DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. Pedido
A..., pessoa coletiva n.º ... com sede na ..., nº..., ..., ...-... ..., doravante designada por Requerente, requereu, em 18-03-2019, ao abrigo do disposto nos art.ºs 4º e 10º, nº 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista à anulação dos atos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante IVA):
a) Número 2018... referente ao IVA do período 20143T;
b) Número 2018... referente a juros compensatórios sobre o montante liquidado pela liquidação nº 2018... referente ao IVA do período 20143T;
c) Número 2018... referente ao IVA do período 201406T;
d) Número 2018... referente a juros compensatórios sobre o montante liquidado pela liquidação nº 2018... referente ao IVA do período 201406T;
e) Número 2018... referente ao IVA do período 201409T;
f) Número 2018... referente a juros compensatórios sobre o montante liquidado pela liquidação nº 2018... referente ao IVA do período 201409T;
g) Número 2018... referente ao IVA do período 201412T;
h) Número 2018... referente a juros compensatórios sobre o montante liquidado pela liquidação nº 2018... referente ao IVA do período 201412T.
A Requerente alega, no essencial, o seguinte:
O Relatório de Inspeção que deu origem às liquidações impugnadas concluiu que a Requerente não se encontrava isenta de IVA ao abrigo da al. 8) do art. 9º do Código do IVA, pelo facto de um dos vogais da sua direção, o Sr. B..., auferir rendimentos da prestação de serviços à Requerente, na qualidade de coordenador/treinador de alta competição;
Tal circunstância determinaria, segundo a interpretação do Relatório de Inspeção, que um membro dos corpos gerentes da Requerente teria “interesse direto ou indireto nos resultados” da Requerente, o que implicava a não verificação da condição estabelecida na al. a) do art. 10º do CIVA para a isenção ao abrigo da al. 8) do art.º 9º do mesmo Código;
A Requerente é uma coletividade desportiva, dedicando-se inter alia ao ensino e fomento da prática da natação, do ponto de vista recreativo e competitivo;
O Sr. B... presta serviços à Requerente desde 1993, tendo começado como professor nas escolas de natação;
Ao tempo dos factos tributários alegados, o mesmo o Sr. B... era coordenador, treinador e responsável técnico da secção de competição da Requerente;
O mesmo Sr. B... tornou-se membro da direção da Requerente em 2002;
O serviço que o Sr. B... presta à Requerente é um serviço necessário à sua atividade, que teria sempre que ser prestado por alguém;
O serviço em causa não é um serviço de direção ou gestão da associação, não tendo a respetiva prestação ou remuneração sofrido qualquer alteração originada pela aquisição da qualidade de vogal da direção por parte do Sr. B...;
O cargo de vogal da direção é prestado graciosamente por todos os membros;
O Sr. B... não aufere qualquer participação nos resultados de exploração ou prémio variável em função dos resultados da atividade;
Não estamos perante uma participação no resultado líquido da Requerente por parte de um membro da sua direção, mas sim perante uma pura e simples prestação de serviços à associação, não dependente de quaisquer resultados;
2. Resposta
A) Por exceção
Na sua resposta ao pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira começa por deduzir a exceção de caducidade do direito de ação, ao abrigo dos artigos 102º, n.º 1 e 20º do CPPT.
De acordo com o argumentado pela Requerida, o prazo para a Requerente interpor o presente pedido de pronúncia arbitral teria terminado no dia 17 de março de 2018. Tendo a Requerente efetuado o mesmo pedido no dia 18 de março de 2018, o pedido teria sido deduzido após o termo do prazo, logo seria extemporâneo.
B) Por impugnação
Já por impugnação, a Requerida remete para o que é dito no relatório de inspeção tributária, em que se alega fundamentalmente:
Dispõe o n.º 1 do artigo 11.º do CIRC que “estão isentos de IRC os rendimentos diretamente derivados do exercício de atividades culturais, recreativas e desportivas”.
A isenção prevista naquele número só pode beneficiar associações legalmente constituídas para o exercício dessas atividades e desde que se verifiquem cumulativamente as condições abaixo, conforme o n.º 2 do artigo:
a) Em caso algum distribuam resultados e os membros dos seus órgãos sociais não tenham, por si ou interposta pessoa, algum interesse direto ou indireto nos resultados de exploração das atividades prosseguidas;
b) Disponham de contabilidade ou escrituração que abranja todas as suas atividades e a ponham à disposição dos serviços fiscais, designadamente para comprovação do referido na alínea anterior.
Para que fique prejudicado o direito àquela isenção, basta que um só membro dos órgãos estatutários tenha interesse direto ou indireto nos resultados da atividade económica prosseguida.
Por resultado das atividades económicas prosseguidas deve entender-se o chamado resultado líquido do exercício, que consiste na diferença entre os proveitos gerados e as perdas suportadas em virtude do exercício daquelas atividades.
A existência de um interesse direto dos membros dos órgãos estatutários nos resultados da atividade desenvolvida pressupõe o recebimento de uma parte dos lucros gerados por essa atividade.
Por sua vez, a existência de um interesse indireto dos membros dos órgãos estatutários está associada à obtenção de rendimentos/benefícios que de alguma forma estejam relacionados com a atividade económica prosseguida mas que não sejam diretamente resultantes desta. Tal poderá verificar-se, por exemplo, se um membro dos órgãos estatutários prestar serviços regulares à associação, como trabalhador independente, que estejam relacionados com a referida atividade, ou ainda se existirem membros dos órgãos estatutários que sejam detentores de partes sociais de empresas, onde exerçam cargos de gestão e com as quais a associação tenha relações comerciais frequentes no âmbito da atividade económica prosseguida.
Em ambos os casos, poderá considerar-se que existe interesse dos membros dos órgãos estatutários nos resultados de exploração da associação, uma vez que obtêm rendimentos que estão fortemente dependentes da atividade por esta desenvolvida.
Os órgãos estatutários podem ser remunerados, mas apenas pela função que desempenham nesses órgãos e desde que essa remuneração seja feita através de pagamentos fixos mensais, que não sejam determinados em função dos resultados de exploração.
O CIVA dispõe no n.º 8 do seu art. 9.º que estão isentas deste imposto “as prestações de serviços efetuadas por organismos sem finalidade lucrativa que explorem estabelecimentos ou instalações destinados à prática de atividades artísticas, desportivas, recreativas e de educação física a pessoas que pratiquem essas atividades”.
O art. 10.º do mesmo código diz que “para efeitos de isenção, apenas são considerados como organismos sem finalidade lucrativa os que, simultaneamente: a) Em caso algum distribuam lucros e os seus corpos gerentes não tenham, por si ou interposta pessoa, algum interesse direto ou indireto nos resultados da exploração; b) Disponham de escrituração que abranja todas as suas atividades e a ponham à disposição dos serviços fiscais, designadamente para comprovação do referido na alínea anterior; c) Pratiquem preços homologados pelas autoridades públicas ou, para as operações não suscetíveis de homologação, preços inferiores aos exigidos para análogas operações pelas empresas comerciais sujeitas de imposto; d) Não entrem em concorrência direta com sujeitos passivos do imposto.
Constata-se então que o CIVA também condiciona a isenção deste imposto à inexistência de algum interesse direto ou indireto nos resultados da exploração das associações por parte dos seus órgãos sociais.
Analisada a informação disponível relativa aos órgãos sociais em exercício nos períodos em análise, assim como a informação sobre os beneficiários de remunerações pagas pelo sujeito passivo (a Requerente), constata-se que o vogal da direção B... auferiu em 2014, pago pela Requerente, um rendimento de 16.500,00 euros, enquadrado na categoria B do IRS;
Analisados os recibos eletrónicos emitidos pelo Sr. B... constata-se que estes valores são recebidos unicamente como contrapartida da função de coordenador de treinadores alta competição que desempenha no A...;
Confrontado o presidente da direção com esta realidade, este respondeu que nunca houve qualquer interesse económico no resultado da Requerente por parte do vogal em causa, que lhe terá sido atribuído tal cargo apenas a título de reconhecimento do seu mérito como coordenador/treinador da competição.
Assim, também em sede de IVA está prejudicado o direito à isenção, tendo-a o A... aplicado indevidamente nas prestações de serviços relacionadas com o exercício da sua atividade.
3. Tramitação subsequente
Apresentada a resposta por parte da Requerida, e suscitada nela a exceção de caducidade do direito de ação, a Requerente apresentou requerimento em que, respondendo a tal alegação, argumentou pela não caducidade do direito de ação.
O requerimento, extemporâneo, foi aceite em nome do princípio do aproveitamento dos atos.
Em despacho de 04-07-2019, o Tribunal propôs às Partes a dispensa da reunião prevista no artigo 18º do RJAT e a prescindência de apresentação de alegações finais, pelo facto de não se afigurar existir matéria de facto quanto à qual exista necessidade de produção de prova além da documental incorporada no processo e por a Requerente já ter exercido quanto à matéria de exceção suscitada o direito ao contraditório.
Tendo as Partes anuído tacitamente à tramitação proposta, foi, por despacho do Tribunal de 01-11-2019 determinada a não realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT e a prescindência de alegações finais.
II – SANEAMENTO
O Tribunal arbitral singular foi regularmente constituído em 29.05.2019, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n.º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal arbitral é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.
A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n.º 1 do RJAT.
Não foram identificadas nulidades no processo.
III – QUESTÕES A DECIDIR
A questão a decidir é a de saber se, sendo um determinado membro da direção de uma associação desportiva, como a Requerente, simultaneamente, um prestador de serviços técnicos a essa mesma associação de que é dirigente, e auferindo uma remuneração fixa pelos serviços prestados, tal situação configura uma participação indireta do dirigente nos resultados da associação, sendo esse facto fator impeditivo de poder esta beneficiar da isenção estabelecida na al. 8) do art. 9º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado em vigor.
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A. FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES
São os seguintes os factos considerados provados e com relevância para a decisão da causa:
1º: A Requerente é uma associação sem fins lucrativos e de escopo desportivo, dedicando-se ao ensino e fomento da prática da natação;
2º: No âmbito da sua atividade, a Requerente oferece aulas e treinos de natação;
3º: B... iniciou a sua prestação de serviços à requerente, como professor de natação, em 1993;
4º: À data dos factos tributários alegados, B... exercia as funções de:
1) Técnico e treinador de alta competição, as quais se concretizam em planear e coordenar as atividades competitivas de acordo com o calendário desportivo regional da Associação de Natação do ... de Portugal e com o calendário desportivo nacional da Federação Portuguesa de Natação; determinar objetivos e estratégias com vista à obtenção de resultados desportivos; monitorizar e avaliar o desempenho desportivo dos atletas e do corpo técnico; representar o Clube nas reuniões técnicas promovidas pela Associação de Natação do ... de Portugal e pela Federação Portuguesa de Natação, para definição de estratégias desportivas regionais e nacionais e definir os calendários desportivos; assegurar o bom funcionamento desportivo da secção de competição, promovendo, divulgando e projetando os sucessos desportivos dos atletas.
2) Treinador principal dos escalões de juvenis, jovens e seniores, as quais se concretizam em elaborar o plano anual de treino; elaborar as subestruturas do plano anual; elaborar o plano anual de competição; planear a sessão de treino e a participação competitiva; organizar, dirigir e avaliar a sessão de treino; realizar programas elementares de avaliação e controlo do treino e da capacidade de rendimento desportivo do praticante e da equipa; organizar, orientar e avaliar a participação dos praticantes em competição; participar no planeamento plurianual da atividade de treino; participar na gestão da equipa técnica; participar na identificação dos talentos e na construção desportiva dos praticantes; promover e participar na formação dos treinadores.
5º: Desde 2002 e até à data dos factos tributários alegados, o mesmo B... foi membro da direção da Requerente;
6º: Ao tornar-se membro da direção, a remuneração percebida pelo dirigente B... pelos serviços prestados enquanto técnico não sofreu qualquer alteração;
7º: A remuneração auferida pelo dirigente B... não compreende qualquer prémio ou parte variável em função dos resultados de exploração da Requerente;
8º: O vogal da direção B... auferia ao tempo dos factos tributários alegados uma remuneração fixa mensal (avença) no valor de 16.500,00 euros;
9º: No total, em 2014, a Requerente suportou um custo de 192.721,83 euros com a remuneração de serviços especializados, nos quais se incluem professores e técnicos de natação;
10º: O vogal da direção B... não auferiu, no ano a que respeitam as liquidações de imposto impugnadas, quaisquer outras remunerações, pelas funções de membro da direção ou a outro título, para além da remuneração dos seus serviços como técnico de natação.
Os factos dados por provados foram assim considerados com base na prova documental junta ao processo.
Não existem factos não provados com relevo para a decisão da causa.
B. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
De acordo com a al. 8) do art.º 9º do CIVA, estão isentas de imposto “As prestações de serviços efetuadas por organismos sem finalidade lucrativa que explorem estabelecimentos ou instalações destinados à prática de atividades artísticas, desportivas, recreativas e de educação física a pessoas que pratiquem essas atividades”.
De acordo com o art. 10º do mesmo código, quando alguma das isenções previstas no art. 9º está dependente da qualidade de “organismo sem finalidade lucrativa” do sujeito passivo, este só será considerado como tal se cumprir cumulativamente várias condições aí previstas, entre as quais se encontra a da al. a), que consiste em, em caso algum, a entidade sujeito passivo distribuir lucros e os seus corpos gerentes não terem, por si ou interposta pessoa, algum interesse direto ou indireto nos resultados da exploração.
A Requerida sustenta, para fundamentar os atos de liquidação impugnados, que a remuneração auferida pelo vogal da direção B... pelos serviços prestados à Requerente configura uma participação indireta do mesmo nos resultados de exploração da Requerente.
Para fundamentar esta conclusão, a Requerida alega que “a existência de um interesse indireto dos membros dos órgãos estatutários está associada à obtenção de rendimentos/benefícios que de alguma forma estejam relacionados com a atividade económica prosseguida mas que não sejam diretamente resultantes desta. Tal poderá verificar-se, por exemplo, se um membro dos órgãos estatutários prestar serviços regulares à associação, como trabalhador independente, que estejam relacionados com a referida atividade, ou ainda se existirem membros dos órgãos estatutários que sejam detentores de partes sociais de empresas, onde exerçam cargos de gestão e com as quais a associação tenha relações comerciais frequentes no âmbito da atividade económica prosseguida.
Em ambos os casos, poderá considerar-se que existe interesse dos membros dos órgãos estatutários nos resultados de exploração da associação, “uma vez que obtêm rendimentos que estão fortemente dependentes da atividade por esta desenvolvida”.
A norma em causa – a al. a) do art.º 10º do CIVA – assenta no conceito de “interesse direto ou indireto dos corpos gerentes de uma entidade sem fins lucrativos nos respetivos resultados de exploração.”
Existe no Código do IRC uma disposição semelhante, a al. c) do nº 3 do art.º 10º, a qual determina que a isenção concedida no nº 1 do mesmo preceito (isenção de caráter subjetivo concedida às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, às instituições particulares de solidariedade social e às pessoas coletivas de mera utilidade pública) depende da verificação do requisito, entre outros, de “inexistência de qualquer interesse directo ou indirecto dos membros dos órgãos estatutários, por si mesmos ou por interposta pessoa, nos resultados da exploração das actividades económicas por elas prosseguidas.”
E numa formulação em tudo semelhante, o art.º 11º do mesmo código, que estabelece a isenção das associações legalmente constituídas com fins culturais, recreativos e desportivos, diz, no seu nº 2, que a referida isenção pode beneficiar associações que cumpram cumulativamente um conjunto de requisitos, entre os quais o de em caso algum distribuírem resultados e os membros dos seus órgãos sociais não terem, por si ou interposta pessoa, algum interesse directo ou indirecto nos resultados de exploração das actividades prosseguidas”.
Por sua vez, a norma do art.º 10º do CIVA tem a sua origem na diretiva europeia relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977), concretamente do seu artigo 13º, nº 2, al. a), de onde foi importada para a atual diretiva relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (Diretiva 2006/112/CE do Conselho de 28 de Novembro de 2006).
A norma tem uma ratio simples de compreender: pretende evitar que a ausência de fins lucrativos que consta dos estatutos da entidade seja usada com objetivos de evasão fiscal, quer pela criação ab initio de falsas entidades sem fins lucrativos, quer pela indevida apropriação de rendimentos de verdadeiras entidades sem fins lucrativos por parte dos seus dirigentes.
Contudo, a noção de “interesse direto ou indireto dos corpos gerentes de uma entidade sem fins lucrativos nos respetivos resultados de exploração” é vaga, assim como é escassa a casuística relativa à sua aplicação, quer no plano nacional quer no plano europeu.
Começamos por delimitar, dentro da norma, a parte que nos interessa.
A Requerida fundamenta os atos de liquidação de imposto com um alegado “interesse indireto” do dirigente B... nos resultados de exploração da associação. Para a Requerida não está, pois, em causa um interesse direto do dirigente nos resultados da Requerente, mas sim um interesse indireto.
Em nossa opinião, o termo “interesse indireto” deveria ser interpretado como um interesse que é conseguido através de uma terceira entidade que se interpõe entre o dirigente e a entidade sem fins lucrativos, deixando-se o termo “interesse direto” para o interesse que é conseguido sem essa interposição.
Parece não ser, contudo, essa a interpretação que o relatório de inspeção faz do termo, o que, porém, não constitui impedimento a que se analise a aplicabilidade ao caso concreto da noção de “interesse indireto” na interpretação que dela faz o relatório de inspeção.
Em segundo lugar, também é necessário concretizar a expressão “resultados de exploração”. De acordo com o relatório de inspeção, por resultados de exploração deve entender-se a diferença entre os proveitos gerados e as perdas suportadas em virtude do exercício das atividades da entidade. Também nos parece uma definição algo redutora, que melhor seria substituída simplesmente pela noção de rendimento, entendido como a diferença entre os valores do património medido em dois períodos, acrescido do valor do rendimento consumido, já que é esta a noção jurídica de rendimento geralmente adotada para efeitos fiscais no sistema fiscal português e a mais conforme com a conceção tradicional de rendimento para efeitos fiscais (art. 3º, nº 2 do CIRC).
Se entendermos por “interesse indireto nos resultados de exploração”, como o faz o relatório de inspeção, a transferência de rendimento da entidade para o seu dirigente sob um título que não seja formalmente uma entrega de lucros, teremos que começar por assumir, como a própria Requerida reconhece e afirma, que não é qualquer pagamento efetuado pela entidade ao dirigente que permitirá concluir estar-se perante um tal “interesse indireto”.
Neste ponto, a Requerida avança a interpretação de que a noção de “interesse nos resultados de exploração” deve entender-se estar associada à obtenção de rendimentos ou benefícios que de alguma forma estejam relacionados com a atividade económica prosseguida mas que não sejam diretamente resultantes desta.
Estamos, mais uma vez, perante uma interpretação que a Requerida faz do texto legal. E com o devido respeito, não se vê que a definição proposta tenha a clareza que se exige para fundamentar um ato de liquidação de imposto.
Em princípio, os rendimentos pagos a todos os que participam na atividade da entidade estão relacionados com a atividade económica. Assim, a obtenção de rendimento por parte de um trabalhador da entidade está relacionada com a respetiva atividade económica; os rendimentos pagos a quem fornece bens ou serviços à entidade sem fins lucrativos estão relacionados com a atividade económica; os rendimentos pagos aos dirigentes, os quais a lei tributária admite, estão relacionados com a atividade económica da entidade, pois a gestão faz parte da atividade económica da entidade.
Portanto, sempre que a transferência de rendimento da entidade para o dirigente esteja ligada, formalmente, a uma prestação do dirigente de que a entidade é beneficiária, e que possa ser integrada na sua atividade económica, poderá dizer-se que a transferência de rendimento está “relacionada com a atividade económica da entidade”.
Contudo, parece-nos que também poderão configurar-se diversas hipóteses de um dirigente ter interesse nos resultados de exploração da entidade mesmo quando não exista esta “relação com a atividade económica”. Basta, para não ir mais longe, que o dirigente use para fins pessoais uma viatura pertencente à entidade.
Já quanto ao segundo aspeto da definição, que consiste em “o rendimento (que é transferido para o dirigente) não ser diretamente resultante da atividade económica”, não conseguimos alcançar o seu significado, e parece-nos que se exigiria sobre ele alguma elaboração adicional da parte da Requerida.
De qualquer forma, o relatório de inspeção não fornece elementos de facto para demonstrar que os rendimentos recebidos pelo dirigente B..., “estando relacionados com a atividade económica prosseguida, não são diretamente resultantes desta”, tudo isto dentro da lógica interpretativa da Requerida.
Indo além da definição proposta pela Requerida – que não se nos afigura oferecer suficiente clareza para nos conduzir a uma boa conclusão sobre a existência ou inexistência de erro nos pressupostos de direito na base das liquidações – parece-nos que um “interesse nos resultados de exploração” há de ser antes a transferência (não necessariamente um pagamento), para o dirigente, de um rendimento ou benefício que não seja uma contrapartida da utilidade que o dirigente, por seu turno, proporciona à entidade, através de uma qualquer prestação de que a entidade seja beneficiária.
Para se poder dizer que um rendimento transferido para o dirigente não é uma contrapartida da utilidade que o dirigente proporciona à entidade, deve ocorrer uma de três situações:
a) O dirigente não proporciona à entidade, através de uma prestação de que a entidade é beneficiária, qualquer utilidade pela qual deva legalmente receber uma remuneração;
b) O dirigente proporciona à entidade, através de uma prestação de que a entidade é beneficiária, uma utilidade pela qual deve legalmente receber uma remuneração, mas a remuneração paga é manifestamente excessiva;
c) O dirigente proporciona à entidade, através de uma prestação de que a entidade é beneficiária, uma utilidade pela qual deve legalmente receber uma remuneração, mas a remuneração paga varia em função dos resultados de exploração e não com o valor da utilidade proporcionada.
Assim, se o dirigente em causa presta um serviço à entidade, que pode ser o próprio serviço de gestão ou outro, e o rendimento que recebe varia de uma forma tal que se pode afirmar estar dependente da variação dos resultados de exploração, então estar-se-á ou poder-se-á estar perante um “interesse nos resultados de exploração”.
Ou se, num cenário alternativo, o dirigente não presta qualquer serviço efetivo à entidade sem fins lucrativos, mas ainda assim esta lhe paga um rendimento, estar-se-á ou poder-se-á estar perante um “interesse nos resultados de exploração”.
Ou ainda, se o dirigente presta à entidade um serviço ou trabalho, auferindo por ele uma remuneração manifestamente exagerada, ainda que não variável em função dos resultados de exploração, estar-se-á ou poder-se-á estar perante um “interesse nos resultados de exploração”.
No caso dos autos, o dirigente sobre quem se alega existir um “interesse indireto nos resultados” é um técnico desportivo que trabalha para a entidade Requerente, embora no âmbito de uma relação formalmente configurada como prestação de serviços.
O dirigente em causa é um técnico desportivo sénior, uma vez que já presta serviços como professor de natação, para a Requerente, desde 1993.
A modalidade desportiva em que presta trabalho ou serviços é a natação, que é a modalidade desportiva principal a que a Requerente se dedica.
A relação de prestação de serviços entre o dirigente e a Requerente teve início em data (1993) muito anterior à sua designação como membro da direção, o que apenas ocorreu em 2002.
À data dos factos tributários alegados, o dirigente exercia as funções de técnico e treinador de alta competição e de treinador principal dos escalões de juvenis, jovens e seniores. Ambas as funções envolvem uma participação na atividade principal da Requerente ao mais alto nível da cadeia de organização funcional, como fica patente na descrição do conteúdo dessas funções: planear e coordenar as atividades competitivas de acordo com o calendário desportivo regional da Associação de Natação do ... de Portugal e com o calendário desportivo nacional da Federação Portuguesa de Natação; determinar objetivos e estratégias com vista à obtenção de resultados desportivos; monitorizar e avaliar o desempenho desportivo dos atletas e do corpo técnico; representar o Clube nas reuniões técnicas promovidas pela Associação de Natação do ... de Portugal e pela Federação Portuguesa de Natação, para definição de estratégias desportivas regionais e nacionais e definir os calendários desportivos; assegurar o bom funcionamento desportivo da secção de competição, promovendo, divulgando e projetando os sucessos desportivos dos atletas; elaborar o plano anual de treino; elaborar as subestruturas do plano anual; elaborar o plano anual de competição; planear a sessão de treino e a participação competitiva; organizar, dirigir e avaliar a sessão de treino; realizar programas elementares de avaliação e controlo do treino e da capacidade de rendimento desportivo do praticante e da equipa; organizar, orientar e avaliar a participação dos praticantes em competição; participar no planeamento plurianual da atividade de treino; participar na gestão da equipa técnica; participar na identificação dos talentos e na construção desportiva dos praticantes; promover e participar na formação dos treinadores.
Ambas as funções envolvem, além de um elevado grau de responsabilidade, também a prestação de atividade desenvolvida pessoalmente, efetiva e assídua, aliás pouco compatível com um contrato de prestação de serviços.
Deste modo, não restam dúvidas de que o dirigente B... exerce uma atividade pela qual proporciona uma utilidade económica à Requerente, que está totalmente relacionada não apenas com a atividade da Requerente, mas com o próprio núcleo dessa atividade. Não estamos perante uma situação de inexistência de utilidade económica.
Naturalmente, o dirigente tem direito a ser remunerado pelas funções que desempenha e pelo trabalho efetivo que exerce.
O facto de o técnico se tornar dirigente não pode implicar para este nem a perda do direito à remuneração, nem a impossibilidade de exercer tal direito, com um fundamento exclusivamente fiscal. Em nenhum lugar a lei substantiva ou tributária determinam, expressa ou implicitamente, que o trabalhador de uma entidade sem fins lucrativos, no momento em que assume um cargo nos órgãos sociais da mesma, deixa de poder prestar trabalho e de ser remunerado por tal.
Aliás, porque a participação na direção da uma coletividade desportiva, no caso de um técnico desportista qualificado, que exerce a atividade na mesma coletividade, é objetivamente do interesse desta e dos seus associados.
Portanto, só poderemos afirmar, no caso do dirigente B..., que os rendimentos que lhe são pagos consubstanciam uma situação de “interesse direto ou indireto nos resultados de exploração” da Requerente se esses rendimentos excederem manifestamente a utilidade económica que a prestação proporciona à beneficiária, ou se o seu montante, também manifestamente, variar em função dos resultados de exploração.
De contrário, tais rendimentos serão apenas a remuneração normal de uma prestação de uma atividade técnica.
Ora, em primeiro lugar, a remuneração do dirigente B... não varia em função dos resultados de exploração da Requerente. Deu-se por provado que os mesmos se mantiveram sem alteração com a designação do dirigente para o cargo de direção.
Em segundo lugar, o dirigente já exercia a sua atividade de técnico desportivo de natação na organização da Requerente muito antes da sua designação como membro da direção desta. E tendo, quando já exercia essa atividade há vários anos, sido designado membro da direção, a sua remuneração não sofreu qualquer alteração. O que indica desde logo que o montante da remuneração em causa não é influenciado pelo cargo que o dirigente ocupa.
Se a remuneração, a mesma que é hoje paga ao dirigente, já era paga quando este não tinha qualquer cargo nos órgãos sociais, tal indica que essa remuneração apenas visa a retribuição do trabalho prestado.
Em terceiro e último lugar, a remuneração em causa equivale a um rendimento mensal bruto de 1375,00 euros mensais. O que, para as funções que o dirigente desempenha, não pode ser considerado um montante que manifestamente exceda a utilidade do serviço prestado.
Por tudo o que ficou exposto, conclui-se que a remuneração auferida pelo dirigente B... ao serviço da Requerente, correspondendo a uma retribuição normal, não excessiva, de um trabalho efetivamente prestado à Requerente e de que esta necessita em absoluto, não pode considerar-se como configurando uma situação de “interesse direto ou indireto nos resultados de exploração da Requerente”.
V. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, o presente Tribunal decide declarar ilegal e anular, por erro nos pressupostos de direito, os atos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado:
a) Número 2018 ... referente ao IVA do período 20143T;
b) Número 2018 ... referente a juros compensatórios sobre o montante liquidado pela liquidação nº 2018 ... referente ao IVA do período 20143T;
c) Número 2018 ... referente ao IVA do período 201406T;
d) Número 2018 ... referente a juros compensatórios sobre o montante liquidado pela liquidação nº 2018 ... referente ao IVA do período 201406T;
e) Número 2018 ... referente ao IVA do período 201409T;
f) Número 2018 ... referente a juros compensatórios sobre o montante liquidado pela liquidação nº 2018 ... referente ao IVA do período 201409T;
g) Número 2018 ... referente ao IVA do período 201412T;
h) Número 2018 ... referente a juros compensatórios sobre o montante liquidado pela liquidação nº 2018 ... referente ao IVA do período 201412T.
Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em € 31.339,83 euros (trinta e um mil, trezentos e trinta e nove euros e oitenta e três cêntimos).
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 1.836.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às Partes.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 27 de novembro de 2019
O Árbitro
(Nina Aguiar)