DECISÃO ARBITRAL
A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral constituído em 26.02.2019, decide nos termos e com os fundamentos que se seguem:
I – RELATÓRIO
No dia 18 de dezembro de 2018, a sociedade A..., LDA, NIF..., com sede na ..., ..., ...-... ..., (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, RJAT), na redação conferida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o qual foi aceite e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT), na qualidade de Requerida.
A Requerente contesta a legalidade dos seguintes atos tributários:
(i) Liquidação de IRC n.º 2018..., referente ao exercício de 2014, no valor de € 118.261,18;
(ii) Liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., no valor de € 4.103,23;
(iii) Liquidação de juros de mora n.º 2018..., no valor de € 207,03;
(iv) Demonstração de acerto de contas n.º 2018... (IRC), com valor a pagar de € 26.057,29;
(v) Liquidação de IVA n.º..., referente ao 3.º trimestre do exercício de 2014, no valor de € 5.760,00;
(vi) Liquidação de juros relativa ao IVA n.º..., no valor de € 44,79;
(vii) Demonstração de acerto de contas n.º 2018... (IVA), com valor a pagar de € 44,79.
Em consequência, peticiona a anulação de todos os atos, a restituição do imposto indevidamente pago e o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento da liquidação impugnada, com base em erro imputável aos serviços, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 2 da LGT e do artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 06.02.2019, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 26.02.2019.
No dia 03.04.2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
Resumo da posição da Requerente
As liquidações impugnadas pela Requerente, embora referentes a impostos distintos, têm origem na mesma causa. Efetivamente, no decurso da ação inspetiva levada a cabo pela AT ao exercício de 2014, esta considerou suspeitas, do ponto de vista da sua materialidade, as operações realizadas entre a Requerente e a sociedade B..., Lda., tendo concluído que as faturas emitidas pelos serviços prestados não corresponderam a operações reais de extração e rechego de cortiça, mas sim a operações simuladas.
A Requerente, por seu turno, sustenta que as operações foram efetivamente realizadas, que existe documentação que suporta a sua realização – nomeadamente as faturas emitidas e os meios de pagamento utilizados para as liquidar – que não dispõe de meios humanos que pudessem ter procedido à extração e rechego da cortiça e que a cortiça foi efetivamente extraída pois só assim se explica o facto de ter sido integralmente vendida.
Mais sustenta que, ao contratar a B..., Lda., não procedeu com qualquer intenção de prejudicar o Estado, que os serviços foram contratados nos termos em que habitualmente o são na região e que não há nada de anormal na forma como procedeu à contratação dos serviços com a B..., Lda., ou na forma como estes decorreram, nomeadamente quanto ao facto de não saber identificar os trabalhadores contratados ou de não saber se os mesmos fazem parte do quadro de pessoal do seu fornecedor.
Em consequência, a Requerente reputa de legais as deduções efetuadas nas declarações referentes ao exercício de 2014, quer em sede de IRC, quer em sede de IVA, atinentes aos gastos com a contratação de pessoal à B..., Lda., para as atividades de extração e rechega de cortiça. Nesse sentido, considera ilegais as correções efetuadas pela AT ao eliminar os correspondentes gastos da liquidação de IRC e o correspondente IVA suportado e assim declarado no terceiro trimestre do ano de 2014. Quanto às correções efetuadas em sede de IRC, a Requerente sustenta ainda que as mesmas violam o princípio constitucional da tributação do rendimento real, consagrado no n.º 2 do artigo 104.º da Constituição.
A propósito das correções em sede de IVA, a AT aduziu ainda como razão para a não aceitação do IVA suportado nas aquisições à B..., Lda., o facto de as faturas não conterem os formalismos legalmente exigidos, nomeadamente por não indicarem as datas em que os serviços foram efetivamente prestados. Em resposta a este argumento, a Requerente invoca a jurisprudência dos tribunais portugueses e do Tribunal de Justiça de União Europeia para sustentar que as pequenas irregularidades formais não devem consubstanciar fundamento a não aceitação da dedução do imposto suportado quando a administração fiscal dispuser de dados para saber se os requisitos materiais das operações foram cumpridos.
Resumo da posição da Requerida
O cerne da posição da AT neste processo decorre dos documentos produzidos ainda em sede de processo inspetivo (para os quais desde já remetemos), designadamente das correções que foram propostas em sede de IRC e de IVA quanto às operações de extração e rechega de cortiça no exercício de 2014.
De acordo com o alegado já em sede de processo arbitral, entende a AT que as correções controvertidas resultam da falta de evidência da real existência das operações com a B..., Lda., o que determinou que os gastos declarados fossem desconsiderados fiscalmente.
Considera a AT que a Requerente não logrou provar a efetiva aquisição à B..., Lda., dos serviços titulados nas faturas constantes da sua contabilidade.
Considera relevantes, nomeadamente, os factos de (i) as testemunhas desconhecerem o nome da sociedade em questão, recordando apenas o do seu gerente; e de (ii) não saberem se o pessoal contratado fazia parte do quadro de pessoal da B..., Lda., ou não.
Descreve o modo de atuação da Requerente como “um modo de atuação precário, que necessariamente afronta os requisitos legalmente impostos quer, por um lado, quanto ao reconhecimento de gastos nos termos do Código do IRC, quer, por outro, quanto ao direito à dedução previsto no Código do IVA”, com a consequência do “incumprimento do ónus probatório a que se encontra adstrita.”
Conclui que os factos apurados, os elementos obtidos no decurso do procedimento inspetivo, bem como a prova testemunhal realizada consubstanciam indícios fortes que colocam em causa a efetiva realização das operações tituladas nas faturas, o que legitima a conclusão a que chegou a Inspeção Tributária no sentido de que os gastos declarados não podem ser aceites fiscalmente, nos termos do artigo 23.º do CIRC. O que significa que, efetuada a prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam as correções à matéria tributável declarada, passou a incumbir à Requerente a prova que coloque em causa os montantes apurados, designadamente cabe-lhe o ónus de comprovar a veracidade dos valores em causa, de acordo com as regras sobre o ónus da prova constantes do artigo 74.º da LGT – prova que não foi efetuada nos autos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, conforme previsto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.
A ação é tempestiva e o processo não enferma de nulidades.
Quanto à cumulação de pedidos, verificam-se os pressupostos previstos no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT na medida em que a procedência dos pedidos depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios e regras de direito. Com efeito, está em causa o mesmo circunstancialismo fáctico analisado pela AT na ação de inspeção e o seu enquadramento jurídico-tributário não assume particular diferenciação no quadro dos dois tributos em causa. Assim, é de admitir a cumulação.
III. FUNDAMENTAÇÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos provados
A. A Requerente é sujeito passivo de IRC e de IVA, encontrando-se, no exercício de 2014, enquadrada no regime geral de tributação em sede de IRC e no regime normal de periodicidade trimestral em sede de IVA;
B. No exercício de 2014, a Requerente encontrava-se inscrita com o CAE principal com o código 1500 – “Agricultura e produção animal combinada”;
C. A Requerente dedica-se, em concreto, à atividade agrícola (milho), florestal (pinhas, cortiça e eucalipto) e pecuária.
D. No ano de 2014, a Requerente necessitou de proceder à tirada e rechega de cortiça da C... .
E. A atividade de extração e venda de cortiça representa cerca de 50% a 60% da faturação da Requerente.
F. A extração da cortiça ocorre apenas de 9 em 9 anos, sendo apenas com essa periodicidade que se tornam necessários os serviços dos descorticadores;
G. A tiragem da cortiça pressupõe uma técnica especifica que permita retirar pranchas de cortiça de um tamanho adequado e vendável e, ainda, a não deterioração da árvore para as tiragens seguintes;
H. A Requerente não dispunha de trabalhadores em número suficiente e com os conhecimentos técnicos e ao grau de especialização necessários para proceder à extração da cortiça;
I. A tiragem da cortiça deve ocorrer nos meses de junho e julho, sem prejuízo de ligeiras antecipações ou atrasos;
J. No exercício em questão, a Requerente procurou a mão-de-obra especializada de que necessitava junto da sociedade “B..., Lda.;
K. A Requerente já tinha contratado os serviços da sociedade “B..., Lda.” para outros tipos de trabalho (nomeadamente corte de pinho);
L. A Requerente tinha ainda referências da sociedade “B..., Lda.” na atividade de extração de cortiça;
M. O gerente da Requerente acordou com o gerente da sociedade “B..., Lda.” que este lhe disponibilizaria uma equipa adequada ao trabalho de extração de cortiça na C... no ano de 2014, tendo sido fixado entre ambos um preço por arroba independente do número de trabalhadores que executassem o trabalho;
N. Atendendo à quantidade de cortiça que era expetável retirar, foi acordado que o trabalho seria realizado por 12 a 14 trabalhadores, mais 1 carregador e 1 a 2 organizadores da pilha de cortiça;
O. A contratação do trabalho teve lugar de acordo com os usos locais, isto é, com negociação e acordo verbal apenas;
P. Quando se iniciaram os trabalhos, compareceram ao trabalho, nos dias de semana, menos trabalhadores do que tinha sido acordado;
Q. Nos finais de semana geralmente compareciam mais 2 ou 3 descorticadores;
R. Os trabalhadores da Requerente que eram responsáveis pela fiscalização do trabalho de extração da cortiça alertaram o gerente da “B..., Lda.”, para a necessidade de comparecerem mais trabalhadores na Herdade a fim de assegurarem a extração da cortiça dentro do período de tempo adequado;
S. Em resultado dessa conversa, compareceram mais 8 trabalhadores na C...;
T. Durante a realização dos trabalhos, a sociedade “B..., Lda.” emitia semanalmente uma fatura em função da quantidade de cortiça extraída, obtida por amostragem através da medição da pilha de cortiça, tendo sido feito um acerto no final do serviço quando foi possível fazer uma medição definitiva;
U. Inicialmente, nas faturas emitidas foi erradamente liquidado IVA à taxa normal de 23%, situação que foi corrigida depois de ter sido explicado à “B..., Lda.”, que a taxa aplicável às atividades florestais é de 6%, tendo sido anuladas as faturas com a taxa de IVA errada, emitidas notas de crédito e novas faturas com a taxa correta;
V. As faturas foram liquidadas através de cheques emitidos à ordem do fornecedor e entregues em mão ao respetivo gerente ou através de transferências bancárias para a conta por este indicada;
W. A cortiça extraída e rechegada no ano de 2014 na C... foi integralmente vendida através de contratos celebrados ainda antes da extração da cortiça;
X. Nos contratos de venda da cortiça é indicada a quantidade de cortiça que é expetável extrair, sendo depois definido o preço por arroba; caso se verifique uma alteração na quantidade de cortiça extraída, há uma redução ou aumento proporcional do preço;
Y. Nas declarações periódicas de IVA relativas ao período em que foram emitidas faturas pela “B..., Lda.”, foi deduzido o IVA liquidado por este fornecedor;
Z. Foram igualmente deduzidos, em sede de IRC, os custos com o pagamento dos serviços de extração de cortiça;
AA. Na sequência dos procedimentos inspetivos realizados, nomeadamente, à sociedade “B..., Lda.” a AT desencadeou uma ação de inspeção interna e de âmbito parcial (IRC e IVA) à ora Requerente.
BB. A 20.07.2018, a Requerente foi notificada das correções constantes do projeto de relatório de inspeção e para, querendo, exercer o direito de audição sobre o mesmo;
CC. As correções propostas pela AT foram as seguintes:
- o montante de € 96.000,00, em sede de IRC, referente a deduções alegadamente indevidas de gastos no exercício de 2014;
- o montante de € 5.760,00, em sede de IVA, correspondente a deduções alegadamente indevidas no âmbito desse imposto.
DD. A AT entendeu que os serviços faturados pela sociedade “B..., Lda.”, não corresponderam a operações reais;
EE. A Requerente prestou as explicações que entendeu necessárias à fundamentação da necessidade das prestações de serviços em causa.
FF. A AT acabou por emitir os atos de liquidação impugnados, quer em sede de IVA, quer em sede de IRC;
GG. A Requerente efetuou o pagamento dos impostos em causa.
A.2. Factos não provados
Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.
No que se refere aos factos provados, a convicção da árbitra fundou-se nas posições assumidas pelas partes, na análise crítica da prova junta aos autos e na prova testemunhal que foi produzida em audiência.
B. DO DIREITO
As questões que estão em causa no presente processo são, no essencial, questões de prova:
- da parte da AT, está em causa saber se a factualidade alegada para pôr em causa a veracidade dos elementos que constam da contabilidade da Requerente relativamente à contratação de serviços de extração e rechega de cortiça, em 2014, na C..., é suficiente para afastar a presunção de veracidade de que esses elementos beneficiam nos termos das normas tributárias e, consequentemente, o direito à dedução dos gastos em sede de IRC e do IVA suportado em sede de IVA;
- da parte da Requerente, está em causa saber se os elementos de prova que juntou aos autos são suficientes para provar a existência de factos tributários que alegou como fundamento do seu direito, isto é, a efetiva existência das alegadas operações de contratação dos serviços de extração e rechega da cortiça, na referida Herdade, no período em causa.
A AT sustenta que as operações em causa são operações simuladas e fá-lo com base em três tipos de argumentos:
(i) Por um lado, argumentos relativos à atividade das sociedades B..., Lda. E D..., dos quais retira a convicção de que:
(i) A B..., Lda., não dispunha de uma estrutura de mão-de-obra suficiente para, em curtos períodos de tempo, prestar serviços relevantes a clientes sem previamente subcontratar os trabalhadores necessários para esse efeito a terceiros;
(ii) a contratação alegadamente ocorrida à sociedade D..., que teria permitido suprir essas necessidades, não ficou provada, entendendo a AT que as operações entre essas duas sociedades na realidade não tiveram lugar;
(ii) Por outro lado, uma certa informalidade que atribui ao modo de contratação dos serviços alegadamente contratados pela Requerente à sociedade B..., Lda., o qual reputa de “modo de atuação precário, que necessariamente afronta os requisitos legalmente impostos quer, por um lado, quanto ao reconhecimento de gastos nos termos do Código do IRC, quer, por outro, quanto ao direito à dedução previsto no Código do IVA”, com a consequência do “incumprimento do ónus probatório a que se encontra adstrita.”
(iii) Por fim, elementos referentes às faturas emitidas pela B..., Lda., à Requerente, nomeadamente a falta de indicação da data e a anulação e substituição de algumas faturas no início da relação contratual que teve lugar no verão de 2014 e que, na opinião da AT, juntamente com os demais elementos referidos, são suficientes para colocar em causa a materialidade das operações e, consequentemente, a veracidade das faturas.
Por outro lado, a Requerente defende-se dizendo que todas as operações faturadas foram realizadas. Baseia-se, por seu turno, em três tipos de argumentos:
(i) Por um lado, argumentos atinentes ao tipo de atividade em causa nas faturas emitidas: trata-se de prestações de serviços de extração e rechega da cortiça, atividades que se revestem de elevado nível técnico e que requerem mão-de-obra especializada, que não podem ser realizadas senão de 9 em 9 anos e que, quando se realizam, devem ter início e fim num intervalo de tempo de cerca de 2 meses. Estas características tornam impossível à Requerente dispor, na própria empresa, de pessoal especializado para o efeito – razão pela qual se tornou imprescindível, naquele ano de 2014, contratar os serviços em causa a alguém com capacidade para os prestar. A sociedade B..., Lda., surgiu como hipótese por já ter prestado serviços à Requerente anteriormente (ainda que no âmbito de outra atividade) e por lhe ter sido recomendada quanto aos serviços de extração e rechega de cortiça.
(ii) Por outro lado, o argumento de que a produção de cortiça foi efetivamente vendida, pelo que alguém teve que a extrair das árvores. Dado que a Requerente não tinha capacidade para o efeito, torna-se lógico concluir que teve que contratar esse trabalho a alguém.
(iii) Por fim, quanto aos argumentos relativos a anomalias na emissão das faturas, a Requerente defende-se dizendo, quanto à questão da anulação e emissão de novas faturas, que ocorreu porque a taxa de IVA aplicada pela B..., Lda., estava incorreta e teve que ser corrigida, dando origem à anulação das faturas emitidas, emissão de notas de crédito e emissão de novas faturas. Quanto à questão da ausência de data das operações nas faturas, a Requerente defende-se com a jurisprudência do TJUE no sentido de que as pequenas irregularidades formais não devem ser fundamento para a não aceitação da dedução do imposto suportado quando a administração fiscal dispuser de dados para saber se os requisitos materiais das operações foram cumpridos – o que, sustenta, ocorre no caso concreto.
Posto isto, importa decidir com base nos elementos de prova que foram carreados para o processo.
O cerne da posição da AT repousa sobre uma dupla conclusão: em primeiro lugar, a de que a sociedade B..., Lda., não podia ter efetuado as operações que faturou à Requerente relativas a operações de extração e rechega de cortiça com recurso a pessoal próprio; em segundo lugar, a conclusão de que a subcontratação alegadamente realizada pela B..., Lda., à sociedade D... não teve lugar porquanto também esta sociedade não dispunha de estrutura produtiva que lhe permitisse fornecer trabalhadores para o efeito.
Como não foi possível confirmar a ocorrência e a materialidade das operações formalmente faturadas pela D... à B..., Lda., a AT lança a dúvida sobre as operações faturadas por esta última à Requerente e, perante o que considera ser um “modo de atuação precário, que necessariamente afronta os requisitos legalmente impostos quer, por um lado, quanto ao reconhecimento de gastos nos termos do Código do IRC, quer, por outro, quanto ao direito à dedução previsto no Código do IVA”, considera que não ficam provadas as operações que deram origem aos gastos deduzidos em sede de IRC e ao IVA suportado em sede de IVA.
Ora, não estando em causa, neste processo, conhecer da materialidade e efetiva ocorrência das operações entre a D... e a B..., Lda., as dúvidas acerca das mesmas não devem ser suficientes para alicerçar um juízo de dúvida em relação às operações que aqui estão, efetivamente, em causa. E, quanto a estas, o que a AT refere é que a B..., Lda., não tinha quadro de pessoal suficiente e, portanto, não poderia ter disponibilizado pessoal à Requerente para proceder às referidas operações; que não foram reduzidos a escrito os contratos realizados entre a B..., Lda. e a Requerente; que a faturação, além de ser num valor elevado, foi emitida num curto espaço de tempo; que não foram mencioadas nas faturas as datas em que os serviços foram realizados nem os locais onde foram prestados; que não foi possível à Requerente identificar os trabalhadores que procederam à extração e rechega da cortiça ou o número de dias de trabalho e serviços prestados; que não foi possível à Requerente esclarecer se os trabalhadores pertenciam ao quadro de pessoal da B..., Lda. ou se tinham sido subcontratados a outra empresa.
Perante estas dúvidas, a AT conclui que existem fundadas dúvidas sobre a efetiva realização de tais operações, concluindo que as mesmas terão sido meramente ficcionadas para efeitos de dedução dos correspondentes encargos para efeitos fiscais. Contudo, como faz notar a Requerente, a AT em nenhum momento duvida que a cortiça extraída em 2014 tenha sido vendida.
Por outro lado, através da prova testemunhal produzida em audiência, foi possível esclarecer alguns dos pontos que a AT considera “anómalos” na atividade da Requerente e da sua fornecedora:
(i) Desde logo, as testemunhas esclareceram que o facto de o contrato entre ambas as empresas não ter sido reduzido a escrito não é anormal tendo em conta os usos locais. A negociação é feita diretamente entre os gerentes das empresas que poderão até desconhecer a existência de uma estrutura societária por detrás da sua contraparte.
(ii) Por outro lado, a negociação é essencialmente quanto ao valor a cobrar por arroba extraída, o qual é fixado independentemente do número de trabalhadores alocados ao trabalho.
(iii) A faturação ocorre num curto intervalo de tempo porque a atividade decorre num intervalo de tempo de 2 meses.
(iv) Não é possível identificar os trabalhadores porquanto a forma como o trabalho é realizado não possibilita o estabelecimento de relações pessoais entre as partes que permitam a lembrança do nome decorridos vários anos. O pessoal contratado chega à Herdade, é conduzido até ao local de trabalho, faz o trabalho e regressa a casa. No dia seguinte, o mesmo sucede.
(v) Foi possível apenas identificar a esposa do gerente da B..., Lda., não pelo nome mas por ser casada com o Sr. E... . Foi ainda explicado que o número de trabalhadores inicial foi aumentado na sequência de um pedido realizado nesse sentido por funcionários da Requerente que, atendendo ao grande volume de produção, entendeu que o número de pessoas inicialmente disponibilizado pela B..., Lda. não era suficiente. O pedido foi atendido.
(vi) Relativamente às faturas anuladas e nova emissão de faturas, foi explicado que se tratou da correção de um engano na aplicação da taxa de IVA (de 6% em vez de 23%).
Face aos elementos que já tinham sido carreados pelas Partes para os autos, bem como aos esclarecimentos prestados pelas testemunhas – que prestaram os seus depoimentos de forma tranquila e credível – este tribunal não considera suficientes os indícios apresentados pela AT para duvidar da efetiva realização das operações em causa. Com efeito, parece-nos crível que as mesmas tenham sido realizadas nos termos que foram descritos ao tribunal, assim como nos parece crível que contratos desta natureza e neste contexto não sejam reduzidos a escrito. Quanto à impossibilidade de identificação dos trabalhadores externos por parte dos trabalhadores internos da Requerente, entende-se também ser a mesma justificável pela forma como a atividade é realizada e pelo tempo que decorreu entretanto (até ao início da ação inspetiva). Quanto às anomalias nas faturas, também não parece a este tribunal que sejam de valorizar ao ponto de se impossibilitar a dedução do IVA suportado: a alteração da taxa é perfeitamente normal e nada tem que possa motivar a desconfiança sobre a efetiva realização das operações; a inexistência de data das operações é um aspeto formal que não deve ter como consequência a desconsideração das faturas.
Assim, considera este tribunal que as liquidações de IRC e de IVA impugnadas padecem de um erro sobre os pressupostos de facto e de direito do qual decorre a respetiva ilegalidade. Dessa ilegalidade decorre, por seu turno, a ilegalidade das liquidações de juros compensatórios e de mora também impugnadas, bem como dos atos de acerto de contas praticados.
IV – DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
(i) Declarar a ilegalidade das liquidações impugnadas, quer de IVA, quer de IRC, bem como dos consequentes atos de liquidação e de acerto de contas e liquidações de juros compensatórios e de mora;
(ii) Ordenar a restituição do imposto pago, no montante de € 26.057,29 em sede de IRC, de € 5.760,00 a título de IVA e de € 44,79 a título de juros compensatórios;
(iii) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas processuais;
(iv) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios apurados nos termos previstos nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
V – Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 31.862,08 (trinta e um mil, oitocentos e sessenta e dois euros e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI – Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida.
Lisboa, 14 de outubro de 2019
A Árbitro
(Raquel Franco)