DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. No dia 21 de Junho de 2019 a Senhora D. A..., n.º..., com domicílio fiscal no ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
2. Pretendia que fosse apreciada a legalidade do acto de liquidação adicional de IRS n.º 2019 ... referente ao ano de 2016, o qual deu origem ao documento de cobrança para acerto de contas com o n.º 2019..., no montante de €31.981,54.
3. Nomeado o presente árbitro, que aceitou o encargo, e não tendo a Requerente, nem a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 30 de Agosto de 2019.
4. Seguindo-se os normais trâmites, em 26 de Setembro a AT apresentou resposta em que, entre o mais, suscitou a excepção de intempestividade do pedido e juntou o processo administrativo (PA).
5. Notificada a Requerente, em 27 de Setembro, para se pronunciar, querendo, sobre tal excepção, veio apresentar a sua resposta em 11 de Outubro.
6. Notificadas ambas as Partes, no mesmo dia 27 de Setembro, sobre a intenção do presente árbitro dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e, do mesmo modo, dispensar a repetição das razões das Partes em alegações, veio a Requerida juntar de imediato essas alegações (a 8 de Outubro) nelas concordando expressamente com a dispensa da referida reunião.
7. Em 11 de Outubro, a Requerente apresentou a sua resposta à excepção suscitada pela AT, não se opondo à dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, mas não prescindindo de produzir alegações – até por, entretanto, a AT já o ter feito.
8. Assim, no dia 12 de Outubro, foi proferido novo Despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, fixando o prazo de 15 dias para a produção de alegações, e fixando o dia 15 de Novembro de 2019 como data limite para a prolação da decisão arbitral.
9. Em 15 de Outubro a AT veio expressamente manter as alegações anteriormente apresentadas.
10. A Requerente juntou as suas em 31 de Outubro.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
11. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.
12. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
13. A AT invocou uma excepção de intempestividade com fundamento em que, porque a Requerente pretenderia “contestar matérias ou apresentar argumento que nem sequer foram objeto de referência na reclamação, tais argumentos ou matérias não podem, agora, ser discutidos contra a AT”, “E isto porque os prazos para contestar tais matérias ou formular tais argumentos teriam de se contar do termo do prazo de pagamento do IRS apurado na liquidação n.º 2017..., efetuada em 2017-12-22, que é aquela contra a qual a Requerente reclamou graciosamente.”
14. Retorquiu a Requerente, em alegações, que o seu Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) era tempestivo, porque instaurado dentro do prazo legal por referência ao termo do prazo de pagamento voluntário das prestações tributárias (no caso, a notificação de 22 de Junho de 2019, relativa à liquidação de IRS n.º 2019..., respeitante ao ano de 2016, no valor de € 31.981,54), e que o que podia estar em causa era outra coisa: a inimpugnabilidade desse acto, por a AT o configurar como mero acto de execução.
15. É o que se verá a seguir.
III. MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
a) A Requerente é herdeira – e cabeça de casal, em resultado do falecimento de B..., seu cônjuge, em 12/01/2015 – de diversos bens imóveis geradores de rendimentos de rendas (categoria F) em 2016;
b) São também herdeiros desses mesmos imóveis os quatro filhos do casal;
c) O casal era casado no regime de comunhão geral de bens;
d) Embora o falecido cônjuge da Requerente tenha deixado testamento, tal não alterou os direitos dos herdeiros aos bens imóveis cujas rendas integravam o acto tributário impugnado;
e) Em 5 de Junho de 2017, a AT efectuou a liquidação n.º 2017..., na sequência da entrega, pela Requerente, da declaração modelo 3 de IRS relativa a 2016;
f) Em 22 de Dezembro de 2017, a AT efectuou a liquidação n.º 2017..., na sequência de procedimento de gestão de divergências instaurado em nome da Requerente;
g) Em Fevereiro de 2018 a Requerente apresentou reclamação graciosa contra esta liquidação n.º 2017...;
h) Como se pode ler na Informação que esteve na base do deferimento parcial da reclamação graciosa “A reclamante vem invocar que não foram tidos em consideração os valores relativos às retenções na fonte efetuadas pelos inquilinos das frações arrendadas, cujas rendas foram declaradas no anexo F, solicitando que as mesmas sejam consideradas”. (Adiante especificavam-se as três fracções cuja retenção fora feita em nome e com indicação do NIF do falecido marido da Requerente, as 5 fracções em que tal retenção fora feita com o NIF da herança indivisa e ainda outras três sobre as quais não havia indicação);
i) Segundo documento com data de 5 de Março de 2018, assinado por todos os herdeiros, a herança mantinha-se indivisa por sua vontade, cabendo ao cônjuge sobrevivo o recebimento da totalidade dos rendimentos prediais, com dispensa de prestação de contas;
j) Em 29 de Março de 2018, no momento em que apresentou garantia bancária para suspensão do Processo de Execução Fiscal correspondente, a Requerente juntou o acordo referido na alínea anterior, invocando que ele lhe dava o direito a deduzir a totalidade dos montantes de retenção na fonte efectuados pelos inquilinos dos imóveis da herança, incluindo os feitos em nome do seu falecido marido e os feitos em nome da herança;
k) Na Informação que serviu de suporte à decisão da Reclamação Graciossa, escreveu-se o seguinte: “não obstante os inquilinos terem declarado como NIF do beneficiário o do falecido B... (…) ou da Herança Indivisa (…), atendendo a que a reclamante é herdeira deste na proporção de 25% (…) poderão ser considerados os montantes retidos na fonte, na proporção indicada”.
l) No Parecer lavrado pela chefe de equipa sobre a Informação referida na alínea anterior fez-se a seguinte referência: “Relativamente ao restante valor, não é de aceitar, uma vez que excede a quota-parte da reclamante na herança do cônjuge.”
m) Na sequência da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa referida em f), a AT efectuou, em 15 de Março de 2019, a liquidação de IRS n.º 2019... em nome da Requerente, que deu origem ao acerto de contas n.º 2019...;
n) Nesta liquidação, a AT aceitou pela primeira vez considerar em benefício dos herdeiros as retenções na fonte efectuadas pelos inquilinos que indicaram nas suas declarações modelo 10 o NIF do falecido ou o NIF da herança;
o) Também nessa última liquidação (n.º 2019...), e só nela (em consequência da argumentação desenvolvida na decisão da reclamação graciosa), a AT considerou a Requerente herdeira na proporção de 25%, reduzindo a essa quota a dedução das retenções feitas na fonte pelos diversos inquilinos (admitindo implicitamente que os demais herdeiros pudessem deduzir o remanescente);
p) A fls. 18 do PA consta um “Detalhe de Participação de Transmissões Gratuitas” de que consta a seguinte repartição das quotas ideais dos beneficiários da transmissão: cônjuge: ¼; cada um dos 4 filhos: 3/16 (ou seja, 12/16 no total, ou ¾);
q) A Requerente pagou o montante correspondente ao acto de liquidação ora impugnado.
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Tendo em conta as posições das partes e, consequentemente, a matéria relevante para a decisão da presente causa, não há factos não provados.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e, ou, do acordo das Partes. Acrescente-se que quer a AT quer a Requerente se manifestaram expressamente sobre a suficiência probatória dos documentos juntos aos autos.
IV. DIREITO
IV.1. Questões a decidir
A questão prioritária a discutir é a da eventual preclusão, pela natureza do acto impugnado, e pela não suscitação de tais questões na reclamação graciosa que antecedeu o presente PPA, da possibilidade de a Requerente poder discutir a sua fundamentação.
Se essa questão puder ser ultrapassada, terão de se considerar os argumentos da Requerente quanto ao “erro de interpretação e aplicação da lei, nomeadamente das normas de incidência tributária e de retenção na fonte de IRS e, também, das normas de direito sucessório no que respeita à determinação da quota hereditária da Requerente, o que conduziu à desconsideração da sua meação nos bens comuns do casal”.
IV.2. Posição da Requerente
No seu PPA e nas subsequentes alegações, a Requerente defendeu, essencialmente, que:
a) Não havendo distinção na lei fiscal entre actos de liquidação originais e correctivos, não haveria limitações diferentes quanto à impugnabilidade de uns e outros, pelo que a jurisprudência dos tribunais tributários em contrário seria contra legem;
b) Sendo que tal jurisprudência não valeria para casos “que não tenham dado integral e correcta execução ao decidido relativamente à 1.ª liquidação adicional que veio a ser corrigida”, como seria o caso dos autos;
c) Em todo o caso, caberia à AT a demonstração de que “os elementos nucleares dos dois actos de liquidação tributária têm absoluta correspondência com o decidido.”;
d) “a AT criou um novo acto de liquidação na ordem jurídica assente na desconsideração da titularidade da Requerente no que respeita aos imóveis geradores de rendimentos da categoria F (o que claramente não estava em causa na liquidação adicional primitiva e, como tal, não foi sequer objecto de discussão na reclamação graciosa”;
e) Invocando a prevalência da substância sobre a forma, o que a AT faz, afinal, é defender o inverso, procurando “fazer vingar a tese de que não pode ser apreciado jurisdicionalmente um acto de liquidação (novo) em sede de IRS, ainda que o mesmo enferme de ilegalidade com base numa questão nova, pela simples razão de tal acto ter sido precedido de um outro acto de liquidação que foi parcialmente revogado”;
f) Isto quando, “em substância, os rendimentos em causa já foram tributados através do instituto da substituição tributária através do mecanismo da “retenção na fonte” do imposto efectuado pelos arrendatários dos imóveis.”;
g) Ainda para mais, a liquidação oficiosa inicial “consiste simplesmente na eliminação de todas as retenções na fonte de categoria F que constavam da declaração modelo 3 de IRS entregue pela Requerente”, uma vez que no sistema informático da AT “a existência de “divergências” relativamente ao imposto retido na fonte pelos arrendatários (rendimentos da categoria F)” implicou “apagar da declaração do contribuinte “todas” as quantias que lhe haviam sido retidas pelos inquilinos.”;
h) Na medida em que, nas suas alegações, a AT invocou “ter demonstrado a inexistência de qualquer ilegalidade do acto de liquidação de IRS n.º 2019...” admitiu que tal acto “tem autonomia “de jure” e de facto” e que “bem vistas as coisas, sempre houve dois actos de liquidação do imposto.”;
i) A AT desconsiderou que “a Requerente é cônjuge meeira, pelo que a sua “quota” na comunhão hereditária inclui a sua “meação” (resultante do regime matrimonial da comunhão de bens) e a legítima, sendo portanto incorrecto considerar, como a AT considerou, que a Requerente é herdeira do falecido B... (…) apenas na “proporção de 25%””;
j) “A AT desconsiderou as retenções de imposto (já entregue nos cofres do Estado) através da bitola que ilegalmente fixou num percentual de 25% a que diz corresponder a quota hereditária da Requerente (sem incluir a meação desta), quando, não ignora, nem podia ignorar, desde logo pelos elementos de que dispõe* sobre o regime de bens do sujeito passivo, revelados pelas declarações modelo 3 de IRS dos anos anteriores, que esta foi casada com o “de cujos” sob o regime matrimonial da comunhão geral de bens.” (*nota suprimida);
k) “A desconsideração das retenções na fonte de IRS no acto tributário impugnado gerou uma duplicação de imposto” imputável ao acto de liquidação impugnável.
l) Razões pelas quais seriam devidos juros e custas.
IV.3. Posição da Requerida
Em contrapartida a AT entendeu, na sua resposta e subsequentes alegações, que:
a) “O ato tributário ora contestado, por via arbitral, consiste numa liquidação corretiva da liquidação adicional n.º 2017..., fundada no deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada pela Requerente.”;
b) “Nesta liquidação corretiva não está refletido qualquer facto novo relativamente à anteriormente efetuada relativo ao mesmo ano (2016), tributo e sujeito passivo, mas apenas concretiza a decisão da reclamação.”
c) “Tendo sido decidida a anulação parcial de um ato de liquidação, na sequência da apreciação da reclamação graciosa, o similar ato consequente consubstancia uma mera operação material de determinação do montante do anterior ato de liquidação, limitando-se a eliminar da ordem jurídica, na exata medida em que a reclamação foi atendida, o ato tributário reclamado.”
d) Assim sendo, e nos termos do já decidido pelo Tribunal Central Administrativo Sul no Acordão proferido em 2009-11-25, no âmbito do processo n.º 2981/09, “o ato subsequente, de cariz corretivo, não consubstancia um ato tributário inovador relativamente à liquidação que foi reclamada.”
e) Discordando da decisão proferida na Reclamação Graciosa, a Requerente tinha tido, então, quanto “a matérias ou argumentos já constantes da reclamação (e, por isso, apreciados no âmbito desta)” três vias de reacção: “a) ou interpunha recurso hierárquico daquela decisão; b) ou impugnava judicialmente a decisão; c) ou impugnava pela via arbitral mas no prazo previsto no n.º 1 do art. 10.º do DL 10/2011, de 20/01, que aprovou o RJAT.”
f) Não tendo optado por alguma das duas primeiras hipóteses e tendo recorrido à via arbitral para lá desse prazo “aquela decisão consolidou-se na ordem jurídica.”
g) Por outro lado, “Se a Requerente pretendia, através da via arbitral, contestar matérias ou apresentar argumento que nem sequer foram objeto de referência na reclamação, tais argumentos ou matérias não podem, agora, ser discutidos contra a AT.”, porque “os prazos para contestar tais matérias ou formular tais argumentos teriam de se contar do termo do prazo de pagamento do IRS apurado na liquidação n.º 2017..., efetuada em 2017-12-22, que é aquela contra a qual a Requerente reclamou graciosamente.”
h) “o artigo 19.º do CIRS determina que os rendimentos que pertençam em comum a várias pessoas, são imputados a estas na proporção das respetivas quotas, que se presumem iguais quando indeterminadas.”
i) “tendo os imóveis integrantes da herança indivisa gerado rendimentos prediais, passíveis de tributação, tem a ora Requerente, bem como os demais herdeiros, e enquanto a partilha não for efetivada, de declarar os rendimentos na sua proporção de titularidade, no respetivo anexo F da declaração modelo 3 de IRS.”
j) “Acresce que a declaração efetuada pela ora Requerente e demais herdeiros e junta aos presentes autos, obriga os seus intervenientes, mas não afasta a norma fiscal plasmada no artigo 19.º do CIRS.”
k) Não havendo pagamento indevido, não haveria que pagar quaisquer juros indemnizatórios.
IV.4. Ponderação dos argumentos das Partes
A) Sobre os argumentos da Requerente:
a) Embora a invocação da natureza contra legem da distinção entre actos originários e correctivos não seja de sufragar, seja nebulosa a distinção que tentou apresentar sobre a correcção da liquidação decorrente da decisão sobre a reclamação graciosa, e despicienda a questão do ónus da demonstração da coincidência dos elementos essenciais das liquidações, a Requerente tem razão quanto ao essencial: no caso dos autos, a liquidação impugnada perante este Tribunal Arbitral (a liquidação n.º 2019...) não é um segmento de uma liquidação anterior (a liquidação n.º 2017...) – uma parte divisível dessa anterior liquidação –, mas uma liquidação com um fundamento inteiramente diferente do desta.
Recordem-se os factos: a Requerente apresentou Reclamação Graciosa de uma liquidação de IRS (a liquidação n.º 2017...) que tinha desconsiderado os montantes retidos por arrendatários de prédios seus e de seu marido, porque tais montantes foram referidos ao nome e NIF deste (entretanto falecido) ou ao NIF da herança indivisa. Com base na Informação que sustentou a decisão então proferida, a AT reconheceu a possibilidade de dedução desses montantes – em vez de os desconsiderar, como fizera na liquidação n.º 2017...– mas limitou-os segundo o que presumiu ser a quota da Requerente na herança de seu marido. Assim, a liquidação n.º 2019... afasta-se da anterior, quer no montante do que considera, quer no fundamento do que desconsidera.
Ainda que haja entre as duas liquidações identidade de sujeitos, não há identidade de objectos nem identidade de decisão , e não há – nem pode haver – qualquer limitação à impugnação desta nova argumentação da AT no prazo próprio.
Aliás, na própria decisão citada pela AT em abono dessa limitação , se reconhecia que “sendo evidente a possibilidade que lhe teve de ser conferida de sindicar o acto decorrente da anulação parcial, tal possibilidade, no entanto, tem de se limitar àquilo em que tais actos forem inovadores” . Ora, a invocação de uma quota hereditária da Requerente como forma de limitar um direito que antes não tinha sido reconhecido – questão sobre a qual esta não tinha podido antes manifestar-se porque não fazia parte dos fundamentos da liquidação n.º 2017 ... – constitui uma óbvia inovação.
b) Também quanto ao fundo tem razão a Requerente: a quota hereditária que a AT usou para circunscrever os seus direitos de dedução das retenções efectuadas pelos arrendatários dos prédios incluídos na herança aberta por falecimento do seu marido ignorou ostensivamente os seus direitos originários como proprietária desses prédios em razão do regime de bens do casamento. Aliás, é significativo que a AT nenhum argumento tenha invocado contra essa pretensão da Requerente, nem na sua Resposta, nem nas suas alegações.
c) E tem ainda razão a Requerente quando invoca que a posição da AT corresponde a defender uma dupla tributação: o imposto devido foi retido pelos arrendatários e entregue ao Estado (ainda que imputado a diferentes NIF, que foi o que despoletou o processo de correcção oficiosa que culminou na liquidação n.º 2017...) e subsequentemente voltou a ser cobrado, por se ter impedido, na liquidação n.º 2019..., a sua dedução no IRS da Requerente. Ou seja: é verdade que entre essas duas liquidações houve uma mesma coisa que diminuiu: o montante que a Requerente tinha de pagar (e podia acrescentar-se: a dimensão do erro da AT), que foi maior na primeira do que na segunda. Mas não é seguramente por essa dimensão ser menor que a segunda liquidação pode ser vista como uma mera correcção (e consequência) da primeira.
B) Sobre os argumentos da AT:
a) Como se referiu, a AT argumentou por excepção que na liquidação impugnada (a liquidação n.º 2019...) “não está refletido qualquer facto novo relativamente à anteriormente efetuada relativo ao mesmo ano (2016), tributo e sujeito passivo” e que essa liquidação “apenas concretiza a decisão da reclamação.”
Nessa medida a AT equivocou-se: a liquidação n.º 2019... assentou num fundamento previamente não invocado – o da quota ideal da Requerente como herdeira, que foi pela primeira vez usada nessa liquidação para limitar as deduções das importâncias retidas pelos arrendatários. Em consequência, a jurisprudência invocada pela AT em abono deixou de ser pertinente: ela vale expressamente para situações em que não há alteração de fundamentação.
b) A AT equivocou-se igualmente quando pretendeu que “Se a Requerente pretendia, através da via arbitral, contestar matérias ou apresentar argumento que nem sequer foram objeto de referência na reclamação, tais argumentos ou matérias não podem, agora, ser discutidos contra a AT, isto porque os prazos para contestar tais matérias ou formular tais argumentos teriam de se contar do termo do prazo de pagamento do IRS apurado na liquidação n.º 2017..., efetuada em 2017-12-22, que é aquela contra a qual a Requerente reclamou graciosamente.” (negrito aditado).
Isso só seria assim, claro, em relação a quaisquer fundamentos que já tivessem sido invocados pela AT nessa prévia liquidação. Ora, como se viu, tendo a questão da limitação das retenções efectuadas pelos arrendatários em função da quota hereditária da Requerente sido totalmente alheia a tal liquidação n.º 2017..., não podia ter constituído motivo da reclamação contra ela apresentada. Só no quadro da impugnação da liquidação n.º 2019 ... essa questão se tornou relevante e só a propósito dela podia, portanto, ser discutida.
c) Por outro lado, por impugnação, a AT referiu que “o artigo 19.º do CIRS determina que os rendimentos que pertençam em comum a várias pessoas, são imputados a estas na proporção das respetivas quotas, que se presumem iguais quando indeterminadas.”
O argumento falha desde logo porque, tendo em conta que o casal tinha 4 filhos, mesmo que as quotas da Requerente e de cada um deles fossem tidas como indeterminadas, e, portanto, presumidas iguais, a quota da Requerente não seria de 25% (4 filhos + Requerente = 5; 100% : 5 = 20%). O que explica o desvio é o disposto no artigo 2139.º do Código Civil: “A partilha entre o cônjuge e os filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes quantos forem os herdeiros; a quota do cônjuge, porém, não pode ser inferior a uma quarta parte da herança.” (negrito aditado). Ter em conta o regime da sucessão legitimária sem ter em conta o regime de bens do casamento, porém, constitui errada aplicação da lei.
d) Referiu também a AT que “tendo os imóveis integrantes da herança indivisa gerado rendimentos prediais, passíveis de tributação, tem a ora Requerente, bem como os demais herdeiros, e enquanto a partilha não for efetivada, de declarar os rendimentos na sua proporção de titularidade, no respetivo anexo F da declaração modelo 3 de IRS.”
Acontece que, em razão do regime de bens do casamento da Requerente – que a AT tinha obrigação de conhecer, mas que se desconhecesse devia ter solicitado no procedimento de determinação da correcção logo que entendeu que tal regime devia relevar, nunca poderia a AT, sem errar na aplicação da lei, presumir que a “proporção de titularidade” da Requerente nos rendimentos prediais pudesse ser de 25%.
É quanto basta para dar razão à Requerente e reconhecer o invocado erro de interpretação e aplicação da lei.
IV.5. Conclusões
a) A primeira conclusão a retirar é a de que o diagnóstico que a AT fez do que estava em causa no PPA assentou num equívoco: por causa da sucessão de actos de liquidação, e da diminuição do montante de imposto tido como devido pela Requerente, entendeu a AT que se tratava apenas de uma passagem de mais (na liquidação n.º 2017...) para menos (na liquidação n.º 2019...), quando do que se tinha tratado era da alteração do que estava em causa – e a um duplo título: por um lado, quanto aos montantes a considerar como dedutíveis, houve o reconhecimento de que as deduções efectuadas em nome (e com os NIFs) do falecido e da herança aproveitavam à, então, reclamante; por outro, quanto à repartição dessas deduções, houve a fixação de um limite de ¼ para os montantes que podiam ser deduzidos pela Requerente.
b) A segunda conclusão a retirar é que não há nada de segmentável ou divisível – em termos de que a amputação de uma parte mantenha o remanescente – na passagem de um acto de liquidação, feito em nome de um contribuinte X, que desconsidera as retenções na fonte em nome de outro contribuinte Y (seu cônjuge já falecido) ou em nome da herança indivisa, para outro acto de liquidação que reconhece essas retenções na fonte feitas em nome do falecido Y e da herança, mas as distribui pelas quotas ideais do contribuinte X e dos filhos do casal.
c) A terceira conclusão é que este segundo acto de liquidação, sendo embora um acto correctivo do primeiro, é (foi) inovador naquilo que é essencial: o seu fundamento. Quanto a este, tem de ser, portanto, impugnável a se, sob pena de se criar uma excepção à tutela jurisdicional efectiva que a Constituição garante (artigo 268.º, n.º 4). O que, diga-se, é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência.
d) A quarta conclusão é a de que a AT descurou um elemento de facto relevante para a definição da situação tributária da Requerente: o regime de bens do seu casamento com o titular original dos rendimentos prediais, que implicava que, em relação aos bens cujos rendimentos a AT pretendeu imputar, como era seu dever, nos termos da lei, a Requerente não fosse apenas herdeira (e, portanto, adquirente derivada), mas proprietária originária. Justamente por isso, foi defeituosa a aplicação que a AT fez da lei.
V. JUROS
O artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que
“São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
Uma vez que já se estabeleceu que o pagamento indevido resultou de erro imputável aos serviços da Administração Tributária, os juros são devidos.
Como a Requerente procedeu ao pagamento do montante liquidado no acto impugnado, tem direito, segundo a jurisprudência uniforme do CAAD, e como pediu, à devolução desse montante, bem como ao recebimento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
VI. DECISÃO
Termos em que decide este Tribunal Arbitral singular:
a) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular a liquidação n.º 2019..., de 15 de Março de 2019;
b) Condenar a Requerida a devolver o montante pago acrescido dos juros indemnizatórios;
c) Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
VII. VALOR DO PROCESSO
Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ex vi do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em €31.981,54 (trinta e um mil novecentos e oitenta e um euros e cinquenta e quatro cêntimos).
VIII. CUSTAS
Custas a cargo da Requerida, no montante de €1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 4, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o presente pedido foi julgado inteiramente procedente.
Lisboa, 15 de Novembro de 2019
O Árbitro Singular
Victor Calvete
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 execpto em transcrições que o sigam.