Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 225/2019-T
Data da decisão: 2019-10-31  IUC  
Valor do pedido: € 8.306,40
Tema: Imposto Único de Circulação – Embarcação de recreio.
*Cf. Acórdão do STA, Processo n.º 87/19.2 BALSB, que anulou a decisão arbitral e decidiu em substituição
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DECISÃO ARBITRAL        

I – RELATÓRIO

 

1.            Pedido  

 

A..., LDA, pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., nº..., ..., doravante designada por Requerente, representada por B..., portadora do NIF..., requereu, em 29-03-2019, ao abrigo do disposto nos art.s 4º e 10º, nº 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista a:

             Anulação do ato de liquidação do Imposto Único de Circulação notificado através do ofício nº 2019..., de 27-01-2019 do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia ...;

             Anulação do ato de liquidação do Imposto Único de Circulação notificado através do ofício nº 2019... de 10-01-2019 do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia ...;

             Anulação do ato de liquidação do Imposto Único de Circulação notificado através do ofício nº 2019... de 17-01-2019 do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia ...;

             Anulação do ato de liquidação do Imposto Único de Circulação notificado através do ofício 2019... de 18-01-2019 do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia ... .

A Requerente alega, no essencial, o seguinte:

             A Requerente foi objeto de liquidação oficiosa de Imposto Único de Circulação – categoria F - referente a uma sua embarcação de recreio de nome “...”, com registo no MAR – Registo Internacional de Navios da Madeira, R-133, no que toca aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018;

             Foi emitida a favor da requerente, declaração de isenção de IUC pelo RINM-MAR;

             Nos termos do art. 2.º do CIUC a embarcação em causa encontra-se sujeita àquele imposto mas, nos termos do art. 7.º al. d) do DL nº 165/86 de 26 de junho, conjugado com o art. 24.º, n.º 2 do DL 96/89 de 28 de março, existe equiparação entre os navios registados no RINM-MAR e as empresas instaladas na Zona Franca da Madeira, atribuindo-se àqueles os mesmos benefícios que se atribuiriam às empresas;

             O IUC assume natureza de imposto local pelo que às embarcações de recreio registadas no RINM-MAR é aplicável, nos termos do DL 192/2003, de 22 de agosto, o regime da Zona Franca da Madeira (art. 6.º, n.º 1 do DL 96/89 de 28 de março por remissão do art. 1.º do DL 192/2003, de 22 de agosto);

             Por via da referida remissão legal, as embarcações registadas no MAR são sujeitas à aplicação do regime fiscal previsto na legislação relativa à Zona Franca da Madeira (art. 24.º do DL 96/89 de 28 de março por remissão do art. 1.º do DL 192/2003, de 22 de agosto);

             Pelo que, concluindo, e tratando-se de imposto local, os proprietários das embarcações de recreio de uso particular registadas no MAR estão isentos do seu pagamento;

             Não resultando dos referidos diplomas legais, a distinção - para efeitos da aplicação do regime em vigor na Madeira – se os proprietários das embarcações tenham sede/residência em Portugal continental;

             A isenção de IUC, pelos fundamentos supra expostos, deve ser aplicada aos proprietários de embarcações de recreio registadas de uso particular, no RIN-MAR.

 

2.            Resposta

Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:

             A obrigação de registo a que se refere o nº 1 do artigo 19º do atual Regulamento da Náutica de Recreio, que nos termos do seu nº 2 “é efetuado pela autoridade marítima”, é realizada pelo capitão do porto que, de acordo com o nº 6 do artigo 13º do DL nº 44/2002 de 02/03, é a entidade com competência para efetuar o registo de embarcações, estipulando a sua alínea a) “Efectuar o registo de propriedade de embarcações nacionais, assim como o cancelamento, reforma e alteração de registo, de acordo com o estabelecido legalmente, nomeadamente em matéria de registo de bens móveis e náutica de recreio”;

             O MAR constitui um segundo registo de navios com carácter “especial, insular e ultraperiférico”, que pode ser percepcionado como alternativa ao registo previsto no actual Regulamento Geral das Capitanias e no Regulamento da Náutica de Recreio;

             Este registo é especial em virtude da sua específica alocação a uma área do território nacional, por oposição ao registo ordinário, que se refere a todo o território nacional;

             É ainda insular e ultraperiférico pelas particulares características do território em que se insere;

             Para além do registo da matrícula da embarcação no MAR, estas devem ser registadas junto da Conservatória do Registo Comercial privativa da Zona Franca da Madeira, que importem a constituição, aquisição ou extinção de direitos reais, mas dado a embarcação em análise ser de recreio, esta não se encontra sujeita ao duplo registo, sendo o âmbito do registo comercial restrito aos navios mercantes;

             As embarcações de recreio registadas no MAR consideram-se registadas em Portugal, arvorando bandeira portuguesa, nos termos do nº 2 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 96/89, de 28 de Março, sendo, por isso, objecto de tributação em sede de IUC;

             O IUC incide sobre os veículos matriculados ou registados em Portugal, incluindo as “embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior a 20kw, registados desde 1986”, constituindo a categoria F de veículos, nos termos do artigo 2º, nº 1, alínea f) do Código do IUC;

             No âmbito do art.º 1º do mesmo diploma, é assente o princípio da equivalência, “procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra de igualdade tributária”;

             A embarcação em causa, a titularidade da Requerente, possui um motor com potência superior a 20 KW, pelo que se encontra sujeita a IUC, por força da al. f) do nº 1 do art.º 2º do CIUC;

             O regime fiscal previsto para a Zona Franca da Madeira, engloba o disposto no Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo DL 215/89 de 01/07 e o disposto no DL 165/86 de 26/06, com diferentes âmbitos de aplicação;

             Nos termos do DL 165/86 de 26/06, nomeadamente o seu artigo 7º, as empresas instaladas na Zona Franca da Madeira encontram-se isentas de taxas e impostos locais (alínea d) do artº 7º), isenção esta que se estende às embarcações de recreio, por via dos artigos 8º e 26º, do DL 96/89 de 28/03, pela equiparação dos navios registados no MAR às empresas instaladas para efeitos fiscais;

             Contudo, nos termos do artigo 3º, nº 1 do Código do IUC, constituem sujeitos passivos do imposto, os proprietários dos veículos registados como tal, sendo que, apesar de o nº 1 do artigo 2º da Lei nº 22-A/2007, de 29/06, determinar que o IUC é administrado pela atual Autoridade Tributária e Aduaneira, o nº 1 do artigo 3º da mesma Lei, a receita do IUC relativa, entre outros, aos veículos da categoria F, é da titularidade do município de residência do sujeito passivo;

             Refere o artigo 3º, no 1 da Lei nº 22-A/2007, de 29/06 que “É da titularidade do município de residência do sujeito passivo ou equiparado, a receita gerada pelo IUC incidente sobre os veículos de categoria A, E, F e G, bem como 70% da componente relativa à cilindrada incidente sobre veículos de objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, caso em que deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador”;

             No caso da embarcação em questão, apesar desta se encontrar, desde 2015, registada no MAR, a receita de IUC decorrente da sua tributação, é da titularidade do município da residência do seu proprietário, A..., Lda, NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., em Vila Nova de Gaia;

             Aliás, a Lei nº 22-A/2007, de 29/06, esclarece que o IUC é um imposto cuja administração compete à Autoridade Tributária, nos termos do seu artigo 2º, nº 1, sendo que, nos termos do artigo 16º, nº 1 do CIUC, a competência para a liquidação do IUC encontra-se atribuída à Autoridade Tributária e Aduaneira Assim, a titularidade a que se refere o artigo 3º, nº 1 da Lei nº 22-A/2007, de 29/06, é apenas a titularidade da receita, sendo, por isso, o IUC um imposto de natureza estadual, constituído o Estado o sujeito activo da relação jurídico-tributária;

             Refira-se ainda que o IUC não constitui um imposto cujo sujeito ativo da relação jurídico- tributária seja a Zona Franca da Madeira ou qualquer outro município, pois que o sujeito passivo da relação jurídico-tributária é o Estado, que não prescindiu da receita de IUC relativo a embarcações, em prol da Zona Franca da Madeira;

             Acrescendo o facto de que a titularidade da receita não é de nenhum município da Zona Franca da Madeira, mas sim do município de Vila Nova de Gaia;

             É que, na interpretação da alínea d) do artigo 7º do Decreto-Lei nº 165/86, de 26/06, a referência a “taxas e impostos locais”, refere-se às taxas criadas no âmbito do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais e aos impostos criados no âmbito das competências tributárias dos municípios, previstas no artigo 15º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais;

             Logo, o IUC não se enquadra no conceito de “taxas e impostos locais” constantes da alínea d) do artigo 7º do Decreto-Lei nº 165/86 de 26/06.

 

3.            Tramitação subsequente

Por despacho do Tribunal arbitral de 18 de agosto de 2019,  foi proposto prescindir-se da reunião prevista no art.º 18º do RJAT, havida conta de que não fora requerida a produção de prova adicional, para lá da prova documental já incorporada nos autos e de que não fora suscitada matéria de exceção sobre a qual as Partes devessem pronunciar-se, e ainda considerando que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da prática de atos inúteis.

Foi ainda proposto que as Partes prescindissem de alegações orais ou escritas.

As Partes deram tacitamente a sua anuência à tramitação proposta.

 

II – SANEAMENTO

O Tribunal arbitral singular foi regularmente constituído em 14.06.2019, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n.º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD).

O Tribunal arbitral é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.

A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n. 1 do RJAT.

Não foram identificadas nulidades no processo.

Não existem exceções nem questões prévias de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

As questões a decidir são as seguintes:

1)            Se o Imposto Único de Circulação deve ser considerado um imposto local, para os efeitos do art.º 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86;

2)            Se a embarcação em causa deve beneficiar de isenção do Imposto Único de Circulação ao abrigo do art.º 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86, por se encontrar registada no Registo Internacional de Navios da Madeira.

 

IV – FUNDAMENTAÇÃO

 

A.           FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES

1º: A Requerente era proprietária, à data dos factos tributários invocados, de uma embarcação de recreio.

2º A embarcação mencionada encontrava-se, ao tempo dos factos tributários invocados, equipada com um motor com potência superior a 20 KW.

3º A embarcação encontrava-se registada, à data dos factos tributários invocados, no Registo Internacional de Navios da Madeira – RINMAR – sob o nº R-..., e com indicativo de chamada ... .

Os factos considerados provados foram assim considerados com base na prova documental junta ao processo.

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

B.            FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

As liquidações impugnadas foram praticadas ao abrigo do art.º 2º, nº 1, al. f) do Código do Imposto Único de Circulação (doravante CIUC).

Com efeito, nos termos do preceito indicado, o imposto único de circulação (doravante IUC) incide sobre “embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior a 20 KW, registados desde 1986”.

Nos termos do mesmo preceito, concretamente o corpo do nº 1 do art. 2º do CIUC, tais veículos ficam sujeitos ao imposto desde que se encontrem “registados em Portugal”.

No caso dos autos, a embarcação objeto de imposto encontrava-se, à data dos factos tributários invocados, registada no Registo Internacional de Navios da Madeira – RINMAR – sob o número R-..., e com indicativo de chamada ... .

Na opinião da Requerida, o facto de a embarcação se encontrar registada no Registo Internacional de Navios da Madeira – RINMAR faz verificar o requisito de registo “em Portugal”.

A Requerente, por sua vez, não rejeita que a embarcação se encontrasse registada em Portugal.

Com efeito, o Registo Internacional de Navios da Madeira é um registo com um âmbito local mas que funciona na dependência dos Ministérios portugueses da Justiça e do Mar, nos termos do art.º 1º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 96/98 de 28 de março, que cria o Registo, ou seja, pelo que é um serviço de registo integrado na administração pública portuguesa em sentido orgânico.

Sendo assim, não existe qualquer base para considerar que as embarcações registadas no Registo Internacional de Navios da Madeira, criado pelo Decreto-Lei nº 96/98 de 28 de março, não se encontram registadas em território português, com o que se tem por verificado, em relação à embarcação objeto dos atos impugnados, o requisito de se encontrar registada em território português.

Sem contestar a verificação dos requisitos da incidência do imposto, a Requerente sustenta, contudo, que a embarcação se encontraria isenta do imposto ao abrigo do art. 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86 de 26 de junho, conjugado com o art.º 24º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 96/89 de 28 de março.

Vejamos.

O art. 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86 (que revê o regime de benefícios fiscais aplicáveis à Zona Franca da Região Autónoma da Madeira) diz:

As empresas instaladas na zona franca da Madeira gozam dos seguintes benefícios fiscais:

(...)

d) Isenção de taxas e impostos locais;

 

Por sua vez, o art. 24º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 96/89 (que cria o Registo Internacional de Navios da Madeira, dispõe:

1 - O regime fiscal aplicável às entidades referidas no artigo 8.º é o previsto na legislação relativa à zona franca da Madeira.

2 - O regime referido no número anterior aplica-se também aos navios registados no MAR.

Assim, o nº 2 do art. 24º do DL nº 96/89 determinação a aplicação, aos navios registados no MAR, ie no Registo Internacional de Navios da Madeira, do regime fiscal estabelecido no art. 7.º do Decreto-Lei n.º 165/86, já citado, incluindo a sua alínea d).

Deste modo, há que concluir que os navios registados no Registo Internacional de Navios da Madeira gozam de isenção de taxas e impostos locais.

Ora, entende a Requerente que o IUC é um imposto local, o que teria como consequência que a embarcação ficaria isenta desse imposto, sem, contudo, elaborar sobre as razões que a levam a considerar o IUC como um imposto local.

Por sua vez, a Requerida começa por observar que a receita gerada pelo IUC incidente sobre os veículos de categoria A, E, F e G, é da titularidade do município de residência do sujeito passivo ou equiparado, isto nos termos do art. 3º, nº 1 da Lei nº 22-A/2007, de 29/6 (que aprova simultaneamente o Código do Imposto sobre Veículos e o Código do Imposto Único de Circulação), acrescentando que “no caso da embarcação em questão, apesar desta se encontrar, desde 2015, registada no MAR, a receita de IUC decorrente da sua tributação é da titularidade do município da residência do seu proprietário, A..., Lda, NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., em...”.

Apesar de não chegar a completar a sua argumentação, a Requerida parece pretender nesta parte concluir que, pertencendo a receita do IUC aplicável à embarcação em causa ao Município de Vila Nova de Gaia, a mesma embarcação já não poderia beneficiar da isenção estabelecida no art. 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86.

Ora, fácil é de ver que o argumento, que a Requerida não chega a formular, mas apenas insinua, não pode proceder, pois a questão “é o IUC um imposto local?” não é suscetível de se confundir com a questão “é a embarcação em causa elegível para o regime fiscal estabelecido art.º art. 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86?”.

Por outras palavras, sendo ou não o IUC um imposto local, ser da titularidade do município x ou y a respetiva receita não será nunca o fator que determinará a aplicação do regime do art.º 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86 a uma embarcação.

No que diz respeito a uma embarcação, a única condição que se exige para que o seu proprietário beneficie do regime fiscal estabelecido no art.º 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86 é que a mesma embarcação se encontre registada no Registo Internacional de Navios da Madeira.

Já vimos que, independentemente de quem seja o proprietário da embarcação, de onde se encontre este domiciliado e de ser ou não o IUC um imposto local, a embarcação em causa beneficia do regime fiscal art.º 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86.

Seguidamente, a Requerida usa outro argumento mais decisivo, dizendo que “a Lei nº 22-A/2007, de 29/06, esclarece que o IUC é um imposto cuja administração compete à Autoridade Tributária, nos termos do seu artigo 2º, nº 1, sendo que, nos termos do artigo 16º, nº 1 do CIUC, a competência para a liquidação do IUC encontra-se atribuída à Autoridade Tributária e Aduaneira.

E que assim, “a titularidade a que se refere o artigo 3º, nº 1 da Lei nº 22-A/2007, de 29/06, é apenas a titularidade da receita, sendo, por isso, o IUC um imposto de natureza estadual, constituindo o Estado o sujeito ativo da relação jurídico-tributária.

O conceito de imposto local encontra-se legalmente consagrado no art. 3º, n.º 1 da Lei Geral Tributária que diz:

“1 - Os tributos podem ser:

a) Fiscais e parafiscais;

b) Estaduais, regionais e locais

(...)

No entanto, como bem observa Rui Marques, Impostos estaduais, regionais e locais, Julgar Online, Dezembro de 2016, p. 5, “a perscrutação do critério subjacente à distinção entre tributos estaduais, regionais e locais não é isenta de dúvidas”, podendo ser situado “quanto à titularidade, seja do próprio tributo, seja das competências tributárias de natureza legislativa” e, acrescenta o Autor, “havendo tributos em que as duas condições não se cumulam, o que adensa o problema”.

A questão não é efetivamente simples, até porque nem a jurisprudência nem a doutrina se têm debruçado sobre ela, querendo com isto dizer sobre o que deve entender-se por “imposto local”, para os efeitos do art. 3º, nº 1, al. b) da LGT.

Abstratamente, os impostos poderão considerar-se locais, regionais ou estatais por um de três critérios: i) a titularidade do poder legislativo tributário que serviu de base à criação do imposto; ii) a administração do imposto; ii) a titularidade da receita proveniente do imposto.

Interessa saber, para efeitos da interpretação do art. 3º, nº 1, al. b) da LGT e, mais concretamente neste caso, do art.º 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86, qual destes critérios se deve usar para a classificação do IUC como imposto local ou estadual.

Dos critérios enunciados, há um que pode ser posto de parte desde logo que é o da titularidade do poder de criar o imposto. Uma vez que, no ordenamento constitucional português, as autarquias não têm poder para criar impostos, os quais apenas podem ser criados por ato legislativo, os impostos locais não podem ser aqueles criados a nível local, ie por uma autarquia local, pois tal implicaria que a lei teria reconhecido em abstrato uma categoria legal cuja concretização seria impossível.

 

Nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, a criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas constitui matéria incluída na reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República.

Quanto às regiões autónomas, é duvidoso que os seus poderes tributários incluam o poder de criar impostos.

Com efeito, o art. 227º, nº 1, al. i) da CRP estabelece que as regiões autónomas têm o poder de “exercer poder tributário próprio, nos termos da lei, bem como adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos de lei-quadro da Assembleia da República.”

Alguns autores veem neste poder, que caracterizam como “autonomia tributária”, o poder de criar impostos (Freitas da Rocha, As finanças das Regiões autónomas numa perspectiva jurídica (aproximação ao Direito Financeiro Regional, Direito Regional e Local, Outubro 2009).

Contudo, o mesmo artigo 227º da CRP, na al. a) do nº 1, também determina que as regiões autónomas têm o poder de legislar no âmbito regional em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta, com exceção das previstas nas alíneas a) a c), na primeira parte da alínea d), nas alíneas f) e i), na segunda parte da alínea m) e nas alíneas o), p), q), s), t), v), x) e aa) do n.º 1 do artigo 165.º

Desta forma, a criação de impostos faz parte das matérias incluídas na reserva relativa de competência da Assembleia da República em que as regiões autónomas não podem legislar.

Esta interpretação é aparentemente corroborada pelo legislador quando, nos Estatutos Político-administrativos das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, em momento ou lugar algum faz alusão aos impostos criados pelos órgãos regionais ou à criação de impostos.

Restam assim dois critérios possíveis para traçar a distinção: a competência para administrar o imposto e a titularidade da respetiva receita.

Na doutrina portuguesa, decidem-se pelo segundo critério Freitas da Rocha, Direito Financeiro Local (Finanças Locais), 2ª ed. Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 195; Sá Gomes, Tributação do Património, Coimbra, Almedina, 2004, p. 85; Santos Rocha & Martins Brás, Tributação do Património, IMI, IMT e Imposto do Selo (Anotados e Comentados), Coimbra, Almedina, 2015, p. 24.

 

Concordamos com Rui Marques (ob cit., p. 6) quando este Autor expressa a sua dificuldade em aderir ao critério da titularidade da receita como base da distinção entre impostos estaduais, regionais e locais, sobretudo desde que a Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei nº 2/2007 de 15 de janeiro) consagrou, pela primeira vez, o direito das autarquias locais a participar na receita do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.

Como observa o mesmo Autor, a situação é hoje particularmente confusa pois, a par de impostos cuja receita pertence na sua totalidade às autarquias locais - como o Imposto Municipal sobre Imóveis e o Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis – existem hoje vários impostos cuja receita é repartida por vários níveis de governo e administração, incluindo as autarquias locais, em parcelas variáveis.

Sendo assim, afigura-se que a tradicional distinção entre impostos que se consideram municipais porque a receita que originam pertence aos municípios e impostos que se classificam como estaduais porque a receita respetiva pertence ao Estado está irremediavelmente posta em causa.

No entanto, também não nos parece viável, tendo em conta o quadro legislativo e jurisprudencial atual, considerar que os impostos locais são aqueles cuja administração compete às autarquias locais.

Em primeiro lugar, a lei admite que o Estado, ie a Autoridade Tributária e Aduaneira administre os impostos em representação de outros sujeitos ativos diferentes do Estado, nos termos do art. 18º, nº 1 da LGT, o que desde logo permite concluir que o facto de que um imposto seja administrado pela Autoridade Tributária e Aduaneira não faz desse imposto, automaticamente, um imposto estadual.

Em consonância com esta norma-base, a Lei Orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira (Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15/12) consagra de modo claro, no seu art. 2º, nº 1 e nº 2, al. a), a possibilidade de este serviço do Estado administrar qualquer imposto que “lhe seja atribuído” ou que lhe “incumba administrar”.

Esta atribuição de competência para administrar o imposto pode ser encontrada em várias leis de imposto.

Assim, no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, vemos essa atribuição nos artigos 11º-A, nº 4, 13º-A, nº 2, 37º, nº1 e 113º, nº 1, entre outros.

No Código do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis, encontramos a mesmo mecanismo de atribuição nos artigos 10º, nºs 6 e 7, 21º, nº1, 49º, nº 4, 54º, nºs 1 e 2, entre outros.

Portanto, ou os Impostos Municipal sobre Imóveis e Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis são de classificar como impostos estaduais, ou o critério da competência para a administração do imposto não pode ser considerado decisivo para a classificação de um imposto como local ou estadual.

Por outro lado, se se considerar que os Impostos Municipal sobre Imóveis e Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis são impostos estaduais por a competência para a sua administração pertencer ao Estado, então será necessário concluir pela inexistência de impostos locais no atual ordenamento fiscal português.

Ora, a despeito de toda a indefinição legislativa e constitucional que ficou descrita, torna-se necessário descortinar um sentido útil para a categoria que a lei designa como “impostos locais”.

Sem depreciar, mais uma vez, a escassez de elaboração doutrinal que se encontra mesmo ao nível da jurisprudência constitucional, há um ponto que nos parece poder ser dado como assente, sendo este que o Tribunal Constitucional considera serem impostos locais o Imposto Municipal sobre Imóveis, o Imposto Municipal sobre Transmissão Onerosa de Imóveis e a derrama (acórdão TC nº 57/95 de 16/02/95; acórdão TC nº 711/2006, de 29-12-2006; acórdão TC nº 606/95, de 08-11-1995; acórdão TC nº 158/96, de 07-02-1996).

No acórdão nº 57/95, referindo-se à Contribuição Autárquica, o Tribunal adianta que esta é um imposto de natureza municipal “não apenas porque a sua receita reverte para os municípios, mas também porque o valor patrimonial dos prédios é fortemente influenciado pelas obras realizadas por aqueles entes públicos territoriais”.

No acórdão nº 260/98, é referido o parecer do Provedor de Justiça em que este considera encontrar-se a sisa “configurada como imposto local nos termos do artº 4º, nº 1, alínea a), da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro”.

Com efeito, estipulava aquela Lei das Finanças Locais (Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro) que constituía receita do município o produto da cobrança de: “1) Contribuição predial rústica e urbana; 2) Imposto sobre veículos; 3) Imposto para o serviço de incêndios; 4) Imposto de mais-valias; 5) Taxa municipal de transportes; 6) Sisa.”

Parece assim que, segundo uma doutrina que, embora pouco desenvolvida e carecendo de elaboração, se encontra implícita na jurisprudência constitucional tributária, o critério definitivo, no atual estado legislativo, para considerar um imposto como “imposto local” é o facto de a lei atribuir às autarquias locais a titularidade da respetiva receita.

Nos termos do art.º 14º da atual Lei das Finanças Locais (Lei n.º 73/2013, de 03 de Setembro, republicada pela Lei n.º 71/2018, de 31/12) constituem receitas dos municípios:

a) O produto da cobrança do imposto municipal sobre imóveis (IMI), sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º;

b) O produto da cobrança do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT);

c) O produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do artigo 18.º;

d) A parcela do produto do imposto único de circulação que caiba aos municípios, nos termos do artigo 3.º da Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho;

(...)

Nos termos do art. 3º da Lei nº 22-A/2007 de 29 de junho, que aprovou os Códigos do Imposto sobre Veículos e do Imposto Único de Circulação, “é da titularidade do município de residência do sujeito passivo ou equiparado a receita gerada pelo IUC incidente sobre os veículos da categoria A, E, F e G, bem como 70% da componente relativa à cilindrada incidente sobre os veículos da categoria B, salvo se essa receita for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, caso em que deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador.”

De acordo com o disposto no artigo 2.º, nº 1 do Código do IUC, as embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior a 20 kW, registadas desde 1986 constituem a categoria “F” do conjunto de categorias de veículos abrangidas pelo imposto.

É certo que, ao invés do que se verifica no Imposto Municipal sobre Imóveis, no Imposto Municipal sobre Transmissão Onerosa de Imóveis e na derrama, nem toda a receita do IUC pertence aos municípios. Sem embargo, para a maioria das categorias de veículos, a receita do imposto pertence efetivamente aos municípios. O que, por outro lado, não pode deixar de estar relacionado com uma relação existente entre a despesa pública originada pela circulação dos veículos e os municípios em que residem os proprietários.

Sendo assim, considera-se ter razão a Requerente em considerar que o Imposto Único de Circulação é um imposto local e que, por tal motivo, a embarcação objeto dos atos de liquidação impugnados, registada no Registo Internacional de Navios da Madeira – RINMAR, se encontra abrangida pelo regime fiscal estabelecido no art.º 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86.

Estando abrangida pelo art.º 7.º, al. d) do Decreto-Lei n.º 165/86, a embarcação em causa está isenta de IUC, por este ser um imposto local.

 

V. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, o presente Tribunal decide declarar ilegal e anular, por erro nos pressupostos de direito:

             O ato de liquidação do Imposto Único de Circulação notificado através do ofício nº 2019..., de 27-01-2019 do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia...;

             O ato de liquidação do Imposto Único de Circulação notificado através do ofício nº 2019... de 10-01-2019 do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia...;

             O ato de liquidação do Imposto Único de Circulação notificado através do ofício nº 2019... de 17-01-2019 do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia...;

             O ato de liquidação do Imposto Único de Circulação notificado através do ofício 2019... de 18-01-2019 do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia... .

 

Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 8.306,40 euros.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 918.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às Partes.

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 31 de outubro de 2019

 

O Árbitro

(Nina Aguiar)