, procederem à apresentação de alegações escritas.
13. Em 02.01.2019, a Requerente apresentou as suas alegações, com junção de um documento novo, sendo as alegações da Requerida apresentadas em 17.01.2019.
14. Em face da avaliação que, entretanto, fez dos factos, e tendo em consideração que continuavam a persistir divergências quanto à sua descrição e leitura, não sanadas na fase das alegações, por Despacho de 21.03.2019, o Tribunal decidiu proceder à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, C..., economista, e B..., inspetor tributário, tendo designado para o efeito o dia 09.04, pelas 10H15, nas instalações do CAAD, data que foi posteriormente alterada para o dia 30.04 pelas 14H00.
15. No dia e hora designados, o Tribunal Arbitral procedeu à diligência de inquirição de testemunhas, tendo estas respondido às questões colocadas pelos representantes das Partes, bem como às questões que os membros do Tribunal entenderam por bem fazer. O depoimento das testemunhas foi recolhido em suporte magnético e foi elaborada a ata que foi assinada por todos os intervenientes na diligência e ficou a fazer parte integrante do processo arbitral.
16. Em 17.05.2019, a Requerente solicitou a junção aos autos do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), datado de 08.05.2019, proferido no processo n.º C-127/2018, a qual foi autorizada por Despacho de 27.05.2019 do Tribunal Arbitral.
17. Dada a complexidade da matéria decidenda, e perante a necessidade de fixar, por consenso, os factos dados como provados, o Tribunal prorrogou, ao abrigo do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, por duas vezes, o prazo para a emissão da decisão arbitral, conforme consta dos registos da aplicação de gestão processual do CAAD.
18. Atento o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, o Tribunal Arbitral é materialmente competente para decidir a matéria controvertida.
19. Não foram invocadas exceções e o processo não enferma de nulidades.
20. Em 08.10.2019, decidiu este Tribunal que se encontravam reunidos os pressupostos parar fazer o reenvio prejudicial para o TJUE, nos termos enunciados no n. 126.º da presente decisão.
21. Em 29.04.2020, foi o Tribunal Arbitral notificado do despacho do Tribunal de Justiça da UE, tendo este Tribunal decidido aplicar o disposto no artigo 99.° do seu Regulamento de Processo e, consequentemente, decidiu o pedido de reenvio prejudicial por meio de despacho fundamentado.
B. A causa de pedir
Constituem causa de pedir do pedido de pronúncia arbitral, reafirmada nas alegações:
22. A desconsideração, pela Requerida, de um reembolso de IVA, no valor de € 186.804,03, incluído no pedido formulado pelo sujeito passivo, agora Requerente, no período de tributação de 2017.11, no montante de € 424.137,95.
23. O facto de a Requerida ter decidido que o pedido formulado pelo sujeito passivo, em relação àquele valor de € 186.804,03, regularizado ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do 78.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), não tinha enquadramento no quadro legal vigente, porquanto, não obstante resultar de créditos incobráveis, o processo de insolvência da devedora (D..., SA., sociedade domiciliada em Espanha) não correra os seus termos ao abrigo do Código de Insolvência de Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18.03.
24. Nesta conformidade, a Requerida não reconheceu o direito ao reembolso total do valor de € 424.137,95, pedido pela Requerente na declaração referente ao período de tributação de 2017.11, apenas tendo reconhecido e procedido ao pagamento do reembolso no valor de € 237.333,92 (€424.137,95 - € 186.804,03).
25. A Requerente discorda da posição da Requerida, dado que o IVA foi liquidado em resultado de operações comerciais consubstanciadas em fornecimento de bens pela Requerente à D..., foi, nos termos da Lei, entregue, nos cofres do Estado, não havendo razões juridicamente válidas para ser negado o direito ao seu reembolso.
26. A Requerente contesta ainda a posição da Requerida, para quem o exercício do direito à dedução teria tido lugar há mais de quatro anos após o nascimento desse direito que, segundo a Requerida, não poderia ter ocorrido após a entrada, em 2010, da D... em processo de liquidação.
27. Contesta ainda a posição da Requerida que entende haver contradição entre o pedido do reembolso e o preenchimento dos formulários necessários para efetuar esse pedido e de não ter sido cumprida, de forma válida, a obrigação de comunicar ao adquirente a dedução a seu favor do IVA em causa.
28. Por fim, a Requerente invoca ter direito ao reembolso daquele valor global, porquanto, não conseguiu obter a cobrança dos seus créditos junto da D..., não obstante ter promovido todas as diligências necessárias para o efeito.
29. Sustenta, pois, contra a posição da Requerida, haver prova inequívoca de que as faturas que suportam o pedido de reembolso foram por si reclamadas no processo de liquidação da D... e confirmadas pelo Tribunal espanhol competente.
C. Argumentação das Partes
I. A posição da Requerida
30. A Requerida considera que o pedido de reembolso no valor de € 186.804,03 é ilegítimo, atenta a circunstância da devedora dos créditos (a D...) ser uma empresa não residente em Portugal e a existência de erros formais cometidos no processo de regularização.
31. A Requerida defende que a regularização do IVA ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA apenas pode ocorrer em relação a insolvências que ocorram no âmbito do ordenamento jurídico nacional, não sendo tal possibilidade acessível ao IVA relativo a créditos decorrentes de processos de insolvência que corram seus termos em instâncias de outros Estados.
32. Acresce que a regularização do IVA ao abrigo do artigo 78.º do CIVA, com o consequente reconhecimento do reembolso, implicava, de forma inelutável, um prejuízo para o Estado português, uma vez que a D..., na qualidade de sujeito passivo não estabelecido em território nacional, havia solicitado e obtido, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 408/87, de 31.12, a restituição do IVA suportado com base nas faturas emitidas pela ora Requerente, IVA esse que já não lhe poderia ser exigido, não só por ausência de enquadramento legal, como também pelo facto da D... já não existir.
33. A Requerida considera inaplicável, no caso sub judice, a regularização do IVA ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, porquanto se trata de uma insolvência que não correu termos ao abrigo do CIRE.
34. A Requerida alega ainda que, mesmo se assim não fosse, a Requerente não cumprira, nos termos previstos no n.º 11 do artigo 78.º do CIVA, com a obrigação de comunicar à adquirente a regularização do IVA liquidado e não pago, devendo, em consequência, ser mantida no ordenamento jurídico a liquidação de IVA controvertida, no valor de € 186.804,03.
35. Com efeito, segundo a Requerida, o CIVA (artigoº 78.º, n.º 7) impõe duas condições quando se trata de uma dedução de IVA faturado em créditos sobre clientes considerados incobráveis, a saber:
"1. Que a insolvência tenha sido decretada – para o que é necessário uma certidão emitida pelo Tribunal que certifique:
a. Que a sentença de insolvência foi proferida e a respetiva data;
b. Se a sentença de insolvência já transitou em julgado e a respetiva data;
c. Os montantes reclamados no âmbito do processo judicial; e,
d. Se no âmbito do processo de insolvência foram recuperados alguns dos créditos reclamados.
2. Que tenha sido comunicado ao adquirente dos bens a anulação do IVA" .
36. Para a Requerida resulta da forma como a lei estabelece esta segunda condição (comunicação ao adquirente para este regularizar, a favor do Estado, o IVA deduzido pelo credor, inscrevendo-o no campo 41 da declaração periódica) que o adquirente terá necessariamente que ser residente no território nacional, de onde resulta o facto de o regime de regularização previsto no n.º 7 do artigo 78.º do CIVA apenas ser aplicável " quando ambos os sujeitos passivos (credor e devedor) sejam sujeitos passivos de IVA" em Portugal, facto que "não se verifica na situação sub judice, na medida em que o devedor não está registado para efeitos de IVA em Portugal, não é aí tido como sujeito passivo, não está obrigado ao envio de declarações periódicas de IVA" por aplicação do CIVA; pelo contrário, o devedor D... " é residente em Espanha, aí considerado como sujeito passivo, onde entregará declarações de IVA e cumprirá com outras obrigações que decorrem da Ley del Impuesto sobre el Valor Añadido".
37. Segundo a Requerida, a Requerente "parte do princípio de que as regras estabelecidas pelo Código do IVA, nomeadamente, no artigo 78.º, no seu n.º 7, alínea b), são aplicáveis, mesmo que o devedor não seja residente no território nacional", quando "este princípio não tem suporte legal, uma vez que este artigo se refere objetivamente a insolvências que tenham enquadramento no âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas", ficando assim, por falta de enquadramento legal, "afastada a possibilidade de considerar dedutível o IVA inerente a créditos considerados incobráveis por insolvências tramitadas por qualquer outra via".
38. A Requerida aduz ainda outros argumentos em favor da sua posição. Assim, afirma que, para exercerem o direito à regularização previsto no n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, devem os sujeitos passivos reunir diversos requisitos e dar cumprimento às obrigações estabelecidas nos n.ºs 11, 12 e 16 do mesmo artigo, em particular a comunicação ao adquirente do bem ou serviço que seja um sujeito passivo do imposto, sendo que sem esta comunicação não é possível ao credor proceder à referida regularização (n.º 11 do artigoº 78.º), a anulação total ou parcial do imposto para efeitos de retificação da dedução inicialmente efetuada, a obtenção de uma certificação por revisor oficial de contas (prevista no n.º 9 do artigoº 78.º) e, finalmente, atender ao condicionalismo de ordem temporal estabelecido no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA (prazo de quatro anos) para o exercício daquele direito.
39. Deste modo, mesmo que fosse aplicável o disposto no n.º 7 do artigo 78.º do CIVA (nas suas sucessivas versões), tese que a Requerida afasta, a verdade é que, para esta Parte, o prazo para efetuar a regularização já havia caducado em junho de 2014, caso a insolvência fosse considerada de caráter limitado, ou em fevereiro de 2016, caso o fosse de caráter pleno (qualificação que entende ser mais plausível).
40. Com efeito, para a Requerida, decorre das diferentes alterações ao artigoº 78.º, n.º 7 do CIVA, que o momento determinante para regularizar o IVA difere consoante a versão em vigor, conforme sintetiza no quadro apresentado no ponto 33 das suas alegações:
41. Sublinha a Requerida que "de acordo com o CIRE, a insolvência é decretada no início do processo (artigos 28.º e 36.º, ambos do CIRE) e não no fim (quando é efetuado o registo de encerramento definitivo da liquidação). Por outro lado, nenhum destes momentos corresponde ao trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos (artigos 128.º e 140.º, ambos do CIRE) que intermeia o início e fim do processo".
42. Quando a insolvência é de carácter pleno, isto é, quando o procedimento prossegue para liquidação, é necessário aguardar pela homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do CIRE. Esta ocorrência corresponde à deliberação da Assembleia de credores destinada a apreciar o relatório do administrador de insolvência de onde deve constar a lista provisória de credores (artigosº 154.º e 155.º, n.º 2 CIRE).
43. Assim, segundo crê a Requerida, se for feito um paralelismo entre o procedimento espanhol e o procedimento de insolvência em Portugal, concluir-se-ia que:
- o momento em que o "procedimiento concursal" da D... foi decretado (07.07.2010) equivaleria ao momento em que a insolvência foi decretada;
- o momento da aprovação do plano de liquidação da D... (07.03.2012) aproximar-se-ia do momento da sentença de verificação e graduação de créditos relevante no CIVA para efeitos de regularização do IVA de créditos incobráveis.
44. Decorreria daqui que, se estivesse em causa uma insolvência de carácter limitado, como a insolvência foi decretada em 07.07.2010 e consagrando a redação do artigo 78.º, n.º 7 do CIVA em vigor à data que o direito à regularização do IVA se constituía com a ocorrência desse momento, teríamos que o direito à dedução do IVA do crédito incobrável se teria iniciado no período de julho de 2010 e, consequentemente, estaria extinto em junho de 2014.
45. Se estivesse em causa uma insolvência de carácter pleno, dado o facto do plano de liquidação ter sido aprovado em 07.03.2012 e a redação em vigor à data fazer coincidir o direito à regularização do IVA dos créditos com a ocorrência desse momento, teríamos que o direito à dedução do IVA do crédito incobrável se teria iniciado no período de março de 2012 e extinguido em fevereiro de 2016.
46. Ou seja: em qualquer dos casos, teria passado o prazo de 4 anos, previsto no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA, para reclamar o reembolso do IVA, ao abrigo do artigo 78.º, n.º 7 do mesmo diploma.
47. Segundo a Requerida, acresce ainda que a documentação necessária para suportar a regularização no âmbito de um procedimento de insolvência implicaria a obtenção de determinados documentos, sem os quais não estariam reunidas as condições para fundamentar o direito à referida dedução pela Requerente. É o caso de:
- Nos casos de insolvência de carácter limitado, uma certidão judicial que declare a data da sentença, data do trânsito em julgado e reconhecimento dos créditos;
- Nos casos de insolvência de carácter pleno, uma certidão judicial de onde conste a data da sentença, a data do trânsito em julgado, a verificação e graduação dos créditos, bem como, caso seja aplicável, o teor da deliberação dos credores, bem como a lista anexa ao relatório do administrador de insolvência e a respetiva certidão judicial de homologação e reconhecimento dos créditos.
II. A posição da Requerente
Quanto à não aplicação do artigoº 78, n.º 7, al. b) do CIVA a entidades estrangeiras
48. Segundo a Requerente, a posição da Requerida segundo a qual o artigo 78.º do CIVA não é aplicável quando estejamos perante empresas estrangeiras levaria a que fossem afetadas não apenas as transações com sociedades não residentes sem estabelecimento estável em Portugal, como também aquelas que o têm e todas as demais que tenham registo de IVA em Portugal, ainda que aqui não possuam estabelecimento estável, uma vez que, em caso de insolvência, será sempre aplicável a lei de insolvência do respetivo país de domicílio – tipicamente, o da sua sede.
49. Deste modo, a "restrição preconizada pela AT, a ser validada, constituiria uma frontal violação, em geral, do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade (ou, no caso das empresas, da localização da sede ou local onde foram constituídas) e, em especial, da liberdade de estabelecimento (cfr. artigo 49.º do Tratado que institui o funcionamento da União Europeia – TFUE), ou mesmo da livre prestação de serviços (cfr. artigo 56.º do TFUE), na medida em que trata de forma discriminatória uma empresa nacional, agravando a sua situação em termos de IVA, se ela transmitir bens (ou prestar serviços) a uma empresa residente noutro país da União e se, por qualquer motivo, essa empresa não pagar total ou parcialmente o preço dos bens (ou serviços) adquiridos em território nacional".
50. Sendo que, "ceteris paribus, não é inverosímil que um comprador estrangeiro seja preterido em relação aos nacionais ou tenha condições menos favoráveis na aquisição precisamente porque, compreensivelmente, o seu risco de crédito no tocante ao IVA é muito mais agravado se, em cenário de insolvência daquele, não houver como recuperar o IVA não pago".
51. Embora a Diretiva de Consolidação do IVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28.11.2006, doravante DCIVA) permita que, no caso de operações total ou parcialmente não pagas, "os Estados possam derrogar a faculdade de regularização do IVA a favor do prestador/vendedor (cfr. n.º 2 do artigo 90.º), é igualmente certo que não o podem fazer de forma discriminatória comprometendo de alguma forma essa possibilidade quando o sujeito incumpridor não seja uma entidade nacional", antes devendo "observar escrupulosamente os princípios comunitários, em geral, como o da não discriminação e o da proporcionalidade, e os privativos do IVA, em particular, como são os princípios gerais do direito à dedução e da neutralidade".
52. Se assim não fosse, estaríamos perante "um condicionamento de ordem fiscal que afronta a liberdade de estabelecimento, não sendo necessário provar que houve efetivamente uma restrição nessa liberdade – i.e., que a norma em causa prejudicou, comprovadamente, empresas não domésticas – bastando que haja uma discriminação ou uma restrição potencial".
53. Assim, prossegue a Requerente, "as normas que exigem a comprovação de que um adquirente como a D... está em situação de insolvência e que requerem determinados comprovativos quanto à forma de demonstrar que esses créditos são incobráveis têm de ser olhadas à luz da sua função e dos interesses que visam acautelar (ou seja, exigindo-se a adequação, necessidade e proporcionalidade ao fim visado), e não interpretadas de modo discriminatório e formalístico, como se essas funções e interesses não pudessem ser logrados mediante prova, no ordenamento em que se situa o adquirente, de que o mesmo adquirente é oficialmente e para todos os efeitos insolvente, de que os créditos em causa foram reclamados e de que uma entidade de administração da justiça comprovou que os mesmos créditos não serão pagos".
54. E a Requerente prossegue: "Assim, tal como não é possível, perante o TFUE, e com vista à atribuição de benefícios numa situação que envolve uma sociedade de outro EM, ser mais exigente em termos de prova do que acontece numa situação puramente doméstica (como era o caso que deu origem ao Acórdão Bent Vestergaard, C-55/98), também no caso presente é totalmente ilegal proibir a regularização relativamente a créditos de IVA sobre sociedades insolventes não residentes sem primeiro provar que a informação a que a AT tem acesso não é suficiente para cumprir os fins de controlo visados pelo legislador ao estabelecer as exigências probatórias constantes do CIVA, tanto mais que dispõe hoje de todos os meios para obter essa informação (nomeadamente, por via da Diretiva 2010/24/UE do Conselho, de 16 de Março de 2010, relativa à assistência mútua em matéria de cobrança de créditos respeitantes a impostos, direitos e outras medidas)."
55. É precisamente nesse sentido que advoga o artigo 273.º da DCIVA, ao dispor: “Os Estados-Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados-Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados-Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira”, ou seja, "embora os Estados-Membros tenham a faculdade de adotar, ao abrigo do referido artigo 270.º da Diretiva do IVA, medidas para assegurar a cobrança exata do imposto e evitar a fraude, não devem, contudo, ir além do que é necessário para atingir tais objetivos e, muito menos, pôr em causa a neutralidade do IVA."
56. Acresce que, tal como é sublinhado pelos nossos Tribunais Superiores, nomeadamente o STA [cfr., por todos, o Acórdão de 07/10/2015, proferido no processo n.º 1455/12 (Relator Francisco Rothes)], “[o] princípio da dedução do IVA, enquanto meio de concretizar a neutralidade do imposto, impõe que todas as restrições ao direito de dedução sejam interpretadas de forma restritiva e reduzidas ao mínimo”.
Quanto ao prazo e aos documentos necessários à regularização
57. A Requerente faz notar que, embora até à entrada em vigor da Lei de Orçamento do Estado (LEO) para 2013 (Lei n.º 66-B/2012, de 31.12), a regularização do IVA pelo credor na sequência da insolvência do devedor não estivesse articulada com o CIRE, limitando-se o artigo 78.º. n.º 7 do CIVA a estatuir que “os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis: (…) al. b) em processo de insolvência quando a mesma seja decretada”, diversas orientações administrativas vinham exigir aos sujeitos passivos de IVA um conjunto de requisitos adicionais, para que pudessem proceder à sua regularização.
58. Assim, na informação vinculativa proferida no processo CO20 2007006, que mereceu despacho do Subdiretor-geral dos Impostos em 24.04.2008, pode ler-se que “para proceder à respetiva regularização, será necessário estar na posse de uma certidão passada pelo Tribunal, que certifique a sentença declarada, se a mesma transitou em julgado e a respetiva data, bem como prova, se for caso de insolvência, de que os créditos foram reclamados.”
59. Desta condição resultava, desde logo, uma situação de desfasamento temporal, pois enquanto a declaração de insolvência ocorre no início do processo de insolvência, a reclamação de créditos só tem lugar num momento posterior, pelo que, na prática, poderiam mediar meses ou anos entre aquela declaração de insolvência e a reclamação de créditos por parte do credor, sem esquecer que nem sempre o credor conseguiria reclamar atempadamente os seus créditos, porquanto a publicidade que era dada ao estado de insolvência era relativamente parca.
60. Para além disso, e tal como frisa a própria Requerida no RIT (págs. 14 e 15, pár. 12. a 15), haveria que exigir mais em termos de prova da incobrabilidade de créditos do que uma mera sentença de insolvência que acaba por não demonstrar se, a despeito da insolvência, ainda assim o adquirente em causa dispõe de massa insolvente para solver os créditos e o correspondente IVA.
61. Aliás, nem mesmo literalmente o artigo 78.º do CIVA se satisfazia com uma sentença de insolvência, porquanto não deixava de falar em “créditos considerados incobráveis”, o que significa que não bastava que uma sociedade se encontrasse numa situação em que não conseguia cumprir todas as obrigações, sendo necessária a demonstração de que os créditos cujo IVA se pretende regularizar não seriam pagos com os bens da massa insolvente, pelo que, conforme bem sublinha o RIT (cfr. pág. 15), o tribunal deve emitir certidão, e o crédito deve ser reconhecido.
62. Para além disso, exigia ainda a Requerida a certificação da incobrabilidade por parte de um ROC (embora na lei pareça que essa prescrição só se aplicaria aos créditos enunciados no n.º 8 do artigo 78.º do CIVA), exigência essa que o RIT enfatiza.
63. A Requerente recorda que a LOE para 2013 «veio dar à alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA uma nova redação, a saber: "Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis: b) Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado ou após a homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março."»
64. Por sua vez, o artigo 196.º da mesma LOE aditou ao CIVA os artigos 78.º-A a 78.º-D. Quanto à alínea b) do n.º 4 do artigo 78.º-A, a sua redação é idêntica à da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do mesmo diploma, mas tem aplicação apenas a créditos vencidos após 1 de Janeiro de 2013 (artigo 198.º, n.º 6 da LEO para 2013).
65. Procedeu-se, por via desta alteração legislativa, de forma mais clara, à distinção entre regularização do IVA nos processos de insolvência de carácter limitado e nos processos de insolvência plena, sendo as diferenças as seguintes: nas insolvências de carácter limitado basta para a regularização do IVA a sentença que declare a insolvência, o que ocorre quando o tribunal reconhece a inexistência de bens do devedor que permitam saldar ou efetuar qualquer plano de pagamentos aos respetivos credores, enquanto nas insolvências de carácter pleno, é necessário aguardar pela homologação da deliberação prevista no artigo 156.º do CIRE, isto é, pela deliberação da assembleia de credores destinada a apreciar o relatório do administrador de insolvência (que em anexo contém uma lista provisória de credores) e a deliberar sobre o encerramento ou a manutenção em atividade do estabelecimento ou estabelecimentos compreendidos na massa insolvente (artigo 156.º, n.º 2 do CIRE).
66. Ou seja, o legislador optou por fixar um momento dentro do processo de insolvência em que é já possível conhecer os créditos reclamados no prazo legal e os créditos que o administrador de insolvência reconheceu (constantes da lista provisória de credores), e em que se verifica se haverá plano de insolvência.
67. Segundo a Requerente, a nova redação da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA não resolve totalmente as fragilidades identificadas na redação anterior: por um lado, não determina os efeitos a retirar das diferentes deliberações da assembleia de credores, nem que elementos deverão constar da certidão a emitir pelo tribunal; por outro, mantém-se, igualmente, a omissão quanto aos efeitos da ação para verificação ulterior de créditos em sede de IVA.
68. Nas insolvências de carácter limitado deve ser regularizado o IVA com base na certidão judicial que declare a data da sentença e a data do trânsito e que confirme tratar-se de uma insolvência de carácter limitado, enquanto nas insolvências com liquidação da massa, em que já ocorreu a assembleia prevista no artigo 156.º do CIRE, podem os credores pedir agora certidão ao tribunal contendo a data da sentença que decretou insolvência, a data do trânsito em julgado e a data da homologação da deliberação da assembleia referida no artigoº 156.º CIRE.
69 A LOE para 2015 introduziu mais tarde uma nova alteração que visou, uma vez mais, sublinhar a necessidade de certificação dos créditos pelo tribunal nas insolvências de carácter limitado, alteração essa que, em virtude de o artigo 78.º do CIVA se continuar a aplicar somente aos créditos vencidos antes de 1.01.2013, deve ter-se por aplicável aos créditos vencidos antes dessa data mas ainda não passíveis de regularização antes de 01.01.2015.
Sintetizando quanto à aplicação da Lei no tempo
70. A LOE para 2013 entrou em vigor em 01.01.2013, distinguindo a regularização do IVA de créditos vencidos até 31.12.2012 da regularização de créditos vencidos posteriormente: Assim, aos créditos vencidos até 31.12.2012 aplica-se a disposição transitória do n.º 6 do artigo 198.º da Lei 66-B/2012, segundo a qual (sem prejuízo das posteriores alterações legislativas) “o disposto nos n.ºs 7 a 12, 16 e 17 do artigo 78.º do Código do IVA aplica-se apenas aos créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013.”; para os créditos vencidos até 31.12.2012, aplicar-se-á o artigo 78.º do CIVA; para os vencidos em data posterior, o artigo a aplicar será o 78.º-A do mesmo diploma.
71. Para a Requerente, o momento relevante é, pois, o do vencimento do crédito e não o momento do início do processo de insolvência, da sentença que a decretou ou da assembleia de credores.
72. Por isso, a Requerente não pode vir defender, como o fez no âmbito da inspeção, que o paralelismo entre o processo português e o espanhol levaria a considerar-se como data relevante para início do prazo para o exercício do direito à dedução, a data em que, segundo o Boletim de registo mercantil que junta ao RIT, teve início o denominado “proceso concursal” (cfr. Anexo 16 do RIT), na medida em que a abertura deste processo não implicou, per se, qualquer reconhecimento dos créditos da Requerente – o qual só veio a ocorrer em setembro de 2015, por parte da “administración concursal” e, mais tarde, por parte do Tribunal competente.
73. Não pode fazê-lo porque estaria a incumprir o requisito legal de que os “créditos têm de ser considerados incobráveis” (cfr. artigo 78.º do CIVA) e a derrogar as suas próprias instruções administrativas que, até 2012, complementavam a lei e estabeleciam que (sic) “no processo de insolvência é necessário que o crédito seja reconhecido e como tal conste da relação dos créditos incobráveis na totalidade ou parcialmente (…)” (cfr. RIT, pág. 15), violando o estabelecido no artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária quanto à sua vinculação às suas orientações genéricas.
74. Assim, e quando muito, o exercício do direito à regularização do IVA seria contado a partir de setembro de 2015, pois só a partir dessa data se encontraram reunidas as respetivas condições legais, tendo, por isso, sido exercido dentro do prazo de quatro anos a que alude a Requerente.
75. A mera abertura daquele “processo concursal” não atesta a incobrabilidade do crédito, porquanto ela nada garante ou certifica quanto à possibilidade de o credor recuperar a totalidade ou parte do IVA, não há então qualquer verificação ou homologação pelo juiz competente ou qualquer sentença e não se conhece qualquer verificação, homologação de créditos e avaliação da massa insolvente.
76. É, aliás, patente no seu próprio texto que a declaração do administrador de insolvência de 2015 constitui a primeira verificação dos créditos da Requerente e o primeiro atestado da sua incobrabilidade.
77. O paralelismo que a AT propugna acaba por ter o resultado de equiparar créditos cuja cobrança ainda é duvidosa a créditos incobráveis e esse resultado não está em linha com o exigido pelo artigo 78.º do CIVA, sendo ilegítimo.
78. Finalmente, sendo a caducidade do direito à regularização um facto impeditivo do exercício desse direito, caberia à AT provar a verificação desse mesmo facto impeditivo, nos termos das regras gerais de distribuição do ónus da prova, o que não só não aconteceu como, ao invés, ficou demonstrada a ausência de tal impedimento.
79. Por tudo o que ficou exposto, deve a liquidação em apreço ser anulada por erro nos seus pressupostos de direito e de facto, nos termos apontados, aceitando-se, por conseguinte, a regularização do IVA suportado pela Requerente, referente ao crédito incobrável, com todas as demais consequências legais.
III DO MÉRITO: A QUESTÃO DE FACTO
80. Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme os artigos 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
81. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).
82. Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de constituição arbitral e alegações da Requerente e Resposta e contra alegações da Requerida), à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida em audiência, consideram-se provados com relevo para a decisão os factos seguidamente identificados.
A. Factos Provados
83. A Requerente estabeleceu, em 03.07.1997, uma relação comercial com a D..., sociedade domiciliada em Zaragoza, Espanha, consistente num contrato de distribuição em exclusivo que terminou no final do ano de 2009 (cf. extratos de conta-corrente e sistema VIES).
84. Esse contrato previa o fornecimento de bens a crédito pela requerente à D..., normalmente a título de transmissões intracomunitárias de bens (com aplicação de "taxa zero" em Portugal), com recebimento na data de vencimento prevista no acordo de representação celebrado entre ambas as empresas, um prazo de 150 dias refletido nas faturas, bem como a concessão pela Requerente à D... de um tipo de desconto praticado no sector da distribuição, e negociado caso a caso (rappel) em função das vendas efetuadas.
85. Com o tempo, o recebimento das faturas emitidas passou a ocorrer num prazo médio superior ao convencionado e o crédito à empresa espanhola chegou a ascender quase os dez milhões de euros.
86. Em 2007, a Requerente forneceu bens à D..., entregues em Portugal e, consequentemente, enquanto transmissões (internas) de bens, com aplicação de IVA português à taxa legal em vigor à data dessas operações que deram origem a créditos faturados (IVA incluído) e vencidos nesse mesmo ano, os quais, apesar da existência de algumas diligências da Requerente no sentido da sua cobrança não foram pagos pela D... .
87. Este IVA, embora não tenha sido recebido, foi pela Requerente entregue nos cofres do Estado conjuntamente com as declarações periódicas dos respetivos períodos de tributação determinados em função da exigibilidade do imposto por referência à data de emissão das faturas referentes às transmissões de bens efetuadas pela Requerente à D... .
88. Em julho de 2007, a D... foi objeto de um processo voluntário de insolvência que correu termos em instância judicial espanhola (Tribunal Mercantil de Zaragoza), com aplicação do direito espanhol (abertura de um "proceso concursal"), distinto do quadro legal definido, entre nós, pelo CIRE. (RIT, pág. 13, par. 7).
89. Em 23.09.2008, a D... emitiu um "pagaré" (uma espécie de título de crédito sem total correspondência no direito português que, como a livrança, incorpora uma promessa de pagamento) no valor de € 2.726.133,76 com vista ao pagamento parcial das dívidas à Requerente cujo total chegou, como se disse, a ultrapassar largamente os 9 milhões de euros (anexo 11 ao RIT e Doc. 3 junto com o requerimento de 17.09.2018).
90. Esse "pagaré" dizia apenas respeito a faturas emitidas pela Requerente entre 19.04 e 27.06.2007 (Doc. n.º 4 do requerimento de 17.09.2018), não tendo sido qualquer pagamento efetuado em 31.12.2008, data do seu vencimento (como resulta do "escrito de comunicación de créditos" e nexos 10 do RIT).
91. A listagem de faturas não pagas pela D... à Requerente consta do Doc. 3, estando realçadas a amarelo as faturas objeto do presente litígio e constando do Doc. n.º 4 o extrato contabilístico representativo das mesmas faturas que foram abrangidas pelo referido “pagaré”.
92. Em 2010, a Requerente reclamou os seus créditos no referido "proceso concursal", tendo sido sempre acompanhada por consultores espanhóis, que não só aconselharam como assessoraram a reclamação de créditos e demais acompanhamento do processo em Espanha.
93. Em 2015, em face das diligências promovidas pela Requerente, foi confirmada pela administración concursal, a inexistência de bens suscetíveis de saldar qualquer valor reclamado pelos credores, nomeadamente pela Requerente.
94. Em 2016, o tribunal de jurisdição espanhola profere decisão, nos termos da qual declara inexistirem bens na massa insolvente capazes de fazer face aos créditos da D... reclamados.
95. A D... efetuou, porém, posteriormente à emissão do “pagaré”, alguns pagamentos pontuais no total de €1.191.485,93, relativos a faturas emitidas pela Requerente a partir de 18.07.2007 (vide Anexo 18 do RIT), pagamentos esses que foram imputados pela Requerente a créditos que se venceram depois dos créditos ora em discussão, uma vez que os créditos titulados pelas faturas em análise estavam abrangidos pelo referido “pagaré”.
96. Em 2017, a Requerente, ao abrigo do n.º 8 do artigo 22.º do CIVA, solicitou à AT, na declaração periódica do período de tributação de novembro de 2017, o reembolso de IVA no montante de € 424.137,95, decorrente de créditos sobre a D..., relativos a fornecimentos diversos.
97. Este pedido foi acompanhado de diversos anexos e documentos, nomeadamente uma relação com identificação dos clientes e uma outra com identificação, por campo da declaração periódica, dos fornecedores de bens ou serviços e de importações, aos quais se refere o n.º 1 do artigo 2.º do Despacho Normativo n.º 18-A/2010, de 01.07.
98. Perante este pedido de reembolso de IVA, a AT, após ter efetuado um procedimento interno de análise que foi inconclusivo, tendo em vista a aferição da legitimidade do pedido de reembolso, procedeu, em 29.11.2018, à realização de um procedimento externo de inspeção tributária justificado face às irregularidades existentes no preenchimento da declaração periódica de novembro de 2017 (doc. 2 junto com a petição inicial).
99. Em 20.04.2018, através do ofício n.º..., a Divisão de Inspeção Tributária I da Direção de Finanças de ... deu conhecimento da conclusão da referida ação de inspeção, tendo o representante legal da Requerente sido notificado do relatório final do procedimento de inspeção tributária (RIT) que conduziu à decisão de deferimento parcial do pedido de reembolso de IVA no valor de € 237.333,92, com rejeição pois do reembolso de créditos considerados com incobráveis pela Requerente no valor de €186.804,03, agora objeto do presente pedido.
100. O IVA, cujo reembolso no valor de € 186.804,03 foi recusado pela Requerida, foi liquidado pela Requerente em seis faturas emitidas em nome da D... entre 19.04 e 01.06 de 2007 (abaixo discriminadas), por efeito de igual número de transmissões de bens, operações tributáveis em Portugal que foram incluídas nas respetivas declarações periódicas de IVA, tendo sido o imposto entregue pela Requerente nos cofres do Estado conjuntamente com as declarações periódicas dos períodos de tributação determinados em função da exigibilidade do imposto por referência à data de emissão das faturas que titularam as transmissões de bens efetuadas à D... .
Faturas Data Base Tributável Taxa IVA Valor total da Fatura
VAF 27001072 19.04.2007 € 725.000,00 21% € 152.250,00 € 877.250,00
VAF 27001135 23.04.2007 € 24.816,32 21% € 5.211,43 € 30.027,75
VAF 27001136 23.04.2007 € 25.916,76 21% € 5.442,52 € 31.359,28
VAF 27001599 30.05.2007 € 195,40 21% € 41,03 € 236,43
VAF 27001600 30.05.2007 € 76.800,50 21% € 16.128,11 € 92.928,61
VAF 27001636 01.06.2007 € 36.814,00 21% € 7.730,94 € 44.544,94
Totais € 889.542,98 € 186.804,03 € 1.076.307,01
101. A D... nunca chegou a efetuar o pagamento desses créditos à Requerente, tal como não efetuou o pagamento de muitos outros.
102.A Requerente incluiu esta regularização de IVA a seu favor, no montante de € 186.804,03, no campo 40 da declaração periódica do referido período de tributação, tendo, todavia, indicado a regularização no quadro 3 do anexo à declaração periódica, quadro este que se refere a “outras regularizações não abrangidas pelo artigo 78.º e pelo regime previsto nos artigos 78.º-A a 78.º-D do CIVA”, em vez de a ter inscrito no campo e linha relativa ao normativo da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, que estabelece que os sujeitos passivos podem deduzir o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no CIRE ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º deste diploma.
103. Não obstante, a Requerente instruiu o pedido de reembolso com todos os elementos exigidos no normativo do n.º 9 do artigo 78.º do CIVA, inclusive, com uma certificação do revisor oficial de contas no sentido de atestar que se encontravam verificados os requisitos legais para a dedução do imposto respeitante a créditos considerados incobráveis nos termos do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA.
104. Do parecer do chefe de equipa exarado no RIT, integrado no processo arbitral por via da junção do processo administrativo (conforme previsto no n.º 2 do artigo 17.º do RJAT), consta que “(…) não existe enquadramento legal para a regularização de IVA efetuada, no valor de 186.804,03 euros, pelo que o valor de reembolso solicitado deverá ser corrigido na mesma proporção. (…)”.
105. Perante o indeferimento do pedido de reembolso na parte relativa ao IVA regularizado a favor da Requerente, a empresa foi notificada da demonstração de liquidação de IVA n.º 2018..., referente ao período supracitado, de que resultou um reembolso de IVA no valor de € 237.333,92, e da qual emergiu a liquidação de IVA n.º 2018..., no valor de € 186.804,03, que constitui o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
106. A D..., na qualidade de entidade não residente, pediu, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 408/87, de 31.12, o reembolso do IVA suportado nas seis faturas emitidas pela ora Requerente.
107. Este pedido (n.º...), começou por ser indeferido pela AT portuguesa por decisão de 17.10.2008, para posteriormente, em face da prova produzida (originais das faturas) e em sede de reapreciação do pedido, ter sido, por decisão de 11.01.2010, autorizada a restituição à D..., do IVA suportado com base nas faturas emitidas pela Requerente.
108. Em virtude de não ter obtido o pagamento das faturas, no valor de € 1.076.307,01, a Requerente, em 07.10.2010, através de advogados espanhóis, procedeu à reclamação dos créditos no mencionado "proceso concursal", a título de créditos ordinários derivados de fornecimentos de bens à D... nos anos de 2007 a 2009, a quantia de € 9.220.661,34 e de € 4.807.574,36, a título de juros vencidos relativamente àqueles créditos ordinários (conforme o documento constante do anexo 10 do RIT à petição do pedido de pronúncia arbitral, intitulado "escrito de comunicación de créditos").
109. No valor dos créditos ordinários reclamados está contido o valor referente ao "pagaré" (€ 2.726.133,76, constante do Anexo 11) emitido pela D... em 23.09.2008 para pagamento das faturas referidas no quadro supra, que não foram pagas em 31.12.2008, data do seu vencimento. O conjunto das faturas abrangidas pelo “pagaré”, não foi pago aquando do seu vencimento (Docs. 3 e 4; págs. 3 e 4 do Anexo 10 do RIT). (vide Doc. n.º 4 junto ao requerimento de 17.09.2018 e Anexo 10 do RIT, pp. 3-4).
110. A Requerente na imputação dos pagamentos créditos a créditos sem qualquer garantia observou o disposto no artigo 784.º do Código Civil) e os princípios da gestão racional e prudente, uma vez que os créditos referentes às faturas subjacentes ao pedido de reembolso estavam garantidos por um “pagaré”.
111. Em 27.06.2011, foi aberta a fase de liquidação, tendo em 07.03.2012, as instâncias espanholas aprovado o "plano de liquidación” da D..., altura em que ainda se dava conta da possibilidade desta empresa poder obter eventuais indemnizações ou compensações de terceiros geradores de fundos para a massa insolvente (cfr. referências a “E...” e “F...”) e pagar determinados créditos, como veio a ocorrer em setembro de 2014 (cfr. referências à G... Sarl e Anexo 13 do RIT e artigoº 51.º da resposta da Requerida).
112. Em 04.09.2015, um despacho do Tribunal Mercantil de Zaragoza, pronunciado a pedido da Requerente dirigido a esse tribunal em 29.07.2015, certificou que esta não iria receber qualquer quantia do produto da liquidação da D..., como se referia no Relatório do “Administrador Concursal”, onde era atestado o seguinte: “Mesmo com as receitas que possam ser obtidas da liquidação da F... e da ação judicial contra a E..., não será possível fazer face aos créditos contra a massa e privilegiados da insolvência, pelo que, em nenhum caso, se conseguirá pagar os créditos ordinários e subordinados” Neste despacho foi ainda referido que “Existem créditos contra a massa que serão satisfeitos, de acordo com os critérios da Lei de insolvências, e, caso sobre algum capital, serão pagos os créditos privilegiados conforme critérios legais. (…). Roga-se ao Tribunal, Se digne considerar como apresentado o presente documento e o Relatório Trimestral sobre as operações de liquidação que tinha sido requerido pelo Despacho de vinte e três de julho de dois mil e quinze e, por conseguinte, emitido em devido tempo e forma, assim como emitida a diligência de informação no que respeita ao credor “A...” (Anexo 13 do RIT, fls. 104).
113. Em 04.11.2016 foi pronunciada a “Decisão Final do Juzgado de lo Mercantil n.º 002 – Zaragoza” que concluiu pela ausência de bens para pagar aos credores (Anexo 14 do RIT, fls. 110).
114. A certidão desta decisão está apostilada ao abrigo da Convenção de Haia (Anexo 14 do RIT, fls. 113).
115. No Boletín Oficial del Estado espanhol, datado de 07.03.2017 (https://boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-B-2017-14476), foi publicado um documento intitulado “Letrada de la Administración de Justicia”, datado de 02.02.2017 que declara concluído o processo de insolvência nos termos seguintes: “Que en el procedimiento concursal número 69/2009-J se ha dictado Auto de fecha 02.02.2017 en el cual se ha acordado la conclusión por inexistencia de bienes y derechos, del concurso del deudor D..., SA., con C.I.F. número A...” (vide p.121 do anexo à petição do pedido de pronúncia arbitral de onde consta uma cópia do referido Boletín).
116. No ponto 2 do dito anúncio pode ainda ler-se o seguinte: "En dicho Auto, se ha acordado la conclusión del concurso y el archivo de las actuaciones, el cese de las limitaciones de las facultades de administración y disposición del deudor hasta ahora subsistentes, se ha aprobado la rendición de cuentas presentada por la Administración concursal y se ha acordado el cierre de la hoja de inscripción en el Registro Mercantil”.
117. A Requerente procedeu, em finais de 2017 e início de 2018, ao envio da correspondência a seguir discriminada, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 11 do artigo 78.º do CIVA (anexo 12 à petição do pedido de pronúncia arbitral):
Tipo Data Destinatário
e-mail 18.12.2017 D...
Carta 18.12.2017 D..., SA. – Ao cuidado do Administrador Judicial
Carta 15.01.2018 D..., SA. – Ao cuidado do Administrador Judicial
118. De acordo com documento (datado de 26.01.2018) e também anexo à petição, esta correspondência foi devolvida por frustração da sua receção em virtude da empresa D... já não estar sediada no local da entrega.
119. Ainda que seja considerada a data do ano de 2015 no tocante ao reconhecimento da incobrabilidade dos créditos, por inexistência de rendimentos e bens da D..., a Requerente procedeu à regularização do imposto, na declaração periódica de 2017.11, ie., dentro do prazo de 4 anos previsto no artigo 98.º do CIVA.
120. Em momento algum a Requerida acionou mecanismos de troca de informações ou de assistência à cobrança junto da Administração Tributária espanhola.
121. Os factos foram relatados no RIT e em relação àqueles que foram considerados constitutivos de ilícitos fiscais foi efetuada a respetiva qualificação penal e foi promovido o seu sancionamento em função da tipificação legal consagrada no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
B. Factos não provados
122. Nem nos autos nem na inquirição das testemunhas ficou provado ter havido qualquer conluio ou concertação entre a Requerente e a D... ou qualquer forma de planeamento fiscal abusivo para lesar o Estado Português.
123. Não consta dos autos ter havido qualquer processo de revisão e confirmação da sentença espanhola, ao abrigo do art. 978.º do Código de Processo Civil.
124. Não há outros factos essenciais com relevo para apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.
IV. DO MÉRITO: A QUESTÃO DE DIREITO
1. QUESTÕES DECIDENDAS
125. Tendo em vista a decisão a tomar, ao tribunal arbitral coletivo cumpre analisar e ponderar as seguintes questões:
a) A legalidade da liquidação de IVA, no valor de € 186.804,03, decorrente da desconsideração parcial do pedido de reembolso no valor de € 424.137,95, feito pela Requerente na declaração periódica do período de tributação de 2017.11;
b) Da relevância da empresa devedora dos créditos ser uma entidade não domiciliada em território nacional e se esta circunstância é impeditiva da entidade credora proceder à regularização, ao abrigo da alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, do IVA liquidado nas faturas que titularam as transmissões de bens, e entregue nos cofres do Estado pela Requerente;
c) Se está vedado às entidades credoras, titulares de créditos incobráveis, proceder, nos termos do artigo 78.º do CIVA, à regularização do IVA não recebido se os devedores forem declarados insolventes em processo de insolvência que corra termos em jurisdição que não a nacional, isto é, se a circunstância da empresa D... ser uma sociedade de direito espanhol e, consequentemente, uma sociedade não residente, e o processo da sua insolvência ter corrido no Tribunal de Zaragoza (Espanha), impede a Requerente, na qualidade de credora, de proceder à regularização a seu favor do IVA que não lhe foi pago;
d) Se a circunstância da entidade devedora ser uma empresa não residente é impeditiva do Estado português ser ressarcido do IVA anulado e regularizado pela Requerente, o qual, nos termos do n.º 11 do artigo 78.º do CIVA, deve ser liquidado pela D... e entregue nos cofres do Estado português, sob pena da Requerida ter de proceder às respetivas liquidações oficiosas e de promover a cobrança dos respetivos créditos tributários;
e) Se houve ou não caducidade do exercício do direito à regularização e qual a importância da inobservância de certas formalidades legais pela Requerente;
f) Qual o enquadramento da regularização do IVA pela Requerente, tendo em conta o sistema comum de IVA (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28.11.2006), a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, desde logo a trazida aos autos pela Requerente (acórdão de 08.05.2019, proc. C-127/18) e os princípios gerais de Direito da União Europeia, bem como os princípios específicos do IVA.
V. DO REENVIO PREJUDICIAL AO TJUE – SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
126. Neste contexto, para efeitos de reenvio começou este Tribunal por referir que se discute na presente ação se o legislador nacional pode limitar o exercício do direito à dedução de despesas comprovadamente afetas ao exercício da atividade profissional tributada do sujeito passivo, ao prever no n.º 7, al. b) do artigo 78.º do CIVA o seguinte:
“Artigo 78.º
Regularizações (…)
7 - Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis:
(...)
b) Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º do mesmo Código;
(…) “
De acordo com o disposto no artigo 90.º da DCIVA:
“Artigo 90.º
1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.”
Por sua vez, o artigo 273.º da DCIVA vem determinar o seguinte:
“Artigo 273.º
Os Estados-Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados–Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados-Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.
A faculdade prevista no primeiro parágrafo não pode ser utilizada para impor obrigações de faturação suplementares às fixadas no Capítulo 3.”
Tal como se salientou, num recente acórdão do TJUE (Acórdão de 08.05.2019, Proc. C 127/18, Caso A–PACK CZ), é afirmado haver uma jurisprudência constante do TJUE quanto à interpretação do referido artigo 90.°, n.° 1, da DCIVA, que nos casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação que deu origem ao pagamento do imposto, "obriga os Estados membros a reduzirem o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contrapartida". Diz o TJUE, na esteira do Acórdão de 06.12.2018, Tratave, Proc. C 672/17, EU:C:2018:989, n.° 29 e jurisprudência aí referida, que esta disposição "constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contrapartida efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu". E o TJUE, valendo-se, nesse sentido, de jurisprudência anterior (Acórdãos de 03.07.997, Goldsmiths, Proc. Proc. C 330/95, EU:C:1997:339, n.° 18; de 23.11.2017, Di Maura, Proc. C 246/16, EU:C:2017:887, n.° 17; e de 22.02.2018, T 2, Proc. C 396/16, EU:C:2018:109, n.° 37), prossegue, afirmando que a permissão da DCIVA, constante do seu n.º 2 do artigo 90.º, para os Estados-Membros usarem a faculdade de derrogação desta regra em caso de não pagamento total ou parcial do preço da operação, "baseia se na ideia de que o não pagamento da contrapartida pode, em determinadas circunstâncias e em virtude da situação jurídica existente no Estado-Membro em causa, ser difícil de verificar ou ser meramente transitório", pelo que "o exercício dessa faculdade de derrogação deve ser justificado por forma a que as medidas adotadas pelos Estados Membros para lhe dar execução não perturbem o objetivo de harmonização fiscal prosseguido pela Diretiva 2006/112" (v., neste sentido, Acórdãos de 03.07.1997, Goldsmiths, Proc. C 330/95, EU:C:1997:339, n.° 18; de 23.11.2017, Di Maura, Proc. C 246/16, EU:C:2017:887, n.° 18; e de 22.02.2018, T 2, Proc. C 396/16, EU:C:2018:109, n.° 38) e que esta Diretiva "não pode permitir a estes últimos excluir pura e simplesmente a redução do valor tributável do IVA em caso de não pagamento" (v., neste sentido, Acórdão de 23.11.2017, Di Maura, Proc.C 246/16, EU:C:2017:887, n.ºs 20 e 21).
De acordo com o TJUE, esta conclusão "é confirmada por uma interpretação teleológica do artigo 90.°, n.° 2, da Diretiva 2006/112. Com efeito, embora seja pertinente que os Estados Membros possam combater a incerteza quanto ao não pagamento de uma fatura ou ao carácter definitivo desta, tal faculdade de derrogação não pode ser alargada para além dessa incerteza, designadamente à questão de saber se a redução do valor tributável pode não ser efetuada em caso de não pagamento" (Acórdãos de 23.11.2017, Di Maura, Proc. C 246/16, EU:C:2017:887, n.° 22, e de 22.02. 2018, T 2, Proc. C 396/16, EU:C:2018:109, n.° 40). Além disso, - defende o TJUE - "admitir a possibilidade de os Estados Membros excluírem qualquer redução do valor tributável do IVA seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA, do qual resulta, designadamente, que, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o empresário deve ficar totalmente aliviado do peso do imposto devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas sujeitas ao IVA" (v., neste sentido, Acórdão de 23.11.2017, Di Maura, Proc. C 246/16, EU:C:2017:887, n.° 23).
Como se mencionou, na situação sub judice, importa determinar, face às regras que regem o IVA na União Europeia, em particular os artigos 90.º e 273.º da DCIVA, e tendo em consideração os princípios da neutralidade do IVA e da proporcionalidade, e à forma como se processou a transposição destes normativos para a ordem jurídica portuguesa, pelo artigo 78.º do CIVA, se é ou não possível que o sujeito passivo (a Requerente) possa regularizar créditos considerados incobráveis em processo de insolvência que teve o seu curso em Espanha, ao abrigo do direito aí vigente, e no qual o Tribunal espanhol declarou a situação de insolvência da empresa aí sediada (D...).
Tendo-se concluído que a questão a resolver afigura-se pertinente, permanecendo dúvidas sobre a exata interpretação destas normas e princípios europeus, cujo esclarecimento é necessário para a aplicação de um direito nacional em conformidade com o Direito da União Europeia, suscitou-se a formulação da seguinte questão ao TJUE:
“A correta interpretação dos artigos 90.º e 273.º da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28.11.2006 (DCIVA), e dos princípios da neutralidade do IVA e da proporcionalidade e, bem assim das liberdades económicas fundamentais, permite que o legislador português, na alínea b) do n.º7 do artigo 78.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26.12, restrinja a regularização do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativa a créditos considerados incobráveis em processo de insolvência, aos casos nele previstos (ou seja, quando tenha sido decretada insolvência de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18.03, ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º do mesmo Código), com a consequente não aceitação, para esse efeito, de decisões de Tribunais de outros Estados membros que certifiquem serem incobráveis os créditos reclamados em processo de insolvência?”
127. Em 29 de Abril de 2020, foi o Tribunal Arbitral notificado do despacho do Tribunal de Justiça da UE, tendo este Tribunal decidido aplicar o disposto no artigo 99.° do seu Regulamento de Processo e, assim, decidiu o pedido de reenvio por meio de despacho fundamentado.
Importa considerar as seguintes considerações e conclusão do TJUE:
“37 Assim, nesse despacho, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 90.° da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que um Estado-Membro deve permitir a redução do valor tributável do IVA se o sujeito passivo puder demonstrar que o crédito que detém sobre o seu devedor é definitivamente incobrável, o que cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar.
38 No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a D... foi objeto de um processo de liquidação judicial, no âmbito do qual o órgão jurisdicional competente declarou a inexistência de bens e direitos no património desta sociedade e ordenou o cancelamento da mesma no registo comercial.
39 Por conseguinte, afigura-se que os créditos detidos pela A... sobre a D... são incobráveis.
40 O órgão jurisdicional de reenvio refere que a Autoridade Tributária e Aduaneira recusa, no entanto, a redução do valor tributável do IVA, pedida pela A..., com o fundamento de que, por força do artigo 78.°, n.° 7, alínea b), do CIVA, a regularização do IVA respeitante a créditos considerados incobráveis num processo de insolvência só é possível se esse processo correr os seus termos ao abrigo do direito nacional. Essa autoridade interpreta igualmente esta disposição no sentido de que o regime de regularização do IVA respeitante a créditos incobráveis só é aplicável quando o credor e o devedor são sujeitos passivos estabelecidos no território nacional. Todavia, estas condições não estão preenchidas no litígio no processo principal, uma vez que a D... tinha a sua sede social em Espanha e o processo de insolvência foi instaurado em instâncias deste Estado-Membro.
41 A este respeito, há que constatar que essa abordagem, na medida em que equivale a sujeitar a redução do valor tributável do IVA em caso de incobrabilidade de um crédito à condição de o devedor ser residente no território nacional, não pode ser considerada conforme com o artigo 90.° da Diretiva IVA, uma vez que esta disposição não prevê tal condição.
42 Além disso, na medida em que a Autoridade Tributária e Aduaneira alega igualmente que a redução do valor tributável causava um prejuízo ao Estado português, uma vez que a D... havia solicitado e obtido o reembolso do IVA cujo pagamento já não lhe podia ser pedido, há que salientar que o artigo 90.° da Diretiva IVA também não faz depender o direito à redução do IVA da restituição do reembolso do IVA concedido à empresa devedora.
43 Há que acrescentar, neste contexto, que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, não resulta dos factos do litígio no processo principal nenhum indício de colusão, de concertação ou de outra forma de planeamento fiscal abusivo.
44 Por outro lado, embora o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA preveja que o valor tributável é reduzido «nas condições fixadas pelos Estados-Membros», esta remissão para a competência destes últimos não lhes permite instituir uma condição material suplementar, não prevista por esta disposição, à qual possam subordinar a redução do valor tributável.
45 Com efeito, esta disposição confere aos Estados-Membros uma margem de apreciação para fixar as formalidades que devem ser cumpridas pelos sujeitos passivos para poderem obter essa redução (v., neste sentido, Acórdão de 6 de dezembro de 2018, Tratave, C-672/17, EU:C:2018:989, n.° 32 e jurisprudência referida). Estas formalidades devem limitar-se às que permitem justificar que, depois de efetuada a transação, uma parte ou a totalidade da contraprestação não será definitivamente recebida (v., neste sentido, Acórdão de 6 de dezembro de 2018, Tratave, C-672/17, EU:C:2018:989, n.° 34 e jurisprudência referida). Além disso, as medidas assim adotadas não devem exceder o que for necessário a essa justificação (v. Acórdão de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C-337/13, EU:C:2014:328, n.° 40).
46 Ora, por força do artigo 25.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, as decisões relativas ao encerramento de um processo de insolvência proferidas por um órgão jurisdicional cuja decisão de abertura do processo seja reconhecida por força do artigo 16.° desse regulamento, como a decisão que certifica a incobrabilidade dos créditos em causa no processo principal, são reconhecidas sem mais formalidades em todos os outros Estados-Membros.
47 Por último, embora, nos termos do artigo 273.° da Diretiva IVA, os Estados-Membros possam prever, sob certas condições, obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, o Tribunal de Justiça declarou que o facto de excluir qualquer possibilidade de redução do valor tributável em caso de não pagamento de um crédito por um devedor insolvente e de fazer recair sobre o sujeito passivo credor o encargo de um montante de IVA que não teria recebido no âmbito das suas atividades económicas, ultrapassa, em qualquer caso, os limites estritamente necessários para atingir os objetivos previstos nesse artigo 273.° (Acórdão de 8 de maio de 2019, A-PACK CZ, C-127/18, EU:C:2019:377, n.° 27).
48 Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que os artigos 90.° e 273.° da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual o direito à redução do IVA pago e respeitante a créditos considerados incobráveis na sequência de um processo de insolvência é recusado ao sujeito passivo quando a incobrabilidade dos créditos em causa tenha sido declarada por um órgão jurisdicional de outro Estado-Membro com fundamento no direito vigente neste último Estado.” (o bold é nosso)
VI. ENQUADRAMENTO DA SITUAÇÃO
128. Considerando o enquadramento normativo em apreço bem como o entendimento exarado pelo TJUE, conclui-se o seguinte:
a) Quanto à questão da interpretação do Direito da União Europeia
Tal como se fundamenta no Despacho do TJUE, a legislação portuguesa não se encontra em conformidade com o Direito da União Europeia ao circunscrever, para os efeitos previstos, o conceito de créditos incobráveis ao Código de Insolvência de Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18.03.
Logo, resultando de créditos incobráveis o processo de insolvência da devedora (D..., SA., sociedade domiciliada em Espanha), deve este ser aceite para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA.
b) Quanto às questões de forma
Neste contexto, no tocante aos erros formais, e em face do que ficou provado, considera-se que o exercício do direito à dedução teve lugar dentro do período legal de quatro anos após o nascimento desse direito, não existindo contradição entre o pedido do reembolso e o que consta dos formulários necessários para efetuar esse pedido, tendo a Requerente promovido, de forma válida, a obrigação de comunicar à adquirente a dedução a seu favor do IVA em causa, não tendo conseguido obter a cobrança dos seus créditos junto da D..., não obstante ter promovido as diligências necessárias para o efeito.
De facto, considera-se que, tendo a LOE para 2013 entrado em vigor em 01.01.2013, distinguindo a regularização do IVA de créditos vencidos até 31.12.2012 da regularização de créditos vencidos posteriormente, aos créditos vencidos até 31.12.2012 aplica-se a disposição transitória do n.º 6 do artigo 198.º da Lei 66-B/2012, de acordo com a qual à data, “o disposto nos n.ºs 7 a 12, 16 e 17 do artigo 78.º do Código do IVA aplica-se apenas aos créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013.”; para os créditos vencidos até 31.12.2012, aplicar-se-á o artigo 78.º do CIVA; para os créditos vencidos em data posterior, o artigo a aplicar será o 78.º-A do mesmo diploma.
Ou seja, o momento a relevar para o efeito é o do vencimento do crédito e não o momento do início do processo de insolvência, da sentença que a decretou ou da assembleia de credores, só tendo a Requerente no final de 2015 tido a efetiva confirmação de que os créditos em apreço não seriam satisfeitos.
A simples abertura do “processo concursal” não certifica a incobrabilidade do crédito.
Com efeito, neste contexto, não deve ser considerada a data em que, segundo o Boletim de registo mercantil junto ao RIT, teve início o denominado “proceso concursal”, uma vez que a abertura deste processo não implicou qualquer reconhecimento dos créditos da Requerente, facto este que só veio a ocorrer por parte da “administración concursal” mais tarde em setembro de 2015 e, mais adiante, por parte do Tribunal competente.
129. Assim sendo, e tendo em consideração a jurisprudência do TJUE neste domínio que entende que, estando em causa a natureza ampla do direito à dedução do IVA, as administrações tributárias devem agir de acordo com o princípio da proporcionalidade de forma a respeitar a neutralidade do imposto, conclui-se encontrarem-se verificados todos os requisitos legais para o efeito, sendo entendimento deste Tribunal acolher a pretensão da Requerente.
VII. DECISÃO
Atendendo ao exposto, acordam os Árbitros neste Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido e, em consequência, decide-se declarar, nos termos expostos supra, a ilegalidade da liquidação de IVA referente ao reembolso de IVA, no valor de € 186.804,03, incluído no período de tributação de 2017.11, no ato de liquidação de IVA n.º 2018... .
Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 186.804,03 (cento e oitenta e seis mil, oitocentos e quatro euros e três cêntimos).
Notifique-se.
Lisboa, 4 de maio de 2020
Árbitro presidente
António Carlos dos Santos
Árbitro vogal
Jesuíno Alcântara Martins
Árbitro vogal
Clotilde Celorico Palma
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3.ª DECISÃO |
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DECISÃO ARBITRAL
(Complemento no termos dos art.ºs 614 e 615 do CPC e al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT)
Os árbitros que constituem o Tribunal Arbitral coletivo, Professor Doutor António Carlos dos Santos (árbitro-presidente), Dr. Jesuíno Alcântara Martins e Professora Doutora Clotilde Celorico Palma (árbitros vogais), acordam em proceder ao complemento da decisão arbitral proferida no presente processo nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Por decisão arbitral de 4 de maio do corrente ano, o Tribunal Arbitral acordou considerar totalmente procedente o pedido da Requerente, A..., SA., e, em consequência, decidiu declarar a ilegalidade da liquidação de IVA referente ao reembolso de IVA, no valor de € 186.804,03, incluído no período de tributação de 2017.11, e no ato de liquidação de IVA n.º 2018... .
2. A decisão arbitral foi notificada às Partes pelo CAAD em 04 de maio de 2020.
3. Através de requerimento de 13 de maio de 2020; a Requerente veio solicitar ao abrigo do artigo 614.º do Código de Processo Civil (CPC) e da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, subsidiariamente aplicável nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), a retificação da decisão arbitral no sentido dela passar a constar expressamente a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) no pagamento de juros indemnizatórios devidos desde a data em que o reembolso deveria ter sido processado, porquanto na petição a Requerente havia requerido o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.
4. Nos termos do disposto no artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), a Administração Tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.
5. De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
6. Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT e no n.º 5 do artigo 61.º do CPPT, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, o que, no caso em apreço, tem de ser percecionado com o alcance decorrente do n.º 8, in fine, do artigo 22.º do Código do IVA.
7. Acresce que de acordo com a doutrina administrativa ínsita no Ofício-Circulado n.º 60052, de 03.10.2006, proc.º n.º 2003/002 757, da Direção de Serviço de Justiça Tributária da DGCI (atual AT), “o pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios não depende de solicitação do contribuinte, devendo ser satisfeito oficiosamente pelos Serviços, de acordo com os respetivos pressupostos legais”.
8. Todavia, a Requerente efetuou na sua petição o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, pelo que o Tribunal Arbitral conheceu do respetivo pedido.
9. O Tribunal Arbitral quando julgou a procedência total do pedido da Requerente, foi sua intenção determinar não só a anulação do ato de liquidação de IVA n.º 2018..., no valor de € 186.804,03, referente ao período de tributação de 2017.11, valor correspondente ao reembolso de IVA, como igualmente teve o propósito de determinar o pagamento de juros indemnizatórios.
10. Face ao requerimento da Requerente supra identificado e atendendo à circunstância do contencioso tributário ser um contencioso de anulação, o Tribunal Arbitral reconhece ser prudente inserir na sua decisão a referência expressa à condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, no n.º 8 do artigo 22.º Código do IVA e no artigo 61.º do CPPPT, desde a data em que o reembolso do IVA deveria ter sido processado.
11. Desde modo, em face do disposto no artigo 614.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPC) e na alínea d) do n.º 1 do artigo 515.º do CPC, aplicáveis por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o Tribunal Arbitral procede à retificação da decisão arbitral proferida no dia 4 de maio de 2020 e, nesta conformidade, acordam os Árbitros em julgar totalmente procedente o pedido da Requerente e, em consequência, decidir declarar, a ilegalidade da liquidação de IVA referente ao reembolso de IVA, no valor de € 186.804,03, incluído no período de tributação de 2017.11, a que se refere o ato de liquidação de IVA n.º 2018... e, nos termos referidos no ponto 10, condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios.
Notifique-se.
Lisboa, 4 de maio de 2020
Árbitro presidente
António Carlos dos Santos
Árbitro vogal
Jesuíno Alcântara Martins
Árbitro vogal
Clotilde Celorico Palma
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