Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 274/2019-T
Data da decisão: 2019-11-02  IRS  
Valor do pedido: € 19.952,92
Tema: IRS de 2017 – Procedimento inspectivo. Ónus da prova. Falta ou insuficiência de fundamentação de liquidação.
Versão em PDF

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

a)            Em 13 de Abril de 2019 a Requerente, A..., NF..., com domicílio sito na Rua ..., nº..., ...-... ..., veio deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), tendo em vista obter pronúncia sobre a ilegalidade “... da liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2017 e correspondentes juros compensatórios e o consequente decretamento da sua anulação” com referência ao documento 2019 ... correspondente a um valor a pagar de 19 952,92 euros;

b)           É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, adiante designada por AT ou Requerida;

 

c)            O pedido de constituição do TAS foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT no dia 15-04-2019.

d)           Pelo Conselho Deontológico do CAAD foi designado árbitro o signatário desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 06.06.2019, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

e)           O Tribunal Arbitral Singular (TAS) encontra-se, desde 27 de Junho de 2019, regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto deste dissídio (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 30.º, n.º 1, do RJAT).

 

f)            A fundamentar o pedido, a Requerente começa por referir que ocorreu “alteração do procedimento de inspecção interna que passa a inspecção externa” uma vez que a AT, “sem qualquer esclarecimento prévio e/ou qualquer notificação, dirigiu-se ao domicílio do sujeito passivo e solicitou o processo de documentação fiscal relativo a esse ano”, “o que, o sujeito passivo cumpriu, de acordo com o princípio da boa-fé e da cooperação, a que está obrigado, independentemente da legalidade de tais pedidos” e que desta forma “... obteve distinta documentação, respeitante ao sujeito passivo, no âmbito deste procedimento inspectivo”.

g)            Seguidamente refere que a AT não cumpriu o nº 1 do artigo 15º do RCPIT, notificando a Requerida da abertura das Ordens de Serviço para inspecção tributária.

h)           Considera a Requerente que a AT obteve “elementos ... de forma externa, sem qualquer legitimidade para o efeito, quando o procedimento inspectivo, era apenas de cariz interno, e sem que notificasse o sujeito passivo que seria submetido a um procedimento inspectivo, informando-o dos seus direitos e deveres”.

i)             Depois de caracterizar o procedimento de inspecção como sendo verdadeiramente “externo” a Requerente invoca que não foi previamente cumprido o nº 1 do artigo 49º do RCPIT, concluindo que os “procedimentos de inspecção revestiram um carácter externo e não foram devidamente e previamente notificados ao sujeito passivo, dando a conhecer-lhe todos os seus direitos e deveres”.

j)             Considera a Requerente que não foi respeitado “... o principio da proporcionalidade ou “da proibição do excesso”, o qual se subdivide em três subprincípios: o princípio da adequação de meios, o princípio da exigibilidade ou da necessidade e o princípio da proporcionalidade em sentido restrito, previstos no nº2 do art.º18 e nº2 do art.º266 da CRP, nº4 do art.º63 da LGT e art.º7 do RCPIT”, daqui retirando que “...  a AT agiu de forma ilegal, motivo pelo qual, estando a actuação daquela sujeita ao princípio da legalidade estrita, todo o procedimento inspectivo deve ser anulado e em consequência, declarado nulo o acto de liquidação, nos termos da al. l) do nº2 do art. º161 do CPA”.

k)            E que mesmo que assim não fosse “a presente liquidação foi determinada no âmbito de um procedimento de inspecção ilegal, o que terá como consequência legal a sua anulação”.

l)             Quanto ao IRS de 2017 – Mais-Valias, refere a Requerente, em concreto, que “apresentou declaração modelo 3, anexo G, quadro 9, ..., inscrevendo nesse quadro os montantes e datas correspondentes, quer à aquisição, quer à sua alienação, de participações sociais da sociedade B..., S.A. com o NIPC nº...” indicando “como valor de aquisição o montante de 93.750,00 €, em 9 de Março de 2007” e “como valor de realização o montante de 2.566.721,41 €, em 16 de Outubro de 2017”.

m)          A Requerente invoca que o facto do sujeito passivo ter respondido que não tem em sua posse o documento comprovativo da aquisição das acções, não determina que o custo de aquisição das participações sociais tenha que corresponder ao seu valor nominal, uma vez que decorreram mais de 5 anos sobre a data da aquisição (em 2007), invocando o acórdão do STA de 19.11.2014 que versa sobre um caso similar, concluindo que “tendo em consideração que a prova documental exigida pela AT, em 2018, respeitava ao ano de 2007, referente à aquisição das ditas participações sociais, nesse momento já não era exigível à requerente que tivesse na sua posse tais elementos documentais (obrigação que tinha somente até ao ano de 2012)”.

n)           Refere ainda a Requerente que “... não se poderá olvidar que em simultâneo, a AT realizou outra acção inspectiva correlacionada com a situação em apreço, designadamente, no que toca à aquisição de tais participações sociais pelo pai do sujeito passivo (mulher) e sua respectiva alienação”, “... sendo realizada também pelo mesmo inspector tributário”, resultando que “... a inspecção tributária teve acesso ao documento de aquisição das participações sociais, que ocorreu em 17 de Março de 2006, pelo Pai do sujeito passivo (mulher), a saber,C...”, “... aquisição, que teve o custo de 750.000,00 €, correspondente a participações sociais da totalidade do capital social da B..., S.A. com o NIPC nº...”, tendo ocorrido que “... no ano seguinte, em 9 de Março de 2007, C..., pai de A... (ora requerente), transmitiu participações sociais para o sujeito passivo (mulher), na proporção de 12,5% do capital social da B..., S.A. com o NIPC nº...”, daqui se retirando que, “... 12,5% do valor de 750.000,00 €, perfaz o montante de 93.750,00 €, correspondente ao valor declarado pelo sujeito passivo na sua declaração de rendimentos”.

o)           Defende ainda a Requerente que o valor de aquisição declarado beneficia da presunção do nº 1 do artigo 75º da LGT competindo à AT o ónus de que resulta do nº 2 do artigo 75º da LGT.

p)           Por último refere a Requerente que porque “é desconhecido o itinerário cognitivo e valorativo seguido pelo autor do acto deve concluir-se que houve preterição de formalidades legais, que se faz equivaler à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto o que vai contra quer este preceito legal, quer o art.º268 da Constituição da República, em termos de se considerar preterida uma formalidade essencial, teremos de concluir que o acto em causa se encontra claramente desprovido dos elementos de facto e de direito”.

 

q)           Notificada a Requerida, respondeu em 10.09.2019, juntando o PA, composto por 25 folhas e laudas, constantes de ficheiro informatizado.

r)            Em termos gerais adere aos fundamentos do Relatório da Inspeção Tributária (RIT) referindo, nomeadamente, o seguinte: “a liquidação de IRS ora impugnada teve origem em correções efectuadas com recurso a aplicação de correções técnicas, que dimanaram do referido procedimento inspectivo efectuado na sequência da emissão do despacho Dl2018..., para efeitos de recolha e cruzamento de dados, dando origem à ordem de serviço interna 012018... para controlo de mais-valias, de acordo com o Relatório da Inspeção Tributária - RIT – que aqui se dá por integralmente reproduzido”.

s)            Justifica a AT a liquidação adicional no facto de em 15 de Outubro de 2018, a Requerente ter sido notificada para apresentar os documentos comprovativos referentes à aquisição das referidas participações sociais e “em resposta a tal notificação ... referiu que não tinha na sua posse o documento comprovativo solicitado, acrescentando, ainda, que a existência de tal documento não obsta à aceitação do valor de aquisição por si declarado”.

t)            E conclui: “... pelo que atendendo à inexistência de custo documentalmente provado, ter-se-á de considerar que o custo de aquisição das participações sociais corresponde ao seu valor nominal”, e nesta conformidade “... tendo em conta que o capital da sociedade B..., SA é de €250 000,00 e se divide em 250 000 acções, o valor nominal de cada acção é de €1,00 cada”.

u)           Daqui resultando que  “sabendo que a Requerente alienou 12,5% do capital social (de acordo com o contrato de venda da participação social em posse da Autoridade Tributária (AT)), o valor de aquisição das participações sociais transmitidas a considerar para efeitos de cálculo de mais-valias é de €31.250,00 (250.000*.12,5%*€1)”, pelo que  “... o valor da mais valia corrigido é de €2.532.033,91 (2.566.721,41 - (31.250*1,11)), gerando uma correção ao rendimento coletável no montante de €69.375,00 (2.532.033,91 - 2462.658,91)”-

v)            Relativamente à invocada fata de fundamentação do acto de liquidação refere a AT que face ao pedido da Requerente “... é manifesto que aquela compreendeu o iter cognoscitivo do acto de liquidação, ora sindicado”, até porque “... ao longo dos presentes autos a Requerente demonstra amplamente ter compreendido o quid da liquidação de imposto, ora em questão”.

w)          Mas mesmo que se verificasse “... uma situação de falta ou insuficiência da fundamentação – hipótese que só em teoria e sem conceder se admite, por cautela e dever de representação –, cabia à Requerente lançar mão do mecanismo previsto no artigo 37.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e solicitar a respectiva notificação ou emissão da certidão em conformidade”.

x)            Por outro lado “... ainda que o acto sub judice padecesse de deficiências ao nível do discurso fundamentador – o que só por mera hipótese académica se admite – tais deficiências degradar-se-iam em meras irregularidades não essenciais, uma vez que, ainda assim, tais deficiências permitem o cabal esclarecimento do seu destinatário, possibilitando-lhe insurgir-se contra elas, como, aliás, fez o Requerente por via do presente pedido. Donde sempre se afiguraria justificada a aplicação ao caso vertente do princípio do aproveitamento dos actos administrativos”.

y)            E conclui: “efetivamente, a Requerente revela à saciedade que lhe foi perfeitamente possível apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela Requerida, para proceder à liquidação oficiosa, pese embora a discordância demonstrada”.

z)            Dissentindo da posição da Requerente, refere que não ocorreu “... alteração (ilegal) do âmbito, fins e extensão do procedimento de inspeção, titulado pelo despacho 012018... e pela ordem de serviço interna 012018...”, pelo que “... não tinha de ser dado cumprimento ao que se dispõe no nº 1 do artigo 15°, do RCPITA, através da realização de um despacho devidamente fundamentado e notificado à entidade inspecionada”, pelo que “... não foi preterida nenhuma formalidade essencial conducente á ilegalidade da liquidação, pois não tinha de ser promovida qualquer alteração de âmbito do procedimento, por estarmos em face de um procedimento de inspeção interno, titulado por um Despacho e uma Ordem de Serviço, e não de um procedimento externo de inspeção”.

aa)         Conclui: “... dado tratar-se de um procedimento interno, não há lugar, nem tinha de haver, pois a lei não obriga, a parte dos procedimentos previstos no RCPITA para a inspeção classificada de externa, designadamente, ao cumprimento do disposto nos artigos 46° (Credenciação) e 49° (Notificação prévia para procedimento de inspecção) e, no que especificamente respeita à nota de diligência, também não houve lugar à aplicação do artigo 61º do RCPITA”.

 

bb)         A Requerente apresentou alegações escritas em 30.09.2019, mantendo o que já tinha referido em sede de pedido de pronúncia.

 

cc)          A Requerida não apresentou alegações escritas remetendo, implicitamente, a sua posição para o teor da Resposta ao PPA.

 

II – SANEAMENTO

a)            As partes são legítimas, gozam de personalidade jurídica e de capacidade judiciária e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

b)           Tempestividade - o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no CAAD, em 13 de Abril de 2019. A Requerente impugna a liquidação adicional de IRS de 2017 com referência ao documento 2019... correspondente a um valor a pagar de 19 952,92 euros, cuja data limite de pagamento era 24 de Abril de 2019.

c)            Assim, nos termos conjugados dos artigos 102º, nº 1, alínea a), do CPPT e 10º, nº 1, alínea a), do RJAT, o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.

d)           O procedimento arbitral não padece de nulidades.

 

Cumpre apreciar.

III - MÉRITO

 

III-1- MATÉRIA DE FACTO

 

Factos dados como provados

 

Considera-se dada como provada a seguinte matéria de facto:

 

1             A Requerente declarou na declaração Modelo 3 de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2017 a venda de partes sociais da empresa B..., SA, NIF ... pelo montante global de 2.566.721.00 euros, sendo os valores declarados no quadro 9 do anexo G da referida declaração Modelo 3 os seguintes:

 

- Conforme artigos 129º a 131º do pedido de pronúncia arbitral (PPA) e ponto II-3 do Relatório de Inspecção Tributária (RIT) junto pela AT com o processo administrativo (PA);

2             A AT promoveu uma acção de ispecção relativamente à Requerente, tendo-se iniciado  no âmbito do despacho DI2018... (em 15.10.2018) para efeitos de recolha e cruzamento de dados, dando origem à ordem de serviço interna OI2018... (acção iniciada em 19.11.2018) para controlo de mais-valias em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), sendo o período em análise o ano de 2017 – conforme pontos II-1 e II-2 do Relatório de Inspecção Tributária (RIT) junto com a AT com o processo administrativo (PA);

3             Em simultâneo com a acção de inspecção atrás referida, decorreu uma outra acção inspectiva, credenciada pela Ordem de Serviço OI2018..., correlacionada com a venda do capital social da empresa B..., SA, NIF..., tendo a inspecção tributária acedido ao documento de aquisição da totalidade do capital social, ocorrida em 17 de Março de 2006, pelo pai da Requerente C... e pelo valor de 750.000,00 €  - conforme artigos 134º a 137º do PPA, documento nº 1 em anexo ao PPA e antepenúltimo parágrafo do ponto III.1.1 do RIT junto com a AT com o processo administrativo (PA);

4             Em 9 de Março de 2007 o pai da Requerente, C..., transmitiu-lhe acções na proporção de 12,5% do capital social da B..., S.A. com o NIPC nº...– conforme artigo 138º do PPA e artigo 10º da Resposta da AT;

5             Por ofício nº..., datado de 15.10.2018, a Sra. Inspectora titular a acção inspectiva remeteu à Requerente, por carta registada com aviso de recepção, a seguinte missiva: “Assunto: Colaboração com os Serviços de Inspeção Tributária - (Artigos 59º e 63º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 29º nº 3 alínea b) do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA))

De harmonia com o disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 29º do RCPITA e artigos 59º e 63º nº 1 da LGT, solicita-se a V. Ex. a se digne providenciar no sentido de serem enviados a estes serviços, com menção dos dados constantes na N/Referência (processo e técnico) e no prazo de 15 (quinze) dias, os seguintes elementos declarados no quadro 9 do Anexo G da Modelo 3 de IRS do ano de 2017:

- Documento comprovativo da aquisição das partes sociais em 09-03-2007;

Estes elementos poderão ser enviados, devidamente comprimidos, para o endereço eletrónico ...@...pt

Alerta-se para o facto de que a falta de envio da informação solicitada, dentro do prazo fixado, ser considerada contra-ordenação fiscal punível com coima, nos termos do artigo 117º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) – posição global da Requerente nos artigos 5º a 128º do PPA (onde considera esta missiva como correspondendo a uma acção levada a efeito no seu domicílio) e página 3 do PA junto pela AT com a Resposta;

6             (1) Em 08 de Novembro de 2018, o ilustre mandatário da Requerida remeteu um email para a ilustre inspectora referida no ponto anterior, com o seguinte teor “com referência ao teor do ofício identificado e na qualidade de advogado de A... informo que a n/constituinte já não tem em seu poder o documento comprovativo solicitado”. (2) Em 16 de Novembro de 2018, via email, respondeu a Senhora Inspectora ao mandatário da Requerente referindo “Não tendo na sua posse, nem apresentando o documento de correção solicitado a declaração mod. 3 da contribuinte terá de ser retificada, não podendo ser aceite o valor de aquisição declarado”. (3) No mesmo dia 16 de Novembro de 2018 respondeu, via email, o ilustre mandatário da Requerente à Senhora Inspectora, referindo “Com referência ao teor do mail infra, é nosso entendimento que a inexistência do documento em causa não obsta à aceitação do valor de aquisição, razão pela qual caso VªExa mantenha a mesma interpretação aguardaremos pela liquidação oficiosa” – conforme folha 6 do PA junto pela AT com a Resposta.

7             A AT, em 11-01-2019, enviou notificação à Requerente e ao seu ilustre mandatário, por carta registada, para exercer o direito de audição quanto ao projeto de relatório nos termos do artigo 60º da Lei Geral Tributária (LGT) e 60º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), no prazo de 15 dias, não tendo exercido o direito de audição – conforme ponto IX do RIT que integra o PA junto pela AT com a Resposta e páginas 7 e 9 do PA junto pela AT com a Resposta;

8             Por ofício de 11.02.2019 a AT notificou o ilustre mandatário da Requerente das “CORREÇÕES RESULTANTES DE ANÁLISE INTERNA - ARTIGO 62.º DO REGIME COMPLEMENTAR DO PROCEDIMENTO DE INSPEÇÃO TRIBUTARIA E ADUANEIRA (RCPITA)” cujo relatório final e conclusões foram enviados em anexo, tendo ainda a AT, em 26.02.2019, remetido à Requerente um ofício informando que em 14.02.2019 tinha o seu ilustre mandatário sito notificado do Relatório Final de Inpecção – conforme páginas 17 e 18 do PA junto pela AT com a Resposta;

9             Consta do relatório final de inspecção o seguinte: “Em 15-10-2018 notificou-se o sujeito passivo para apresentar os documentos comprovativos da aquisição das participações sociais, tendo sido informado que a mesma já não tem em seu poder o documento comprovativo solicitado, tendo reforçado em face da nossa insistência para a necessidade de comprovação do valor de aquisição que “a inexistência do documento em causa não obsta à aceitação do valor de aquisição”

...

Assim, ainda que notificada para apresentar os documentos comprovativos da aquisição das participações sociais, o sujeito passivo, A... não os apresentou, pelo que atendendo à inexistência de custo documentalmente provado, teremos que considerar quo o custo de aquisição das participações sociais corresponde ao seu valor nominal.

O capital da sociedade B..., SA é de € 250 000,00 e divide-se em 250.000 ações, com o valor nominal de € 1,00 cada.

Sabendo que o sujeito passivo alienou 12,5% do capital social (de acordo com o contrato de venda da participação social em posse da Autoridade Tributária (AT)), o valor de aquisição das participações sociais transmitidas a considerar para efeitos de cálculo de mais-valias é de (250 000,00 *12,5*€1).

 Assim, o valor da mais valia corrigido é de 2.532.033,91 (2.566.721,41 - (31.250*1,11)), gerando uma correção ao rendimento coletável no montante de 69.375,00 (2.532.033,91 - 2.462.658,91)” – conforme folha não numerada entre a folha 14 e a folha 15 do PA junto pela AT com a resposta;

10           Em 13 de Abril de 2019 o Requerente entregou no CAAD o presente pedido de pronúncia arbitral (PPA) – registo de entrada no SGP do CAAD do pedido de pronúncia arbitral.

 

Factos não provados

 

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide processual.

 

Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, indicando-se, por cada ponto levado à matéria de facto assente, os meios de prova que se consideraram relevantes, como fundamentação.

 

III-2- DO DIREITO

 

São colocadas, essencialmente, três questões, correspondentes às desconformidades com a lei que a Requerente invoca, a saber:

 

Quanto à liquidação de IRS

 

             Na medida em que a AT pediu à Requerente que lhe facultasse o “documento comprovativo da aquisição das partes sociais em 09-03-2007” e tendo esta respondido que já não o tinha em seu poder, sendo este o único fundamento que lhe permitiu partir para a consideração, como valor de aquisição, o valor nominal, face à alínea b) do artigo 48º do CIRS, se a obrigação dos nºs 1 e 2 do artigo 128º do CIRS se mantém, muito embora entre 09.03-2007 (data da aquisição das acções pela Requerente) e a data em que o pedido da AT foi feito (ofício de 15.10.2018) tenham decorrido mais de 11 anos.

             Se padece de falta ou insuficiência de fundamentação.

 

Quanto ao procedimento inspectivo de onde resultou o RIT que fundamentou a liquidação impugnada

 

             Se o procedimento inspectivo, na forma adoptada pela AT, pelo facto de ter sido dirigido à Requerente o pedido a que se alude o ponto 5. dos factos provados, se transformou de interno em externo e se, por isso, padece de qualquer ilegalidade.

 

III-2-Quanto ao mérito

 

A)           O texto da lei cuja leitura ou aplicação está em causa.

 

Código do IRS

Artigo 48º

No caso da alínea b) do nº 1 do artigo 10º, o valor de aquisição, quando esta haja sido efetuada a título oneroso, é o seguinte:

a)            Tratando-se de partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do nº 1 do artigo 10º ou de outros valores mobiliários cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o da menor cotação verificada nos dois anos anteriores à data da alienação, se outro menos elevado não for declarado;

b)           Tratando-se de quotas, outras partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do nº do artigo 10º ou de outros valores mobiliários cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respetivo valor nominal;

Artigo 128º

Obrigação de comprovar os elementos das declarações

1.            As pessoas sujeitas a IRS devem apresentar, no prazo de 15 dias, os documentos comprovativos dos rendimentos auferidos, das deduções e de outros factos ou situações mencionadas na respetiva declaração, quando a Autoridade Tributária e Aduaneira os exija.

2.            O prazo previsto no número anterior é alargado para 25 dias quando o sujeito passivo invoque dificuldade na obtenção da documentação exigida.

3.            A obrigação estabelecida no n.º 1 mantém-se durante os quatro anos seguintes àquele a que respeitem os documentos.

4.            O extravio dos documentos referidos no n.º 1 por motivo não imputável ao sujeito passivo não o impede de utilizar outros elementos de prova daqueles factos.”

 

B) – Inexistência de documentação relativa à aquisição, pela Requerente, das acções.

 

Observa-se que a AT não se pronunciou na sua Resposta, contraditando, o referido pela Requerente, nomeadamente, nos artigos 129º a 147º do PPA.

 

A questão que se coloca já foi objecto de decisões do STA que aqui se têm que aplicar, existindo pelo menos uma, precisamente, sobre a aquisição de uma quota de uma sociedade comercial (acórdão de 19-11-2014, processo: 056/14, 2ª Secção, Relator Conselheiro Aragão Seia):

 

“I – O prazo para o contribuinte guardar os documentos comprovativos do efectivo pagamento do preço de aquisição de quota societária é de 5 anos, como resulta do artigo 119º do CIRS (hoje artigo 128º).

II - Notificado o contribuinte para apresentar tais documentos depois de decorrido tal prazo, e não os tendo apresentado, quer porque já não os tinha em seu poder, quer porque a instituição bancária também já não detinha os elementos bancários referentes ao ano da aquisição, não é possível à AF, unicamente com base em tal omissão, desconsiderar o valor da compra constante da escritura de aquisição da dita quota para efeitos de cálculo do imposto do ano em que ocorreu a venda da dita quota.”

 

Actualmente, face ao nº 3 do artigo 128º do CIRS o prazo para manter os documentos é de 4 anos seguintes àquele a que respeitem os documentos. Ou seja, se os documentos se referem a uma aquisição de 2007, o contribuinte teria que os manter até ao último dia do ano 2011.

 

Neste processo, o único fundamento que a AT usou para se partir para a desconsideração do valor de aquisição das acções que a Requerente expressou na declaração de rendimentos, foi a falta de apresentação do documento que titulasse a aquisição, tal como resulta do ponto 9 dos factos provados que reproduz o RIT: “assim, ainda que notificada para apresentar os documentos comprovativos da aquisição das participações sociais, o sujeito passivo, A... não os apresentou, pelo que atendendo à inexistência de custo documentalmente provado, teremos que considerar quo o custo de aquisição das participações sociais corresponde ao seu valor nominal”.

 

A fundamentação da liquidação, neste processo, é idêntica à situação de facto que sustentou o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19-11-2014, tirado no Processo 056/14, 2ª Secção, Relator Conselheiro Aragão Seia, onde se escreveu:

“... a única razão que levou a AT a efectuar a liquidação do imposto do IRS nos termos em que o fez, prende-se com o facto de a impugnante não ter apresentado fotocópias dos meios de pagamento utilizados quando do negócio havido em 1993.

Mas o que é certo, é que face ao preceituado no artigo 119º, n.º 2 do CIRS, na redacção com interesse, a obrigação de guarda dos documentos (de todos os documentos) respeitantes à aquisição da dita quota social cessou no ano de 1998, uma vez que tal obrigação afere-se por referência ao momento da ocorrência do facto.

Portanto, no ano de 2004, quando a AT exigiu a prova do valor de aquisição, mediante cópia dos meios de pagamento utilizados no negócio de aquisição, fez uma errada interpretação do disposto no artigo 128º, n.º 2 do CIRS (antes 119º, n.º 2), porque nesse momento já não era exigível à impugnante que tivesse na sua posse tais elementos documentais.

E a esta interpretação, do disposto neste artigo 128º, n.º 2 do CIRS, não belisca o disposto nos artigos 10º e 45º do CIRS, na redacção com interesse, uma vez que regulam matérias diferentes, enquanto que estes preceitos legais estabelecem os critérios e pressupostos de incidência do imposto sobre os ganhos ou acréscimos patrimoniais, já aquele artigo 128º, n.º 2, impõe indirectamente ao contribuinte o dever de provar os factos (não) geradores de obrigações tributárias, não sendo, por isso, o disposto naqueles preceitos legais incompatível com esta interpretação que se faz do disposto no artigo 128º, n.º 2 do CIRS.

Ou seja, a AT não está impedida de fazer as correcções que entender adequadas, procedendo a liquidações correctivas, não o pode é fazer apenas com o fundamento de que a impugnante não cumpriu determinadas obrigações de prova, num momento em que tais obrigações já não recaiam sobre a mesma impugnante.”

 

Em face do exposto, não restam dúvidas de que a liquidação aqui impugnada padece de desconformidade com a lei (artigo 128º-3 do CIRS), porquanto assenta, apenas, na falta de documentação que foi pedida à Requerente e que esta não era obrigada a ter, nem a entregar, após 31.12.2011.

 

Mesmo que assim não fosse, conforme consta do RIT (“sabendo que o sujeito passivo alienou 12,5% do capital social (de acordo com o contrato de venda da participação social em posse da Autoridade Tributária (AT)), o valor de aquisição das participações sociais transmitidas a considerar para efeitos de cálculo de mais-valias é de (250 000,00 *12,5*€1)”) se a AT tomou conhecimento do contrato de venda da participação social da Requerente, documento junto noutro procedimento de inspecção, conforme ponto 3 dos factos assentes, também tomou necessariamente conhecimento do contrato de aquisição da totalidade do capital social da empresa B..., S.A., ocorrida em 17 de Março de 2006, pelo  pai da Requerente, C... e pelo valor de 750.000,00 €.

 

A partir do valor de aquisição, assim determinado e aceite, em Março de 2006, correspondente à totalidade do capital social da empresa, pelo pai da Requerente e aceitando-se que os 12,5% do capital da sociedade, foram transmitidos à Requerente em 9 de Março de 2007, certamente, será de se configurar que, a ter existido transmissão onerosa, o valor declarado pela Requerente na declaração de rendimentos, de 93 750,00 euros, estará em linha com o valor da aquisição primitiva, dispondo a AT de meios – por análise aos elementos da empresa - para determinar se o valor das acções, entre 09.03.2006 e 09.03.2007, valorizou ou desvalorizou.

 

É que a lei refere: “custo documentalmente provado”. A AT suscitou à Requerente algo que pode ter-se por ser diverso: “documento comprovativo da aquisição das partes sociais em 09-03-2007” não se aludindo à documentação que poderia confirmar pelo menos a data da transmissão de acções,  a que se alude no artigo 138º do CIRS, dado tratar-se de empresa não cotada na Bolsa, ou pelo menos isso não é referido no processo.

 

Os documentos à disposição da AT, configuram-se ser suficientes para evidenciar o “custo” real ou muito aproximado de aquisição das acções (caso tivesse ocorrido transmissão onerosa) que lhe foram transmitidas e que o pai comprara um ano antes. 

 

De notar ainda que a Requerente, não fala claramente em “transmissão onerosa”, nem tal se configura verosímil numa situação como a deste processo, em que uma pessoa singular (C...) comprou em Março de 2006 a totalidade do capital social da empresa (vidé o contrato que integra o documento nº 1 junto com o PPA) e depois, em 2017, a mesma pessoa singular vende 37,5% das acções, o seu cônjuge vende outros 37,5% das acções e as suas das filhas A... e D... vendem, cada uma, 12,5% das acções representativas do capital da empresa.

 

Parece evidente, que não ocorreu qualquer transmissão onerosa das acções do primitivo adquirente da totalidade do capital da empresa, quer para o cônjuge, quer para as filhas, mas sim transmissões gratuitas, isentas de imposto do selo ao abrigo da alínea e) do artigo 6º do Código do Imposto do Selo.

 

E assim sendo, a norma a aplicar não seria o artigo 48º do CIRS, mas sim a norma do artigo 45º do CIRS, havendo que recorrer-se ao nº 3 do artigo 15º do CIS para determinar o valor que serviria à liquidação de Imposto do Selo, caso não existisse isenção, de onde se configura poder resultar valor idêntico ao que a Requerente colocou na sua declaração de IRS.

 

Nestes termos, terá que proceder o PPA, como acima se referiu.

 

***

Uma vez que a decisão a que se chegou garante a plenitude dos objectivos que a Requerente pretende com o PPA: a anulação da liquidação adicional, seria inútil o TAS pronunciar-se sobre as demais desconformidades que aduziu contra a liquidação ou contra o procedimento de inspecção tributária, ficando prejudicada a sua apreciação.

 

***

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que, com os fundamentos expostos, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se a liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2017 e correspondentes juros compensatórios, com referência ao documento 2019 ... correspondente a um valor a pagar de 19 952,92 euros, por desconformidade com o nº 3 do artigo 128º do CIRS e com a alínea b) do artigo 48º do CIRS.

 

V - VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 19 952,92 €, nos termos do artigo 97.º - A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

 

VI – CUSTAS

 

Custas de 1 224,00 euros, a suportar pela Requerida, conforme o artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.

 

Notifique.

Lisboa, 02 de Novembro de 2019

Tribunal Arbitral Singular,

 

Augusto Vieira