Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 478/2014-T
Data da decisão: 2014-12-09  IVA  
Valor do pedido: € 803.724,88
Tema: Competência dos Tribunais Arbitrais para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo - artigo 145.º do CPPT
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr.ª Maria da Graça Martins e Dr. Paulo Lourenço, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 16-09-2014, acordam no seguinte:

 

 

1. Relatório

 

No dia 11-07-2014, a sociedade "A … SA", NIPC …, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 11-07-2014.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou os árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 31-08-2014.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo ficou constituído em 16-09-2014.

A Requerente pede a declaração de legalidade dos seguintes actos:

 

 

– liquidação de IVA n. …, no valor de € 692.866,28;

– liquidação de juros compensatórios n.º …, no valor de € 110.858,60;

– decisão de indeferimento da reclamação graciosa respeitante a essas liquidações.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, suscitando «a excepção dilatória de inexistência dos actos objecto do pedido arbitral», por as liquidações impugnadas terem sido anuladas em 09-09-2014, antes da constituição do Tribunal Arbitral.

A Requerente foi notificada para responder por escrito a esta excepção, o que fez, dizendo, em suma, o seguinte:

– teve de realizar várias diligências junto da Autoridade Tributária e Aduaneira para obter por via administrativa a anulação das liquidações;

– o recurso ao Tribunal Arbitral surgiu, para a autora, como única via possível depois das constantes recusas por parte da ATA em proceder à anulação das referidas liquidações e na sequência dos diversos actos processuais realizados (direito de audição e reclamação graciosa);

– o direito da autora a uma decisão em matéria tributária por parte do CAAD decorre do princípio constitucional do acesso à tutela jurisdicional efectiva dos direitos, consagrado no artigo 20.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e é garantido pelo artigo 9.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária;

– mesmo depois da interposição da presente acção ainda notificou os administradores da autora em 25-07-2014 para o direito de audição prévia em possíveis processos de reversão fiscal;

– em 18-08-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira comunicou à Requerente tinha sido proferido «despacho no sentido de revogação das liquidações postas em causa no processo arbitral acima identificado. Sem prejuízo de, no futuro, vir/em a ser praticados outro/s acto/s com o fundamento usado naqueles que agora foram revogados”, o que é reafirmado na comunicação feita ao CAAD pela Autoridade Tributária e Aduaneira;

– é para a Requerente ponto essencial e fundamental da acção interposta o reconhecimento da lesão ao seu direito à dedução do IVA incorrido causado pelas liquidações “sub judice”;

– a anulação das liquidações, em função do próprio texto proferido pela ATA, poderá portanto subsumir-se como transitória o que impede que esta anulação esgote o pedido formulado pela autora em Tribunal Arbitral;

– a anulação voluntária – que nada garante que seja definitiva - das liquidações que emite permitiria à Autoridade Tributária e Aduaneira utilizar discricionariamente esta faculdade retirando assim à arbitragem o papel fundamental que assumiu na gestão / decisão deste tipo de litígios;

– além das liquidações serem ilegais, com a posição agora comunicada a ATA parece estar a preparar-se para violar também o artigo 60.º do Código de Processo e Procedimento Tributário que estabelece a definitividade dos actos tributários;

– a Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade das liquidações, pois somente deste modo pode obter uma decisão definitiva que lhe permita fazer face ao prejuízo causado pela Autoridade Tributária e Aduaneira e exercer de modo pleno e efectivo do seu direito à recuperação do IVA deduzido;

– o presente Tribunal tem competência para apreciar este pedido nos termos do artigo 2.º, n.º 1, a) do RJAT;

– uma decisão favorável ao sujeito passivo será a única forma da situação tributária da autora se encontrar salvaguardada, de uma vez por todas, perante a arbitrariedade e desigualdade de meios ao dispor da Autoridade Tributária e Aduaneira;

– obtendo-se assim a reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivessem sido emitidas as liquidações ilegais por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira;

– no mesmo sentido da emissão de uma decisão por parte de CAAD apontam o princípio da economia processual e o princípio do evitar de actos inúteis e dilatórios constantes dos artigos 55.º e 57.º n.º1, ambos da LGT e artigo 10º do Código de Processo Administrativo, aplicáveis subsidiariamente nos termos do artigo 29º nº1 alínea a) e d) do RJAT;

– tal decisão garante que a autora não assistirá à “ressuscitação” das liquidações sendo mais uma vez obrigada a percorrer o caminho que a ATA a obrigou a percorrer até, finalmente, proceder à anulação das liquidações;

– deverão tribunal arbitral pronunciar-se desfavoravelmente em relação à excepção invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, já que a Requerente tem direito a uma decisão com força de caso julgado sobre a sua situação tributária nos termos do artigo 97.º, n.º 1, da LGT, sendo essa decisão o garante que “o desaparecimento” das liquidações da ordem jurídica é final e definitivo.

 

Por despacho de 04-11-2014, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinado que o processo prosseguisse com alegações.

Nenhuma das Partes apresentou alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Não se vislumbra qualquer nulidade.

Prioritariamente, há que apreciar a questão da excepção suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira de cuja solução depende a possibilidade de conhecimento do mérito da pretensão da Requerente.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados com relevância para apreciação da excepção

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Autoridade Tributária e Aduaneira, na sequência de uma inspecção tributária que fez à Requerente, efectuou a liquidação adicional de IVA n.º …, no valor de € 692.866,28 e a liquidação de juros compensatórios n.º …, no valor de € 110.858,60, ambas com data limite de pagamento voluntário de 30-06-2013 em que é sujeito passivo a Requerente (documentos n.ºs 1 e 2 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  2. Em 20-09-2013, a Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações referidas (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 31-12-2013 do Director de Finanças de Lisboa Adjunto em regime de substituição (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. Em 11-07-2014, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo, em que pede que seja declarada a nulidade dos referidos actos de liquidação de IVA e juros compensatórios e de indeferimento da reclamação graciosa;
  5. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 11-07-2014;
  6. Por despacho de 13-08-2014, o Senhor Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira determinou a revogação das referidas liquidações;
  7. Em 18-08-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira comunicou ao CAAD a revogação das liquidações n.º … e nº …, acrescentando estes actos foram revogados «sem prejuízo de, no futuro, virem a ser praticados outro/s acto/s com o fundamento usado naqueles que agora foram revogadosx8
  8. As liquidações referidas foram anuladas em 09-09-2014.
  9. Na resposta apresentada neste processo a Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou uma excepção, baseada na revogação dos actos referidos:
  10. Notificada para se pronunciar sobre a excepção, a Requerente respondeu, mantendo a intenção de prosseguir com o processo e terminando pedindo que o tribunal arbitral se pronuncie desfavoravelmente em relação à excepção invocada pela ATA «já que a autora tem direito a uma decisão com força de caso julgado sobre a sua situação tributária nos termos do artigo 97.º n.º1 da LGT, sendo essa decisão o garante que “o desaparecimento” das liquidações da ordem jurídica é final e definitivo6)

 

2.2. Factos não provados

           

            Não há factos com relevo para a apreciação da excepção que não se tenham provado.

 

            2.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

            A fixação da matéria de facto baseou-se nos documentos indicados para cada ponto e no sistema informático do CAAD.

 

            3. Matéria de direito 

           

            A Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, no seu artigo 124.º, n.ºs 1 e 2, autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, estabelecendo como directriz que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

            Desde logo, por esta norma se vê que não foram atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todas as competências que são atribuídas aos tribunais tributários para apreciação de todos os litígios em matéria tributária.

            O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), emitido ao abrigo daquela autorização legislativa, limitou as competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a algumas das que estão previstas no Código de Procedimento e de Processo Tributário para o processo de impugnação judicial, designadamente a impugnação de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta e de actos de fixação da matéria tributável e de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais. ( [1] )

            Ficaram, assim, fora das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todas as restantes competências atribuídas aos tribunais tributários, inclusivamente as que derivam da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, prevista no 145.º do CPPT, que o Governo estava autorizado a incluir, mas não incluiu, no âmbito da arbitragem tributária.

            Assim, o âmbito dos processos arbitrais tribunais define-se pelo âmbito o processo de impugnação judicial, com as limitações que resultam dos termos do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, pois não se incluem neste artigo várias das competências dos tribunais tributários referidas no artigo 97.º, n.º 1, do CPPT que são exercidas através do processo de impugnação judicial.

O que significa, assim, que as competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD se limita à declaração de ilegalidade de actos dos tipos referidos no art. 2.º do RJAT, quer directamente, quer indirectamente, através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau ou terceiro grau que apreciem a legalidade de actos de liquidação, como se infere das referências que no artigo 10.º, n.º 1 do mesmo diploma se lhes faz.

Estas competências para a apreciação da legalidade de actos são complementadas com as que com elas estão conexas em processo de impugnação judicial, designadamente a condenação em juros indemnizatórios e em indemnização por garantia indevida, como têm vindo a entender pacificamente os tribunais arbitrais.

Mas, à face do RJAT, é inequívoco que um acto de um dos tipos previstos no artigo 2.º é imprescindível como objecto do processo arbitral, em que se visa apurar da sua ilegalidade, estando-se, assim, perante um contencioso de anulação de actos, estruturado segundo o modelo processual anterior à reforma do contencioso administrativo de 2002-2004, que continua a vigorar no contencioso tributário, já que não foi ainda efectuada a várias vezes anunciada sua adaptação ao novo regime processual administrativo.

 Sendo assim, tem de concluir que tem razão a Autoridade Tributária e Aduaneira ao colocar a excepção, que, na terminologia mais adequada utilizada pelos tribunais administrativos e fiscais, é da falta de objecto do processo, que num contencioso tributário de anulação, não pode deixar de ser um acto de natureza tributária.

A falta de um acto como objecto do processo num meio processual que tem por função a declaração de ilegalidade de actos gera uma situação de impossibilidade da lide, como sempre entendeu pacificamente o Supremo Tribunal Administrativo. ( [2] )

A pretensão da Requerente de, apesar da revogação dos actos de liquidação, ver apreciada jurisdicionalmente a questão da possibilidade de a Autoridade Tributária e Aduaneira, no futuro, praticar actos sobre a mesma situação jurídica poderá enquadrar-se no âmbito da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo prevista no artigo 145.º do CPPT, mas é seguro que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD não têm competência para apreciar.

Pelo exposto, tem razão a Autoridade Tributária e Aduaneira, ao defender que a revogação dos actos cuja declaração de ilegalidade é pedida obsta à apreciação da sua legalidade.

A impossibilidade da lide, por carência de objecto, tem como consequência processual a extinção da instância, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

4. Decisão

 

            Nestes termos, acordam em julgar procedente a excepção suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira e declarar extinta a instância.

 

            5. Valor do processo 

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 803.724,88.

 

6. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 11.628,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Lisboa, 09-12-2014

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 

(Maria da Graça Martins)

 

 

 

 

 

(Paulo Lourenço)

 

 



[1]                             Na redacção inicial, do RJAT previa também competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para a apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegurasse a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior, mas esta norma veio a ser revogada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro.

[2]                             Neste sentido, podem ver-se, entre muitos, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-1989, processo n.º 3039; de 10-1-1990, processo n.º 10416; de 5-12-1990, processo n.º 4527; 19-6-1991, processo n.º 12973; de 19-3-1997, processo n.º 20981.