DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A..., titular do número de identificação fiscal ..., residente na Rua ..., ...º, ...-... ..., ..., vem, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral, em que figura como Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
2. O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 17-05-2019, visa a declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) n.º 2019/..., da Alfândega de ..., de 15-04-2019, no montante total de € 21 004,94, sendo € 9 514, 22 correspondente à componente cilindrada e € 14 654,29 à componente ambiental.
3. O Requerente pede também a devolução do imposto indevidamente cobrado, no valor de € 2 930,85, acrescido dos correspondentes juros indemnizatório contados nos termos legais, requerendo, ainda, que, caso subsistam dúvidas sobre a interpretação e aplicação do artigo 110.º do TFUE, o reenvio prejudicial desta questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia.
4. Como fundamento do pedido que formula, argumenta o Requerente, em síntese, que a liquidação impugnada, efetuada ao abrigo das normas dos artigos 7.º e 11.º do Código do Imposto Sobre Veículos (CISV), enferma de ilegalidade por, em conformidade com disposto no citado artigo 11.º, não ter sido considerada qualquer percentagem de redução do imposto relativamente à antiguidade do veículo e à componente ambiental, em violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
5. Em resposta ao que vem solicitado, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) juntou o processo administrativo, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, alegando, no essencial, ter o ato impugnado sido efetuado de acordo com o direito nacional e comunitário, pelo que o mesmo não enferma de qualquer vício, e deve, consequentemente, manter-se na ordem jurídica a liquidação impugnada.
6. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
7. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro.
8. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, tendo, oportunamente, notificado as partes.
9. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
10. Pelo que em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral foi constituído em 31-07-2019.
11. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas pelas Partes, que se julga suficiente para a decisão, o Tribunal decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.
12. Assim, por despacho de 04-10-2019, objeto de oportuna notificação, foi decidido, salvo oposição das Partes, dispensar a referida reunião, sendo concedido um prazo de 10 dias para apresentação de alegações escritas.
13. Dentro do prazo fixado, as Partes apresentaram alegações escritas, reafirmando as posições já anteriormente expressas na petição do Requerente e correspondente resposta da Requerida.
II. Saneamento
14. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
15. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).
III. Matéria de facto
16. Com base nos elementos documentais que integram o presente processo destacam-se os seguintes elementos factuais que, não sendo contestados pelas Partes, se consideram inteiramente provados:
16.1. Em 17 de Abril de 2019 foi apresentada na Alfândega de ..., por transmissão eletrónica de dados, a Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2019/..., para introdução no consumo do veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo ..., movido a gasóleo, n.º de motor ..., cilindrada ..., com a matrícula definitiva ... .
16.2. Da referida DAV consta, ainda, que ao veículo em causa, usado, proveniente da Alemanha, com 27804 kms percorridos, foi atribuída a primeira matrícula em 16 de Janeiro de 2018.
16.3. No que concerne às características do veículo, consta da referida DAV, o valor de 0.0013 g/km relativo à emissão de partículas e o valor de 185 g/km relativo à emissão de gases.
16.4. Em 15 de Abril de 2019, o Requerente solicitou o cálculo do ISV mediante o método alternativo previsto no artigo 11.º, n.º 3, do CISV, indicando, para o efeito, o valor comercial de € 74 550,00, em conformidade com publicação da especialidade, e o valor de venda ao público de € 111 687,00, reportado ao ano da matrícula do veículo.
16.5. Com base nos elementos constantes da DAV foi efetuado o cálculo do ISV, com base nas disposições constantes dos artigos 7.º e 11.º do respetivo Código, sendo apurado o valor de € 21 004,94, pela seguinte forma:
16.6. Em 17 de Abril de 2019, o Requerente efetuou o pagamento do imposto liquidado.
17. Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos ao processo, não existindo, com relevo para a decisão, factos que devam considerar-se como não provados.
III. Matéria de direito
18. O presente pedido de pronúncia arbitral fundamenta-se na ilegalidade da norma do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, relevante na liquidação ora impugnada, por violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia (TFUE).
19. Alega, assim, o Requerente que a referida norma, aplicável aos veículos portadores de matrículas comunitárias com vista a contemplar no cálculo do imposto devido a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional prevê uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo, mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.
20. Segundo o Requerente, a norma aplicada na liquidação que contesta conduz a que seja cobrado sobre os veículos “importados” de outros Estados Membros da União Europeia um imposto determinado com base em valor superior ao valor real do veículo onerando-os com uma tributação superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.
21. Com a fundamentação acima sumariada, conclui o Requerente que deve a presente impugnação “ser julgada provada e procedente, ordenando-se a retificação da liquidação do ISV, de forma a aplicar-se a redução prevista no artigo 11.º do CISV à componente ambiental”, determinando-se a condenação da AT à restituição da quantia de € 2 930,85, cobrada em excesso, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal.
22. Todavia, considera o Requerente que, “(...) se subsistirem dúvidas sobre a interpretação e aplicação do disposto no art. 110º do TFUE, deve este Tribunal Arbitral proceder ao reenvio prejudicial desta questão ao Tribunal de Justiça para a interpretação da mesma à luz do Tratado.” Acrescenta, ainda, que esta questão “(…) deve ser formulada de forma a aquele Tribunal esclarecer se a norma constante do art. 11º do CISV, viola ou não o disposto no referido artigo do Tratado, porquanto descrimina negativamente os veículos usados admitidos no espaço português.”
23. Em sede de alegações, o Requerente, no essencial, reafirma a posição já por si expressa na petição inicial.
24. Respondendo ao pedido formulado, sustenta a Requerida que “(…) tendo o ato impugnado sido efetuado de acordo com o direito nacional e comunitário, o mesmo não enferma de qualquer vício, devendo, consequentemente, a liquidação impugnada, efetuada pela Alfândega de ..., manter-se na ordem jurídica.”
25. Depois de traçar um quadro geral da legislação nacional aplicável na área da incidência, objetiva e subjetiva, determinação da base tributável, taxas aplicáveis, facto gerador e exigibilidade do tributo, a Requerida, no tocante à compatibilidade daquela norma do artigo 11.º do CISV com o direito comunitário, alega, no essencial, que:
“65. O modelo de tributação do ISV resultante da aprovação do CISV pela Lei 22-A/2007, de 29 de Junho, foi norteado por preocupações ambientais em respeito pelas orientações emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, do Acordo de Paris.
“66. O Protocolo de Quioto (tratado internacional ratificado pelo Estado Português) estabeleceu compromissos muito rígidos para a redução da emissão dos gases que agravam o efeito estufa, considerados, de acordo com a maioria das investigações científicas, como as causas do aquecimento global, passando, por conseguinte, a componente ambiental a ser determinante no cálculo do imposto que incide sobre os veículos novos e usados (com elevadas emissões), em obediência ao princípio do poluidor pagador, levando os consumidores a optar por automóveis com menores emissões de dióxido de carbono.
“67. O atual modelo da fiscalidade automóvel tem, pois, em vista assegurar a coerência entre a tributação de veículos novos e usados, na medida em que a aquisição de uns e de outros se rege pelos mesmos princípios, de justiça fiscal e respeito pelo meio ambiente.
“68. Ora, no que concerne aos automóveis usados, não existem dúvidas que, quanto mais velhos os veículos automóveis, mais poluentes se tornam, e maiores serão as consequências nefastas para o meio ambiente!
“69. Na verdade, muito se fala atualmente em proteção e defesa ambiental e no cumprimento das disposições europeias e dos acordos assumidos pelos Estados neste âmbito, a nível internacional, mas quando se trata de atuar através de medidas concretas, em cumprimento da legislação e acordos em vigor, o que se preconiza é o caminho mais fácil, o mesmo que levou ao estado de poluição atual do planeta.”
26. Invocando as normas dos artigos 110.º do TFUE, proibição de sujeição de produtos provenientes de outros Estados membros a imposições internas superiores às que incidem sobre produtos nacionais e do 191.º do mesmo Tratado, relativa à preservação, proteção e melhoria da qualidade do ambiente, sustenta a Requerida que “ (…) perante o consagrado no n.º 1, do artigo 11.º do CISV, constata-se que o legislador teve em consideração que a componente ambiental representa o custo de impacte ambiental, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 11.º do CISV, também suportada pelos veículos novos, devendo a mesma ser entendida como um montante que os sujeitos passivos pagam ao Estado, destinado a compensar os efeitos nefastos que o automóvel causa ao ambiente, sendo que esse montante é progressivo em função das emissões de dióxido de carbono.”
27. Acentuando esta vertente, adianta a Requerida que “destinando-se a componente ambiental a compensar os efeitos nefastos de qualquer redução em função da depreciação comercial ou dos anos de uso do automóvel, dado que o potencial poluidor do automóvel não diminui com a sua idade, muito pelo contrário, como é do conhecimento comum, agrava-se, a mesma não deve ser objeto de qualquer redução pois representa o “custo de impacte ambiental”, sendo o seu objetivo orientar a escolha dos consumidores para uma maior seletividade na compra dos automóveis, em função do seu grau poluidor.” Pelo que “a interpretação do disposto no artigo 110.º do TFUE não poderá deixar de ter em consideração os objetivos ambientais acima referidos, sob pena de se geraram incoerências insustentáveis entre a política fiscal e a política ambiental.”
28. Em conclusão, sustenta a Requerida que “As asserções formuladas permitem-nos concluir que o modelo de tributação dos veículos usados vigente em Portugal não ofende o espírito do artigo 110.º do TFUE, ao contrário do preconizado na decisão arbitral invocada pelo Requerente, que ainda não transitou em julgado [i], uma vez que o pagamento da componente ambiental na totalidade não tem em vista restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas tão somente selecionar essa entrada, mediante aplicação de critérios exclusivamente ambientais. Não se trata, pois, de proteger a produção nacional, mas sim de proteger o ambiente, património do mundo e do qual depende a sobrevivência da espécie humana.”
29. Em sede de alegações, a Requerida declara manter a sua posição nos mesmos termos e fundamentos, sem prejuízo do exercício do direito ao contraditório, caso venham a ser apresentados novos factos e/ou documentos que mereçam a sua pronúncia.
30. Equacionadas, nas suas linhas essenciais, as posições das Partes, importa, antes de mais, uma breve incursão pela legislação relevante.
31. Desde logo, é invocado, como fundamento da alegada ilegalidade da liquidação impugnada, o artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na medida em que a tributação em causa seria mais gravosa para os veículos introduzidos no consumo em Portugal provenientes de outros Estados Membros de União Europeia do que a que recai sobre veículos usados transacionados no mercado nacional.
32. Com efeito, estabelece aquele preceito - correspondente ao anterior artigo 90.º do TCE – que “Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares.
Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções.”
33. A legislação nacional que, segundo o Requerente, viola a norma comunitária, são as normas constantes dos artigos 7.º e 11.º do CISV, em particular esta última, cuja redação, à data da ocorrência do facto tributário e no que concerne a veículos ligeiros de passageiros, movidos a gasóleo, é a seguinte:
“Artigo 7.º
Taxas normais – automóveis
1 - A tabela A, a seguir indicada, estabelece as taxas de imposto, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, e é aplicável aos seguintes veículos:[ii]
a) Aos automóveis de passageiros;ii
b) (...)
TABELA A
Componente cilindrada [iii]
Escalão de Cilindrada
(centímetros cúbicos)
|
Taxas por centímetros cúbicos
(Euros)
|
Parcela a abater
(euros)
|
Até 1 000
|
0,99
|
767,50
|
Entre 1 001 e 1 250
|
1,07
|
769
|
Mais de 1 250
|
5,06
|
5 600,00
|
...
Componente ambiental
Veículos a Gasóleo iii
Escalão de C02
(gramas por quilómetro)
|
Taxas
(euros)
|
Parcela a abater
(euros)
|
|
|
|
Até 79
|
5,22
|
396,88
|
De 80 a 95
|
21,20
|
1 671,07
|
De 96 a 120
|
71,62
|
6 504,65
|
De 121 a 140
|
158,85
|
17 107,60
|
De 141 a 160
|
176,66
|
19 635,10
|
Mais de 160
|
242,65
|
30 235,96
|
Artigo 11.º
Taxas - veículos usados
1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:[iv]
TABELA Div
Tempo de uso
|
Percentagem de redução
|
|
|
Até 1 ano
|
10
|
Mais de 1 a 2 anos
|
20
|
Mais de 2 a 3 anos
|
28
|
Mais de 3 a 4 anos
|
35
|
Mais de 4 a 5 anos
|
43
|
Mais de 5 a 6 anos
|
52
|
Mais de 6 a 7 anos
|
60
|
Mais de 7 a 8 anos
|
65
|
Mais de 8 a 9 anos
|
70
|
Mais de 9 a 10 anos
|
75
|
Mais de 10 anos
|
80
|
2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.[v]
3 - Sem prejuízo da liquidação provisória efetuada, sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado dos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o n.º 1 do artigo 27.º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto:iv
ISV=((V/VR) x Y) + C
em que:
ISV representa o montante do imposto a pagar;
V representa o valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor, apresentadas pelo interessado;
VR é o preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, tal como declarado pelo interessado, considerando-se como tal o veículo da mesma marca, modelo e sistema de propulsão, ou, no caso de este não constar de informação disponível, de veículo similar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez;
Y representa o montante do imposto calculado com base na componente cilindrada, tendo em consideração a tabela e a taxa aplicável ao veículo, vigente no momento da exigibilidade do imposto;
C é o «custo de impacte ambiental», aplicável a veículos sujeitos à tabela A, vigente no momento da exigibilidade do imposto, e cujo valor corresponde à componente ambiental da referida tabela.iv
4 - Na falta de pedido de avaliação formulado nos termos do número anterior presume-se que o sujeito passivo aceita como definitiva a liquidação do imposto feita por aplicação da tabela constante do n.º 1.v
34. No presente caso, a liquidação do ISV sobre viatura proveniente de outro Estado Membro da União Europeia foi efetuada com observância da norma do artigo 11.º do CISV, sendo considerada uma redução de 20% na componente cilindrada. Na componente ambiental não foi considerada qualquer redução em função do número de anos de uso do veículo, em conformidade com o disposto naquele preceito.
35. Está, assim, em causa determinar-se se a referida norma do artigo 11.º do CISV, na medida em que não considera qualquer redução de imposto em função do número de anos de uso do veiculo na componente ambiental viola ou não o direito comunitário, em especial o já referido artigo 110.º do TFUE e, consequentemente, se a liquidação impugnada se encontra, ou não, ferida de ilegalidade.
36. A questão da conformidade com o direito comunitário das normas nacionais relativas à tributação de veículos usados “importados” de outro Estado Membro tem vindo, de forma recorrente, a ser objeto de apreciação no Tribunal de Justiça da União Europeia.
37. Desde logo, ainda na vigência do revogado imposto automóvel, que precedeu o atual ISV, aquele Tribunal não teve dúvida em declarar que “A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95.° do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.” (Ac. de 09-03-1995, proc. C-345/03, Nunes Tadeu).
38. Sobre a mesma matéria, e com referência aquele mesmo tributo, voltaria o Tribunal de Justiça a pronunciar-se, no sentido de que “A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95.° do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional” (Ac. de 22-02-2001, proc. C-393/98, Gomes Valente).
39. É, pois, constante orientação do Tribunal de Justiça sobre a incompatibilidade de normas nacionais que tributem mais gravosamente os veículos “importados” de outros Estados Membros, como se extrai tanto das decisões referidas como de tributações de similares contornos vigentes noutros países da União Europeia: “O artigo 95.°, primeiro parágrafo, do Tratado só permite a um Estado-Membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efectivo dos referidos veículos é calculada de modo geral e abstracto, com base em critérios ou tabelas fixas determinados por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, se esses critérios ou tabelas forem susceptíveis de garantir que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional” (Ac. de 20-09-2007, proc. C-74/06, Comissão das Comunidades Europeias vs República Helénica).
40. Abordando a consideração da componente ambiental no âmbito da tributação automóvel no direito húngaro, o Tribunal de Justiça viria a considerar que: “52. No âmbito de um regime relativo ao imposto automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais constituem critérios objectivos. Daí poderem ser utilizados num regime desses. Em compensação, não é exigível que o montante do imposto esteja relacionado com o preço do veículo.
53. Contudo, um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados‑Membros do que os produtos nacionais similares.
54. Ora, um veículo novo relativamente ao qual o imposto automóvel foi pago na Hungria perde, com o decorrer do tempo, uma parte do seu valor de mercado. Assim, diminui, na mesma medida, o montante do imposto automóvel compreendido no valor residual do veículo. Sendo um veículo usado, só pode ser vendido por uma percentagem do valor inicial, percentagem que engloba o montante residual do imposto automóvel.
55. Ora, resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça pelos órgãos jurisdicionais de reenvio que um veículo do mesmo modelo e de antiguidade, quilometragem e outras características idênticas, comprado em segunda mão noutro Estado‑Membro e registado na Hungria será, contudo, sujeito a 100% do imposto automóvel aplicável a um veículo dessa categoria. Por conseguinte, o referido imposto onera mais os veículos usados importados do que os veículos usados similares já registados na Hungria e sujeitos ao mesmo imposto. 56. Assim, não obstante o carácter ambiental do objectivo e do fundamento do imposto automóvel e mesmo não tendo estes qualquer relação com o valor de mercado do veículo, o artigo 90.°, primeiro parágrafo, CE exige que seja tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objecto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado‑Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor.” Com base neste considerandos, o Tribunal viria a declarar que “2 - O artigo 90.°, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida
– em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado‑Membro e
– em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados‑Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação.” (Ac. de 05-10-2006, processos pensos C-290/05 e C-33/05, Akos Nadasdi).
41. Debruçando-se sobre o sistema nacional de tributação automóvel e já sobre a norma do artigo 11.º do CISV, na redação em vigor até à alteração introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, o Tribunal de Justiça viria a tecer as seguintes considerações:
“26 Para efeitos da aplicação do artigo 110.° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.os 27 e 28 e jurisprudência referida).
“27 No caso em apreço, o artigo 11.°, n.° 1, do Código do Imposto sobre Veículos prevê, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.
“28 Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.
“29 Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C-101/00, EU:C:2002:505, n.° 78).
“30 Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.
“31 Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.° TFUE”. Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que “1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.° TFUE.”(Ac. de 16-06-2016, proc. C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa).
42. No sentido de acolher a decisão do Tribunal de Justiça, foi, através da Lei n.º 42/2016, de 28/12, alterada a redação do citado artigo 11.º, passando a ser considerada a desvalorização do veículo a que a mesma se refere mas tão-somente quanto à componente cilindrada, ficando agora, de todo, excluída qualquer redução no tocante à componente ambiental.
43. É, pois, nesta exclusão que se centra a questão que opõe o Requerente à AT: enquanto esta considera que a atual redação da norma está conforme ao direito comunitário, invocando razões que têm a ver com a proteção do ambiente e qualidade de vida, entende aquele que o que está em causa é tão-somente a descriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, relativamente aos comercializados em Portugal, proibida pelo artigo 110.º do TFUE.
44. Com efeito, tal como o Tribunal de Justiça tem repetidamente declarado, a tributação automóvel pode assentar em critérios objetivos, como sejam o tipo de motor, a cilindrada e, inclusivamente, uma classificação assente em considerações ambientais. Porém, quando aplicados a veículos usados importados de outros Estados-Membros, o montante de imposto cobrado não pode exceder o montante que se contém no valor residual de veículos usados similares já registados no Estado-Membro de importação. É, pois, constante a orientação do Tribunal de Justiça, no que concerne à interpretação daquele artigo 110.º quando referido a tributação automóvel: um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados‑Membros do que os produtos nacionais similares.
45. Refira-se que a desconformidade do direito nacional, na sua atual redação, com a norma comunitária conduziu já ao início de procedimento de infração. Com efeito, conforme comunicado de 24-01-2019, a Comissão Europeia deu início a ação judicial contra o Estado Português “por este Estado-Membro não ter em conta a componente ambiental do imposto de matrícula aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros para fins de depreciação. A Comissão considera que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE, na medida em que os veículos usados importados de outros Estados-Membros são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado português, uma vez que a sua depreciação não é plenamente tida em conta. Se Portugal não atuar no prazo de dois meses, a Comissão poderá enviar um parecer fundamentado sobre esta matéria às autoridades portuguesas.”
46. Observa-se, ainda, que esta matéria foi já objeto de detalhada análise em decisão arbitral de 30-04-2019, proferida no processo 572/2019-T, tendo-se no mesmo concluído que “(…) o artigo 11º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110º do TFUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.”
47. Acompanhando, sem reservas, a decisão acima referida, considera este Tribunal que, face à reiterada e constante posição do Tribunal de Justiça a que acima se fez referência, se não suscitam dúvidas quanto a incompatibilidade com o direito comunitário da norma aplicada à liquidação impugnada, concluindo-se pela desnecessidade de reenvio prejudicial.
48. Nestes termos, julga-se incompatível com o direito comunitário a norma do artigo 11.º do Código do ISV, na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional.
49. Consequentemente, o ato de liquidação em causa, desconsiderando a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontra-se ferida de ilegalidade devendo ser anulado. Restringindo-se, porém, a ilegalidade apenas àquele excesso de tributação, e nela se centrando em exclusivo o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, deve esse ato ser parcialmente anulado[vi].
Do direito a juros indemnizatórios
50. A par da anulação parcial do ato de liquidação, e consequente reembolso da importância indevidamente cobrada, o Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
51. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
52. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
53. No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do ato de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, a Requerente efetuou o pagamento de importância manifestamente indevida.
53. Julgando-se, assim, a ilegalidade da norma em que se fundou a liquidação impugnada, reconhece-se ao Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, art.43.º, n.º 1 e CPPT, art. 61.º).
V. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, determinar a anulação parcial do ato de liquidação impugnado, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da desconsideração da redução imposto correspondente à componente ambiental do ISV, no valor de € 2 930,85, com o consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, acrescidas dos correspondente juros indemnizatórios contados nos termos legais.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 2 930,85, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n,º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 612,00, a cargo da Requerida.
Lisboa, 2 de Novembro de 2019,
O árbitro,
Álvaro Caneira
[i] A decisão arbitral aqui referida – CAAD, Proc. 572/2018-T – foi objeto de recurso para o STA, que não foi admitido por inadmissibilidade legal do seu objeto (STA, Ac. de. 18-09-2019- proc. 050/19.3BALSB).
[ii] Redação dada pela L 64-B/2011, de 30/12.
[iii] Redação dada pela L 64-B/2011, de 30/12.
[iv] Redação dada pela L 42/2016, de 28/12.
[v] Redação inicial da L 22-A/2007, de 29/06.
[vi] Neste sentido, STA, Acs. de 10-10-2012, proc. 0533/12, de 30-04-2013, proc. 01374/12 e de 18-11-2015, proc. 0699/15.