Decisão Arbitral
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo n.º 230/2014 – T
I RELATÓRIO
A…, S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede na Rua …, Lisboa (doravante simplesmente “A...” ou “Requerente”), vem, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante, “DL 10/2011”), apresentar pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade de 27 (vinte e sete) atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (doravante, IUC) identificados na Tabela infra [a qual se junta e se dá por integralmente reproduzida como ANEXO A e que faz parte integrante do presente pedido], efetuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT) relativamente aos 11 (onze) veículos também identificados no ANEXO A, e referentes aos anos de 2010 a 2012, no valor global de € 969,15.
Concretamente pede a requerente:
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A Declaração de Ilegalidade e consequente Anulação dos 27 atos de liquidação relativos ao IUC respeitantes aos 11 veículos identificados pelo respetivo número de matrícula na listagem junta como documento n.º 1;
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O Reembolso do montante de € 969,15, respeitante ao imposto indevidamente pago pela Requerente e
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O Pagamento de Juros Indemnizatórios, pela privação do referido montante de € 969,15, nos termos do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Alega a requerente no essencial a fundamentar o pedido:
a) Todos estes atos de liquidação adicional de imposto assentam nos mesmos factos e, bem assim, nos mesmos fundamentos de direito.
b) Todos pressupõem o mesmo entendimento jurídico-tributário: o de que, na pendência dos respetivos contratos de locação financeira, a aqui Requerente, entidade locadora dos veículos em questão, é responsável pelo pagamento de IUC, em vez do correspondente locatário,
c) E que, uma vez finalizado o contrato e operada a transmissão da propriedade dos referidos veículos para os locatários, continua aquela responsabilidade a pertencer à Requerente se a transmissão não houver sido registada.
d) O apuramento da (i)legalidade das sobreditas liquidações implica a análise dos mesmos fundamentos de facto e a interpretação e aplicação das mesmas regras e princípios de Direito.
e) Considerando esta identidade de factos tributários, de fundamentos de facto e de direito e, bem assim, do tribunal competente para a decisão, e atendendo ainda ao elevado número de viaturas e ao volume de documentação necessária para comprovar os factos infra alegados, optou a Requerente por, ao abrigo dos artigos 3.º do RJAT e 104.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário, agregar as liquidações adicionais cuja legalidade se contesta num único pedido de pronúncia arbitral,
f) Requerendo a este Tribunal Arbitral que, ao abrigo dos citados preceitos e tendo em consideração o princípio da economia processual, emita, no âmbito do presente processo arbitral, um juízo de ilegalidade acerca dos 27 atos de liquidação de imposto aqui em apreço,
g) À semelhança do que já ocorreu, de resto, nos processos arbitrais n.º 26/2013-T e 27/2013-T, cujas decisões já transitaram em julgado.
h) Os atos de liquidação de IUC de que aqui se reclamam foram dirigidos à «B…», titular do NIPC … (doravante, simplesmente B...), anteriormente designada por «C».
i) Tratava-se de uma sucursal em Portugal que, conforme resulta da respectiva certidão comercial (que se junta e reproduz para todos os efeitos legais como ANEXO B), foi extinta, e cuja matrícula foi consequentemente cancelada em 10.01.2007 (cf. ANEXO B).
j) O conjunto de ativos e passivos que era detido por esta sucursal foi, porém, antes da sua extinção, incorporado na aqui Requerente (cf. comprovativo que se protesta juntar),
k) Que, assim, assumiu a posição de locadora em todos os contratos de leasing que se encontravam então em vigor na esfera jurídica da B....
l) Designadamente, aqueles contratos que respeitavam aos veículos identificados no ANEXO A, cujo IUC está aqui em discussão.
m) Assim, tendo em conta que, com a referida incorporação, os contratos de locação financeira identificados no mencionado ANEXO A) passaram a integrar a carteira de ativos da Requerente – que adquiriu todos os direitos e obrigações inerentes à posição de financiador e de Locador, designadamente, mas sem restrições, o direito a receber todos os montantes devidos pelos adquirentes, vencidos e vincendos, e pelos Locatários dos contratos ao respetivo Locador, a título de rendas vincendas, valor residual e quaisquer outros montantes que, em virtude dos contratos, devam ser pagos ao Locador –, é também a esta que cabe a legitimidade processual para contestar eventuais dívidas de natureza tributária que venham a ser imputadas aos (ou que derivem dos) referidos contratos.
n) Como foi também a Requerente aquela que, conforme se refere infra, pagou o montante de IUC liquidado (€969,15) nos atos de liquidação adicional identificados no ANEXO A.
o) A Requerente (e, antes dela, a B..., cuja carteira de ativos foi assumida pela Requerente) é uma instituição de crédito com forte presença no mercado nacional.
p) De entre as suas áreas de atividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel; com efeito, a Requerente é, atualmente, um dos maiores bancos portugueses especializados a operar naquela área particular de financiamento.
q) Assim, uma parte substancial da sua atividade reconduz-se à celebração – entre outros – de contratos de locação financeira destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
r) Estes contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos: a Requerente, depois de contactada pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço – adquire o veículo ao fornecedor que lhe seja indicado pelo cliente,
s) e procede, de seguida, à sua entrega ao referido cliente – que assume, pois, a qualidade de locatário.
t) Durante o período que vier a ser estipulado no contrato, este locatário mantém o gozo temporário do veículo – que permanece propriedade da Requerente –, mediante remuneração a entregar à Requerente sob a forma de rendas; podendo vir a adquirir o veículo, no termo do contrato, mediante o pagamento de um valor residual.
u) Assim, um ponto-chave deste tipo de contratos – que se assume como sua característica essencial – reside no facto de, em circunstância alguma, o gozo do automóvel adquirido pertencer à Requerente: o veículo sobre o qual recai o contrato permanece a todo o tempo, durante a vigência do contrato, no gozo exclusivo do cliente/locatário.
v) Os veículos automóveis identificados na listagem junta como ANEXO A (cuja matrícula consta da coluna C) foram dados em locação financeira, pela Requerente, aos clientes ali também identificados na coluna L) – cfr. os respetivos Contratos de Locação Financeira, os quais se juntam como documentos n.º 12 a 22, conforme identificado na coluna O) do ANEXO A.
x) Na data do termo destes Contratos, os locatários dos referidos veículos automóveis decidiram exercer a sua opção de compra, a qual lhes é legal e contratualmente assegurada, tendo-se tornado, pois, proprietários dos mencionados veículos (conforme resulta das faturas de venda juntas como documentos n.º 23 a 33, identificadas na coluna S) da tabela que consiste o ANEXO A, por referência à matrícula) e procedido ao pagamento do respetivo valor residual.
z) Recentemente, a Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC a que respeitam os atos de liquidação adicional identificados na tabela junta como ANEXO A.
aa) O que veio a fazer, conforme atestam os comprovativos de pagamento juntos como documentos n.º 1 a 11, melhor identificados na coluna T) do mencionado ANEXO A.
bb) Alguns destes atos de liquidação respeitam a anos nos quais os veículos em apreço ainda se encontravam sob a vigência de contratos de locação,
cc) Outros respeitam a anos nos quais os mesmos veículos já haviam sido alienados para os respetivos locatários, por já ter terminado o correspondente contrato de locação .
dd) Veja-se, a título de exemplo, o veículo automóvel com a matrícula ..-..-.., identificado nas linhas 1 e 2 do ANEXO A (uma para cada ato de liquidação: 2011 e 2012). Sobre este veículo incidiu um contrato de locação financeira celebrado em 23.01.2006 com a locatária D… LDA. (NIPC …),o qual estava em vigor quando, em 2011, se tornou devido o IUC relativo a este ano.
ee) Pelo que, consequentemente, impunha-se ao respetivo locatário liquidá-lo, conforme se exporá mais detalhadamente infra.
ff) Entretanto, em 30.01.2011, este veículo foi alienado à mesma entidade, que se tornou assim sua proprietária.
gg) Motivo pelo qual, também em 2012, quando se tornou devido o respetivo IUC (no mês da matrícula: i.e., Janeiro), era também à referida entidade (já enquanto proprietária) que competia pagá-lo, conforme infra se logrará demonstrar.
hh) Assim, em nenhum dos anos quanto aos quais está a ser exigido o IUC, relativamente a este veículo automóvel em particular, a responsabilidade por pagá-lo era da aqui Requerente.
ii) Era sim, em todos aqueles anos, da D...: em 2011, enquanto locatária; em 2012, já enquanto proprietária.
jj) E o mesmo sucede quanto aos demais veículos automóveis que se encontram identificados no ANEXO A: a responsabilidade por suportar os IUC cujos atos de liquidação ora se contestam jamais pertenceu à Requerente, mas aos respetivos locatários (antes da data da venda) e proprietários (depois daquela venda – cuja data é identificada, para cada caso, na coluna R) do ANEXO A).
kk) Note-se que, por ter procedido ao pagamento ao abrigo do regime excecional instituído pelo Decreto-Lei 151-A/2013 (Regime Excecional de Regularização de Dívidas Tributárias e à Segurança Social), tanto neste caso em concreto quanto em todos os demais mencionados no ANEXO A, a Requerente apenas pagou o montante devido (e constante dos referidos atos de liquidação) a título de imposto, tendo-lhe sido dispensado o pagamento dos correspondentes juros compensatórios.
ll) Assim, nesta sede, apenas se requer a restituição do montante pago a título de imposto, no valor global de € 969,15.
mm) A responsabilidade por proceder ao pagamento do IUC cuja liquidação se contesta não cabe, nem coube jamais – nem mesmo durante a vigência do contrato de locação financeira – à Requerente,
nn) Em primeiro lugar, atentar-se-á na atribuição à entidade locatária da qualidade de sujeito passivo do IUC devido na vigência de um contrato de locação, procurando demonstrar que o mesmo deve ser considerado encargo de quem efetivamente utiliza o veículo.
oo) A circunstância de a propriedade de determinado veículo ter já sido transmitida para a locatária não é prejudicada pelo facto de não ter sido realizado, por esta última, o correspondente registo junto da Conservatória do Registo Automóvel.
A autora não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o signatário foi designado pelo presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceite nos termos legalmente previstos.
Em 14-01-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal ficou constituído em 12-5-2014 [artigo 11º-1/c), do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º, da Lei nº 66-B/2012, de 31-12]
Em 11-06-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente e que os atos tributários impugnados se devem manter na ordem jurídica.
Defende a AT, designada e muito sinteticamente:
a) que o sujeito passivo do IUC é quem está inscrito no registo como proprietário ou equiparado [os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade e outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação (art 3º-1 e 2, do CIUC);
b) Tal inscrição registral não constitui, para este efeito, presunção ilidível, mas antes é uma opção clara de política legislativa: de que os proprietários (e equiparados) sujeitos passivos de IUC são os que constem como tal do Registo Automóvel;
c) De todo o modo, a apresentação de faturas de venda dos veículos não é o meio probatório idóneo para a demonstração do contrato de venda ou de transmissão da propriedade do veículo, além de que não foram juntos – nem poderão sê-lo – os contratos de locação financeira que estão na génese das sobreditas faturas;
d) O artigo 3º deve ser conjugado com o artigo 19º, ambos do CIUC;
e) O IUC é liquidado de harmonia com a informação registal oportunamente transmitida pelo IRN e, por isso, não pode ser considerada a atuação da AT como tendo dado causa ao pedido de pronúncia arbitral; foi antes a requerente que deu causa ao pedido pela inércia manifestada relativamente à atualização da informação registal.
Em 27-6-2014 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.
Foi prescindida a produção de prova testemunhal e, com o consenso das partes, estas produziram de imediato alegações orais em que, no essencial, mantiveram as posições espelhadas nos respetivos articulados.
Saneador/Pressupostos processuais
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.
II FUNDAMENTAÇÃO
Os factos provados
É o seguinte o quadro factual essencial assente para enquadrar jurídica e legalmente as questões suscitadas:
a) A requerente é uma instituição de crédito cuja denominação anterior era “C…”;
b) De entre as suas áreas autorizadas de atividade assume especial relevo o financiamento ao setor automóvel e, designadamente, a área de locação financeira destinada à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;
c) Os atos de liquidação de IUC objeto do presente pedido, foram dirigidos à «B…», titular do NIPC 980.144.914 (doravante, simplesmente B...), anteriormente designada por «C…».
d) Tratava-se de uma sucursal em Portugal que, conforme resulta da respectiva certidão comercial (que se junta e reproduz para todos os efeitos legais como ANEXO B), foi extinta, e cuja matrícula foi consequentemente cancelada em 10.01.2007 (cf. ANEXO B).
e) O conjunto de ativos e passivos que era detido por esta sucursal foi, porém, antes da sua extinção, incorporado na aqui Requerente
f) Que, assim, assumiu a posição de locadora em todos os contratos de leasing que se encontravam então em vigor na esfera jurídica da B....
g) Designadamente, aqueles contratos que respeitavam aos veículos identificados no ANEXO A, cujo IUC está aqui em discussão.
h) Foram, entre outros, dados de locação financeira pela requerente, os veículos automóveis identificados na lista junta ao pedido de pronúncia [Anexo A e docs 12 a 22].
i) Os locatários dos mencionados veículos exerceram a opção contratual de compra, tendo-os adquirido à requerente e procedido ao pagamento do respetivo valor residual;
j) A requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC a que respeitam os atos de liquidação documentados [Docs 12 a 22, juntos com o pedido];
k) A requerente efetuou esses pagamentos ao abrigo do disposto no DL 151-A/2013 (Regime Excecional de Regularização de Dívidas Tributárias e à Segurança Social];
l) Os atos de liquidação adicional mencionados em j), respeitam a anos em que, relativamente aos respetivos veículos, estes ou estavam dados de locação financeira ou tinham já sido vendidos por ter sido exercida a opção de compra no final da vigência de contratos de locação financeira;
h) Foi entendido pela AT, para fundamentar as sobreditas liquidações de IUC que a Requerente era sujeito passivo do imposto por ser à data dos factos tributários em apreço a entidade em nome de quem os veículos estavam registados ou que a requerente tinha essa responsabilidade por ser locadora financeira relativamente a alguns dos veículos.
Motivação
Os factos mencionados estão documentalmente comprovados ou não foram especificamente impugnados.
Designadamente as datas de matrícula dos veículos mencionados estão documentadas, designadamente no processo administrativos instrutor.
Relativamente à prova das vendas dos veículos, a requerente apresentou as respetivas faturas [Docs juntos com o presente pedido de pronúncia arbitral].
A requerida não impugnou esses documentos, invocando, designadamente, a sua falsidade ou simulação das vendas.
Por outro lado, sendo a autora uma empresa ou sociedade comercial sujeita a regras de controlo contabilístico, designadamente para apuramento das suas obrigações tributárias, será ou seria relativamente fácil comprovar a existência real e/ou subsistência dessas transações[1].
Os atos de venda dos veículos automóveis estão assim suficientemente comprovados, independentemente da suficiência ou não das faturas para efetivação do registo comercial.
É que uma coisa são os elementos necessários para efetivação do registo, outra é a prova do negócio sujeito a registo.
E a este propósito, não pode deixar de ser assinalado que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é contrato verbal, não sujeito, por conseguinte, a forma específica. [2]
II FUNDAMENTAÇÃO (continuação)
O Direito
Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, constituem questões centrais dirimentes saber:
A - Se, na data da ocorrência dos factos geradores do imposto [artigo 3º-1, do CIUC[3]] os proprietários dos veículos não forem os que constam do registo, serão apesar disso estes que serão sempre considerados os sujeitos passivos do IUC, não sendo por consequência ilidível a presunção de titularidade revelada pelo registo OU, dito doutro modo, se a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção;
B – No caso de locação financeira na data do facto tributário, quid juris quanto à responsabilidade, em sede de IUC, do locador?
B – Finalmente, se, no caso de se concluir pelo estabelecimento duma presunção de titularidade, as faturas são meio idóneo de prova de venda de veículos com vista à ilisão dessa mesma titularidade.[4]
Estas questões foram já, no essencial, abordadas em diversas decisões do CAAD, algumas delas já publicadas em www.caad.org.pt e outras em vias de publicação [Cfr., v. g., decisões proferidas nos processos nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013, 294/2013 e 52/2014[5]].
Não se antolham razões para inverter o alterar o sentido essencial desta Jurisprudência.
Vejamos então:
Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):
“ARTIGO 3º
INCIDÊNCIA SUBJETIVA
1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.
Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.
Há assim que ponderar qual a melhor interpretação[6] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.
A - Sujeito passivo do IUC: “o proprietário que consta do registo automóvel” ou “o proprietário”?
A questão que se coloca em primeiro lugar é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.
A nosso ver e ao contrário do que defende doutamente a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.
Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:
~ no âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;
~ também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;
~ e, por último, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.
Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.
Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.
Dissertando sobre a atividade interpretativa diz FRANCESCO FERRARA que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).
Como refere BAPTISTA MACHADO “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.
O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).
“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. FRANCESCO FERRARA,Ensaio, pp. 134/135).
Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis”(loc. cit., p.128).
Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. BAPTISTA MACHADO, loc. Cit., p. 181; J.OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).
Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.
O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.
Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos BAPTISTA MACHADO que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).
No mesmo sentido se pronunciam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16 ).
E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere aquele autor: “ este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo” (loc. cit. p. 189/190).
Logo a seguir este insigne Professor chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “ unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).
Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica BAPTISTA MACHADO que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).
Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” diz este autor que este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA nas anotações ao artigo 9º do CC.
No que respeita à “unidade do sistema jurídico” BAPTISTA MACHADO considera este o fator interpretativo mais importante: “a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).
É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).
Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).
É ainda BAPTISTA MACHADO que nos diz, agora no que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.
Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (loc.cit., p. 183).
Como ensina JOSEF KOHLER, citado por MANUEL DE ANDRADE “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Ensaio, p. 27).
B – A locação financeira e o sujeito passivo do IUC.
Como se viu, a lei dispõe que serão sujeitos passivos os proprietários dos veículos [art 1º-1, do CIUC], equiparando a proprietário o locatário financeiro, o adquirente com reserva de propriedade e outros titulares de direitos de opção.
Voltando à interpretação da lei e ao que se deixou explanado, reconhecendo, designadamente que o IUC é um imposto ambiental e viário [cfr artigo 1º, do CIUC, para além de outras normas deste compêndio donde ressalta igual conclusão, como v. g., o artigo 7º (referência ao nível de emissão de carbono) e os arts 9º e ss (tratando das taxas, há referência constante ao nível de emissão de carbono)].
Pode, por isso, concluir-se que a referência do imposto, a capacidade contributiva está assente no veículo e, consequentemente, em quem o utiliza.
E se assim é, não faz sentido tributar o locador financeiro – proprietário formal do veículo ou, um “quase proprietário”[7] mas não o seu proprietário, digamos, económico – e deixar fora dessa tributação quem verdadeiramente age como proprietário, utilizando o veículo como propriedade sua, ou seja, o locatário financeiro. É este que utiliza ou usufrui do veículo e de todas as comodidades ( e incomodidades…) que este proporciona.
Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.
Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador (locatário financeiro, por exemplo) do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.
O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.
Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam, como se viu, sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.
Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos “reais proprietários” e utilizadores dos veículos, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[8].
Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.
Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores-locatários financeiros dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.
Por outro lado, estabelece o art. 73º da LGT que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.
Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum [e, portanto, ilidível], a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.
C- Subsunção
Analisados os elementos carreados para o processo pela Requerente e os factos provados, extrai-se a conclusão que aquela não era a proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço à data dos respetivos factos tributários, por, entretanto, já ter transferido a propriedade dos mesmos, nos termos da lei civil ou porque alguns dos veículos eram nas datas dos factos tributários, objeto de contratos de locação financeira celebrados entre a requerente, como locadora e diversos locatários.
Por outro lado, os elementos documentais, constituídos por cópias das respetivas faturas de venda – que não foram impugnados pela AT -, gozam da força probatória prevista no artigo 376º, do Código Civil e da presunção de veracidade que é conferida pelo art.º 75º, nº 1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas.
Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Quanto à prova de venda de veículos, ela pode ser feita por qualquer meio, uma vez que a Lei não exige forma específica, designadamente, escrita.[9]
Voltando às questões decidendas e em síntese conclusiva podem ser então dadas as seguintes respostas:
A - [Se a AT pode prevalecer-se da ausência de atualização do registo do direito de propriedade para considerar como sujeito passivo do IUC as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados junto da Conservatória do Registo Automóvel?]
A Autoridade Tributária e Aduaneira só pode prevalecer-se da realidade registal do automóvel se não for comprovada a desatualização da situação jurídica, designadamente quanto à propriedade do veículo ou ao seu regime de locação financeira.
B - [Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, nomeadamente para efeitos da incidência subjetiva deste imposto?].
O registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto.
C - [Se, subjacente a todas as questões atrás enunciadas, a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção?]
Resposta prejudicada pelas conclusões anteriores
Nestas circunstâncias, as 27 mencionadas e ora impugnadas liquidações devem ser anuladas e, consequentemente restituídas à Requerente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, as respetivas importâncias, no valor global de €969,15, conforme pedido.
Juros indemnizatórios
Os Requerentes pedem o reembolso dos IUC indevidamente pagos, no montante global de €969,15, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos do art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
A requerente pagou as quantias liquidadas, como se refere na alínea n) da matéria de facto fixada.
De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade parcial do ato de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”, na parte correspondente à correção que foi considerada ilegal.
No que concerne aos juros indemnizatórios, afigura-se que a AT, com os elementos que detinha no momento das liquidações, agiu de harmonia com a Lei, ou seja, tributando a requerente com base nos elementos que conhecia e, designadamente, os que constavam do registo automóvel. Só supervenientemente é que veio a requerente demonstrar que a presunção de titularidade registal não se confirmava.
Não parece assim no mínimo claro que nos encontremos perante um vício de violação de lei substantiva, consubstanciado em erro nos pressupostos de direito, imputável à Administração Tributária.
Consequentemente, a Requerente não tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT.
III – DECISÃO
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente os pedidos de anulação das liquidações de IUC e, em consequência, anulando esses atos tributários, condena a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição à requerente dos respetivos valores pagos conforme pedido e
b) Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.
Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 969,15.
Custas
É condenado nas custas a parte que a elas tiver dado causa, entendendo-se que a tal dá causa a parte vencida – artigo 527º-1 e 2, do CPC.
No caso, a responsabilidade pelas custas terá de ser da AT (parte vencida), tanto mais que tinha elementos para impedir o prosseguimento do processo nos 30 dias seguintes ao do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 13º-1, do RJAT.
Não assiste assim razão à AT quando pretende que foi a requerente quem deu azo ao pedido de constituição do Tribunal e que esta e não a requerida é que deveria ser condenada nas custas.
Assim, fixando o montante das custas em € 306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, condena-se a Autoridade Tributária e Aduaneira no respetivo pagamento.
Lisboa, 22 de julho de 2014
O Árbitro,
(José Poças Falcão)
[1] Cfr as atuais regras da faturação (DL’s nºs 197 e 198/2012, de 24 agosto)
[2] Adiante, se desenvolverá melhor a fundamentação desta temática.
[3] Acrónimo de Código do Imposto Único de Circulação.
[4] Embora tal temática já tenha sido anteriormente abordada ao de leve na fundamentação da matéria de facto.
[5] Em que foi também árbitro o signatário.
[6] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido veja-se, entre muitos outros autores, Freitas Pereira, M. H., Fiscalidade, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009).
[7] O locatário financeiro tem o gozo exclusivo do bem locado, tem o direito de adquirir a respetiva propriedade (sem que o locador se possa opor), pode exercer diretamente contra o vendedor os direitos resultantes do contrato de compra e venda celebrado pelo locador (em vez deste) e até o risco de perecimento e destruição do bem locado corre por sua conta (e não por conta do locador) [cfr o DL nº 149/95, de 24 de junho, sucessivamente alterado pelos DL´s nºs 265/97, de 2 de outubro e 30/2008, de 25 de fevereiro. Cfr especialmente os arts 10º-2, 13º e 15º.
[8] Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1º do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
Sobre a noção do princípio da equivalência diz-nos SÉRGIO VASQUES: “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da atividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria atividade”(Cfr. Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2000, p. 110).
E, mais à frente, explica este Professor, relativamente aos automóveis: “um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.
[9] O facto de a Lei exigir um requerimento escrito para o registo de venda não significa, obviamente, uma sujeição do contrato à forma escrita: uma coisa é o contrato de compra e venda em si, outra é o requerimento para registo [Cfr neste sentido, o Acórdão do STJ de 14-2-1991, in www.dgsi.pt]