Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 181/2014-T
Data da decisão: 2014-09-03  IRC  
Valor do pedido: € 137.251,91
Tema: Dividendos pré-aquisição, diferenças cambiais, preços de transferência
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Decisão Arbitral

 

            Os árbitros Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro-presidente), António Martins e João Sérgio Ribeiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 30-04-2014, acordam o seguinte:

 

I.                   Relatório

 

1. A…, SA, com o NIF n.º …, com sede em …, concelho de Setúbal (doravante Requerente), apresentou, em 24-02-2014, requerimento de constituição de tribunal arbitral nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º e dos arts. 10 e segs. do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), constante do Decreto-Lei n.º 10/2001, de 20 de janeiro, invocando ainda os artigos 66.º e a alínea  a) do art. 99 do Código de Procedimento e Processo Tributário.  

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente declarou não pretender proceder à designação de árbitro, pelo que a constituição do Tribunal Arbitral se processou em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 6º e no nº 1 do artigo 11º do RJAT, mediante decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, tendo sido designados os árbitros acima identificados.

Em 30-04-2014 foram as partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação, considerando-se por isso o Tribunal Arbitral constituído nessa data, nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 11º do RJAT.

 

            3. Em 18-06-2014, realizou-se a primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e com os objetivos previstos no artigo 18.º do RJAT. A Requerente declarou manter o interesse na realização da prova testemunhal, tendo prescindido, todavia, da inquirição de uma das testemunhas arroladas, mantendo as restantes. A representante da Requerida prescindiu da inquirição da testemunha por si arrolada. Produzida a prova testemunhal, deram-se as alegações orais.

 

4. O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto imediato o indeferimento da reclamação graciosa n.º ... e por objeto mediato a liquidação adicional n.º ... referente a IRC de 2010, e consequente derrama municipal.

 

5. A Requerente, na qualidade de sociedade dominante do Grupo A..., pede a anulação parcial da decisão que indeferiu a reclamação graciosa e a consequente anulação parcial da liquidação adicional controvertida, na parte referente às correções à matéria coletável da Requerente (ação inspetiva efetuada ao abrigo da ordem de serviço ...), refletida na matéria coletável do Grupo (ação inspetiva efetuada ao abrigo da ordem de serviço ...), a seguir discriminadas:

 

5.1. Diferença cambial decorrente da valorização de uma quantia recebida da participação na Societé B… (doravante B...), no montante de € 138.393,96;

 

5.2. Gastos com remuneração de administrador de entidade relacionada, no montante de € 311.363,57.

 

6. A Requerente reclama ainda indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia e juros indemnizatórios pelo pagamento de imposto indevido.

 

7. A posição da Requerente é, em síntese, a seguinte:

 

7.1. Considera os dividendos recebidos como sendo referentes a reservas de pré-aquisição da participação na sociedade B... e, por conseguinte, como um reembolso de reservas incorporadas no preço pago aquando da aquisição da participação na sociedade, e não como um rendimento. Sustenta tratar-se tão-somente de uma entrega de parte daquilo que a A... comprou e pagou, mais precisamente, um reembolso à A... de parte do seu Investimento.

 

7.2. Afirma que as diferenças de câmbio desfavoráveis (associadas a esse reembolso, tendo por base o câmbio à data de aquisição) são uma perda efetiva, pelo que concorrem para o resultado fiscal da sociedade.

 

7.3. Sustenta que os encargos suportados pela Requerente com a remuneração de um administrador da A... não representam uma violação do princípio da plena concorrência e são indispensáveis para o desenvolvimento da atividade da Requerente, pelo que devem ser considerados como gastos relevantes para a determinação do seu lucro tributável.

 

8. Na sua resposta a ATA sustentou sinteticamente o seguinte:

 

8.1. A tese propugnada pela Requerente (segundo a qual os resultados acumulados foram comprados pela A..., donde a sua distribuição não corresponde um rendimento/dividendo, mas antes à recuperação parcial do investimento inicial à semelhança de um reembolso de empréstimo ou de parte do preço de aquisição do investimento) carece de sustentação legal.

 

8.2. As perdas com diferenças cambiais registadas não concorrem para o resultado fiscal da sociedade por traduzirem uma desvalorização potencial da participação social que a Requerente detém na B..., de acordo com a valoração das participações sociais pelo método da equivalência patrimonial adotado pela Requerente.

 

8.3. Os encargos suportados pela Requerente com a remuneração de administrador de entidade relacionada representam uma violação do princípio da plena concorrência, para além de não serem comprovadamente indispensáveis para o exercício da sua atividade, pelo que não influenciam o lucro tributável daquela.

 

II. Saneamento

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Não há questões prévias e exceções de que cumpra conhecer, e o processo não enferma de nulidades.

Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é competente, nada obstando à apreciação e conhecimento do objeto do processo.

 

 

III.             Matéria de facto

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão, com base na prova documental junta aos autos e depoimentos prestados.

 

1. A Requerente recebeu em 2010 dividendos da sua participada libanesa B...;

 

2. A A... contabilizou esta participação social utilizando o MEP (Método da Equivalência Patrimonial);

 

3. Existiam na empresa adquirida reservas disponíveis para distribuição à data da aquisição da participação na sociedade libanesa, ocorrida em 2002;

 

4. Em dezembro de 2001, as contas da B... evidenciam as seguintes reservas, como componentes do capital próprio:

- reserva de reavaliação: 1 303 716 milhares de libras libanesas

- reserva legal: 2 461 153 milhares de libras libanesas

- reserva geral: 23 946 598 milhares de libras libanesas

 

Num total de 27 711 467 milhares de libras libanesas;

 

5. A perda cambial que aqui está em causa relaciona-se com o facto de a moeda funcional da A... ser o euro, mas o seu investimento financeiro (investimento em ações da B..., no caso) é no Líbano e consequentemente é valorizado num primeiro momento em termos de libras libanesas (a moeda local), convertido depois para efeitos de contabilização pela A... em euros, à taxa de câmbio do momento do momento da aquisição em 2002;

 

6. Aquando da distribuição de dividendos em 2010, esse pagamento é efetuado em libras libanesas, que devem ser convertidos para a moeda “euro”;

 

7. Nas circunstâncias do caso concreto os valores são os seguintes: 

 

i) a A... recebeu em 2010, após conversão para euros, € 1.695.512 em dividendos  provenientes da B..., que são imputáveis a resultados acumulados da  B... pré- aquisição;

 

ii) uma vez que estes resultados acumulados pré-aquisição custaram à A... (câmbio  da data da compra) € 1.833.906,00, a A...  reconheceu uma perda resultante da variação cambial  desfavorável ocorrida entre a data da compra (2002) e a data do recebimento aqui em  causa (2010) , no montante de € 138.394 (€ 1.833.906,00 - € 1.695.512);

 

8. A AT sustenta que deve efetuar uma correção ao lucro tributável no montante total de 138.393,94 euro, relativa a perdas com diferenças cambais registadas na contabilidade da A... que não deviam estar a influenciar o resultado fiscal da sociedade;

 

9. Assim seria por essas perdas cambiais traduzirem uma desvalorização potencial da participação social que a A... detém na B..., nos termos da valorização pelo método da equivalência patrimonial, e que nos termos do artigo 18º do CIRC não deveria concorrer para o lucro tributável;

 

10. A Requerente é titular de 100% do capital da A... Angola – Investimentos e Participações S.A. que por sua vez detém 51% da A... – , pelo que tem relações especiais com cada uma dessas sociedades;

 

11. O Administrador da A..., C..., era uma pessoa da confiança da Requerente, sendo a maior parte da sua remuneração suportada por ela;

 

12. O restante salário deveria ser suportado pela A...;

 

13. O contexto em que se fazem negócios em Angola e a importância dos investimentos da Requerente nesse território obrigam à presença no local de alguém da sua confiança;

 

14. A expatriação para Angola de quadros com o perfil do Administrador C..., é difícil e obriga invariavelmente a remunerações elevadas.

 

 

IV. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

A fixação da matéria de facto fundamenta-se em juízos probatórios retirados dos documentos, prova testemunhal e afirmações das partes e cuja correspondência com a realidade não é controvertida pelas partes.

 

Não se verificam factos que devam considerar-se não provados e que tenham interesse para a decisão da causa.

 

V. Fundamentação de Direito.

 

1. As normas contabilísticas relativas ao Método da Equivalência Patrimonial (MEP)

 

1.1. Aspetos essenciais para o caso em apreço

           

Dadas as teses em confronto, há pois que analisar desde já a questão da aplicação do MEP, e se os dividendos pré-aquisição nele se enquadram para efeitos contabilístico –fiscais.

Ora o Código do IRC não estabelece regras próprias ou específicas para o registo ou quantificação dos factos patrimoniais decorrentes da aplicação do MEP. Assim, e em face do disposto no CIRC – maxime, o respetivo artigo 17º - ter-se-á de buscar no normativo contabilístico o modus operandi desse método de reconhecimento de participações sociais e respetivas operações e registos delas decorrentes, como seja o recebimento de dividendos.

Vejamos pois como o SNC regula a aplicação do MEP.

 

 

1.2. Enquadramento normativo no âmbito do regime contabilístico

 

Dispõe a NCRF nº 13- “Interesses em empreendimentos conjuntos e investimentos em associadas” o seguinte:

 

NCRF 13, § 4:

Método da equivalência patrimonial: é um método de contabilização pelo qual o investimento ou interesse é inicialmente reconhecido pelo custo e posteriormente ajustado em função das alterações verificadas, após a aquisição, na quota-parte do investidor ou do empreendedor nos activos líquidos da investida ou da entidade conjuntamente controlada.

Os resultados do investidor ou empreendedor incluem a parte que lhe corresponda nos resultados da investida ou da entidade conjuntamente controlada.

 

§ 58 — Pelo método da equivalência patrimonial, o investimento numa entidade é inicialmente reconhecido pelo custo e a quantia escriturada é aumentada ou diminuída para reconhecer a parte do investidor nos resultados da investida depois da data da aquisição. A parte do investidor nos resultados da investida é reconhecida nos resultados do investidor. As distribuições recebidas de uma investida reduzem a quantia escriturada do investimento. Podem também ser necessários ajustamentos na quantia escriturada, para alterações no interesse proporcional do investidor na investida resultantes de alterações no capital próprio da investida que não tenham sido reconhecidas nos resultados da investida. Tais alterações incluem as resultantes da revalorização de activos fixos tangíveis e das diferenças de transposição de moeda estrangeira. A parte do investidor nessas alterações é reconhecida directamente no seu capital próprio

 

Ora no § 4 refere-se: “…e posteriormente ajustado em função das alterações verificadas, após a aquisição,..”. Por seu turno, no § 58 de estabelece-se: “a quantia escriturada é aumentada ou diminuída para reconhecer a parte do investidor nos resultados da investida depois da data da aquisição”(subl. nosso).

 

Esta redação não parece deixar margem para dúvidas de que os dividendos recebidos com base em reservas existentes (pré-aquisição) constituem um facto contabilístico-financeiro cuja tradução patrimonial e regras de registo se hão-buscar noutros preceitos do SNC.

Quer isto dizer que o MEP será relevante para registar a operação de aquisição e os dividendos provindos de lucros obtidos subsequentemente à aquisição. Mas não servirá para enquadrar e registar dividendos provenientes de reservas pré-aquisição.          

Vejamos, para já e em termos simples, como funciona genericamente o MEP, para depois analisarmos que normas devem aplicar-se aos dividendos aqui sob análise.

Como se menciona na NCRF nº 13, os resultados de um dado exercício N, apurados pela participada, devem ser reconhecidos como rendimento da participante nesse exercício. Este reconhecimento de um resultado na participante não está dependente de esta ter recebido dividendos.

Estes, a receber pela participante eventualmente em N+1, deverão então ser abatidos ao valor da participação, que fora aumentada por contrapartida do reconhecimento pela participante (em N) da quota-parte dos resultados na participada.

Exemplificando: supondo que a entidade H.. detém 25% da entidade D.., que tal participação está registada por 500 000 euro no balanço de H.., e que D.. apresenta em N lucros de 50 000, então, no mesmo exercício, H.. reconhece um rendimento de 25% * 50 000 = 12 500 na respetiva demonstração de resultados.

Simultaneamente, aumenta o valor da participação para 512 500 euro. Se em N+1 H.. receber dividendos de 10 000, regista uma entrada de meios monetários e abate 10 000 ao valor da participação.

Vejamos, agora com um pouco mais de pormenor e socorrendo-nos de um exemplo mais desenvolvido, as operações contabilísticas que resultam do MEP tal como decorrem da NCRF 13.

Admita-se que em 31-12-2013 a empresa G.., Lda[1], apresentava o seguinte balanço:

 

Balanço de G.., em final de 2013

Ativo não corrente

2 000 000

Ativo corrente

1 000 000

TOTAL ACTIVO

3 000 000

Capital social

500 000

Reservas

400 000

Resultado Líq. do exercício

100  000

PASSIVO

2 000 000

TOTAL CP + PASSIVO

3 000 000

 

 

Se a sociedade D… detiver 50% de G.. e esta, em Maio de 2014, distribuir à participante (supondo a distribuição da totalidade do resulto líquido de 100 000 desta última) uma quantia de 50%*100 000 = 50 000, que tradução contabilística têm os lucros apurados em dezembro de 2013 e os dividendos recebidos em maio de 2014 na esfera da participante?

O elemento mais relevante, traduz-se no facto de que, pelos lucros da participada a participante deve reconhecer um rendimento. É isso que dispõe a NCRF nº 13, quando estabelece: “Pelo método da equivalência patrimonial, o investimento numa entidade é inicialmente reconhecido pelo custo e a quantia escriturada é aumentada ou diminuída para reconhecer a parte do investidor nos resultados da investida depois da data da aquisição. A parte do investidor nos resultados da investida é reconhecida nos resultados do investidor.”

Continuando com o exemplo acima, tal rendimento (50 000) reconhecido em 2013 na esfera de D… não se traduz em liquidez da participante. O MEP obriga ao ajustamento dos resultados da investidora em função dos lucros (ou prejuízos) da participada. O reflexo será a aumento (redução) do valor do investimento.

Mas o artigo 18º, nº 8, do CIRC, porventura num resquício da lógica de “realização”, manda adiar a tributação para o momento do efetivo recebimento ou encaixe dos dividendos.

Aquando do recebimento dos dividendos, não se reconhece um resultado (já o foi

 

em 2013), mas sim uma entrada de liquidez de 50 000 (o dividendo) e uma redução de valor (também de 50 000) da participação societária em sede da empresa adquirente (porque a saída de meios monetários reduz o valor patrimonial da sociedade distribuidora ou participada).

É nesta altura – maio de 2014, sempre por referência ao exemplo acima - em que a participante recebe o dividendo, que o artigo 18º, nº 8 do CIRC estabelece o momento da tributação. Ou seja, o MEP tem um enquadramento fiscal próprio, na medida em que o reconhecimento do rendimento da participante (dezembro de 2013) não determina o momento da tributação, mas sim o recebimento dos dividendos da participada (maio de 2014). (Claro que o artigo 51º do CIRC poderia neutralizar tal efeito, mas disso não nos ocupamos aqui como questão essencial).

Para o que aqui importa, basta balizar expressamente estes dois momentos no plano contabilístico e fiscal, e referir que a NCRF nº 13 é omissa relativamente aos dividendos decorrentes de reservas pré-aquisição.

O enquadramento de tais dividendos terá, agora sim, de ser visto à luz da NCRF nº 20- “Rédito”, que dispõe (subl. nosso):

 

6 — Esta Norma não trata de réditos provenientes de:

(a) Acordos de locação (ver a NCRF 9 — Locações);

(b) Dividendos provenientes de investimentos que sejam contabilizados pelo método da equivalência patrimonial (ver a NCRF 13 — Interesses em Empreendimentos Conjuntos e Investimentos em Associadas);

 

31 — Quando juros não pagos tenham sido acrescidos antes da aquisição de um investimento que produza juros, o recebimento subsequente de juros é repartido entre os períodos de pré e pós aquisição. Somente a parte de pós aquisição é reconhecida como rédito. Quando os dividendos de títulos de capital próprio sejam declarados a partir de lucros líquidos de pré aquisição, esses dividendos são deduzidos do custo dos títulos. Se for difícil fazer tal imputação, exceto numa base arbitrária, os dividendos são reconhecidos como rédito a menos que os mesmos representem claramente uma recuperação de parte do custo dos títulos de capital próprio.

 

Ora, como se verifica, o § 31 é claro: quando os dividendos de títulos de capital próprio sejam declarados como provindos reservas pré-aquisição, esses dividendos são abatidos ao preço pago pelos títulos.

Numa linguagem contabilística, a entrada de fundos, incrementando disponibilidades, tem como contrapartida a redução do valor do investimento financeiro efetuado. Atribui-se pois a este encaixe a natureza de restituição de parte do valor do investimento inicial. Ou seja, os dividendos que aqui se discutem não constituem rédito (daí a ressalva do § 6, b, da NCRF nº 20).

Por que não constituem rédito? A resposta é simples. Segundo a NCRF nº 20, “rédito” define-se como (§ 7): “….o influxo bruto de benefícios económicos durante o período proveniente do curso das actividades ordinárias de uma entidade quando esses influxos resultarem em aumentos de capital próprio, que não sejam aumentos relacionados com contribuições de participantes no capital próprio.”

 

Ora os acionistas de uma entidade que recebam dividendos com base em reservas pré-aquisição não auferem um benefício económico. Estão, apenas e só, como se refere no § 31 da NCRF nº 20, a recuperar parte de um preço pago, e tais dividendos devem ser deduzidos ao custo dos títulos, ou seja, abatidos ao valor do investimento inicial.

Perguntar-se-á: mas o abate ao investimento também não se dá aquando do recebimento de dividendos pós aquisição?

É certo que sim, mas o fenómeno não é equiparável. Pela razão de que, no caso dos dividendos pós-aquisição, os lucros que os geram constituem rendimento previamente reconhecido, e o posterior abate ao investimento compensa, portanto sem reduzir o seu valor líquido, o montante do investimento. Não é isso, como se viu, o que se passa com os dividendos pré-aquisição.

 

2. A diferença cambial: seu enquadramento fiscal

 

Assente que a distribuição de dividendos pré-aquisição não constitui rédito enquadrável no MEP, e sim uma recuperação de um montante pago pela aquisição da participação na entidade distribuidora, vejamos agora como deve ser tratada a diferença de câmbio apurada pela A....

A NCFR nº 23 – “os efeitos das alterações das taxas de câmbio”- estabelece:

 

47 Na alienação de uma unidade operacional estrangeira, a quantia acumulada das diferenças de câmbio diferidas no componente separado de capital próprio relativo a essa unidade operacional estrangeira deve ser reconhecida nos resultados quando o ganho ou a perda resultante da alienação for reconhecido.

48 — Uma entidade pode alienar os seus interesses numa unidade operacional estrangeira pela venda, pela liquidação, pelo reembolso do capital por acções ou pelo abandono de parte ou da totalidade dessa entidade. O pagamento de um dividendo faz parte de uma alienação apenas quando constituir um retorno do investimento, por exemplo, quando o dividendo pago for originado por lucros anteriores à aquisição. No caso de uma alienação parcial, apenas é incluída no ganho ou na perda a parte proporcional da diferença de câmbio acumulada relacionada. Uma redução da quantia escriturada de uma unidade operacional estrangeira não constitui uma alienação parcial. Em conformidade, nenhuma parte do ganho ou perda cambial diferido é reconhecida nos resultados no momento da redução.

 

Ora, em face do que se transcreveu, não há dúvida de que as normas contabilísticas em vigor consagram que o recebimento de um dividendo provindo de reservas pré- aquisição (quantificadas numa moeda diferente do euro) configura a realização de diferenças de câmbio eventualmente diferidas. Assim, tais diferenças cambiais devem, no momento do recebimento do dividendo, ser reconhecidas em resultados.

No caso da A..., a diferença cambial tornou-se por isso real, efetiva, e não meramente potencial como sustenta a AT.

Tendo-se provado que os dividendos são derivados de reservas existentes à data da aquisição, tendo-se mostrado que tais dividendos escapam às disposições da NCRF nº 13, em especial ao reconhecimento de rédito por via do MEP, e que a NCRF nº 23 permite concluir que diferenças de câmbio apuradas no âmbito da conversão monetária se consideram realizadas e não potenciais, então, em face das normas do CIRC – em especial dos artigos 17º e artigo 23º, nº 1 alínea c), ao tempo em vigor – terá de se concluir que a diferença de câmbio é fiscalmente relevante e deve ser aceite, não podendo o tribunal convalidar a posição da AT, de que o caso simplesmente se resumiria à aplicação fiscal do MEP.

 

 

 

 

 

 

3. Relevância dos encargos suportados com o administrador da A... pela Requerente e sua relação com os preços de transferência

 

3.1. Enquadramento

 

Para dar resposta ao problema em causa, e no sentido de aquilatar convenientemente o que é invocado pelas partes, é necessário fazer, por um lado, uma delimitação das circunstâncias em que age o administrador, incluindo aí a relevância da sua atuação para a realização dos rendimentos da própria Requerente; e por outro lado, uma abordagem sintética da matéria dos preços de transferência, para, na sequência disso, fazer a devida articulação entre eles e a situação em análise.

 

 

3.1.1. Contexto em que o administrador exerce as suas funções

 

            Há, tal como se evidenciou através da sintética referência às pretensões das partes, divergências relativamente ao contexto em que o administrador exerceria as suas funções.

No entender da Requerente o administrador, para além de exercer essas funções na A...  que o remuneraria, receberia ainda uma compensação, suportada pela Requerente, para representar os interesses daquela em Angola, no quadro da A... .

A ATA, por seu lado, qualifica a presença do administrador como uma prestação de serviços da Requerente à A... .

Dos factos provados resulta unicamente, sendo essa a nossa base decisão, tanto que o profissional em causa era administrador da A... , adquirindo essa condição apenas no contexto da A... , como que seria um homem da confiança da Requerente, que suportava os encargos com o seu expatriamento. É igualmente pacífica a existência de relações especiais entre a Requerente e a A... , à luz do art. 63.º, n.º 4 do CIRC, na medida em que a primeira detinha, ainda que indiretamente, 51% do capital da segunda. Relativamente ao exposto não há divergências de maior entre as partes. O mesmo se podendo dizer no que concerne estritamente ao montante despendido pela Requerente, que verdadeiramente não é posto em causa – não já a sua necessidade.

Há divergências sim, num primeiro plano, relativamente à existência ou não de uma fundamentação bastante para que a Requerente incorresse nessa despesa. E, num segundo plano, se decorreria do princípio da plena concorrência que os serviços desse administrador deveriam ser suportados pela A... , e não pela Requerente.

No que concerne à primeira questão podemos dar desde já uma resposta, deixando a análise da segunda para um momento subsequente à breve delimitação que faremos dos preços de transferência, pois só depois de avançadas as linhas gerais desse mecanismo poderemos dar uma resposta devidamente sustentada à questão.

Centremo-nos, então, na primeira questão que está diretamente ligada ao enquadramento dessas despesas no âmbito do artigo do art. 23.º, n.º 1, do CIRC, que se transcreve.

 

 

Artigo 23.º

Gastos

 

1 — Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente….»

 

Sem embargo de não aparecerem delimitados os exatos termos em que o administrador defenderia os interesses da Requerente, é possível inferir, tanto da comprovada condição de pessoa da confiança da Requerente, como da dependência económica que existia deste em relação àquela, que estaria ao serviço da Requerente e que esta teria um interesse na presença daquele administrador em Angola. Caso contrário, como é óbvio, não incorreria nos gastos em causa. Gastos esses que, face à prática salarial da A...  relativamente aos seus administradores e por imperativos de igualdade, jamais seriam cobertos por esta.

No que concerne à indispensabilidade deste gasto, este tribunal, com base no circunstancialismo dado a conhecer nos autos, depoimentos das testemunhas e pelo conhecimento do contexto angolano, que aliás é do domínio público, formou a seguinte convicção. Num contexto como o angolano, perante parcerias com Sociedades locais, uma gestão diligente impõe que haja nas sociedades participadas pelo menos um administrador da confiança do investidor, sendo a presença daquele indispensável para a conveniente defesa do investimento feito. Sendo, aliás, este imperativo de bom senso constatável igualmente nas relações de participação noutros contextos que não o angolano. Além disso, é do conhecimento público, tendo isso sido reforçado pela Requerente e não contestado diretamente pela ATA, que as despesas relativas ao expatriamento de quadros qualificados são normalmente elevadas.

Resulta, portanto, da delimitação do contexto do exercício das funções do administrador, a conclusão de que dependendo a sua considerada imprescindível presença em Angola da cobertura dos custos de expatriamento por parte da Requerente, estes revestiriam carácter essencial, não colhendo a tese de que os gastos com o administrador não teriam abrigo no artigo 23.º, n.º 1 do CIRC.

Passemos a uma análise dos preços de transferência para, na sequência disso, respondermos à outra questão decorrente dos gastos em análise.

 

 

3.1.2. Preços de transferência

 

A expressão ‘preço de transferência’ traduz-se no preço fixado por um determinado sujeito passivo quando vende ou compra bens, ou partilha recursos com uma entidade com quem tenha relações especiais. Nessas situações, os preços utilizados podem não corresponder aos preços de mercado, ou seja, aos preços negociados livremente.

Ora, esse afastamento do preço que normalmente seria praticado numa transação equivalente pode ter como objetivo a manipulação dos preços com o intuito de transferir rendimentos (sob a forma de lucro, por exemplo) de um sujeito passivo para outro, obtendo vantagens fiscais. Estas situações verificam-se tipicamente no plano internacional quando se tenta, através da manipulação de preços, transferir o lucro para o país onde a tributação é mais favorável, embora também sejam relevantes no plano interno.

            A resposta dos países a esta situação é a correção desses preços de transferência, no sentido de evitar que outros países obtenham uma parte do rendimento que foi gerado no seu território. Este ajustamento tem como referência os preços que teriam sido fixados por empresas sem uma relação especial, atuando de forma independente. Este método, designado por arm’s length method (princípio da plena concorrência), é partilhado pela maioria dos países, embora haja frequentemente dissonâncias quanto à forma como deve ser posto em prática.

            O mecanismo dos preços de transferência, não obstante ser, em grande medida, identificado como mecanismo de combate à transferência artificial de lucros, sendo, por conseguinte, as disposições que o incorporam frequentemente designadas como cláusulas específicas antiabuso, tem outras funções. Concretamente, a redução do risco da dupla tributação económica e contribuir para um equilíbrio na repartição dos lucros a tributar nos vários países onde atuam as multinacionais.

            Importa, portanto, ter presente que ainda que as entidades com relações especiais não tenham qualquer intenção abusiva, podem, ainda assim, ver ser-lhes aplicados os preços de transferência. O ponto 1.2. dos Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais [2] é bastante elucidativo a esse respeito nos excertos que de seguida se transcrevem.

 

«As Administrações Fiscais não devem presumir, sistematicamente, que as empresas associadas tentam manipular os respetivos lucros. (…) Com efeito, um ajustamento fiscal, a título do princípio da plena concorrência, não afeta as obrigações contratuais que vinculam as empresas associadas a todos os níveis, com a exceção do fiscal, podendo revelar-se necessário, mesmo que não haja a intenção de reduzir ou de iludir o imposto. Não se deve confundir a análise de um preço de transferência com as análises que incidem sobre casos de fraude ou de evasão fiscal, ainda que as medidas de ação adotadas em matéria de preços de transferência prossigam tais objetivos».

 

            Existem cinco métodos para determinar os preços de transferência: o método do preço comparável de mercado; o método do preço de revenda minorado; o método do custo majorado, o método do fracionamento do lucro e o método da margem líquida de operação.

 

 

 

            3.2. Enquadramento da situação concreta

 

            Os gastos em que incorreu a Requerente ao suportar as despesas de um administrador de uma sociedade com a qual tem relações especiais é uma prática legítima, no entender deste tribunal, suscetível de ser levada a cabo com vantagens, em circunstâncias similares, no âmbito de outros grupos de sociedades. Pelo que a aplicação dos preços de transferência, a ter lugar, quadrará com o grupo de situações em que não há qualquer fraude ou evasão fiscal. Não tendo, aliás havido qualquer sugestão nesse sentido por parte da ATA.

            Importa agora responder à questão que tem estado pendente, isto é, saber se o suportar de encargos do administrador pela Requerente pode ou não ver ser-lhe aplicado o regime dos preços de transferência.

            Tendo em conta a linguagem fluida e marcadamente genérica do artigo 63.º do CIRC, é possível sustentar que o suporte, por parte da Requerente, dos encargos com o expatriamento de um executivo do grupo com o objetivo de este assumir funções numa participada, configura uma operação aí enquadrável, dadas as relações especiais existentes.

            É, portanto, concebível a aplicação dos preços de transferência. Segue-se, todavia, uma questão óbvia que se traduz em determinar de que modo vai ser corrigida a operação. Convém relembrar que nos casos em que os preços de transferência se aplicam a operações perfeitamente legítimas, como parece ser aquela com que lidamos, o objetivo não é combater a fraude ou evasão, mas tão só assegurar o equilíbrio na repartição dos lucros entre os países onde atua o grupo de sociedades.

Ora esta constatação implica que a operação referida tenha consequências fiscais nos vários sistemas em que tem impacto. Concretizando, a operação em causa, tem impacto na situação fiscal da Requerente e naturalmente na situação fiscal da A... . Acontece, porém, que, devido ao princípio da territorialidade, os preços de transferência, consagrados no artigo 63.º do CIRC, podem apenas ter impacto na situação da Requerente, e não na A... , ainda que, em abstrato, e perante uma legislação local hipotética que seguisse os princípios mais correntes em termos de aplicação de preços de transferência, haveria também correções em Angola.

            Isto para dizer que, não obstante as referências feitas pelas partes aos serviços intra-grupo, cada uma delas em modalidades distintas (a Requerente enquanto custos de tutela, ao abrigo do ponto 7.9 dos Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais [3]; e a ATA enquanto prestações de serviços dentro do grupo, no contexto dos pontos 7.6, 7.29 e 7.30 do mesmo relatório[4]); essas considerações só podem dizer respeito à A... , beneficiária dos eventuais serviços. Pelo que têm em vista, num primeiro plano, apenas uma eventual aplicação de legislação de preços de transferência angolana e desde que esta implicasse, obviamente, uma interpretação assente num elemento histórico e teleológico que não fosse alheio à consideração dos Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência que temos vindo a considerar.

Por outras palavas, a prestação de serviços intra-grupo serviria unicamente para determinar, (i) num cenário em que seriam custos de tutela, que estes custos apenas seriam suportados pela Requerente; (ii) num cenário de prestação de serviços, se a A...  teria pago ou não por esses serviços um valor consentâneo com o princípio da plena concorrência, sendo na sequência disso feitas, hipoteticamente, correções ao seu lucro tributável, lá, em Angola. Este exercício não teria, como é óbvio, impacto na situação fiscal da Requerente em Portugal.

            Ora, para que os preços de transferência aplicados à operação em causa tivessem impacto no lucro tributável da Requerente (problema que verdadeiramente é discutido pelas partes), dever-se-ia por a tónica na questão de esclarecer se os custos suportados pelo expatriamento do administrador, face ao que normalmente é corrente no mercado perante benefícios equivalentes, seriam excessivos ou ficariam aquém do é normalmente praticado. Isto, sim, permitiria, eventualmente, ajustar o lucro da Requerente. Se os custos fossem excessivos seria desconsiderado o excesso; se fossem inferiores ao normal, a diferença seria computada como um ganho. Há, porém, um problema que nos parece incontornável e que aliás é assumido pela ATA, ainda que para retirar outras consequências:

– Num contexto de independência, uma sociedade não estaria disposta a suportar as despesas de um administrador de outra sociedade.

Face a isto, o Método do Preço Comparável de Mercado, sob pena de se negar a si próprio, não é apto para cumprir a sua função quando estão em causa operações apenas realizadas num contexto de relações vinculadas e claramente inconcebíveis fora delas, como é seguramente o caso.

            A convicção de que o Método do Preço Comparável de Mercado não é adequado sai reforçada pelo facto de a operação que está em causa ser, além do mais, uma operação complexa. Isto é, trata-se de uma operação que, precisamente por ser pouco delimitada − não existem, com efeito, cláusulas contratuais claras delimitadoras acerca das funções a cargo do administrador − permite que as partes a cindam, focando-se cada uma delas em dimensões distintas: (i) a Requerente na componente do controlo e da representação dos seus interesses e (ii) a ATA nas vantagens decorrentes para a A... ; o que é redutor em ambos os casos e pouco consentâneo com a expressão mais alargada da operação em causa.

Não obstante tratar-se de uma operação assumidamente verificada dentro dos grupos, sem paralelo no contexto de sociedades independentes, isso não impediria, no entanto, que, ainda assim, fosse suscetível de ser enquadrada nos preços de transferência. Todavia, nesse caso, o método apropriado para o fazer não poderia ser, realce-se, o utilizado (Método do Preço Comparável de Mercado) e muito menos com as consequências que dele foram retiradas.

O método para a determinação dos preços de transferência deveria ter sido outro, mais adequado e mais conforme a operações de tipo complexo com impacto no lucro de várias sociedades do grupo, como é a presente. Podendo unicamente, nesse cenário, os gastos com o administrador ser considerados relevantes para efeitos de aplicação dos preços de transferência e consequente correção dos lucros − não no contexto da abordagem e através do método sustentados pela ATA.

 

 

 

VI. DECISÃO

 

Termos em que acorda este Tribunal em:

 

  • julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade parcial da liquidação adicional de IRC n.º ..., relativo ao exercício de 2010;
  • julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade parcial da decisão que indeferiu a Reclamação Graciosa n.º ...;
  • anular a liquidação na parte impugnada;
  • e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do imposto indevido, ao pagamento à Requerente de uma indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia, a liquidar em execução do presente acórdão, e juros indemnizatórios devidos.

 

Custas, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, decidindo o tribunal fixar ao processo o valor de €125.000,00, por ser de valor indeterminado a parte da liquidação impugnada.

 

            Lisboa, 03-09-2014

 

Os Árbitros

 

 

Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa

 

 

António Martins

 

 

João Sérgio Ribeiro

 

 



[1] Entidade puramente fictícia.

[2] Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal 189, Ministério das Finanças, Lisboa, 2002, p. 35.

[3] Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, op. cit., p. 211.

[4] Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, op. cit., pp. 210, 211, 219 e 220.