DECISÃO ARBITRAL
A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral constituído em 26.03.2019, decide nos termos e com os fundamentos que se seguem:
I – RELATÓRIO
No dia 15 de janeiro de 2019, A..., NIF..., residente na Rua..., ..., ..., ...(doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, RJAT), na redação conferida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o qual foi aceite e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT), na qualidade de Requerida.
O Requerente contesta a legalidade (i) do ato de liquidação de imposto do selo constante do documento n.º..., de 2018, no valor de € 5.200,00, relativo à aquisição do prédio urbano, destinado a habitação, constituído por rés do chão, primeiro, segundo, e terceiro andares e logradouro, sito na rua ..., ..., ..., descrito na primeira conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha ... da freguesia de ..., inscrito sob o artigo ... da matriz predial da referida Freguesia, assim como (ii) da decisão de indeferimento do processo de reclamação graciosa n.º ...2018..., a qual foi indeferida expressamente por despacho de 02.10.2018 e notificada por ofício de 08.10.2018, com o fundamento de não se encontrarem reunidos os pressupostos a que se refere a alínea e) do artigo 169º do CIRE. Em consequência, peticiona a anulação de ambos os atos, a restituição do imposto indevidamente pago e o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento da liquidação impugnada, com base em erro imputável aos serviços, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 2 da LGT e do artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.
O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 06.03.2019, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 26.03.2019.
No dia 06.05.2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta defendendo-se por impugnação.
As partes apresentaram ainda alegações escritas em que reiteraram as posições assumidas anteriormente.
Resumo da posição da Requerente
A Requerente fundamenta o seu pedido na ilegal recusa de aplicação, por parte da AT, da isenção prevista na alínea e) do artigo 269.º do CIRE, por entender que se verificam os pressupostos dos quais a mesma depende.
Sustenta que o imóvel que adquiriu – um prédio urbano destinado a habitação – foi adquirido no âmbito de um processo de insolvência de duas pessoas singulares (marido e mulher) e que a ratio da norma que prevê a isenção impõe que a mesma seja interpretada no sentido de abranger as alienações de património no âmbito da insolvência de pessoas singulares, não empresários ou titulares de empresas.
Defende que a norma de isenção tem como finalidade facilitar a realização de operações jurídicas e financeiras por meio da anulação do encargo do imposto, independentemente de se tratar do património de uma pessoa singular ou coletiva e do ativo de uma empresa ou de um bem pessoal. Assim, em sua opinião, a restrição na aplicação da isenção contraria o propósito fundamental do processo de insolvência e o único objetivo do benefício fiscal em causa – a célere satisfação dos direitos dos credores.
Por outro lado, sustenta que a interpretação da norma de isenção defendida pela AT consubstancia uma violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição, na vertente da proibição de arbítrio, assim como do artigo 7.º, n.º 3 da LGT.
Acrescenta ainda que o insolvente marido também desenvolvia atividade profissional no prédio que foi vendido, que a insolvência decorreu da circunstância de o mesmo prosseguir a sua atividade empresarial e profissional por conta própria, sujeita a um regime especialíssimo no âmbito do CIRE.
Invoca ainda o disposto no artigo 5.º do CIRE, nos termos do qual empresa é “toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de uma atividade económica”, defendendo que a atividade desenvolvida pelo insolvente marido sempre se integraria nessa situação, adquirindo, desse modo, plena aplicabilidade as isenções previstas nos artigos 269.º e 270.º do CIRE.
Por fim, formula um pedido de pagamento de juros indemnizatórios pela AT nos termos do artigo 43.º, n.ºs 1 e 2 da LGT e 61.º, n.º 5 do CPPT.
Resumo da posição da Requerida
De acordo com a posição expressa pela AT, a redação atual da alínea e) do artigo 269.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) prevê que estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrassem sujeitos, apenas os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta, integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
A isenção abrange, assim, todos os atos integrados no âmbito de planos de insolvência ou de pagamentos, ou de liquidação da massa insolvente, com a reserva de o insolvente ser uma empresa ou estabelecimento.
No caso em apreço, entende a AT que estamos perante a aquisição de um imóvel, ainda que em processo de insolvência, mas que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de atividade empresarial alguma, mas que era propriedade de pessoa singular com destino a habitação. Assim, não estão reunidos os pressupostos legalmente previstos para beneficiar da isenção de IS em razão da sua transmissão ter sido efetuada num processo de insolvência de pessoa singular.
A redação anterior do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE previa que “Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.” Neste contexto, era entendimento jurisprudencial uniforme o de que teria de tratar-se de bens imóveis que integrassem o património de uma empresa e não de bens imóveis de pessoas singulares com a única justificação de fazerem parte de um processo de insolvência. Entende a AT que, se o legislador tivesse pretendido alterar o sentido da lei, podê-lo-ia ter expressamente concretizado no art.º 234º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12 que alterou a referida norma, o que não fez. Tal significa que o legislador não pretendeu atribuir mais isenções do que a que foi incluída na atual redação.
A interpretação do texto normativo deve ter um mínimo de correspondência verbal na letra da lei e, bem assim, a assunção de que o legislador se soube expressar em termos adequados. Por outro lado, sendo usados termos de outros ramos do direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm. Em concordância com estas regras interpretativas, a AT não depreende da letra da norma nem do espírito do legislador que a isenção de IS possa abranger as aquisições de bens no âmbito de processos de insolvência de pessoas singulares.
A AT cita ainda diversa jurisprudência arbitral e do STA no sentido da argumentação que sustenta.
Por fim, contesta o pedido de juros indemnizatórios por entender que procedeu a uma correta aplicação do quadro normativo em vigor ao emitir a liquidação impugnada.
Tramitação posterior à apresentação da Resposta
Tendo em conta o requerimento de produção de prova testemunhal apresentado pela Requerente na sua petição inicial, foi marcada uma primeira data para a inquirição no dia 15.07.2019, às 14:30. Contudo, o mandatário da Requerente alegou estar impedido nessa data, tendo solicitado ao tribunal a marcação da referida diligência para o dia 03.09.2019 – data em que se realizaria a inquirição das mesmas testemunhas no âmbito de um outro processo, com o número 25/2019-T.
Não tendo sido possível fazer-se a marcação da inquirição de testemunhas no âmbito deste processo para essa data, foi a mesma agendada para o dia 23.09.2019, às 14:30, tendo as Partes sido devidamente notificadas do referido agendamento.
Contudo, na data em questão apenas compareceu a jurista designada pela Autoridade Tributária e Aduaneira (cf. a ata de inquirição de testemunhas), a qual apresentou dois pedidos: (i) um primeiro de junção aos autos da decisão proferida no âmbito do processo 25/2019-T, o qual foi aceite; (ii) um segundo de aproveitamento da prova testemunhal aí produzida, do qual o tribunal notificou a Requerente para se pronunciar no prazo de 5 dias.
O tribunal notificou ainda as Partes da fixação do prazo para alegações sucessivas, reiterou que a data para prolação da decisão arbitral é o dia 26.11.2019 e advertiu a Requerente da necessidade de efetuar o pagamento da taxa de arbitragem subsequente.
A Requerente não se pronunciou relativamente ao pedido de aproveitamento da prova testemunhal produzida no âmbito do processo 25/2019-T.
Sobre esse pedido, o Tribunal pronunciou-se especificamente através de despacho de 03.10.2019, em que considerou que a possibilidade de aproveitamento da prova decorre do valor extraprocessual que à mesma é atribuído pela lei processual, mormente pelo disposto no artigo 421.º (anterior artigo 522.º do CPC), que cria a possibilidade, para o juiz titular do segundo processo (aquele no qual se suscita o aproveitamento da prova produzida num outro), de valorar o conteúdo da prova testemunhal registada no outro de acordo com a sua convicção. Nos termos da referida disposição legal, é necessário que (i) os depoimentos tenham sido produzidos num processo com audiência contraditório da parte e que (ii) sejam invocados noutro processo contra a mesma parte – verificando-se ambos no caso presente. Verificados os requisitos legais, o tribunal decidiu admitir o pedido de aproveitamento da prova testemunhal produzida no âmbito do processo 25/2019-T.
As partes apresentaram depois alegações escritas, tendo mantido as posições assumidas anteriormente.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, conforme previsto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.
A ação é tempestiva e o processo não enferma de nulidades.
III. FUNDAMENTAÇÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos provados
A. Os insolventes B..., contribuinte n.º..., e mulher C..., contribuinte n.º..., apresentaram pedido de insolvência de pessoa singular, ao qual foi atribuído o número de Processo .../15...T8SNT [cf. PA].
B. No âmbito do processo referido no número anterior foi proferida sentença de insolvência, a qual transitou em julgado no dia 04.01.2016 [cf. PA].
C. O insolvente marido era sócio e gerente de quatro sociedades comerciais, todas com sede em ..., tendo por objeto as atividades de arquitetura, engenharia, design de interiores e promoção imobiliária [cf. depoimento da testemunha B..., prestado no âmbito do processo n.º 25/2019-T].
D. Os rendimentos do insolvente marido eram unicamente provenientes da atividade profissional que desenvolvia nas referidas sociedades [cf. depoimento da testemunha B..., prestado no âmbito do processo n.º 25/2019-T].
E. A situação de insolvência do casal decorreu do colapso financeiro das empresas do insolvente marido [cf. depoimento da testemunha B..., prestado no âmbito do processo n.º 25/2019-T].
F. De acordo com a informação constante do cadastro da Autoridade Tributária e Aduaneira, o insolvente marido encontra-se inscrito pela atividade de arquiteto, enquadrado para efeitos de IRS no regime simplificado de tributação e para efeitos de IVA no regime normal trimestral [cf. PA].
G. A insolvente mulher não se encontra registada no cadastro da Autoridade Tributária e Aduaneira pela prática de qualquer atividade económica [cf. PA].
H. O ora Requerente apresentou um proposta de adjudicação de uma moradia unifamiliar destinada a habitação, constituído por rés do chão, primeiro, segundo e terceiro andares e logradouro, sito na Rua ..., ..., ..., descrito na primeira conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha ... da freguesia de ..., inscrito sob o artigo ... da matriz predial da referida Freguesia [cf. PA].
I. O imóvel descrito no facto provado anterior foi projetado pelo insolvente marido com o objetivo de publicitar o seu estilo arquitetónico [cf. depoimento da testemunha B...].
J. O referido imóvel constituía a casa de morada de família do insolvente marido, sua mulher e respetivo agregado familiar, assim como de local de convívio com amigos e demais familiares, dispondo ainda de um escritório onde o insolvente marido podia trabalhar e receber clientes [cf. depoimento da testemunha B...].
K. As sociedades comerciais referidas no facto provado B não tinham sede no referido imóvel [cf. depoimento da testemunha B...].
L. O referido imóvel foi adjudicado por auto de adjudicação de 15.12.2016 [cf. PA].
M. Com vista à aquisição do imóvel foi emitida, no dia 02.01.2018, a liquidação de IS constante do documento n.º ... de 2018 no valor de € 5.200,00 (cf. documento 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral].
N. O Requerente adquiriu o imóvel, por escritura pública, a 03.01.2018 [cf. PA].
O. O Requerente apresentou reclamação Graciosa da referida liquidação, à qual foi atribuído o n.º ...2018... (cf. PA].
P. A reclamação graciosa foi indeferida expressamente por despacho de 02.10.2018 e notificada por ofício de 08.10.2018, com fundamento em não se encontrarem reunidos os pressupostos a que se refere o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE [cf. PA].
A.2. Factos não provados
Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.
No que se refere aos factos provados, a convicção da árbitra fundou-se nas posições assumidas pelas partes e na análise crítica da prova junta aos autos.
B. DO DIREITO
A questão suscitada ao Tribunal no presente caso é a de saber se a situação de facto aqui submetida se subsume à norma de isenção prevista na alínea e) do artigo 269.º do CIRE, nos termos do qual se prevê que:
“Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
e) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa, bem como a locação de bens”.
A título de súmula histórica, referem-se de seguida os antecedentes da atual norma prevista na alínea e) do artigo 269.º do CIRE:
1. Artigo 121.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência
O artigo 121º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-lei n.º 132/93, de 23 de Abril, dispunha, em matéria de isenções fiscais:
(...)
2 - Estão ainda isentas de imposto municipal da sisa as transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer das providências de recuperação da empresa, que decorram:
(...)
c) Da autonomização jurídica de estabelecimentos comerciais ou industriais, da venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa, bem como dos arrendamentos a longo prazo, previstos, respectivamente, nas alíneas e), f) e g) do n.º 1 do artigo 101.º”
2. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - Preâmbulo
Em 2004 o referido código foi substituído pelo atual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março. No preâmbulo deste diploma, afirma-se:
“49 - Mantêm-se, no essencial, os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais, bem como à indiciação de infração penal.”
3. Lei de autorização legislativa n.º 39/2003, de 22 de Agosto
O CIRE foi aprovado ao abrigo de uma lei de autorização legislativa (Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto) nos termos da qual:
“Artigo 9º
(...)
2 — Fica ainda o Governo autorizado a isentar de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
f) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa, bem como a locação de bens.”
4. Na versão primitiva do CIRE, o artigo 269º dispunha o seguinte:
“Artigo 269.º
Benefício relativo ao imposto do selo
Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrassem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em planos de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
e) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa, bem como a locação de bens;”
Após a alteração introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o artigo 269.º do CIRE prevê o seguinte:
“Artigo 269.º
Benefício relativo ao imposto do selo
Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
e) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa, bem como a locação de bens;”
O Requerente sustenta que, tendo a aquisição do prédio tido lugar no âmbito de um processo de insolvência e integrando o referido prédio a massa insolvente, a isenção de imposto do selo é aplicável.
A AT sustenta que a qualidade do ativo alienado é fundamental para a aplicação da isenção e que, no caso concreto, como o ativo não integrava a atividade empresarial exercida pelo marido insolvente, não estão reunidos os pressupostos de aplicação da isenção por não estar em causa a venda de “elementos do ativo da empresa”. A AT afirma ainda que o facto de o insolvente marido exercer a atividade de arquitetura não é suficiente para provar que o imóvel alienado integrava a sua atividade empresarial ou, mais simplesmente, a sua empresa. Aliás, sendo a afetação do imóvel a habitação e verificando-se ainda que o mesmo consubstanciava a residência familiar dos insolventes, não há razões para o supor integrado na atividade empresarial do insolvente marido.
A questão não é nova e já foi submetida à apreciação dos tribunais portugueses por diversas vezes. A título de exemplo, veja-se o caso colocado perante do STA no âmbito do processo n.º 0866/13, ao qual o Tribunal deu resposta através do Acórdão de 25.09.2013, em que, sumariamente, esclareceu o seguinte:
“I – De acordo com o disposto no art. 269.º, alínea e), do CIRE, ficam isentas de IS as vendas de «elementos do ativo da empresa».
II – Assim sendo, a referida isenção não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de atos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, antes havendo de demonstrar-se que o bem vendido integra o ativo de uma empresa.”
A questão já foi também colocada aos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD diversas vezes, sendo disso exemplo os processos n.º 649/2015-T, 13/2016-T, 136/2016-T, 368/2016-T, 585/2016-T, 5/2017-T, 18/2017-T, 67/2017-T, 92/2017-T.
De acordo com a norma de isenção, para um determinado ato estar isento de imposto do selo é preciso que se verifique a seguinte conjugação de circunstâncias:
(i) O ato estar previsto num plano de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou ser praticado no âmbito da liquidação da massa insolvente;
(ii) O ato corresponder a uma das espécies elencadas na norma de isenção: realização de operações de financiamento, trespasse ou cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, constituição de sociedades, transferência de estabelecimentos comerciais, venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa, locação de bens.
No caso da operação de venda, a redação da norma é clara: para ser aplicável a norma de isenção, tem que se tratar da venda de elementos do ativo da empresa. Portanto, é a caraterística do bem de integrar, ou não, o ativo da empresa que determina a sujeição da venda a imposto do selo ou a sua isenção.
Empresa, nos termos do disposto no próprio artigo 5.º do CIRE, é “toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica”. Assim, podemos considerar a existência de uma empresa, independentemente do formato jurídico através do qual a atividade seja realizada, sempre que estivermos perante capital (isto é, tecnologia, infraestrutura, ferramentas, etc.) e trabalho organizados com vista ao exercício de uma atividade económica, nomeadamente, a arquitetura. E esta empresa existia no caso concreto, na medida em que decorre dos elementos de facto dados como provados que o insolvente marido exercia a atividade económica de arquitetura de uma forma organizada, com sociedades constituídas, clientes, locais para o exercício da atividade. Não está em dúvida, portanto, que existia uma atividade económica organizada sob a forma de uma empresa e que o insolvente marido era o principal ator dessa unidade produtiva.
Mas não é possível ficar por aí para se aplicar corretamente a norma em questão. Com efeito, a norma refere-se a vendas de “elementos do ativo da empresa”. É, portanto, necessário indagar se o imóvel concretamente alienado integrava, ou não, o ativo da empresa que vimos existir. E, quanto a este aspeto, o depoimento da testemunha ouvida no âmbito do processo n.º 25/2019-T, que este Tribunal entendeu aceitar como prova do presente processo, é claro e credível: a atividade era exercida através de várias sociedades, sendo que nenhuma delas tinha a sua sede no prédio que foi alienado, que descreveu como sendo o centro da sua vida familiar e local de convívio com amigos. É certo que a testemunha referiu que tinha um escritório em casa e que a usava também como exemplo do seu estilo arquitetónico. Mas serão esses factos suficientes para dizermos que a mesma consubstanciava um elemento do ativo da empresa do agente económico em causa? Não nos parece. A utilização marginal do escritório de casa como local de trabalho e a utilização da casa para mostrar a potenciais clientes um determinado estilo de arquitetura não transformam uma casa de morada de família, que é um local pertencente ao foro privado e familiar de um sujeito, em elemento ativo da sua empresa. É possível traçar uma distinção entre elementos afetos à atividade empresarial e elementos afetos à vida pessoal e, neste caso, ouvindo o depoimento da testemunha, fica claro que essa distinção coloca o prédio em questão do lado da vida pessoal do agente económico em questão.
Ora, a alegação e prova de factos que demonstrassem que o prédio sobre o qual incidiu a liquidação pertencia à atividade empresarial do insolvente cabia, nos termos das regras sobre ónus da prova previstas no artigo 342.º do Código Civil, à Requerente – que deles se pretendia fazer valer para prova do direito que alega à isenção. Ora, da prova reunida nestes autos não resulta que o prédio em questão pertencesse à atividade empresarial do insolvente, pelo contrário.
Nestes termos, não assiste razão à Requerente quando sustenta a invalidade do ato de liquidação de imposto do selo por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o mesmo se aplicando aos vícios que imputa ao indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... .
Quanto à invocada inconstitucionalidade por violação do princípio constitucional da igualdade, na vertente de proibição do arbítrio, previsto no artigo 13.º da Constituição, e dos princípios da tutela da confiança e da segurança jurídica, são parcos os argumentos aduzidos nesse sentido pela Requerente. Nas suas alegações refere que a norma do artigo 269.º CIRE, quando interpretada no sentido de não abranger os bens próprios do insolvente, contraria os propósitos do processo de insolvência e do benefício fiscal aqui em causa, i.e., a célere satisfação dos direitos dos credores. Refere ainda que, “atenta a vontade do legislador, plasmada no preâmbulo do CIRE, no preâmbulo do CPEREF e na autorização legislativa sempre se imporia a interpretação extensiva do artigo 269.º CIRE no sentido de integrar na previsão da norma as transmissões cedidas a terceiros (…) em contradição com o princípio da igualdade, na sua vertente de proibição do arbítrio, nos termos do artigo 13.º da CRP e 7.º, n.º 3 da LGT.”
Não é totalmente percetível para este tribunal o que se pretende com o trecho transcrito, mas, tendo em conta que nele, como na outra referência à questão da inconstitucionalidade feita pela Requerente, se refere o princípio da igualdade na vertente da proibição do arbítrio, sempre se dirá que a jurisprudência constitucional tem sido clara no sentido de definir o que esta é – um princípio com uma função de controlo negativo sobre a liberdade de conformação de situações de tratamento diferenciado por parte do legislador. Assim, estar proibido o arbítrio significa que o legislador, ao distinguir situações para efeitos do seu tratamento diferenciado, deverá atuar com um fundamento racional – um “fundamento material bastante”, tendo em conta “a natureza e a especificidade da situação e dos efeitos tidos em vista (e logo o objetivo do legislador) e, bem assim, o conjunto dos valores e fins constitucionais (isto é, a desigualdade não há-de buscar-se num ‘motivo’ constitucionalmente impróprio).”
No Acórdão n.º 1007/96 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Dezembro de 1996), o Tribunal Constitucional mais uma vez realçou que o princípio da igualdade "obriga que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal". E acrescentou-se nesse aresto que "[p]ara que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação".
A teoria da proibição do arbítrio confere ao decisor judicial um critério que lhe permite realizar o controlo do princípio da igualdade, mas que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador. Constitui um critério essencialmente negativo, que permite censurar casos de intolerável desigualdade.
“Por outras palavras, o princípio constitucional da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular. O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções, Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vern"unftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot) ”.
Em suma, tudo se resume a saber se a desigualdade criada pelo legislador se revela como 'discriminatória' e arbitrária, por desprovida de fundamento racional, ou se, resultando num tratamento diferenciado de situações, essa diferenciação tem uma razão que se possa considerar aceitável tendo em conta o quadro de valores vigente. Ora, no presente caso, a distinção que ocorre é a seguinte: para efeitos de aplicação de uma isenção em sede de imposto do selo, aplicável a operações de transmissão de imóveis no contexto de situações de insolvência, há transmissões de bens que dela beneficiam e outras que não beneficiam. Quais é que beneficiam (de acordo com a norma de isenção)? A transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa. Pelo contrário, não beneficiam da isenção as operações realizadas sobre outros elementos que não constituam ativos da empresa insolvente, como, por exemplo, elementos pertencentes ao património pessoal do insolvente. A delimitação deverá ser feita tendo em conta o disposto no artigo 5.º do CIRE, nos termos do qual empresa é “toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de uma atividade económica”. Deste modo, sendo evidente que existe uma diferenciação de tratamento, esta não procede de um critério irracional ou injustificado, mas sim de uma ponderação aceitável dos valores em questão – por um lado, facilitar o trânsito de bens integrados num processo de insolvência, por outro lado, proteger a necessidade de angariação de receita tributária. A ponderação é realizada com base no conceito de empresa – um conceito estruturante na lógica do Código da Insolvência e Recuperação ds Empresas – sendo esse o critério de delimitação dos bens que são abrangidos pela isenção. A venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa é, portanto, alvo de um tratamento positivo, beneficiando de uma isenção que potencia a sua transmissão. Veja-se o seguinte excerto do preâmbulo do diploma: “Quando na massa insolvente esteja compreendida uma empresa que não gerou os rendimentos necessários ao cumprimento das suas obrigações, a melhor satisfação dos credores pode passar tanto pelo encerramento da empresa, como pela sua manutenção em actividade. Mas é sempre da estimativa dos credores que deve depender, em última análise, a decisão de recuperar a empresa, e em que termos, nomeadamente quanto à sua manutenção na titularidade do devedor insolvente ou na de outrem. E, repise-se, essa estimativa será sempre a melhor forma de realização do interesse público de regulação do mercado, mantendo em funcionamento as empresas viáveis e expurgando dele as que o não sejam (ainda que, nesta última hipótese, a inviabilidade possa resultar apenas do facto de os credores não verem interesse na continuação). (…) Ao direito da insolvência compete a tarefa de regular juridicamente a eliminação ou a reorganização financeira de uma empresa segundo uma lógica de mercado, devolvendo o papel central aos credores, convertidos, por força da insolvência, em proprietários económicos da empresa.” Assim, nas situações em que o titular da empresa é uma pessoa singular, há que fazer uma distinção entre os bens que integram o património dessa empresa e os bens que, pertencendo ao mesmo titular, não integram o património da empresa. É precisamente o que acontece no caso presente, tanto mais que ficou provado através do testemunho do próprio titular da empresa insolvente e do bem cuja tranmissão deu lugar à liquidação impugnada, que o bem não se enquadrava no ativo da empresa.
Deste modo, entendemos que não assiste razão à Requerente quando invoca uma violação do princípio constitucional da igualdade. Não se vê também qualquer violação dos princípios da tutela da confiança e da segurança jurídica – a qual, aliás, foi apenas alegada pela Requerente sem aduzir qualquer fundamento para tal. O estabelecimento de um tratamento diferenciado por parte do legislador não configurará certamente, de per se, uma violação desses princípios.
IV – DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
(i) Indeferir o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de imposto do selo n.º ..., de 2018, no valor de € 5.200,00;
(ii) Indeferir o pedido de declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento do processo de reclamação graciosa n.º ...2018..., em concreto do despacho de 02.10.2018 notificado à Requerente por ofício de 08.10.2018;
(iii) Indeferir o pedido de pagamento de juros indemnizatórios formulado pela Requerente;
(iv) Condenar a Requerente nas custas do processo.
V – Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 5.200 (cinco mil e duzentos euros), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI – Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerente.
Lisboa, 9 de novembro de 2019
A Árbitro
(Raquel Franco)