Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 646/2018-T
Data da decisão: 2019-10-21  IVA  
Valor do pedido: € 4.403.514,20
Tema: IVA – Sujeito passivo misto; Direito à dedução.
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DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 19 de Dezembro de 2018, A..., S.A., NIPC..., com sede na Rua..., ..., ...-... Porto, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com as alterações subsequentes (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade parcial do acto de autoliquidação de IVA, referente ao ano 2017, materializada na declaração periódica de imposto n.º..., referente ao mês de Dezembro daquele ano, entregue em 9 de Fevereiro de 2018, no valor de € 4.403.514,20, bem como a decisão da Reclamação Graciosa que teve aquele acto como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que procedeu à aplicação da percentagem de dedução de 8% ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos, calculada de acordo com os entendimentos veiculados pela AT, nomeadamente as instruções do Ofício-Circulado n.º 30108, quando, de acordo com a legislação nacional e comunitária do IVA, a percentagem de dedução deveria corresponder a 29%.

 

3.            No dia 20-12-2018, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 08-02-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 28-02-2019.

 

7.            No dia 02-04-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            No dia 04-06-2019, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelo Requerente, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no artigo 21.º/1 do RJAT, prazo esse que foi prorrogado nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            O Requerente é uma sociedade comercial com sede em território nacional, que exerce as operações descritas no n.º 1 do artigo 4.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, estando colectada com os Códigos de Actividade Económica (CAE), a título principal, de "OUTRA INTERMEDIAÇÃO MONETÁRIA (CAE 64190), e a titulo secundário, no de "ACTIVIDADES DE FACTORING" (CAE 64991).

2-            Para efeitos de IVA, o Requerente configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma.

3-            O Requerente exerce actividades que conferem direito à dedução e também realiza operações no âmbito da actividade financeira, a qual é isenta do IVA nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, procedendo ao apuramento do imposto de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma.

4-            Relativamente às situações em que o Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa, ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

5-            Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, o Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

6-            Nas situações em que o Requerente identificou uma conexão directa, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, e conseguiu determinar critérios objectivos do nível/grau de utilização efectiva, aplicou o método da afectação real, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA.

7-            Para determinar a medida (quantum) de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afectas indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas, ou seja aos recursos de "utilização mista", o Requerente aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA.

8-            A determinação da percentagem de dedução acima referida foi concretizada em cumprimento com o constante no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdirector-Geral da Área de Gestão Tributária do IVA.

9-            O valor do IVA dedutível de acordo com o método da percentagem de dedução foi sendo, provisoriamente, deduzido ao longo do ano 2017, com base na percentagem de dedução do ano anterior.

10-         Subsequentemente, o valor do IVA provisoriamente deduzido foi objecto de ajustamento/regularização definitivo pela diferença, na declaração periódica referente ao último período do ano.

11-         Do procedimento referido resultou, para o Requerente, uma dedução de € 1.680.452,37.

12-         Se o Requerente tivesse:

i.             desconsiderado, na determinação da percentagem de dedução definitiva do ano 2017, os recursos utilizados na actividade de gestão da carteira própria de títulos e, ao invés, adoptado o método da afectação real integral para a dedução do imposto vertido nos recursos afectos a esta área de actividade;

ii.            incluído, na percentagem de dedução do referido ano, os valores relativos à transmissão das viaturas por si adquiridas no âmbito da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade;

iii.           incluído, na supra referida percentagem de dedução, os montantes respeitantes às amortizações financeiras dos contratos de leasing celebrados;

a percentagem de dedução apurada para o ano em causa seria de 29%, ao invés de 8%, e o valor de IV A dedutível na aquisição de recursos de utilização mista naquele ano seria de € 6.083.966,5.

13-         No caso referido no ponto i. do número anterior, não ocorre IVA a recuperar adicionalmente pelo Requerente face à revisão da metodologia de dedução do imposto no ano 2017, conforme tabela infra:

 

14-         No caso referido no ponto ii. do número 12, o montante adicional relativo à transmissão das viaturas por si adquiridas no âmbito da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade, corresponde à variação percentual de 5% na percentagem de dedução do ano de 2017, conforme tabela infra:

 

15-         No caso referido no ponto iii. do número 12, o montante adicional relativo aos montantes respeitantes às amortizações financeiras dos contratos de leasing celebrados, corresponde à variação percentual de 16% na percentagem de dedução do ano de 2017, conforme tabela infra:

 

16-         O Requerente pagou, oportunamente, o imposto resultante da autoliquidação de IVA relativa ao período de Dezembro de 2017 e apresentou, também oportunamente, Reclamação Graciosa da mesma.

17-         A 1 de Agosto de 2018, foi o Requerente notificado do projecto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada, para exercício do seu direito de audição prévia, no prazo de 15 dias, tendo o Requerente optado por não exercer o mesmo.

18-         A referida Reclamação Graciosa veio, em 14 de Setembro de 2018, a ser definitivamente indeferida pela AT.

19-         A utilização, pelo Requerente, dos recursos de utilização mista adquiridos é distinta na actividade de banca comercial, que tem por base toda a rede de balcões, consumidores da maioria dos recursos de utilização mista adquiridos, face a outras actividades, entre as quais a actividade relativa à gestão da carteira própria de títulos, que consome um conjunto limitado e definido de recursos ao nível dos serviços centrais.

20-         Na medida em que o Requerente tinha aplicado ao IVA incorrido o critério de dedução de 8%, este procedeu à regularização a favor do Estado do referido montante de € 7.673,26.

21-         No âmbito da sua actividade, o Requerente celebra contratos de crédito com uma cláusula de reserva de propriedade que têm por objectivo a aquisição, por parte dos seus clientes, de veículos automóveis, novos ou usados, nos termos dos quais o cliente consta do registo de propriedade do veículo enquanto proprietário do mesmo, não obstante a constituição de reserva de propriedade a favor do Requerente.

22-         Nestes casos, o Requerente celebra, num primeiro momento, um contrato de compra e venda com uma entidade terceira, adquirindo o veículo pretendido pelo seu cliente, e, num segundo momento, um contrato de mútuo com o seu cliente, no qual é acordada a concessão de crédito que possibilita a este último adquirir o automóvel pretendido.

23-         Com a celebração do contrato de mútuo, o cliente do Requerente aceita que a reserva de propriedade seja convencionada a favor desta entidade, até que o Requerente receba integralmente o crédito entretanto constituído.

24-         A constituição da reserva de propriedade a favor do Requerente visa assegurar o integral pagamento, por parte do seu cliente, dos montantes devidos com referência ao contrato de mútuo celebrado, por forma a prevenir eventuais situações de incumprimento, permitindo ao Requerente, em simultâneo, obter a expedita restituição do bem, no caso de falta de pagamento das prestações acordadas.

25-         Para o desenvolvimento da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade, o Requerente recorre à sua rede de balcões, bem como às direcções de Financiamento Automóvel, de Marketing Empresas, de Planeamento, e Direcção de Operações, utilizando os respectivos recursos.

26-         A comercialização do produto de crédito com reserva de propriedade pelos diversos balcões do Requerente envolve, por si só, o consumo de parte dos recursos humanos e técnicos que compõem a sua estrutura.

27-         A actividade de crédito com reserva de propriedade é coordenada pela Direcção de Financiamento Automóvel, a qual assegura a gestão de todas as operações de financiamento automóvel, ou seja, operações de leasing, ALD e crédito com reserva de propriedade.

28-         A Direcção de Financiamento Automóvel afecta os recursos necessários à prossecução da actividade de crédito com reserva de propriedade, nomeadamente na parte respeitante à transmissão das viaturas aos clientes, designadamente recursos humanos, comunicações, material de escritório, deslocações e estadas, contencioso e notariado, e combustíveis.

29-         A Direcção de Marketing de Empresas, responsável pelo desenvolvimento de acções de publicidade, e as direcções envolvidas na gestão de riscos (Direcção de Planeamento e Direcção de Operações) também afectam parte dos seus recursos à actividade de crédito com reserva de propriedade do Requerente.

30-         O IVA correspondente a estes recursos de utilização mista não foi objecto de dedução por via da aplicação do critério de imputação específico, na autoliquidação objecto da presente acção arbitral.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Em especial, os factos dados como provados nos pontos 12 a 15, foram alegados sustentadamente pelo Requerente desde a sua petição de Reclamação Graciosa, nunca tendo sido colocados em causa pela AT.

Os factos dados como provados nos pontos 19, e 25 a 29, resultam essencialmente da prova testemunhal produzida, que os narrou coerentemente e em concordâncias com as regras normais da experiência.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

                Conforme concordam ambas as partes as questões que se apresentam a resolver nos presentes autos são as seguintes:

a)            (In)admissibilidade da utilização pelo Requerente do método da afectação real na actividade de gestão da carteira própria de títulos;

b)           (Des)consideração do valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade do numerador e denominador da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pelo Requerente nos recursos de utilização mista;

c)            (Des)consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira do cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pelo Requerente nos recursos de utilização mista.

Vejamos cada uma delas.

 

***

i.

                Relativamente à primeira das questões a apreciar, a Requerida ancora-se no Ofício-Circulado n.º 30103, de 2008-04-23, na parte em que refere que "no caso de utilização da afetação real, obrigatória ou facultativa, e ainda segundo o n.º 2 do artigo 23.º, os critérios a que o sujeito passivo recorra para determinar o grau de afetação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação", sustentando que a aplicação do coeficiente de imputação específico é o único que se mostra adequado ao apuramento da percentagem de dedução, afastando as distorções na tributação, estando de acordo com o direito comunitário e as normas de direito interno (nomeadamente, artigo 173.º e 174.º da Directiva IVA, e o artigo 23.º do Código do IVA), salvaguardando o princípio da neutralidade.

Conclui assim a Requerida que a aplicação do "método da dedução integral" proposto pelo Requerente não se mostra como adequado a aferir o montante de IVA dedutível.

Convocando, ainda, o Ofício-Circulado n.º 30082/2005, de 17 de Novembro, argumenta a Requerida que os casos como o presente não são susceptíveis de serem enquadrados nos casos de regularização previstos no artigo 78.º do Código do IVA, identificando o n.º 8 da mencionada instrução administrativa as situações que se encontram excluídas do respetivo âmbito, não porque não se pudessem aí incluir, mas porque a sua disciplina está regulamentada noutros normativos legais, como sejam os artigos 23.º a 25.º do Código do IVA.

Para a Requerida, estando em causa o apuramento na percentagem de dedução os mesmos devem ser regularizáveis, exclusivamente, através do mecanismo previsto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, ou seja, na última declaração do período a que respeita.

 O que não aconteceu.

O Requerente, por seu lado, sustenta que a utilização do coeficiente de imputação específico para a determinação da capacidade de dedução do IVA incorrido nos recursos que são utilizados pela actividade de gestão de carteira própria de títulos não se afigura adequado, por, objectivamente, não permitir demonstrar a real utilização dos referidos recursos em cada uma das tipologias de operações desenvolvidas pelo Requerente.

Mais refere o Requerente que o resultado da aplicação do critério de afectação real em apreço não é contrário ao objectivo prosseguido pelas disposições da Directiva IVA, nem resulta de um conjunto de elementos objectivos que a finalidade essencial das operações em causa é a obtenção de uma vantagem fiscal.

Acrescenta o Requerente que disponibilizou à AT relatórios com a explicação e detalhe da forma de cálculo do critério de dedução em causa, respectiva documentação comprovativa do mesmo e listagens de suporte à determinação do IVA dedutível e que se a AT tivesses alguma d ̇vida quanto à forma de determinar o critério em apreço ou o respectivo IVA dedutível deveria ter questionado o Requerente que prontamente disponibilizaria toda a documentação que a AT entendesse relevante.

Nota, por fim, o Requerente que se afigura hoje pacífico na Jurisprudência Fiscal que o prazo para o exercício do direito à regularização do IVA, em situações que os sujeitos passivos hajam incorrido em erro no regime do direito à dedução do imposto incorrido na aquisição de recursos utilizados no âmbito da sua actividade é o prazo geral e supletivo de 4 anos, consagrado no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.

Aqui chegados, cumpre notar, que Requerente e Requerida estão de acordo, e consta da matéria de facto dada como provada, que não há IVA a recuperar adicionalmente pelo Requerente face à revisão da metodologia de dedução do imposto no ano 2017 no âmbito da actividade de gestão da carteira própria.

Ora, não contendendo a questão ora em apreço com o montante de imposto liquidado no acto tributário objecto da presente acção arbitral, não é a mesma susceptível de fundar a invalidade daquele, sendo, por isso, irrelevante para a decisão a proferir nos presentes autos.

Deste modo, nada há a decidir por este Tribunal Arbitral, a respeito da mesma, havendo que prosseguir para a apreciação das restantes questões colocadas.

 

***

ii.

No que concerne à (des)consideração do valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade do numerador e denominador da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pelo Requerente nos recursos de utilização mista, começa a Requerida por notar que a inclusão da cláusula de reserva de propriedade não significa que o cliente/comprador se torne o proprietário pleno do veículo, mas apenas e só passa a ser titular de uma expectativa jurídica de aquisição do bem, já que enquanto perdurar a reserva de propriedade, o mesmo apenas poderá usufruir do bem em causa, mas não pode exercer todos os direitos inerentes à propriedade plena, como seja, a possibilidade de o alienar a terceiros, uma vez que só com o integral pagamento do preço convencionado cessará a reserva de propriedade e se dará, a transferência da propriedade para o cliente.

Mais nota a Requerida que a cláusula de reserva de propriedade consubstancia-se numa condição suspensiva do efeito real do contrato, e por isso, a transmissão da propriedade sobre os veículos fica subordinada a um acontecimento futuro e incerto, isto é, o cumprimento pelo comprador das obrigações acordadas, normalmente o pagamento do preço.

Prossegue a Requerida, afirmando que a inclusão do valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade no cômputo do coeficiente de imputação específico obtido pela aplicação do método da afetação real iria aumentar injustificadamente a percentagem de dedução, o que contenderia com o princípio da neutralidade do imposto, já que as variáveis que compõem a fração de apuramento do coeficiente de imputação específico deverão ser homogéneas/coerentes entre si, sob pena de determinarem vantagens injustificadas. que se verificariam se a fração referida comportasse numa das suas parcelas, valores tributáveis que correspondem ao valor de alienação dos veículos aos clientes do crédito concedido pela Requerente, dado que quanto maior fosse o crédito concedido (operação esta sujeita a IVA, mas dele isenta por força do disposto na alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA), maior seria a dedução de IVA que resultaria da aplicação do coeficiente de imputação especifico, o que contribuiria para a ocorrência de distorções significativas na tributação em sede de IVA, pelo que não se mostra possível, nem adequada a utilização do método do pro rata definido na alínea b) do n.º 1 e n.º 2, do artigo 23.º, e desenvolvido nos n.ºs 4 a 8 do mesmo preceito legal, devendo ser aplicado o disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, conjugado com o entendimento constante do Oficio-Circulado n.º 30103, de 23-04-2008.

O Requerente, por seu lado, esclarece que na actividade de crédito com reserva de propriedade existem sempre duas operações distintas, autonomizadas e com diferente enquadramento em IVA: 1) a tributação, nos termos gerais, da operação de transmissão de viaturas e 2) a isenção de IVA na concessão do crédito, nos termos da alínea a) do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, pelo que a consideração da componente de transmissão de viaturas da actividade de crédito com reserva de propriedade no coeficiente de imputação específico, atendendo ao consumo de recursos necessários para a realizar, revela-se fulcral para aferir a exacta medida do direito à dedução.

Convoca o Requerente, em seu abono, o decidido no Acórdão Volkswagen Financial Services (Processo C-153/17) do TJUE , considerando que o mesmo tem aqui aplicação plena, aventando ainda que jurisprudência do CAAD, não obstante pronunciar-se a propósito de operações de locação financeira, aplica-se igualmente às aquisições de viaturas no âmbito de contratos de reserva de propriedade, em concreto à situação sub judice.

Vejamos.

 

*

O Acórdão Volkswagen Financial Services (Processo C-153/17) do TJUE, referido pelo Requerente, procurou responder à questão de saber se o artigo 168.º e o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às prestações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não são repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, a parte tributável da operação, mas sim no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, a parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, os EstadosMembros podem aplicar um método de repartição que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega.

Note-se desde logo, que as situações do Requerente nos presentes autos e da Volkswagen Financial Services no processo C-153/17, não são idênticas, porquanto esta é uma instituição especializada, dedicada exclusivamente a operações financeiras conexionadas com o ramo automóvel, e por no acórdão em apreço estarem em causa operações de ALD, e não de concessão de crédito com reserva de propriedade.

Não obstante julga-se, ainda, assim, que o TJUE emitiu, com clareza, pronúncia com relevância para a matéria que ora se discute, pelo que será útil analisar a decisão em questão.

Na mesma, começa o TJUE por definir se, do ponto de vista do IVA, diferentes operações como a concessão de financiamento e a disponibilização de veículos, devem ser tratadas como operações distintas tributáveis separadamente ou como operações complexas únicas compostas por vários elementos, tendo concluído que a resposta a tal questão deve ser dada pelo órgão jurisdicional nacional, tendo em conta os seguintes critérios:

a)            cada operação deve normalmente ser considerada distinta e independente, e uma operação constituída por uma só prestação no plano económico não deve ser artificialmente decomposta, para não alterar a funcionalidade do sistema do IVA;

b)           há que considerar que existe uma prestação única quando dois ou vários elementos ou actos fornecidos pelo sujeito passivo estão tão estreitamente ligados que formam, objectivamente, uma única prestação económica indissociável, cuja decomposição revestiria caráter artificial;

c)            estáse em presença de uma prestação única quando um ou mais elementos devam ser considerados a prestação principal, ao passo que devem ser considerados uma prestação ou prestações acessórias que partilham do tratamento fiscal da prestação principal quando não constitua para a clientela um fim em si mesmo, mas o meio de beneficiar, nas melhores condições, do serviço principal do prestador.

Adicionalmente, esclareceu o TJUE que o pagamento diferido do preço de compra de um bem, mediante o pagamento de juros, pode ser considerado como uma concessão de crédito, que constitui uma operação isenta nos termos desta disposição, desde que o pagamento dos juros não constitua um elemento da contrapartida recebida pela entrega dos bens ou pelas prestações de serviços, mas sim a remuneração desse crédito.

Relativamente ao direito à dedução, o TJUE reafirmou que o sistema comum do IVA garante, por conseguinte, uma neutralidade perfeita quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas actividades estejam elas próprias sujeitas a IVA, sendo admitido, no entanto, um direito à dedução a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de uma relação direta e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução, quando os custos dos serviços em causa sejam parte das despesas gerais deste último e sejam, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens fornecidos ou dos serviços prestados pelo mesmo, sendo que a decisão de não incluir estes custos no preço das operações tributáveis, mas unicamente no preço das operações isentas, não pode ter qualquer repercussão nesta conclusão de facto e que o resultado dessas operações económicas não é pertinente, à luz do direito à dedução, na condição de a própria actividade estar sujeita a IVA.

Ressalva, no entanto, o TJUE que o âmbito desse direito à dedução varia em função do uso a que os bens e os serviços em causa se destinam, já que, ao passo que, para os bens e serviços destinados a serem utilizados exclusivamente para realizar operações tributáveis, os sujeitos passivos estão autorizados a deduzir a totalidade do imposto que incidiu sobre bens ou serviços que lhes tenham sido fornecidos ou prestados, para os bens e serviços destinados a uso misto, resulta do artigo 173.º, n.º 1, da Diretiva IVA que o direito à dedução se limita à parte do IVA que é proporcional ao valor respeitante às operações que conferem direito à dedução realizadas através desses bens ou serviços, e que nos termos do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da referida Directiva, os EstadosMembros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços.

A este propósito, recordando o Acórdão Banco Mais, acrescenta o TJUE que qualquer EstadoMembro que decida autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços deve garantir que as modalidades de cálculo do direito à dedução permitam estabelecer com a maior precisão a parte do IVA relativa às operações que conferem direito à dedução, dado que o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução, sendo que o método escolhido não tem necessariamente de ser o mais preciso possível, mas deve poder garantir um resultado mais preciso do que aquele que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

Ainda a propósito do Acórdão Banco Mais, refere o TJUE que o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas actividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o setor automóvel.

Conclui o TJUE que atendendo à natureza fundamental do direito à dedução, sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações, pelo que tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

 

*            

Com relevo na matéria ora em apreço, dispõe o artigo 23.º do CIVA aplicável:

“1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

5 - No cálculo referido no número anterior não são, no entanto, incluídas as transmissões de bens do activo imobilizado que tenham sido utilizadas na actividade da empresa nem as operações imobiliárias ou financeiras que tenham um carácter acessório em relação à actividade exercida pelo sujeito passivo.”

                Conforme se apontou anteriormente, sustenta a AT que não deverá ser aplicada a alínea b) do n.º 1 e n.º 2, do artigo 23.º transcrito, e desenvolvido nos n.ºs 4 a 8 do mesmo preceito legal, devendo antes ser aplicado o disposto no n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, conjugado com o entendimento constante do Oficio-Circulado n.º 30103, de 23-04-2008.

                A questão que se coloca em primeira linha, então, é a da aplicação do n.º 3 do referido artigo 23.º.

                Esta norma, como se viu, prevê que a Administração Fiscal possa obrigar o sujeito passivo a utilizar o método previsto no número anterior (afectação real), quando, para além do mais e no que para aqui importa, a aplicação do processo referido no n.º 1 (pro rata) conduza a distorções significativas na tributação, que é o que a AT alega nos autos.

                Não obstante, o que se verifica no caso é que a AT não obrigou o Requerente, no exercício de 2017, a utilizar o método de afectação real, relativamente à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade exercida por aquele, não havendo notícia que haja sido praticado qualquer acto de autoridade impositivo ao Requerente da referida obrigação.

                E se é certo que constam dos autos menções a procedimentos inspectivos anteriores nos quais a AT terá manifestado o entendimento que ora pretende fazer valer para o exercício de 2017, o certo é que não se apura, nem é sequer mencionado, que daqueles procedimentos inspectivos haja emergido qualquer determinação vinculativa da AT, no sentido de obrigar o Requerente a adoptar, para o futuro, o método de afectação real, relativamente à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade exercida por aquele.

                O que se verifica é que, confrontada com a Reclamação Graciosa interposta pelo Requerente, a AT indeferiu a mesma por entender poder obrigar aquele a utilizar o método da afectação real, sem cuidar de verificar e demonstrar que tivesse sido praticado um acto de autoridade nesse sentido, e sem o praticar expressamente.

                Não obstante, mesmo que o tivesse feito, ou que se considere que tal determinação está implícita no despacho de indeferimento da reclamação graciosa, sempre se haveria de entender que não seria possível reconhecer a tal acto eficácia retroactiva.

                Efectivamente, como se escreveu no Ac. do STA de 25-05-2011, proferido no processo 0169/11, referindo-se à imposição do método do pro-rata em substituição do método da afectação real,  mas em termos que se julgam directamente transponíveis para o presente caso, “com o respeito devido pela opinião contrária, entende-se que a Administração Tributária não podia impor com efeitos retroactivos aos exercícios de 1993 a 1995 o método pro-rata, mas, eventualmente, fazer cessar a aplicação do método da afectação real para o futuro com o fundamento previsto no artº 23º citado.”.

                Efectivamente, os sujeitos passivos têm o direito de planear a sua vida fiscal com um mínimo de certeza e segurança, e se à AT devem ser reconhecidos os poderes, conferidos por lei, para conformar, em concreto, os métodos e procedimentos para determinar o imposto devido, não se poderá, nem deverá, extender tais prerrogativas para o passado.

                Acresce ainda que por respeito aos supra-referidos princípios da segurança e certeza jurídicas, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA aplicável, ao determinar, nos termos do n.º 3 da mesma norma, a aplicação do método da afectação directa, necessariamente deveria a AT indicar “critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito” , sob pena de ser imposta ao sujeito passivo uma obrigação indeterminada e potencialmente de impossível cumprimento.

                Com efeito, não se deverá perder de vista que o âmbito do artigo 23.º do CIVA se reporta a recursos designados por promíscuos, ou seja, que não são passíveis de uma imputação directa com actividades sujeitas ou não sujeitas a imposto , pelo que, não admitindo a AT o método supletivo previsto na lei, deverá assistir-lhe o ónus de densificar os “critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito”, conforme aquela mesma lei prevê, e não simplesmente indicar que deve ser utilizado o método previsto no n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, deixando o sujeito passivo na posição de ter de adivinhar quais os termos que, para a mesma AT, serão aceitáveis para a execução de tal método.

                Diga-se, ainda, que não se poderá julgar que a imposição para o Requerente utilizar o método de afectação real, relativamente à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade por si exercida, resulta do Oficio-Circulado n.º 30103, ou de qualquer outra orientação administrativa.

                Efectivamente, conforme é pacífico hoje, “As orientações administrativas veiculadas sob a forma de circular da Administração Tributária, não se impondo ao juiz senão pelo valor doutrinário que porventura possuam e carecendo de força vinculativa heterónoma para os particulares” .

                Daí que, carecendo de força vinculativa heterónoma, não poderá retirar-se da Circular invocada pela AT qualquer vinculação para o Requerente.

                Não está, assim, em causa desreconhecer a faculdade conferida à AT pelo artigo 23.º/3 do Código do IVA aplicável, nem, muito menos, as disposições comunitárias que legitimam a consagração no ordenamento nacional daquela faculdade, nos termos que emergem da jurisprudência do TJUE, mas simplesmente constatar que, in casu, a AT não utilizou, relativamente ao exercício de 2017 do Requerente, a referida prorrogativa,

                Não quer isto dizer, assim, que não possa assistir razão substancial ao quanto pondera a AT relativamente às distorções que o método do pro rata seja susceptível de introduzir na tributação do Requerente em sede de IVA.

                Não obstante, é notório, conforme resulta, de resto, dos factos provados, que a actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade exercida pelo Requerente consome recursos comuns, e que a modalidade utilizada (crédito com reserva de propriedade) implica a utilização de recursos determinados, e porventura adicionais, em relação à simples concessão de crédito sem garantia, ou com outros tipos de garantia (como fiança, por exemplo).

                Por outro lado, como não é questionado, o regime regra do artigo 23.º é o constante do n.º 1, consistindo o regime do n.º 2 uma alternativa a utilizar por opção do sujeito passivo ou por imposição da AT.

                Ora, tal como a AT sustenta veementemente, em termos adiante analisados, que o critério adoptado para o exercício do direito à dedução relativamente ao consumo de recursos de natureza mista, na medida em que traduza uma opção, não pode, retroactivamente, ser alterado pelo sujeito passivo, deverá conformar-se com o mesmo entendimento relativamente à alteração daquele critério por imposição sua, que não poderá, na senda do Acórdão do STA previamente citado, operar retroactivamente.

                Face ao exposto, e tendo em conta os factos dados como provados, considera-se que a liquidação de IVA objecto da presente acção arbitral enferma de erro nos pressupostos, na parte em que desconsiderou o valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade do numerador e denominador da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pelo Requerente nos recursos de utilização mista, dado que a opção exercida pelo Requerente, na declaração de imposto correspondente, foi pelo método do pro rata, nenhum obstáculo legal à utilização de tal método se verifica (designadamente a imposição pela AT do método de afectação real, para a actividade e exercício em causa, nos termos do n.º 3 do artigo 23.º do CIVA aplicável), e, como resulta da matéria de facto, o valor em questão não foi integrado nos factores do pro rata, não obstante a actividade subjacente consumir recursos comuns.

                Deverá, por isso, proceder nesta parte o pedido arbitral.

 

***

iii.

                No que diz respeito à (des)consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira do cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pelo Requerente nos recursos de utilização mista, como nota a Requerida, está em causa aferir-se a legalidade, face às normas de direito comunitário ou de direito interno, da exclusão do cálculo da percentagem de dedução, da parte do valor da renda da locação que corresponde à amortização financeira, apenas considerando o montante de juros e outros encargos facturados.

                A este propósito, começa a Requerida por notar que o objecto deste tipo de contrato não é a transferência da propriedade, mas sim a cedência, pela locadora do uso do bem, concluindo que a locação financeira constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Código do IVA, e é efectuada pelo sujeito passivo no âmbito duma actividade económica.

                Chama, a Requerida, a atenção para a necessidade de se respeitar o princípio da igualdade, assegurando-se um tratamento fiscal equivalente, no sentido de igual onerosidade, em relação àquele que adquire um bem através de um contrato de locação financeira, face a outra pessoa que o adquire directamente.

                Para a Requerida, nem todo o valor pago a título de renda no âmbito de um contrato de locação financeira é correspondente à amortização financeira ou do capital que tenha de ser incluída no cômputo do apuramento da percentagem de dedução, conjuntamente com a parte correspondente aos juros e outros encargos, uma vez que, prossegue, a renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não será que o reembolso da quantia "emprestada"; e juros, acrescidos de eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador.

                Conclui a Requerida que deve ser excluída do cálculo da percentagem de dedução a parte da amortização financeira incluída na renda, uma vez que esta mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem, já que à luz do princípio da neutralidade em que assenta o sistema do IVA, se deve considerar que a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo, e que é apenas aquele valor diferencial (que, genericamente, corresponde a juros) que se encontra conexo com os custos de aquisição de recursos utilizados indistintamente em operações com e sem direito à dedução, já que, de outro modo, permitia-se um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido com a generalidade dos bens ou serviços com utilização mista adquiridos pelo sujeito passivo.

                Louva-se, ainda a Requerida, no decidido no Acórdão do TJUE de 10 de Julho de 2014, proferido no processo C-183/13, que considera aplicável ao caso.

                Já o Requerente, começa por notar que a locação financeira não reveste qualquer especificidade nem tem uma disciplina especial ao abrigo da qual possa cindir-se a renda nas suas diversas (e implícitas) componentes, pelo que são integralmente sujeitas a IVA as rendas de contratos de locação financeira (desde que não seja aplicável uma isenção, como ocorre nas operações imobiliárias), quer na parte correspondente à consideração da amortização financeira ou do capital, quer na parte correspondente aos juros e remuneração de outros encargos (ou ganhos).

                Aponta também o Requerente que a percentagem de dedução parcial resulta de uma fracção cuja composição ou fórmula de cálculo está pré-definida sem quaisquer concessões a uma margem de livre decisão dos Estados-Membros (e muito menos pela via administrativa), conforme resulta do n.º 1 do artigo 174.º da Directiva IVA.

                Lembra, ainda o Requerente, que Requerente, pois não optou pelo método da afectação real, e que apenas exerce uma só actividade - a actividade financeira.

                No entender do Requerente, não se vislumbram distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução por si propugnado, nem a AT as apontou no Ofício-Circulado n.º 30108, pelo que que não tendo o Requerente optado pela dedução do imposto por si incorrido em recursos de utilização mista de acordo com o método da afectação real, não pode este critério ser imposto in casu.

                Afirma o Requerente, em conclusão, a ilegalidade do Ofício-Circulado n.º 30108, considerando a solução aí consagrada violadora do n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa, por criar uma verdadeira norma de incidência tributária por via administrativa, e incompatível com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Directiva IVA.

                Abona-se, ainda, o Requerente, no decidido nos processos arbitrais n.º 309/2017-T, 311/2017-T, e 312/2017-T do CAAD.

 

*

                Efectivamente, como assinala o Requerente, a matéria ora em discussão já foi apreciada em várias decisões arbitrais, podendo indicar-se, para além das atrás referidas, as proferidas nos processos arbitrais n.º 335/2018-T, 339/2018-T e 498/2018-T .

                Em todas as referidas decisões, proferidas por Tribunais Arbitrais colectivos, após análise do quadro legal nacional e comunitário aplicável, foi entendido de forma unânime que o Código do IVA efectuou a transposição do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva (a que corresponde o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE) para o direito interno mas não permite sustentar a aplicação de um coeficiente de imputação específico que tenha por base a dedução do montante anual correspondente aos juros associados à actividade de locação financeira, não sendo determinante que o Tribunal de Justiça tenha interpretado a Directiva no sentido de que não se opõe a que, nas actividades de locação financeira, no cálculo da percentagem a deduzir deva entrar apenas a parte das rendas correspondente aos juros, dado que o Tribunal de Justiça limitou-se a interpretar o direito comunitário e a norma em causa deixa uma margem livre conformação ao legislador, cabendo às instâncias jurisdicionais nacionais verificar se subsiste norma no ordenamento jurídico interno que permita acolher o critério interpretativo adoptado pelo Tribunal de Justiça.

                Assim, no acórdão arbitral proferido no processo n.º 309/2017-T, do CAAD, pode ler-se que:

“Desde logo, é de explicitar que, nos termos do artigo 267.º do TFUE [3], a competência do TJUE em sede de reenvio prejudicial, se limita à «interpretação dos Tratados», e à «validade e a interpretação dos actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União», pelo que não se estende à interpretação do artigo 23.º do CIVA, na parte em que consubstancia opções do legislador nacional em matérias explicitamente deixadas pela Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, à sua discricionariedade.

            Por outro lado, há que ter em consideração que a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, não é uma disposição de aplicação directa, pois é dirigida aos «Estados-Membros» «autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços».

            Num Estado de Direito, em matéria subordinada ao princípio da legalidade e reserva de lei [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 8.º da LGT, a opção pela aplicação no nosso direito interno daquela norma facultativa da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, tem de ser efectuada por via legislativa.

            Para além disso, há que esclarecer que os dois únicos métodos de dedução previstos para os bens de utilização mista afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica previstos no artigo 23.º do CIVA são a:

– a aplicação de uma «percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução» [n.º 1 alínea b) com remissão para o n.º 4;

– «a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito» (n.º 2 do artigo 23.º).

            Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 23.º, quando a aplicação do método previsto no n.º 1 (que para os afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica é a percentagem de dedução, como refere a alínea b) do n. º 1] «conduza a distorções significativas na tributação», a Autoridade Tributária e Aduaneira pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no n.º 2.

            Assim, a questão que se coloca reconduz-se a saber se neste n.º 2 se inclui a possibilidade determinação da afectação real através de uma percentagem de dedução.

            Neste n.º 2 apenas se prevê a «afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito».

            É manifesto que a determinação da afectação com base numa percentagem, qualquer que seja a forma de a determinar, não constitui um critério objectivo que permita determinar o grau de afectação de bens ou serviços. Na verdade, é evidente que com base no valor das rendas, total ou parcial, não se pode determinar, com objectividade, por exemplo, quais as despesas de electricidade ou água ou de manutenção dos elevadores de edifícios comuns às actividades dos dois tipos que estão afectas à actividade de locação financeira.

            Isto é, a aplicação de uma percentagem, qualquer que ela seja, não permite «determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução» e, por isso, não pode constituir um critério objectivo para efeitos do n.º 2 do artigo 23.º

             Sendo assim, tem de se concluir que o poder concedido à Administração Fiscal pelo n.º 3 do artigo 23.º, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem dedução.

            Consequentemente, o método da percentagem de dedução só pode ser utilizado nas situações em que está previsto directamente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4, do mesmo artigo.

             E, nos termos deste n.º 4, esta percentagem é determinada através de «uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento».

            Por isso, embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA.

            E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo artigo 3.º, n. 1, do Código do Procedimento Administrativo.

            Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que «Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins».

            À face desta norma, o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa».

            Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.

            No que concerne à necessidade de aplicação do método referido por imposição do princípio da neutralidade, não são indicadas nem demonstradas pela Autoridade Tributária e Aduaneira as razões por que tal método é necessário para assegurar a «sã concorrência» ou a igualdade de todas as empresas, sendo certo que, na perspectiva do legislador nacional, a aplicação do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º é a forma adequada de assegurar o direito à dedução de todos os sujeitos passivos mistos, nos casos em que seja inviável a afectação real com critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito.

Pelo contrário, como se explica no Parecer do Senhor Prof. Doutor José Xavier de Basto e do Senhor Prof. Doutor António Martins, junto aos autos, afigura-se que «o apuramento da parcela de IVA dedutível pelo método que a administração tenta impor, provoca, ela sim, distorções significativas de tributação, pois tanto na modalidade de rendas de leasing constantes como de rendas variáveis, e uma vez que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, a proporção de juros contida na totalidade da renda flutua ao longo do período contratual, originando flutuações da percentagem de dedução, que nada têm que ver com diferentes intensidades de uso dos inputs comuns e que portanto têm de ser julgadas arbitrárias e sem fundamento legal e económico» e que «pelo método imposto pela administração, a parcela de IVA dedutível fica claramente desajustada do desígnio do imposto de libertar o empresário de todo o IVA suportado a montante, quando é certo que a jusante a renda foi integralmente tributada».

            Mas, mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativo nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal, em que se está perante matéria inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n 1, alínea i), da CRP] .

            Na verdade, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da Autoridade Tributária e Aduaneira de natureza geral e abstracta, publicitadas circunscreve-se à ordem administrativa, pois resulta somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, a orientações genéricas da Autoridade Tributária e Aduaneira, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, mas essa orientações não vinculam os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem aos tribunais, que devem interpretar e aplicar as leis fiscais sem qualquer dependência dos critérios adoptados pela Administração fiscal através dos referidos «despachos genéricos, das circulares e das instruções» (artigo 203.º da CRP). [5]É com este alcance que o n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT estabelece que «a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias».

            A isto acresce que, como decidiu o TJUE, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, não se opõe a que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contrato», no que está ínsito que não é compaginável com a regra referida a imposição de uma percentagem de dedução especial de forma generalizada, independentemente da utilização real dos bens e serviços.

             Pelo exposto, concluir-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade procede o pedido de pronúncia arbitral.”

                No processo arbitral 311/2017-T, escreveu-se o seguinte:

“A AT, através do Ofício Circulado nº 30.108, de 30.01.2009, veio divulgar a sua interpretação do artigo 23º do Código do IVA no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a atividade de Leasing ou de ALD, para efeitos do apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução. 

Entendeu a AT  que estes sujeitos passivos devem utilizar, nos termos do nº2 do artigo 23º, do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços,  por considerar que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º, do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação” (Cfr nº 8 do referido Ofício Circulado).

E entendeu ainda a AT que, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico (sublinhado nosso), tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA (nº9 do referido Ofício Circulado).

Ora esta interpretação dada pela AT ao artigo 23º-4, do CIVA e que esteve na origem do citado ofício circulado nº 30108, de 30-1-2009, não tem suporte mínimo na letra da lei [CIVA e Diretiva IVA] e, consequentemente, aquele entendimento (da AT) de que só o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de locação financeira da Requerente deve ser considerado no cálculo da percentagem de dedução, não pode, como tal, ser sufragado.

Na verdade, tal como dispõe e impõe o artigo 16º-2/h), do CIVA, nas operações de locação financeira, o valor tributável em sede de IVA, é o da totalidade da renda (sublinhado nosso) recebida ou a receber do locatário.

Ou seja: é  sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, que se deve liquidar IVA, pois o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira é, segundo a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, “o valor da renda recebida ou a receber do locatário”; e de ser claro também que o numerador da fracção que exprime a percentagem a dedução é constituído pelo “montante anual”, imposto excluído, das operações que dão lugar à dedução”, ou seja pelo valor das operações que foram tributadas, e que o respectivo denominador é o “montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo…”, o que obviamente inclui as primeiras.

A solução proposta pela Administração Fiscal de tributar toda a renda, como manda a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º, sobre o valor tributável, e de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fração a parte da renda correspondente à amortização   financeira não tem apoio direto nos textos legais.

Certo que neste tipo de contratos (também denominados de leasing), o proveito que releva para efeitos contabilísticos e, consequentemente, para efeitos de tributação do rendimento, é apenas aquele que isola a componente de juros da renda a pagar pelo locador; ou seja: a parte da renda relativa à amortização do capital não releva na, digamos, folha contabilística do locador.

Sendo a parcela dos juros a única que afeta o resultado contabilístico, também, consequentemente, o mesmo sucede para efeitos de tributação em IRC por força da relação de dependência (parcial) prevista no artigo 17º, do CIRC.

Já não assim é, porém, para efeitos de IVA, na medida em que a base tributável encara as duas componentes da renda como uma só, fundindo-as no conceito geral de contrapartida [a renda tout court] previsto no citado artigo 16º, do CIVA, cuja epígrafe é “valor tributável”.

Por seu lado, o artigo 23º, do CIVA, consagra objetivamente o pro rata como  o regime de dedução do IVA para – como é o caso dos autos – os comummente denominados  “sujeitos passivos mistos” – Cfr nºs 1 e 4 – sem prejuízo de opção do sujeito passivo pela dedução segundo a afetação real (sublinhado nosso), com base em critérios objetivos e igualmente sem prejuízo – agora sim -, de intervenção Autoridade Tributária e Aduaneira (que poderia impôr, em determinadas circunstâncias, condições especiais ou mesmo fazer cessar esse procedimento, se for entendido que aquele provoca ou pode provocar distorções significativas na tributação) (nº 2, do citado artigo 23º).

Apenas em duas situações, porém, foi feita a transposição para a legislação nacional da margem estabelecida na Diretiva IVA, relativamente à possibilidade de obrigar um sujeito passivo a não aplicar o método pro rata de dedução: (i) quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas e (ii) no caso de se verificarem distorções significativas na tributação – Cfr artigo 23º-3, do CIVA.

Assim é que, in casu, ao colocar, inicialmente, no numerador e no denominador   do pro rata o montante anual das rendas sobre o qual incidiu IVA – ou seja, o montante da contrapartida -  o Banco requerente utilizou a base de liquidação de IVA devida e legal.

Ao contrário, as liquidações ora impugnadas, na linha ou em cumprimento do determinado no ofício circulado nº 30108, de 30-1-2009 [que traduz o entendimento da AT de que para o cálculo do pro rata apenas pode concorrer a componente de juros], enfermam, à luz do exposto, de ilegalidade por erro nos pressupostos de facto e de direito.

Na verdade, e de acordo com a legislação comunitária ( artigos 173º, 174 e 175º da Diretiva nº 2006/112/CE do Conselho, de 28.11.2006) e com a legislação interna já citada (artigo 23º, nº1, nº4, nº6, nº7 e nº8, do Código do IVA),   resulta que: (a) o método da percentagem de dedução deve ser o  aplicado nas situações como a dos autos (b) o método da afetação real será de aplicação facultativa pelos sujeitos passivos,  (c)  a AT pode obrigar  à aplicação do método da afetação real, (d) a única  fórmula de cálculo da percentagem de dedução ou prorata  prevista na legislação interna portuguesa  é a que consta do nº 4 do artigo 23º do CIVA , (e)  este artigo 23º  não prevê outra fórmula de determinação do  pro rata.

Daqui decorre, reafirma-se, que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» nos termos referidos no ponto 9 do Ofício Circulado nº 30.108, de 30.01.2009, da AT, não tem o necessário enquadramento legal.

Assinale-se ainda a natureza manifestamente infundada ou não fundamentada de que a aplicação do método do pro rata pretendida pela Requerente na determinação do grau de utilização de bens e serviços utilizados em operações mistas segundo os termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA conduza a “distorções significativas na tributação”(!)

O caso “Banco Mais”

O TJUE considerou que a Sexta Directiva do IVA não se opõe a que os Estados-Membros apliquem, numa determinada operação, um método ou um critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daqueloutro método.

Ora compulsado o Acórdão do TJUE proferido no Caso Banco Mais logo se verifica que o mesmo parece assentar num equívoco, já que assume, sem efetivamente o apurar, que a lei portuguesa (mais precisamente o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.

Assim, o § 19 do Acórdão do TJUE refere: «Consequentemente, importa considerar, como confirmou o Governo português na audiência, que o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA constitui a transposição, para o direito interno do Estado-Membro em causa, do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva».

Como bem refere JOSÉ MARIA MONTENEGRO (in Comentário ao Acórdão “Fazenda Pública contra Banco Mais, SA” de 10 de julho de 2014 – Proc C-183/13) é «…neste ponto base, diria mesmo, nevrálgico – que nos distanciamos do Acórdão do TJUE de 10 de julho de 2014. Pois não é verdade que a disposição constante do n.º 2 do art.º 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) reproduz, em substância, a regra da determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que é uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, dessa Diretiva. E mais dificuldade teremos em acompanhar a afirmação de que o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA constitui a transposição, para o direito interno do Estado-Membro  em causa, do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva» (Anotação à aludida jurisprudência, reproduzida como documento 8, junto com a Petição).

É manifesto, por outro lado, que o citado Acórdão do TJUE não responde diretamente à pergunta prejudicial formulada e que assentou na questão de saber se a renda correspondente à amortização financeira deve ser considerada no denominador do pro rata, ou, ao invés, se apenas deveriam ser considerados os juros, por apenas estes constituírem a remuneração ou o proveito de uma entidade que desenvolve atividades de locação financeira (sujeitas) e outras atividades associadas à concessão de crédito (isentas).

Daí que, recolocada a questão, a resposta ao pedido prejudicial pretende incidir justamente sobre «…se as disposições do sistema comum do IVA em matéria do direito à dedução, em particular as constantes do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Diretiva, permitem a um Estado membro estabelecer que os bancos que também, realizam operações de locação financeira, apurem o direito à dedução relativo a bens e serviços de uso misto tomando em consideração, quanto às mencionadas operações, a parte correspondente à remuneração do capital (juros) investido na aquisição dos bens dados em locação, assim como eventuais comissões e encargos afins».

Assinale-se que, tal como resulta dos factos alegados e não contestados pela AT em sede de procedimento de Reclamação Graciosa e de Recurso Hierárquico, a locação financeira não constitui uma atividade meramente acessória de uma instituição financeira como a Requerente.”

                No acórdão arbitral 312/2017T exarou-se que:

“Em suma e concluindo:

Os dois únicos métodos de dedução previstos para os bens de utilização mista afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica previstos no artigo 23.º do Código do IVA são a:

a aplicação de uma «percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução» (n.º 1 alínea b) do artigo 23.º do Código do IVA com remissão para o n.º 4;

«a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito» (n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA).

 Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 23.º, quando a aplicação do método previsto no n.º 1 (que para os afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica é a percentagem de dedução, como refere a alínea b) do n. º 1) «conduza a distorções significativas na tributação», a AT pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no n.º 2.

E compulsado este n.º 2, o mesmo apenas prevê a «afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito».

É manifesto que a aplicação de uma percentagem, qualquer que ela seja, como faz a Requerida, no caso em apreço, não permite «determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução» e, por isso, não pode constituir um critério objectivo para efeitos de aplicação do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA.

Pelo que a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é um Ofício-circulado, que não é mais que uma instrução interna que apenas obriga os serviços, mas que não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.

Donde, conclui-se de que o método da percentagem de dedução só pode ser utilizado nas situações em que está previsto directamente, in casu, na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, do Código do IVA, e este método é o que consta do n.º 4 do mesmo artigo e mais nenhum.

Não se desconhece a possibilidade conferida pelo artigo 173.º, n.º 2, c) da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, aos seus Estados Membros de «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», mas tal possibilidade não foi transposta para o Código do IVA nacional, i.e., a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do mesmo código.

E, não tendo essa possibilidade sido acolhida por via legislativa, não a pode aplicar a AT, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT).

Decorre de tudo o supra exposto que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, procedendo, assim, o pedido de pronúncia arbitral.”.

                Posteriormente, no processo arbitral n.º 335/2018T veio a referir-se que:

“Desde logo, é de explicitar que, nos termos do artigo 267.º do TFUE, a competência do TJUE em sede de reenvio prejudicial, se limita à «interpretação dos Tratados», e à «validade e a interpretação dos actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União», pelo que não se estende à interpretação do artigo 23.º do CIVA, na parte em que consubstancia opções do legislador nacional em matérias explicitamente deixadas pela Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, à sua discricionariedade.

            Por outro lado, há que ter em consideração que a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, não é uma disposição de aplicação directa, pois é dirigida aos «Estados-Membros» «autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços».

            Num Estado de Direito, em matéria subordinada ao princípio da legalidade e reserva de lei [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 8.º da LGT, a opção pela aplicação no nosso direito interno daquela norma facultativa da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, tem de ser efectuada por via legislativa.

            Para além disso, há que esclarecer que os dois únicos métodos de dedução previstos para os bens de utilização mista afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica previstos no artigo 23.º do CIVA são:

– a aplicação de uma «percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução» [n.º 1 alínea b) com remissão para o n.º 4;

– «a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito» (n.º 2 do artigo 23.º).

            Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 23.º, quando a aplicação do método previsto no n.º 1 (que para os afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica é a percentagem de dedução, como refere a alínea b) do n. º 1] «conduza a distorções significativas na tributação», a Autoridade Tributária e Aduaneira pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no n.º 2.

            Assim, a questão que se coloca reconduz-se a saber se neste n.º 2 se inclui a possibilidade determinação da afectação real através de uma percentagem de dedução.

            Neste n.º 2 apenas se prevê a «afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito».

            É manifesto que a determinação da afectação com base numa percentagem, qualquer que seja a forma de a determinar, não constitui um critério objectivo que permita determinar o grau de afectação de bens ou serviços. Na verdade, é evidente que com base no valor das rendas, total ou parcial, não se pode determinar, com objectividade, por exemplo, quais as despesas de electricidade ou água ou de manutenção dos elevadores de edifícios comuns às actividades dos dois tipos que estão afectas à actividade de locação financeira.

            Isto é, a aplicação de uma percentagem, qualquer que ela seja, não permite «determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução» e, por isso, não pode constituir um critério objectivo para efeitos do n.º 2 do artigo 23.º

             Sendo assim, tem de se concluir que o poder concedido à Administração Fiscal pelo n.º 3 do artigo 23.º, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem dedução.

            Consequentemente, o método da percentagem de dedução só pode ser utilizado nas situações em que está previsto directamente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4, do mesmo artigo.

             E, nos termos deste n.º 4, esta percentagem é determinada através de «uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento».

            Por isso, embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA.

            E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.

            Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que «os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins».

            À face desta norma, o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa».

            Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.

            No que concerne à necessidade de aplicação do método referido por imposição do princípio da neutralidade, não são indicadas nem demonstradas pela Autoridade Tributária e Aduaneira as razões por que tal método é necessário para assegurar a «sã concorrência» ou a igualdade de todas as empresas, sendo certo que, na perspectiva do legislador nacional, a aplicação do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º é a forma adequada de assegurar o direito à dedução de todos os sujeitos passivos mistos, nos casos em que seja inviável a afectação real com critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito.

Pelo contrário, como se explicou no Parecer do Senhor Prof. Doutor José Xavier de Basto e do Senhor Prof. Doutor António Martins, citado no acórdão do processo n.º 309/2017-T, afigura-se que «o apuramento da parcela de IVA dedutível pelo método que a administração tenta impor, provoca, ela sim, distorções significativas de tributação, pois tanto na modalidade de rendas de leasing constantes como de rendas variáveis, e uma vez que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, a proporção de juros contida na totalidade da renda flutua ao longo do período contratual, originando flutuações da percentagem de dedução, que nada têm que ver com diferentes intensidades de uso dos inputs comuns e que portanto têm de ser julgadas arbitrárias e sem fundamento legal e económico» e que «pelo método imposto pela administração, a parcela de IVA dedutível fica claramente desajustada do desígnio do imposto de libertar o empresário de todo o IVA suportado a montante, quando é certo que a jusante a renda foi integralmente tributada».

            Mas, mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativo nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal, em que se está perante matéria inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n 1, alínea i), da CRP].

            Na verdade, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da Autoridade Tributária e Aduaneira de natureza geral e abstracta, publicitadas, circunscreve-se à ordem administrativa, pois resulta somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, a orientações genéricas da Autoridade Tributária e Aduaneira, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, mas essas orientações não vinculam os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem aos tribunais, que devem interpretar e aplicar as leis fiscais sem qualquer dependência dos critérios adoptados pela Administração fiscal através dos referidos «despachos genéricos, das circulares e das instruções» (artigo 203.º da CRP). É com este alcance que o n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT estabelece que «a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias».

            A isto acresce que, como decidiu o TJUE, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, não se opõe a que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos», no que está ínsito que não é compaginável com a regra referida a imposição de uma percentagem de dedução especial de forma generalizada, independentemente da utilização real dos bens e serviços.

             Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.”

                No processo arbitral 339/2018T prosseguiu-se entendendo que:

“Parece não haver dúvidas que o artigo 23.º, n.º 1, alínea b), consagra o método pro rata para a dedução do IVA para sujeitos passivos mistos, estabelecendo no n.º 4 o cálculo da percentagem de dedução. Por outro lado, nos termos do n.º 2, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, o que corresponde à aplicação de um método de dedução alternativo baseado na afectação real em função da efectiva utilização dos bens. Para esta última hipótese, esse n.º 2 prevê igualmente que a Administração possa impor condições especiais ao método de afectação real e fazer cessar o procedimento quando se verifiquem distorções significativas na tributação. E nos termos da alínea b) do n.º 3, a Administração pode também obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o método de afectação real quando a aplicação do método pro rata possa conduzir a distorções significativas na tributação.

Não pode deixar de reconhecer-se que as disposições conjugadas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º correspondem, em substância, à regra de determinação do direito de dedução a que se refere o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Diretiva, contemplando a possibilidade de, por iniciativa do sujeito passivo ou por impulso da Administração, vir a ser adotado o método de afectação real para a dedução do imposto relativamente a bens de utilização mista. E é também ponto assente que o n.º 2 permite que a Administração, através do controlo dos critérios utilizados pelo sujeito passivo na aplicação do método de afectação real, possa impor condições especiais, que, na prática, poderão traduzir-se na aplicação de um critério que permita precisar melhor o grau de utilização dos bens de uso misto de uma empresa.

Todavia, não pode afirmar-se, à luz de uma interpretação literal e sistemática dos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º, que o legislador tenha consagrado expressamente a possibilidade de a Administração, por sua iniciativa, mitigar o método pro rata de modo a instituir um terceiro método ou um método específico que altere a regra de cálculo da percentagem de dedução que consta do n.º 4 desse artigo 23.º

De facto, como se deixou esclarecido, os poderes que o Código confere à Administração, através daquelas disposições, apenas consentem que possam ser utilizados critérios mais objectivos na dedução  pelo método de afectação real ou que se obrigue o sujeito passivo a utilizar esse método em substituição da dedução por percentagem. Mas não se descortina aí uma qualquer referência à possibilidade de a Administração fixar um cálculo de dedução em aplicação do método do volume de negócios distinto do previsto no n.º 4 do artigo 23.º e que permita inserir no numerador e denominador da fracção representativa do pro rata apenas uma parte dos rendimentos que estão sujeitos a IVA.

O coeficiente específico de dedução que permite calcular a percentagem de dedução apenas com base no montante anual de juros foi somente introduzido pelo Ofício Circulado n.º 30108, de 30 da janeiro de 2009, pelo qual, a Administração Fiscal, tendo concluído, relativamente às instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as actividades de Leasing ou de ALD, que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA pode conduzir a “distorções significativas na tributação” determinou, no uso da faculdade prevista no artigo 23.º, n.º 3, que esses sujeitos passivos passassem a utilizar a afectação real.

Segundo os pontos 8 e 9 do Ofício Circulado, a afectação real poderá fazer-se das duas seguintes formas: (a) se for possível, faz-se a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades; (b) se não for possível aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.

Como é sabido, no entanto, as circulares são meras orientações genéricas que se destinam a uniformizar, no âmbito dos serviços, a interpretação e aplicação das normas tributárias, mas que, apesar de possuírem força vinculativa para a Administração Tributária (artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT), não podem sobrepor-se aos actos normativos de valor hierárquico superior nem podem servir por isso como fundamento jurídico válido para a imposição de um critério de dedução que não tenha suficiente apoio nos textos legais.

Certo é que o acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-183/13 concluiu que a norma do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a que um Estadomembro obrigue uma instituição que exerce atividades de locação financeira a incluir no método de dedução pro rata para os bens e serviços de utilização mista apenas a parte das rendas pagas que correspondem aos juros.

A norma comunitária não tem, no entanto, a característica própria do efeito directo, que apenas é reconhecido às disposições que confiram ou imponham obrigações de forma, clara, precisa e incondicionada. E, pelo contrário, deixa alguma margem de liberdade de conformação ao legislador nacional quanto à definição dos critérios de afectação real (Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 356). Basta notar que a norma, depois de enunciar o critério geral de dedução por percentagem, que consta do n.º 1, apenas se limita a conferir aos Estados-membros, no n.º 2, alínea c), a possibilidade de tomar medidas no sentido de “autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”.

E embora a norma comunitária admita que, na aplicação do método de afectação real, seja apenas considerada uma parte dos bens de uso misto utilizados, e não a sua totalidade, o certo é que na transposição efectuada pelo legislador nacional apenas se prevê a “afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito”.

Ora, é claro que que não é com base no valor parcial da renda (correspondente aos juros) que é possível determinar, com objectividade, as despesas comuns que estão afectas à actividade de locação financeira que conferem o direito à dedução (neste sentido, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 309/2017).

Sendo assim, haverá de concluir-se que o poder concedido à Administração Fiscal pelo artigo 23.º, n.º 3, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução. Tanto mais que, como determina o artigo 16.º, n.º 1, alínea h), o valor tributável nas operações resultantes de um contrato de locação financeira é o valor da renda recebida ou a receber do locatário, e na fórmula legalmente prevista para calcular a percentagem de dedução deve intervir o valor de negócios total (artigo 23.º, n.º 4).  

Em resumo, o Código do IVA efectuou a transposição do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva para o direito interno mas não permite sustentar a aplicação de um coeficiente de imputação específico que tenha por base a dedução do montante anual correspondente aos juros associados à actividade de locação financeira. Não é determinante, por outro lado, que o Tribunal de Justiça tenha interpretado a Diretiva no sentido de que não se opõe a que, nas atividades de locação financeira, no cálculo da percentagem a deduzir deva entrar apenas a parte das rendas correspondente aos juros. O Tribunal de Justiça limitou-se a interpretar o direito comunitário e, como se deixou exposto, a norma em causa deixa uma margem livre conformação ao legislador, cabendo às instâncias jurisdicionais nacionais verificar se subsiste norma no ordenamento jurídico interno que permita acolher o critério interpretativo adoptado pelo Tribunal de Justiça.

Não sendo esse o caso e verificando-se que o critério específico de dedução foi adoptado pela Administração na sequência de uma circular interna, as liquidações impugnadas e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa enfermam de ilegalidade por violação do disposto no artigo 23.º, n.º 2 e 3, alínea b), do Código do IVA.”

                Por fim, no acórdão arbitral n.º 498/2018T reafirmou-se o seguinte:

“Em suma, decorre da legislação aplicável que:

(i)           O método da percentagem de dedução deve ser o aplicado nas situações como a que está subjacente aos presentes autos;

(ii)          O método da afetação real será de aplicação facultativa pelos sujeitos passivos;

(iii)         A Autoridade Tributária pode obrigar à aplicação do método da afetação real em certos casos;

(iv)         Porém, a única fórmula de cálculo da percentagem de dedução ou pro rata  prevista na legislação interna portuguesa é a que consta do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, não havendo margem para a alterar.

Assim, e subsumindo tudo o que antecede ao caso em apreço, ter-se-á de concluir que, tendo as autoliquidações ora impugnadas resultado das orientações vertidas no Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009 – e de acordo com o qual, para o cálculo do pro rata apenas pode concorrer a componente de juros – enfermam, à luz do exposto, de ilegalidade por erro nos pressupostos de facto e de direito.

Diga-se, por fim, que, ao contrário do que refere a Requerida, este entendimento não é colocado em causa pela Jurisprudência do TJUE e, em particular, pelo Acórdão daquele Tribunal datado de 10/07/2014 e proferido no âmbito do processo C-183/13 (“Banco Mais”).

Desde logo porque, como ressalta da mera leitura do mesmo e vem sendo denunciado pela Doutrina, o referido Acórdão lavra em erro de facto. Na verdade, e como decorre dos §.18 e 19 do referido aresto, assentou o TJUE a sua decisão no pressuposto de que o n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA “reproduz, em substância, a regra da determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que é uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, dessa Diretiva constitui a transposição, para o direito interno do Estado Membro em causa, do artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva” .

Por outro, o citado Acórdão do TJUE não responde diretamente à pergunta prejudicial formulada e que assentou na questão de saber se a renda correspondente à amortização financeira deve ser considerada no denominador do pro rata, ou, ao invés, se apenas deveriam ser considerados os juros, por apenas estes constituírem a remuneração ou o proveito de uma entidade que desenvolve atividades de locação financeira (sujeitas) e outras atividades associadas à concessão de crédito (isentas).

Não se ignora que o TJUE considerou que a Sexta Directiva do IVA não se opõe a que os Estados-Membros apliquem, numa determinada operação, um método ou um critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daqueloutro método.

Porém, e como bem se refere na Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.º 309/2017-T (Jorge Lopes de Sousa), nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), a competência do TJUE em sede de reenvio prejudicial, limita-se à “interpretação dos Tratados”, e à “validade e a interpretação dos actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União”.

Não cabe, pois, ao TJUE aplicar o direito europeu “à situação de facto subjacente ao processo principal. Esse papel incumbe ao juiz nacional e, por isso, não compete ao Tribunal pronunciar-se sobre questões de facto suscitadas no âmbito do litígio no processo principal nem sobre eventuais divergências de opinião quanto à interpretação ou à aplicação das regras de direito nacional” .

Decorre do exposto que a referida Jurisprudência não tem qualquer influência na interpretação do artigo 23.º do Código do IVA, na parte em que este contém opções do legislador nacional em matérias explicitamente deixadas pela Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28/11/2006, à sua discricionariedade. Recorde-se a este propósito que que a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva IVA não é uma disposição de efeito directo, carecendo de transposição para o Direito interno de acordo com o procedimento legislativo vigente em cada Estado Membro.

Ora, no caso em apreço, a norma de Direito interno (artigo 23.º do Código do IVA) apenas prevê dois métodos de dedução para os bens de utilização mista afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica previstos, a saber:

– a aplicação de uma «percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução» - alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA por remissão para o n.º 4 da mesma norma; e

– «a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito» (n.º 2 do artigo 23.º do Código do CIVA).

Ademais, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 23.º, quando a aplicação do método previsto no n.º 1 «conduza a distorções significativas na tributação», a Autoridade Tributária e Aduaneira pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no n.º 2. Contudo, nesta norma apenas se prevê a “afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito”. (...)

Assim, ter-se-á de concluir que a faculdade concedida à Autoridade Tributária pelo n.º 3 do artigo 23.º não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução que, assim, só pode ser utilizada nas situações em que está prevista directamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4, do mesmo artigo.

Embora, à luz da referida Jurisprudência, se possa admitir que a Directiva IVA permitia ao legislador interno “obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”, a verdade é que este não usou tal prerrogativa, pelo que não pode a mesma ser aplicada internamente por ausência de base legal.

Sem prejuízo do que antecede, só por si suficiente para conduzir à anulação dos actos tributários impugnados, dir-se-á ainda, no que concerne ao argumento invocado pela Requerida no §. 41 da Resposta, e segundo o qual a aplicação do método referido no Ofício-Circulado n.º 30.108 é uma imposição do “princípio da neutralidade do imposto e mais do que esse o princípio o da sã concorrência no espaço da União Europeia”, dir-se-á que também não procede.

Desde logo, não fundamenta a Requerida, como lhe competia, as suas alegações. De todo o modo, e como referem José Xavier de Basto e António Martins no Parecer junto aos autos e já citados, tal afirmação não é rigorosa. Na verdade, “o apuramento da parcela de IVA dedutível pelo método que a administração tenta impor, provoca, ela sim, distorções significativas de tributação, pois tanto na modalidade de rendas de leasing constantes como de rendas variáveis, e uma vez que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, a proporção de juros contida na totalidade da renda flutua ao longo do período contratual, originando flutuações da percentagem de dedução, que nada têm que ver com diferentes intensidades de uso dos inputs comuns e que portanto têm de ser julgadas arbitrárias e sem fundamento legal e económico» e que «pelo método imposto pela administração, a parcela de IVA dedutível fica claramente desajustada do desígnio do imposto de libertar o empresário de todo o IVA suportado a montante, quando é certo que a jusante a renda foi integralmente tributada”.”.

                Como se referiu anteriormente, todas as referidas decisões foram tomadas por unanimidade, tendo apreciado extensivamente o quadro legal, nacional e comunitário aplicável, e analisado aprofundadamente os argumentos apresentados pela AT, quer no Ofício-Circulado n.º 30108 quer nos próprios processos arbitrais, em termos que se subscrevem plenamente, sendo certo que, nos presentes autos, a Requerida não formulou qualquer novo argumento ou questão que infirme o quanto a jurisprudência citada concluiu e que cumpra apreciar.

                Assim, considerando-se, nos termos fundamentados pela jurisprudência arbitral indicada, que:

                - o artigo 23.º do Código do IVA não licencia a aplicação de um coeficiente de imputação específico que tenha por base a dedução do montante anual correspondente aos juros associados à actividade de locação financeira, excluindo dessa mesma base a dedução das amortizações de capital;

                - a tal conclusão não obsta a circunstância de o Direito Comunitário, tal como interpretado pelo TJUE, conferir aos Estados-Membros a faculdade de aplicarem, numa determinada operação, um método ou um critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daqueloutro método, dado que, face ao direito português, essa faculdade deve imperativamente ser exercida por via legislativa, não decorrendo deste entendimento, antes pelo contrário, a violação de qualquer norma da CRP, incluindo o artigo 8.º/4 desta;

                - ainda que assim não se entendesse, sempre se concluiria que o método que a AT pretende aplicar não preenche os pressupostos necessários à sua admissibilidade, por dele decorrerem distorções significativas na tributação.

                Face ao exposto, deve o pedido arbitral proceder também nesta parte.

 

***

iv.

                Na decisão da Reclamação Graciosa, e em termos reiterados na presente acção arbitral, a AT sustenta, sem suma, que a pretensão da Requerente, de corrigir erros na determinação do montante de IVA dedutível relativo a bens e serviços de utilização mista, corresponde a uma alteração retroativa dos critérios de dedução relativos àqueles bens e serviços, pelo que não seria admissível a sua correcção, após o decurso do prazo de entrega da última declaração periódica refente ao período em causa.

                Para a AT, conforme desenvolvido na informação n.º 1545 de 23-05-2016 da Direcção de Serviços do IVA, tratar-se-á de aplicação inovatória de métodos de dedução, face a uma opção que se encontra na autonomia do sujeito passivo, e não de um erro rectificável, equiparando esta situação à pretensão de alteração, para o passado, de um método de dedução previsto no artigo 23.º do Código do IVA, para outro.

                Antes de mais, e retornando a questão previamente abordada, não se pode deixar de notar que a AT, por um lado, sustenta que o sujeito passivo está impedido de, retroactivamente, alterar um método de dedução previsto no artigo 23.º do Código do IVA, para outro, enquanto que, por outro, pretende praticar isso mesmo ela própria, ao abrigo do disposto n.º 3 do artigo 23.º do IVA.

                Prosseguindo com a concreta questão que se coloca nos autos, é desde logo claro que não estamos perante uma destas situações, ou seja, o Requerente não pretende alterar, retroactivamente, as opções que tomou relativamente aos métodos de apuramento do montante a deduzir correspondente à utilização de recursos mistos.

                O que está em causa, isso sim, é a verificação da correcta aplicação do método escolhido, ou seja, se daquele, aplicado nos termos legais, resulta o montante apurado em determinada (auto)liquidação, ou outro.

                Ressalvado o respeito devido, não será de ter por aceitável o entendimento de que, uma vez que o sujeito passivo pode optar por deduzir menos imposto do que aquele que resulta da aplicação dos critérios legais, sempre que tal ocorrer inexiste erro.

                Efectivamente, fosse assim, e nunca, em situação alguma, haveria erro em qualquer liquidação por ter sido deduzido imposto em montante inferior ao devido, já que o raciocínio em questão seria sempre válido em relação a qualquer tipo de dedução, dado que o sujeito passivo pode sempre optar por deduzir menos imposto do que aquele que, legalmente, lhe for possível, sem que daí advenham quaisquer consequências.

                Daí que, naturalmente, não seja de reconhecer, nesta matéria, razão à AT, considerando como o TCA-Sul, no seu acórdão 28-09-2017, proferido no processo 263/16.0BELLE, que:

“1) Vigora no ordenamento jurídico português o dever de a Administração proceder à revisão dos actos tributários, no prazo de quatro anos a contar da data da exigibilidade do imposto, sempre que detecte uma situação de cobrança ilegal de tributos, seja por excesso, seja por defeito.

2) Existe erro de direito, fundamento do pedido de revisão do acto tributário, se na autoliquidação do imposto foi deduzido menos imposto do que o devido, por incorrecta aplicação do pro rata.”.

                Assim, estando em causa erros de direito, e não uma alteração retroativa dos critérios de dedução relativos aos bens e serviços de utilização mista, nenhum obstáculo se verifica à aferição e correcção de tais erros.

Consequentemente, e face a todo o exposto, deve ser parcialmente anulada a autoliquidação objecto da presente acção arbitral, por enfermar de vício de violação de lei, e, consequentemente, ser anulada a decisão de indeferimento que foi proferida na Reclamação Graciosa que a manteve.

 

*

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pelo Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No caso, o erro que afecta as liquidações parcialmente anuladas é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do artigo 43.º/2 da LGT, uma vez que o Requerente autoliquidou o imposto, conforme aquela reconhece expressamente, de acordo com instruções genéricas devidamente publicadas.

Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do acto parcialmente anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data daquele pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular parcialmente a autoliquidação de IVA, referente ao ano 2017, materializada na declaração periódica de imposto n.º..., referente ao mês de Dezembro daquele ano, entregue em 9 de Fevereiro de 2018, no valor de € 4.403.514,20, bem como a decisão da Reclamação Graciosa que teve aquele acto como objecto;

b)           Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos acima fixados;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante indicado infra.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 4.403.514,20, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 55.692,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de Outubro de 2019

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Hélder Faustino)

 

O Árbitro Vogal

(Rita Guerra Alves)