Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 615/2018-T
Data da decisão: 2019-10-21  IRC  
Valor do pedido: € 19.709,32
Tema: IRC - Tributações autónomas – SIFIDE - Dedução à coleta.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Nuno Maldonado Sousa, árbitro das listas do CAAD designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o tribunal arbitral singular, constituído em 18-02-2019, elabora nos seguintes termos a decisão arbitral no processo identificado.

 

I.             Relatório

 

1.A..., S.A., pessoa coletiva número ..., com sede na Rua ..., n.º ... A,  ..., ...-... Lisboa, requereu a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), para apreciar a legalidade dos atos de indeferimento da reclamação graciosa e o antecedente ato de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2015, na medida correspondente à não dedução à parte da coleta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma de incentivos fiscais em IRC, designadamente os benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial – (“SIFIDE”). Declara que o valor que considera indevidamente liquidado resultou da entrega no dia 31 de maio de 2016 da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2015. Apresentou subsequentemente em 1 de agosto de 2016 declaração de substituição, tendo apurado um montante de tributações autónomas em IRC de € 19.709,32 €.

É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 06-12-2018 e nesse mesmo dia foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

Nos termos do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral com árbitro singular o signatário, que manifestou a aceitação do encargo no prazo legal. Em 28-01-2019 as partes foram notificadas desta designação e não manifestaram intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 18-02-2019. O prazo para prolação da decisão foi prorrogado por dois meses em 26-08-2019.

3. A Requerente peticiona nestes autos a declaração da ilegalidade da autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2015 no que respeita ao montante de taxas de tributação autónoma de € 19.709,32, com a consequente anulação, naquela parte, da liquidação identificada. Para sustentar a sua pretensão invocou que a coleta que resulta das tributações autónomas também é em si imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas e que por isso nada obsta a que à respetiva coleta seja deduzido o benefício do SIFIDE. Convoca a jurisprudência proferida no CAAD, que considera ser no sentido que perfilha.

Conclui que a liquidação provocada pelo sistema informático da requerida é ilegal, não devendo prevalecer.

4. A Autoridade Tributária e Aduaneira sustentou que a integração das tributações autónomas no Código do IRC, conferiu uma natureza dualista à liquidação do imposto, corporizada em apuramentos separados das respetivas coletas, por obedecerem a regras diferentes. Considera por isso que os cálculos das duas naturezas são autónomos, não havendo que deduzir na parte das tributações autónomas o benefício que a lei atribui para o imposto sobre o lucro, stricto sensu e conclui pela improcedência dos pedidos.

 

II.            Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, em subordinação com as normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT e encontra-se em funções, em obediência às normas no artigo 21º, n.º 1 do mesmo diploma.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10º, n.º 1, alínea a), do já referido regime.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo regime e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias.

 

III.          Fundamentação

III (a) – Matéria de facto

 

Com relevância para a decisão, há que considerar os seguintes factos que se assentam:

A.           A Requerente entregou no dia 31 de maio de 2016 a declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2015, tendo apresentado em 1 de Agosto de 2016 declaração de substituição, tendo apurado um montante de tributações autónomas em IRC de € 19.709,32.

B.            O montante de SIFIDE disponível para utilização no final do exercício de 2015 ascendia a € 3.006.708,51, conforme certificação acompanhada de Declarações da Comissão Certificadora do SIFIDE.

C.            O sistema informático da AT não permitiu que a Requerente abatesse à coleta das tributações  autónomas em IRC os benefícios atribuídos através do SIFIDE, no exercício de 2015.

D.           O lucro tributável da Requerente foi apurado através da apresentação da declaração de rendimentos Modelo 22.

E.            A Requerente não era entidade devedora ao Estado nem à Segurança Social de impostos ou contribuições.

F.            Em 08-02-2017 a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC do exercício de 2015, efetuada na declaração de rendimentos mod. 22 apresentada em 31-05-2016, a qual foi substituída por uma 2.ª declaração mod. 22 em 01-08-2016.

G.           Por ofício datado de 07-09-2018 a Requerente foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa apresentada.

 

Factos considerados não provados

Não foram considerados como não provados nenhuns factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

O tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (artigo 596.º, n. 1 do CPC, aplicável ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.ºs 6 e 7 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e à prova documental, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, com natureza meramente conclusiva, ainda que tenham sido apresentadas como factos, por serem insuscetíveis de comprovação, sendo que o seu acerto só pode ser aferido em confronto com a fundamentação da decisão da matéria jurídica, constante do capítulo seguinte.

 

III (b) – O direito

O objeto do litígio

Crê-se que a Requerente colocou com clareza a questão que importa solucionar e que é afinal o objeto do litígio e que é a de saber se a Requerente tem ou não tem o direito de proceder à dedução à coleta de IRC, produzida pela aplicação das taxas de tributação autónoma, do benefício de que goza no âmbito do SIFIDE.

 

O regime jurídico aplicável

As duas teses em confronto podem resumir-se nas seguintes linhas. A Requerente sustenta que o IRC é um só imposto e se lhe é concedido o direto de deduzir à coleta o benefício do SIFIDE, então não há que distinguir; o benefício deve ser deduzido a todo o IRC que seja apurado. Por seu turno a AT considera que para apuramento do IRC não há uma liquidação única, mas antes dois apuramentos, ou dois cálculos distintos que, embora sejam ambos processados nos termos do artigo 90.º, n.º 1, alínea a) do CIRC e nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º do mesmo código, são efetuados com base em parâmetros diferentes, pois cada uma se materializa na aplicação das suas próprias taxas, previstas nos artigos 87.º ou no 88.º do CIRC, às respetivas matérias coletáveis determinadas igualmente de acordo com regras próprias; nesse regime dual, o SIFIDE não deve ser deduzido aos montantes das coletas das tributações autónomas.

A questão tem sido sucessivamente discutida nos processos que têm corrido no CAAD, com decisões que se têm pronunciado num e noutro sentido. Crê-se que tem havido argumentos de peso sustentando as duas orientações e não é certamente o maior ou menor número de decisões que sustentem cada tese que fará com que qualquer delas tenha mais racionalidade jurídica do que a outra. A análise que se possa fazer dessas deliberações levará à conclusão da inexistência de uma tendência dominante pois, considerando apenas os acórdãos proferidos e publicados, em 2019 houve oito decisões no sentido da não dedutibilidade do benefício do SIFIDE à coleta de IRC   e quatro acórdãos em sentido da dedutibilidade , sendo que na sua quase totalidade e em ambos os grupos um dos árbitros votou contra a orientação que fez vencimento.

Há, pois, que tomar posição, face aos factos trazidos e ao direito aplicável.

Não parece que a questão possa ser decidida questionando se as tributações autónomas fazem ou não fazem parte do IRC. Parece evidente que as tributações autónomas são parte do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, mas não se vê que essa afirmação deva conduzir necessariamente a que o imposto apurado por aplicação das respetivas taxas aos aglomerados de rúbricas sobre os quais incidem, deva ter o mesmo tratamento que tem a coleta obtida através da liquidação padrão (rendimento corrigido menos gastos corrigidos vezes taxa).

Crê-se que o a disciplina do imposto calculado através das taxas de tributação autónoma é aquela que rege o imposto em geral, ressalvadas as situações em que a sua aplicação conflitue com a disciplina que seja especificada para as “tributações autónomas”. É-lhes assim aplicável o regime geral do IRC, nomeadamente o que é aplicável aos prazos para apresentação de declarações, competência para a liquidação, privilégios creditórios, meios de impugnação, etc.. Mas para além da aplicação das regras gerais, haverá que verificar em concreto se a aplicação do regime geral não conflitua com as normas especiais previstas paras tributações autónomas. Cremos que é essa justamente a situação dos autos.

Vejamos brevemente a génese do regime geral e do regime específico das tributações autónomas para tentar identificar os pontos de conflito.

Como é sabido o imposto sobre rendimento das pessoas coletivas nasceu incidindo objetivamente sobre o lucro tributável, correspondendo este à diferença entre o património líquido no fim e no início do período de tributação (veja-se o §5 do preâmbulo do CIRC). Para determinar esse lucro tributável privilegiou-se o recurso à contabilidade, cujas técnicas e conceitos se consideraram meios idóneos para esse fim. É assim que na estrutura conceptual original do IRC o apuramento do lucro tributável toma como ponto de partida o resultado do exercício obtido através das regras técnicas da contabilidade, introduzindo-lhe depois algumas correções de sentido positivo ou negativo, de modo a que este resultado final correspondesse ao lucro tributável, i.e. ao rendimento real que se pretendia tributar (veja-se o §10 do preâmbulo do CIRC). É esta linha de orientação que tem expressão no artigo 17º-1 do CIRC que afirma que o lucro tributável “é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”. Estas correções “a deduzir” ou “a acrescer” ao resultado líquido do exercício determinado pelo método contabilístico, previstas no CIRC, eram de diversa natureza. Entre estas correções não se encontravam as “tributações autónomas”.

O imposto era então calculado aplicando a taxa geral de 36,5 % ao lucro tributável das entidades com direção efetiva ou estabelecimento estável em território português (artigo 69º CIRC.1989). A liquidação era feita, em termos análogos aos que hoje vigoram, através dos seguintes passos (71º-1 e 2 CIRC.1989): (i) apuramento da matéria coletável na declaração anual, tomando como ponto de partida o resultado contabilístico do exercício, através das correções “a deduzir” e “a acrescer”; (ii) apuramento da coleta por aplicação das taxas vigentes; (iii) deduções correspondentes à dupla tributação económica dos lucros distribuídos e à dupla tributação internacional e relativas à coleta de contribuição autárquica, a benefícios fiscais e a relativa a retenções na fonte. Claro que não se regulava nem podia regular o tratamento a dar às “tributações autónomas” que não faziam parte do sistema, que foi concebido nesta estrutura simples: tomar como ponto de partida o resultado contabilístico (17º-1 do CIRC.1989), corrigi-lo de forma a espelhar o rendimento que se pretende tributar através de regras qualitativamente semelhantes às que vigoravam no plano oficial de contabilidade então vigente (artigo 18º e seguintes CIRC.1989), aplicar-lhe a taxa geral (69º-1 CIRC.1989) e ao produto assim obtido fazer-lhe as deduções da tributação que de algum modo já havia sido suportada ou haveria que sê-lo através de outro sistema fiscal (71º-2 CIRC.1989).

A introdução no complexo dos impostos sobre o rendimento da aplicação de taxas de tributação autónoma, foi feita através do Decreto-Lei n.º 192/90 de 9 de junho (DL 192/90), que estipulou que as despesas confidenciais ou não documentadas passassem a ser tributadas autonomamente em IRS e IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10 %” (artigo 4º do Decreto-Lei citado). Para entendimento do que constituía esta nova taxa há que notar algumas singularidades da alteração: (i) o artigo 25º da Lei n.º 101/89 de 29 de dezembro  , que contém a alteração legislativa respetiva, embora ostente a epígrafe Imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e no seu número 1 preveja alterações ao CIRC, concebeu desde logo esta nova figura de forma extravagante relativamente à estrutura prevista no CIRC, optando por não a considerar ab initio, como alteração ao Código; (ii) embora o DL 192/90 justifique no seu preâmbulo as alterações que introduz ao CIRC, não apresenta quaisquer fundamentos para a nova disciplina que regula no seu artigo 4º, para vigorar de forma independente do Código; (iii) a oneração das despesas confidenciais ou não documentadas que passam a ser tributadas autonomamente em IRC a uma taxa de 10 %, não prejudicava o tratamento que o CIRC impunha para este tipo de gastos no seu artigo 41º-1-h).

Todos os elementos indicam que a introdução do método de tributar despesas em IRC constituiu de início uma medida extravagante, fora da estrutura conceptual do IRC, criada para homenagear o princípio da tributação sobre o rendimento real, reequilibrado através das correções reguladas no CIRC. A dita autonomia desta taxa aparece assim com grande intensidade; embora se considere inegavelmente que o seu produto é imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, não é já o rendimento que se tributa diretamente (como regulava o IRC) mas sim despesas (mesmo que não sejam custos ou gastos). O intuito de combater a contabilização de despesas não reveladas aparece aqui bem evidente, em contraposição com os objetivos próprios do CIRC.

O regime instituído pelo DL 192/90 foi sucessivamente atualizado nas leis que aprovaram os Orçamentos do Estado no capítulo onde são tratados os impostos diretos, sob a epígrafe “despesas confidenciais ou não documentadas”, mas já não em subordinação ao IRC, que é objeto de tratamento em artigos independentes. Essas atualizações consistiram na subida progressiva da taxa em que aquelas despesas eram tributadas autonomamente. Os valores assumidos pela taxa foram de 25% no período 1995-1996 (artigo 29º da Lei n.º 39-B/94 de 27 de setembro ), de 30% em 1997-1998 (artigo 31º da Lei n.º 52-C/96 de 27 de dezembro ) e 32% em 1999 e 2000 (artigo 31º da Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro  para 32%). Este primeiro regime das “tributações autónomas acabou por ser revogado em 01-01-2001 (artigos 7º-11 e 21º-2 da Lei n.º 30-G/2000 de 29 de dezembro).

Como primeira aproximação ao objetivo traçado - determinar quais são os pontos de conflito que resultam da aplicação do regime geral do IRC à disciplina das “tributações autónomas” - crê-se que o regime geral do IRC pretendia tributar o rendimento real das pessoas coletivas; o regime das “tributações autónomas” no período compreendido entre 1990 e 2000 pretendia obstar às despesas confidenciais e não documentadas. O sistema constituído pelas normas do CIRC há de dirigir-se, prima facie, para a citada finalidade. Ora como as “tributações autónomas” são de todo alheias à prossecução do objetivo concetual do CIRC, é forçoso concluir que haverá situações em que as regras gerais não serão idóneas para regular a situação, por prosseguirem fim diverso. É justamente nestas situações em que as normas preexistentes do CIRC contribuam para a determinação do rendimento real, que se verificará a sua inadequação para regerem as “tributações autónomas”, que, repete-se, perseguiam fins totalmente diferentes. É nestes casos de dissonância que se considera que haverá os tais conflitos que importa dirimir.

Esses conflitos são resolvidos através da interpretação normativa. No fundo haverá que dirimir o conflito aparente quando o pensamento legislativo subjacente à norma do regime geral do imposto por um lado e à norma do regime especial que regula a tributação autónoma por outro lado, não são conciliáveis, i.e. da sua aplicação atingir-se-á uma finalidade não prosseguida pela norma em causa.

Este conflito nas finalidades a atingir por cada uma das normas é patente quando foram introduzidas no sistema fiscal português as chamadas “tributações autónomas”. Na sua génese a tributação de despesas confidenciais e não documentadas surge com total autonomia face ao IRC pois é regulada fora do CIRC e usará apenas as suas regras formais que não prejudiquem a ratio legis  da norma do artigo 4º do DL 192/90, que era o combate àquele tipo de gastos. Parece claro à luz destes comandos que no período 1990- 2000 não era concebível utilizar créditos fiscais potenciais para satisfazer a obrigação de imposto apurado a este título, sob pena de se perverter o intuito da lei.

Num segundo estádio, as “tributações autónomas” foram introduzidas na sistemática do CIRC na reforma da tributação do rendimento de 2001. Esta reforma foi efetuada através da Lei n.º 30-G/2000 de 29 de dezembro, que pelo seu artigo 5º introduziu alterações ao IRC, sobretudo ao nível das isenções das pessoas coletivas públicas (artigo 8º), das provisões fiscalmente dedutíveis (artigo 32º), dos custos com realizações de utilidade social (artigo 38º), da enumeração dos encargos não dedutíveis para efeitos fiscais (artigo 41º), do conceito de menos-valias e de mais-valias e seu reinvestimento (artigos 42º e 44º), da eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos (artigo 45º), da dedução de prejuízos fiscais (artigo 46º), dos preços de transferência (artigo 57º) do regime aplicável a não residentes sujeitos a um regime fiscal privilegiado (artigo 57º-A a 57º-C), à tributação de grupos de sociedades (artigos 59º a 60º), do conceito de estabelecimento estável (artigo 4º-A) e do regime simplificado de determinação do lucro tributável (artigo 46º-A) e de diversas obrigações declarativas, sem introduzir alterações de fundo à filosofia do IRC. Na sua linha de orientação geral o CIRC pós reforma manteve os princípios que estão na sua génese; partir do resultado contabilístico e corrigi-lo de acordo com as regras estabelecidas, agora aperfeiçoadas pela experiência de 12 anos, para atingir o lucro tributável.

No que se vem averiguando, o CIRC resultante da reforma de 2001, passou a conter o seu artigo 69º-A, com a epígrafe “Taxa de tributação autónoma”, onde se regulou que as despesas confidenciais ou não documentadas (n.º 1) e as despesas de representação e os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, barcos de recreio, aeronaves de turismo, motos e motociclos (n.º 2), passavam a ser tributadas autonomamente às taxas, respetivamente, de 50% e de 20%. Relativamente ao pretérito regime do DL 192/90 há apenas que registar (i) que a oneração com a “taxa de tributação autónoma” passa a abranger também as despesas de representação e os encargos relacionados com veículos de turismo; (ii) que o valor da taxa foi atualizado; (ii) que as regras relativas ao procedimento e forma de liquidação não sofreram qualquer adequação à introdução no CIRC desta figura, embora tenham sido alteradas a propósito do regime simplificado de determinação do lucro tributável (artigo 71º). Não se vê que a reforma do CIRC operada em 2000-2001 tenha introduzido qualquer alteração significativa no funcionamento dos mecanismos do IRC e da relação das suas normas com as tributações autónomas. Introduziu-se apenas o mecanismo de combate a despesas consideradas indesejadas que já constava de legislação extravagante, ampliou-se ligeiramente o espetro de aplicação, mas não se adaptou por qualquer forma o procedimento de liquidação. Crê-se por isso que se manteve a caracterização do regime que já antes vigorava, continuando a ter de se efetuar a interpretação das normas de modo a prevenir efeitos contrários à ratio legis.

As sucessivas alterações a este artigo não afetaram por qualquer forma o equilíbrio do sistema, que se manteve até à atualidade.

Note-se que quer a doutrina quer a jurisprudência têm afirmado claramente o escopo da tributação autónoma, na sua formulação constante do CIRC. SALDANHA SANCHES afirmava que através do método da tributação autónoma se procura evitar a transferência para a esfera das empresas de despesas que têm subjacente intuito remuneratório, de modo a melhorar o enquadramento fiscal dos rendimentos da esfera pessoal, ou a obviar a que sejam contabilizados custos que não têm uma causa empresarial . Por sua vez, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/2012  afirma-se a propósito das “tributações autónomas” que:

Com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a segurança social.

Mas mais do que afirmar a ratio da imposição de taxas de tributação autónoma, a fundamentação do citado acórdão expressa bem a forma como é entendido o seu cálculo, por confronto com a liquidação do imposto sobre o rendimento de acordo com a taxa geral:

Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.

 

O mencionado acórdão expressa ainda de forma clara o modo instantâneo em que ocorre o facto tributário e a inexistência de caráter periódico, duradouro ou sucessivo na sua formação. Por isso caracteriza assim a operação de liquidação:

Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.

 

Pela análise histórica, enquadramento sistemático e posições doutrinárias e jurisprudenciais, considera-se que a ratio legis das normas que fazem incidir imposto tributado autonomamente é perfeitamente distinta dos objetivos que animam a estrutura geral do CIRC. Consequentemente, a aplicação do regime geral das deduções à coleta não pode constituir obstáculo a que o objetivo subjacente às tributações autónomas seja atingido, sempre que a previsão da norma – existência de determinadas classes de despesas ou ocorrência de determinadas circunstâncias – seja preenchida. Julga-se que interpretar as normas relativas à liquidação do IRC ao arrepio dos objetivos do instituto das tributações autónomas contraria o princípio fundamental da interpretação de acordo com a ratio legis, privilegia a aplicação da norma geral (90º CIRC) sobre a norma especial (88º, n.ºs 1, 3, 7, 8, 9, 11, 13 CIRC) e concede prevalência às normas instrumentais (de liquidação) relativamente às normas substanciais (de incidência). Entende-se, pois, que a liquidação das tributações autónomas é feita autonomamente, aplicando-se a cada despesa individualizada a taxa determinada para a classe em que essa despesa se inclui. Desta forma o apuramento da tributação autónoma não se confunde com o IRC do exercício, que é calculado considerando o objetivo já referido: tributar o rendimento efetivo corrigido, incluindo-se nestas correções os benefícios específicos que a lei determinar. O apuramento do imposto é autónomo e tudo o que se segue é mera organização documental, que tem que ver com o desenho dos impressos ou das aplicações informáticas que sustentam as operações, e que não têm obviamente natureza normativa suficiente para determinar qual o modelo de liquidação em vigor.

Esta doutrina, aplicada ao caso dos autos, reconhece que a autoliquidação parametrizada no sistema da Requerida resulta da correta aplicação da lei e não merece crítica, pois produziu a liquidação que o direito aplicável preconiza, no artigo 88.º do CIRC.

Também não merece crítica a decisão que indeferiu a reclamação graciosa, com base em entendimento que se identifica com aquele que se expendeu.

Para além da declaração da ilegalidade da decisão e da ilegalidade da própria liquidação, a Requerente peticiona, subsidiariamente, a declaração de ilegalidade da liquidação das tributações autónomas por ausência de base legal para a sua efetivação. Pretende afinal a Requerente que não existe norma de incidência que permita tributar as rúbricas enquadráveis no conceito de tributações autónomas, que revelou na sua declaração modelo 22.

Já ficou claro que o entendimento que se considera adequado para tratamento das tributações autónomas. Determinadas realidades, na sua maioria despesas, previstas nas regras do artigo 88.º do CIRC devem ser objeto de tributação. Essa é a norma de incidência ou se se preferir, é a “base legal para a efetivação” da liquidação. A tributação é feita sobre “cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício” . Por seu turno, a liquidação propriamente dita “traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa” .

Não tem sustentação o pedido subsidiário formulado pela Requerente, que se vai por isso indeferir.

A improcedência dos pedidos formulados e apreciados prejudica o pedido de juros indemnizatórios, por falta de requisitos para esse efeito, sendo destituído de sentido o seu julgamento.

 

V – Decisão

Nos termos expostos o Tribunal Arbitral decide:

a)            Julgar totalmente improcedentes os pedidos principais e o pedido subsidiário formulados nesta instância e absolver a requerida desses pedidos.

b)           Condenar a Requerente no pagamento das custas deste processo no valor de € 1.224,00.

 

VI - Valor do processo

No presente processo foi declarado pela Requerente o valor da ação de 19.709,32 €, que se considera adequado e se fixa, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI - Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de outubro de 2019

 

O Árbitro,

 

(Nuno Maldonado Sousa)