DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A..., contribuinte n.º..., com domicílio fiscal em ..., ..., ..., Holanda, doravante designada por Requerente, submeteu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) pedido de constituição de tribunal arbitral e Pedido de Pronúncia Arbitral com vista à anulação do ato tributário de liquidação de IRS de 2016, com o n.º 2018..., no valor de € 24.555,54.
A Requerente fundamenta a ilegalidade do ato tributário nos termos melhor constantes na Petição eletronicamente submetida ao CAAD e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, petição essa assente, sinteticamente, nos seguintes fundamentos:
a) Ilegalidade no apuramento das mais-valias, ao se basear no Valor Patrimonial Tributário (VPT) dos respetivos imóveis sitos em Portugal e não no valor de € 60.000,00 atribuído a estes no âmbito do imposto sobre as transmissões na Holanda, jurisdição holandesa esta pela qual se regula a sucessão, nos termos do disposto no artigo 25º do Código Civil;
b) Ilegalidade da liquidação, por violação do estatuído no artigo 56º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), à data artigo 63º, na medida e interpretação segundo a qual apenas confere aos residentes em Portugal o direito a serem tributados sobre apenas 50% das mais-valias, assim colocando em situação de desigualdade todos os demais residentes dentro da União Europeia, que não em Portugal, como é o caso da Requerente, a qual foi sujeita a tributação sobre a totalidade dessa mesma mais-valia;
Propugnando assim, a final, pela anulação do ato tributário de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, por seu turno, apresentou Resposta, a qual se dá na presente decisão por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos e na qual e em suma, defende a conformidade legal da liquidação objeto destes autos, pugnando pela improcedência dos pedidos formulados, sustentando em síntese, que inexiste qualquer violação de norma do Tratado da União Europeia, porquanto o n.º 2 do artigo 43º do Código e artigo 72º do Código do IRS não discrimina os contribuintes, em função da residência destes em Portugal ou nos demais países da União Europeia, porquanto o legislador nacional, após o acórdão Hollman veio a retificar esse mesmo normativo, dando a possibilidade de opção por um de dois diferentes regimes de tributação, sendo um deles o do englobamento à semelhança do que já ocorria para os residentes em Portugal. Subsidiariamente, pugnou igualmente pelo reenvio prejudicial ao TJUE.
Por último e em matéria de errónea quantificação do valor de aquisição dos imóveis em sede de IRS, categoria G, defende a Requerida que o apuramento deste teve em consideração o critério legalmente estatuído no n.º 1 do artigo 45º do CIRS, pelo que não pode, igualmente, proceder, a anulação do ato tributário peticionada.
O árbitro único foi designado em 15.02.2019.
Em conformidade com o previsto no artigo 11º n.º 1 alínea c) do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 02.04.2019.
Face ao posicionamento das partes e dada a controvérsia nos presentes autos se centrar em matéria de direito, o posicionamento das partes, prescindiu este tribunal do agendamento de reunião arbitral.
2. Saneamento
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março), tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado tempestivamente. O processo não enferma de nulidades.
Não tendo sido erigidas exceções, nada obsta a que se conheça do mérito do pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente.
3. Matéria de facto
3. 1. Factos provados:
Analisada a prova documental produzida, o posicionamento das partes face à factualidade trazida a estes autos, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:
1. Através de sucessão, por falecimento de B... ocorrida em 14.07.2014, veio a Requerente a adquirir a titularidade sobre o direito de propriedade do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o número ... e do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., ambos da União das Freguesias de ... e ..., concelho de ..., Distrito de Viana do Castelo;
2. Por força de tal falecimento, foi declarado perante as autoridades fiscais holandesas que os imóveis melhor identificados no número anterior tinham um valor global, enquanto ativos, de € 60.000,00;
3. A Requerente veio a proceder em Março de 2016 à alienação dos prédios melhor identificados em 1. pelo valor de € 100.000,00 e € 10.000,00, respetivamente.
4. A Requerente, em 17.10.2018, veio a submeter declaração de rendimento Modelo 3 relativa aos rendimentos de 2016, na qual se incluía Anexo G referente a “Mais Valias e Outros Incrementos Patrimoniais”;
5. Em tal declaração Modelo 3 fez constar, ao nível da residência, como “não residente” em Portugal;
6. No Campo 07 do quadro B, veio a Requerente a assinalar a opção, enquanto residente em estado da União Europeia: “Pretende a tributação pelo regime geral”;
7. No Anexo G, para além dos valores de alienação supra identificados sobre a totalidade dos imóveis, foram inscritos os valores de aquisição, reportados a Julho de 2014, de cada um dos prédios e a respetiva data, a saber:
- artigo 1001 € 25.790,00;
- artigo 2890: € 139,54;
8. No Quadro 15 do Anexo G, a Requerente não assinalou nenhum dos dois campos disponíveis quanto à “Opção pelo Englobamento”: “Sim (campo 1) “ e “Não (campo 2)”;
9. Na sequência da submissão eletrónica de tal declaração de rendimentos, veio a Requerida a emitir a respetiva nota de liquidação, com o n.º 2018..., de 19.10.2018, com um valor a pagar de € 24.555,54, a título de IRS e juros compensatórios, com indicação pelos serviços postais holandeses, mencionando a data de “2/11”;
10. Na versada liquidação, foi apurado IRS a pagar no montante de € 23.301,72), o qual corresponde a 28% sobre a totalidade da mais-valia apurada face aos valores declarados;
11. Em 19.01.2019, deu a Requerente eletronicamente entrada do pedido de pronúncia arbitral ora em apreço, tendo pago a respetiva taxa de justiça inicial;
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
3.2. Fundamentação da matéria de facto provada:
No tocante aos factos provados, a convicção do árbitro fundou-se na prova documental junta aos autos e bem assim no posicionamento assumido por Requerente e Requerida quanto aos factos trazidos a estes autos arbitrais.
4. Matéria de direito:
4.1.Objeto e âmbito do presente processo
ConstiTFUEm quaestio decidendas nos presentes autos, o perscrutar das seguintes aventadas ilegalidades:
a) Da ilegalidade do valor tido em consideração para efeitos de apuramento do valor de aquisição dos imóveis cujo apuramento das mais-valias é externalizado pelo ato tributário de liquidação em apreço;
b) Da ilegalidade por violação do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, nomeadamente do seu artigo 63º, das regras de apuramento das mais-valias para não residentes em Portugal, quando comparadas com as aplicáveis àqueles contribuintes que em território nacional residem;
4.2. Da valor de aquisição dos imóveis para efeitos de determinação das mais-valias em sede de IRS:
Vejamos então o enquadramento legal em que se circunscreve a primeira das questões a decidir nestes autos.
Dispõe o artigo 45º do CIRS, na redação em vigor à data a que respeita o facto tributário, o seguinte:
Artigo 45.º
Valor de aquisição a título gratuito
1 - Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS considera-se o valor de aquisição, no caso de bens ou direitos adquiridos a título gratuito:
a) O valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto do selo;
b) O valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido.
Sendo que, por sua vez, preceitua o artigo 10º do versado compêndio legal, no tocante às alíneas referidas no supra citado normativo, que:
Artigo 10.º
Mais-Valias
“1 - ConstiTFUEm mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afectação de quaisquer bens do património particular a actividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário;
b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo 81.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia; (Redação dada pela lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
c) Alienação onerosa da propriedade intelectual ou industrial ou de experiência adquirida no sector comercial, industrial ou científico, quando o transmitente não seja o seu titular originário;”
Do cotejo dos normativos vindos de citar, temos, desde logo, por seguro, que o valor de aquisição relativo ao direito de propriedade sobre bens imóveis entretanto alienados, sujeitos a mais valias na previsão da al. a) do n.º 1 do artigo 10º do CIRS, se há-de fixar nos termos previstos no n.º 1 do artigo 45º do CIRS.
Normativo este, segundo o qual, tal valor se apurará através do montante que tenha estado na base da liquidação de Imposto do Selo (al. a) ) ou, daquele que teria de ser tido em consideração para efetivação de tal apuramento tributário em sede do supra referido imposto, caso este fosse devido (previsão da al.b) ).
Ora, no caso dos autos, embora não haja certezas quanto ao facto de tal aquisição gratuita por parte da Requerente ter sido ou não objeto de liquidação de Imposto do Selo, certo é que em qualquer dos casos a que se reporta o n.º 1 do artigo 45º do CIRS, tal valor se apurará tendo em consideração as regras constantes do compêndio legislativo regulador do Código do Imposto do Selo (CIS).
Vejamos,
Secção II
Nas transmissões gratuitas
Artigo 13.º
Valor tributável dos bens imóveis
1 - O valor dos imóveis é o valor patrimonial tributário constante da matriz nos termos do CIMI à data da transmissão, ou o determinado por avaliação nos casos de prédios omissos ou inscritos sem valor patrimonial.
2 - No caso de imóveis e direitos sobre eles incidentes cujo valor não seja determinado por aplicação do disposto neste artigo e no caso do artigo 14.º do CIMT, é o valor declarado ou o resultante de avaliação, consoante o que for maior.
3 - Se os bens forem expropriados por utilidade pública antes da liquidação, o seu valor será o montante da indemnização.
4 - Na determinação dos valores patrimoniais tributários de bens imóveis ou de figuras parcelares do direito de propriedade, observam-se as regras previstas no CIMT para as transmissões onerosas.
5 - No prazo para a apresentação da participação a que se refere o artigo 26.º, podem os interessados requerer a avaliação de imóveis nos termos e para os efeitos previstos no artigo 30.º do CIMT.
6 - Quando a propriedade for transmitida separadamente do usufruto, o imposto devido pelo adquirente, em consequência da consolidação da propriedade com o usufruto, incide sobre a diferença entre o valor patrimonial tributário do prédio constante da matriz e o valor da sua propriedade considerado na respetiva liquidação.
7 - Nas aquisições por usucapião, em que o prédio usucapido seja habitacional, comercial, industrial ou para serviços, e a totalidade das construções erigidas durante a posse tenham sido comprovadamente realizadas a expensas do usucapiente, considera-se que o valor tributável é correspondente a 20 % do valor patrimonial tributário constante da matriz à data do nascimento da obrigação tributária.
Estando-se perante aquisição gratuita de ambos os imóveis por parte da Requerente, fundada no falecimento de B..., conforme factualidade que resulta não só dos documentos, mas como igualmente do posicionamento das partes nestes autos arbitrais, não se poderá deixar de ter em consideração o disposto no supra citado n.º 1 do artigo 13º do CIS, o qual dispõe que o valor dos imóveis há-de corresponder ao valor patrimonial tributário (VPT) de cada um desses prédios à data da transmissão.
Recorrendo para o efeito pela sua clareza o acordado pelo Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito fo processo n.º 0301/15, de 06.04.2016, segundo o qual:
“A transmissão (gratuita ou onerosa) de um direito (designadamente do direito de propriedade sobre um bem) consiste na deslocação desse direito da esfera jurídica de determinado sujeito para a esfera jurídica de outro sujeito, ocorrendo, no momento em que ela sucede, uma modificação subjectiva na titularidade do direito. Ou seja, por via da transmissão o receptor adquire um direito que não tinha, sucedendo ao transmitente nas relações jurídicas que são objecto da transmissão. E isto acontece tanto na transmissão inter vivos (onerosa ou gratuita) como na transmissão mortis causa (necessariamente gratuita).
De resto, o termo transmissão é usado indistintamente nas duas situações. A diferença entre uma e outra reside apenas no modo jurídico por que se transmite ou adquire o direito. Porém, o modo de transmitir não altera a substância da própria transmissão, que se concretiza numa dinâmica de transferência/aquisição e se caracteriza, em última análise, por uma substituição de sujeitos na relação com o objecto da transmissão.
O que quer dizer, em suma, que o sucessor mortis causa é também um adquirente, surgindo como novo titular dos bens deixados pelo de cujus, que assim ingressaram na sua esfera jurídica com todos os efeitos que daí possam decorrer.”
Importa assim, atendendo ao critério estabelecido pelo legislador, fixar o momento em que ocorre a transmissão.
Não dispondo o direito tributário de norma própria sobre esta matéria, ao abrigo do disposto no art.º 11.º da Lei Geral Tributária, não poderemos deixar de nos apoiar nos normativos de direito sucessório constantes do Código Civil. Assim, nos termos do artigo 2031º:
art.º 2031.º -
A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele.
Destarte, considerando que a transmissão gratuita a favor da Requerente operou por falecimento de B..., o qual teve lugar em 14.07.2014, este é o momento em que ocorre, para efeitos tributários, a transmissão gratuita a favor da ora Requerente do direito de propriedade sobre os supra identificados imóveis.
Sendo que, o valor relevado declarativamente no Anexo G da Modelo 3 submetida pela Requerente não é aqui sequer objeto de sindicância, na justa medida em que a Requerente não questiona que os valores inscritos enquanto valores de aquisição não correspondam ao VPT’s dos respetivos prédios à data da abertura da sucessão.
Mas antes se inconforma com o facto de não ser tido em consideração o valor declarado dos prédios para efeitos fiscais no âmbito de liquidação de imposto na Holanda, uma vez que socorrendo-se do disposto no artigo 25º do Código Civil, deveria dar lugar à consideração de tal valor.
Como supra se expõe, o normativo convocado não tem aplicabilidade no âmbito da questão em apreço, visto que, como decorre da concatenação dos normativos vindos de explicitar, não está em causa qualquer questão relativa ao estado das pessoas, capacidade das mesmas, relações de família ou sucessões por morte, as quais se regerão nos termos da lei pessoal dos respetivos sujeitos, mas sim ante o dirimir de invocada ilegalidade de um ato tributário, in casu liquidação de IRS de 2016, isto é, no âmbito de uma relação jurídico-tributária regulada pelo Direito Fiscal, que por sua vez se insere num mais lato ramo do Direito Público, o Direito Administrativo.
Face ao vindo de explanar, não pode, pois, deixar de improceder a alegada desconformidade legal dos valores de aquisição considerados na liquidação de IRS de 2016 ora sub judice.
4.3. Da violação das normas do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia em matéria de liberdade de capitais – artigo 63º - por discriminação de tratamento entre os residentes em Portugal e os residentes em demais países da EU em matéria de regime de tributação das mais-valias (artigos 42º, n.º 3 e 72º, ambos do CIRS):
Por fim, nos presentes autos está em causa aferir se, na situação de mais-valias realizadas em virtude da transmissão de imóveis, o diferente regime de tributação aplicável a residentes e a não residentes em Portugal (mas residam noutro Estado membro da UE) é suscetível ou não de configurar uma situação de discriminação no domínio da liberdade de circulação de capitais, inadmissível à luz do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), o qual se passa a transcrever:
Dispõe o n.º 2 do artigo 43º do Código do IRS, na redação vigente à data do facto tributário):
Artigo 43.º
Mais-valias
1 - O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes.
2 - O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50 % do seu valor.
Por seu turno, dispõe o artigo 72º do CIRS, nos seus n.ºs 1, 8 a 10 o seguinte:
Artigo 72.º
Taxas especiais
1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %:
a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;
b) Outros rendimentos auferidos por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado e que não sejam sujeitos a retenção na fonte às taxas liberatórias;
c) O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), c), e), f), g) e h) do n.º 1 do artigo 10.º;
Por último, preceitua o artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia:
Artigo 63.º
(ex-artigo 56.º TFUE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
Mas, não obstante, circunscrita que está a questão substantiva encerrada pela petição da Requerente nesta matéria, impõe-se, antes de mais, e face ao teor do da Resposta oferecida pela Requerida, aferir da questão prejudicial relativa ao reenvio prejudicial ou não para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) desta mesma questão de fundo.
Relativamente aos tribunais arbitrais, dúvidas não se afiguram sobressair quanto à qualificação efetuada pelo TJUE quanto à qualificação do CAAD enquanto órgão jurisdicional de um Estado-membro, para efeitos do disposto do artigo 267º do TFUE, podendo conferir-se esse mesmo entendimento, através do sufragado no processo C-377/13, de 12.06.2014 – processo Ascendi.
Dilucidada esta primeira questão sobre a viabilidade legal de, em abstrato, o CAAD, enquanto órgão jurisdicional, submeter pedidos de reenvio prejudiciais ao TJUE, importa perscrutar da verificação in casu sobre a obrigatoriedade ou não de tal reenvio.
Sucede, porém, que no caso em apreço não se alcança a necessidade de proceder a esse reenvio.
Como bem resulta da jurisprudência do TJUE sobre esta questão, “o reenvio prejudicial é um instrumento de cooperação judiciária (…) pelo qual um juiz nacional e um juiz comunitário são chamados no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos Estados membros” (acórdão Schwarze, de 01/12/1965, processo n.º 16/65).
As decisões arbitrais proferidas pelos tribunais arbitrais tributários constituídos no âmbito não são em regra, passíveis de recurso ordinário, admitindo-se tão somente relativamente àquelas situações de violação de normas constitucionais ou por oposição de acórdãos.
Não obstante, ante decisões de órgãos jurisdicionais que não admitem recurso ordinário, como é o caso do CAAD, vem entendendo o TJUE que a obrigatoriedade de reenvio não se verifica, a menos que não exista já jurisprudência sobre a matéria e que a correta interpretação da norma jurídica em causa não seja inequívoca.
Ora, no caso dos autos, estamos perante uma questão que vem sendo objeto de uma assinalável jurisprudência sob a égide do próprio TJUE, sendo que em matéria do modo de interpretação das normas convocadas, as mesmas não oferecem dificuldade ou dissonância interpretativa que impeçam concluir com segurança no sentido da existência de ato claro, entendendo este tribunal arbitral singular, por isso, estar em condições de, face ao referido quadro legal e jurisprudência, não prosseguir com reenvio prejudicial, ao contrário do subsidiariamente suscitado na Resposta pela Requerida.
O TJUE já se pronunciou sobre todas as questões que a Requerida invoca em matéria de direito comunitário, no processo C-440/08, sendo que tal jurisprudência dimanante é suscetível de transposição para a matéria de liberdade de circulação de capitais (tal como vem sendo secundado pela jurisprudência do TJUE, no sentido de que a operação de liquidação de um investimento imobiliário, como a que está em causa neste processo, constitui um movimento de capitais, à face da jurisprudência daquele Tribunal cfr. Acórdão de 16 de Março de 1999, Trummer e Mayer, C-222/97, sendo, por isso, abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 56.º [atual 63º] do TFUE), no sentido de que perante uma vantagem fiscal cujo benefício é recusado aos não residentes, uma diferença de tratamento entre residentes e não residentes é passível de ser qualificada como discriminatória nos termos do TFUE, sempre que inexista justificação plausível para o diferente tratamento conferido aos sujeitos, em função desse mesmo critério, que in casu, se prende com a residência.
Em sentido idêntico, veja-se o decidido no processo C 184/18, segundo o qual: “não existe nenhuma diferença objetiva das situações dessas duas categorias de contribuintes (...) que justifique a desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais valias por eles realizadas em resultado da alienação de um bem imóvel situado em Portugal. Por conseguinte, a situação em que se encontram os contribuintes não residentes, (...) é comparável à dos contribuintes residentes.” .
De resto, o próprio CAAD, no âmbito de da constituição de tribunal arbitral coletivo presidido pelo jubilado Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, no processo n.º 600/2018-T, acordou naqueles autos arbitrais que: “No caso em apreço, conclui-se com segurança da reiterada jurisprudência do TJUE que a ilegalidade da aplicação do regime discriminatório não é sanda pela possibilidade do seu afastamento, o que dispensa a necessidade de reenvio prejudicial.”
Idêntico entendimento resultou igualmente de recente acórdão deste CAAD no âmbito do processo n.º 598/2018-T, cujo sentido e fundamentação aqui se acompanha: “As decisões arbitrais proferidas pelos tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD são, em regra, irrecorríveis quanto ao mérito; com efeito, a recorribilidade permitida circunscreve-se aos casos de violação de normas constitucionais (recurso para o Tribunal Constitucional) ou de desrespeito pela jurisprudência do Tribunal Central Administrativo ou do Supremo Tribunal Administrativo (recurso por oposição de acórdãos para o Supremo Tribunal Administrativo). Acontece, porém, que, como decidido pelo TJUE (acórdão Cilfit, de 06/10/1982, processo C-283/81), a aludida obrigatoriedade de reenvio não se verifica “quando, sendo a questão prejudicial de interpretação, (a) exista já jurisprudência na matéria – e desde que o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicação dessa jurisprudência ao caso concreto – ou (b) sempre que o correcto modo de interpretação da norma jurídica em causa seja inequívoco, ou (c) a questão prejudicial não seja necessária nem pertinente para o julgamento do litígio no órgão jurisdicional nacional.”
No caso concreto, estão reunidas as condições que conduzem à não obrigatoriedade de reenvio prejudicial para o TJUE, isto é, existe uma vasta jurisprudência nesta matéria, sendo disso também exemplo as diversas decisões arbitrais que nas decisões do TJUE se louvam e fundam.
Por outro lado, também não subsistem dúvidas sobre a correta interpretação das normas jurídicas em causa nestes autos; com efeito, as normas são perfeitamente claras e, por isso, não está já tanto em causa interpretá-las, mas sim aplicá-las, o que é da competência do Tribunal Arbitral, tendo aqui total cabimento a teoria do ato claro.
Ante o posicionamento jurisprudencial, cuja fundamentação se acompanha, não podermos deixar de concluir que ante a específica questão enunciada e que cumpre nestes autos resolver, não estão reunidos os pressupostos para o peticionado reenvio prejudicial para o TJUE, o qual é, assim, objeto de indeferimento.
Dirimida a questão relativa ao reenvio prejudicial, constata-se que a principal questão a decidir é, assim, a de saber se a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, no artigo 43º, nº 2 e 72º do CIRS, para residentes e não residentes em território nacional, da base de incidência em IRS das mais-valias derivadas da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e respetiva taxa a ser aplicada – em suma a existência de dois distintos regimes - é ou não incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
A questão coloca-se para os não residentes em Portugal que residam noutro Estado membro da UE, por força da proibição de discriminação, da proibição de qualquer restrição (direta ou indireta) à liberdade de circulação de capitais, por força de tal discriminação se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes.
In casu, estamos perante situação em que a AT para efeitos de determinação do rendimento coletável e emissão do ato tributário à Requerente, não residente em Portugal, mas num outro Estado-Membro da UE, considerou a totalidade da mais-valia realizada na alienação do imóvel identificado nos autos.
Isto é, não foi dada aplicação ao disposto no n.º 2, do artigo 43.º do Código do IRS, do qual se extrai que: “O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50% do seu valor”.
Na perspetiva da AT, tal determinação do rendimento coletável fica a dever-se a elemento volitivo exclusivamente imputável à Requerente, na medida em que poderia, querendo, sujeitar-se ao regime vigente para os residentes, o qual tem na base a necessidade de englobamento e a progressividade na definição da taxa aplicável, sustentando por esta linha de raciocínio que a Requerente estava em condições de partilhar do mesmo regime de apuramento do rendimento coletável de que os residentes em Território Nacional beneficiam.
Pugnando, em consequência que tal diferenciação de tratamento tributário não radica da condição de residência ou não em Portugal, mas antes da circunstância da Requerente não ter procedido à opção pelo regime de englobamento dos rendimentos, tal como ocorre com os residentes em Território Nacional.
Igualmente se inconforma a Requerida com a violação do direito comunitário enunciada pela Requerente, assente na circunstância de tal invocação se basear em jurisprudência anterior à alteração legislativa da redação do artigo 72.º ocorrida por via da Lei n.º 67-A/2007, isto é, no facto da decisão do processo Hollman (de reconhecimento sobre a existência de discriminação negativa), ter por base um regime jurídico que ainda não permitia a já caracterizada opção para os não residentes entre dois diferentes regimes de tributação – à taxa especial de 28% sobre a totalidade da mais-valia tributável ou por via da consideração de apenas 50% da referida mais-valia, sujeita aos princípios do englobamento e da progressividade da taxa.
Sendo que, no caso dos autos, por inação opcional por parte da Requerente, o ato tributário de cálculo dos rendimentos desta – exclusivamente advenientes da alienação de imóveis sitos em Portugal – foi efetuado, por defeito, com base na aplicação da taxa de 28% sobre a totalidade (100%) da mais-valia, nos termos do n.º 1 do artigo 72º do CIRS, do qual resultou como bem se alcança, um IRS a pagar de € 23.301,72.
Quando, em face do regime de englobamento e progressividade da taxa, assente numa matéria tributável correspondente a 50% daquela que foi considerada na liquidação, corresponderia uma taxa de 45% (e a taxa média é necessariamente menor pois a cada escalão corresponde a respetiva taxa), da qual resultaria um imposto a pagar de € 12.522,,35, a que acresceria a então vigente sobretaxa extraordinária, no montante de € 1.025,71.
Ora, do que fica expresso relativamente ao caso vertente, ressalta objetivamente evidenciado que a não opção pelo regime do englobamento e progressividade da taxa teve por consequência uma oneração fiscal superior àquela que teria lugar caso tivesse sido aplicado o regime de tributação aplicável aos residentes em Território Nacional.
Quanto ao caráter facultativo do mecanismo de tributação à taxa especial constante do artigo 72º do CIRS (na redação vigente em 2016) impõe observar-se que o entendimento reiterado por parte do TJUE vai no sentido de que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode ser incompatível com o direito da União Europeia, não obstante o facto da aplicação desse mesmo regime ser opcional ou facultativa.
A este propósito, veja-se o decidido no âmbito do processo C-440/08 (Gielen) – aqui a propósito da liberdade de estabelecimento - no qual se conclui que a incompatibilidade “não é posta em causa pelo argumento de que os contribuintes não residentes podem optar pela equiparação, que lhes permite escolher entre o regime discriminatório e o regime aplicável aos residentes, dado que essa opção não é susceptível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório. Por outro lado, um regime nacional que limite a liberdade de estabelecimento é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa. Decorre do exposto que a escolha concedida ao contribuinte não residente através da opção de equiparação, não neutraliza a discriminação”.
Nesta mesma linha de raciocínio e entendimento jurisprudencial, considere-se o decidido no âmbito do processo C-464/14 do TJUE, onde uma vez mais se colhe claramente que pese embora a aplicabilidade facultativa de determinado regime diferenciado entre residentes e não residentes, o mesmo é suscetível de ser considerado como incompatível com o direito da União Europeia, porquanto restritivo dos princípios e liberdades estruturantes que dimanam do TFUE, de entre os quais se contam, entre outros, o relativo à circulação de capitais.
Nesta senda, merece igualmente menção o decidido no processo C-168/11 (Beker), segundo o qual: “Mesmo admitindo que tal sistema seja compatível com o direito da União, resulta contudo da jurisprudência que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode permanecer incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, acórdão de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C 446/04, Colet., p. I 11753, n.° 162, e de 18 de março de 2010, Gielen, C 440/08, Colet., p. I 2323, n.° 53). A este respeito, a existência de uma opção que permitiria eventualmente tornar uma situação compatível com o direito da União não tem assim por efeito sanar, por si só, o carácter ilegal de um sistema, como o previsto pela regulamentação controvertida, que compreende um mecanismo de tributação não compatível com este direito. Importa acrescentar que tal ocorre por maioria de razão no caso em que, como no caso em apreço, o mecanismo incompatível com o direito da União é aquele que é automaticamente aplicado na inexistência de escolha efetuada pelo contribuinte.” (sublinhado nosso).
Ora, não perdendo de vista o caso dos presentes autos arbitrais, resulta indubitável que também neste último foi aplicado, supletivamente, em face da ausência de escolha pela Requerente, um regime de apuramento do rendimento coletável em matéria de mais-valias discriminatório, baseado em taxa especial, no caso, de 28% sobre 100% do valor do rendimento considerado como mais-valia.
Ao contrário, em idêntica mais-valia obtida por um residente em Portugal, o contribuinte com idêntico rendimento apenas veria considerado para efeitos de tributação 50% desse mesmo valor, o qual em termos de apuramento, ainda que com aplicação da natureza progressiva da taxa, sempre se mostraria bem menos onerosa fiscalmente, como se demonstrou supra.
Ante esta clara e objetiva constatação, o quadro jurisprudencial do TJUE e nacional e atento o preceituado no n.º 4 do artigo 8º da CRP – aplicabilidade das normas dos tratados que regem a União Europeia - não pode deixar de se considerar que o regime facultativo que dimana da concatenação do n.º 2 do artigo 43º e artigo 72º, ambos do CIRS, no sentido de na ausência de atitude comissiva, por banda de contribuinte residente em Estado-membro da União Europeia que não em Portugal, é contrário ao estatuído no artigo 63º do TFUE, representando assim uma restrição e discriminação negativa e não justificada, face ao princípio da liberdade de capitais em que se alicerça o TFUE.
Destarte, não olvidando a consistência e caráter reiterado do sentido da jurisprudência do TJUE a que supra aludimos, não podemos deixar de em termos seguros, concluir pela ilegalidade da liquidação de IRS e juros compensatórios objeto dos presentes autos, anulando-se assim este ato tributário, ao abrigo do artigo 163º do CPA, ex vi artigo 2º, alínea c) da Lei Geral Tributária.
5. DECISÃO:
Em face do supra exposto, decide este tribunal arbitral singular julgar o Pedido de Pronúncia Arbitral procedente e em consequência proceder à anulação do ato tributário de liquidação de IRS de 2016 e juros compensatórios com o n.º 2018..., com o valor de € 24.555,54, por ilegalidade.
6. Do Valor do Processo:
Nos termos do conjugadamente preceituado nos artigos 296º, n.º 1 do CPC, 97º-A.n.º 1, al. a) do CPPT e n.º 2 do artigo 3º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do presente processo em €24.555,54.
7. Das Custas:
Nos termos do n.º 4 do artigo 22º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, em linha com o disposto na Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida – Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se esta decisão arbitral às partes e, oportunamente, arquive-se o processo.
Lisboa, 8 de Novembro de 2019.
O árbitro singular
(Luís Ricardo Farinha Sequeira)
Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, com versos em branco e por mim revisto