Decisão Arbitral
I. - RELATÓRIO
A - PARTES
A sociedade A…, SA, designada por “Requerente”, com sede na Rua …, com o número de pessoa colectiva …, impugnante no procedimento tributário acima e à margem referenciado, veio, invocando o disposto no art.º 10.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), requerer a constituição de tribunal arbitral singular, tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.
B - PEDIDO
1 - O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 28/01/2014 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) na mesma data.
2 -. Nos termos do disposto no nº 1 do art.º 6.º e na alínea a) do nº 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, o Conselho Deontológico designou, em 13/03/2014, como árbitro singular António Manuel Correia Valente, que comunicou a aceitação do encargo.
3 - Em 13-03-2014 foram as Partes notificadas dessa designação, nos termos conjugados do disposto no art.º 11.º, nº 1, alínea b) do RJAT, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.
4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do nº 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 28/03/2014.
5 - No dia 02 de Julho de 2014 realizou-se com as Partes a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, da qual foi lavrada acta que se encontra junto aos autos, tendo, então, sido concretizadas algumas correções às peças processuais da Requerente e da Requerida, designadamente no respeitante aos actos de liquidação referenciados no pedido de pronúncia arbitral.
A esse propósito, como fixado na referida acta, ficou claro que estavam em questão 277 veículos, a que respeitavam 277 notificações de liquidações, que, por sua vez, respeitavam a 580 actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios.
Por outro lado, quer a Requerente, quer a Requerida suscitaram a necessidade de produzirem alegações por escrito, tendo, para o efeito, sido concedido o prazo simultâneo de 10 dias.
6 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:
Ø Declare a ilegalidade e consequente anulação de 580 actos de liquidação, relativos, quer ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), referente aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, quer aos juros compensatórios que lhe estão associados, inscritos em 277 notificações de liquidações referenciadas no processo, respeitantes a 277 veículos, identificados nos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, cujo valor perfaz a quantia de € 48.111,31.
C - CAUSA DE PEDIR
7 - A Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, fundamentação que reitera nas alegações por escrito, oportunamente produzidas, afirma, em resumo, o seguinte:
8 - Que no exercício da sua actividade, importa para Portugal veículos automóveis da marca Cryhsler, Dodge e Jeep, os quais são vendidos aos concessionários integrados na sua rede de distribuição, que, por sua vez e posteriormente, os revendem aos consumidores finais.
9 - Que, tem o estatuto de operador registado, tendo, nessa qualidade, a faculdade de imprimir as Declarações Aduaneiras de Veículos - DAV, com vista à introdução dos veículos no consumo.
10 - Que, após a emissão das Declarações Aduaneiras de Veículos e uma vez pago o Imposto Sobre Veículos, que for devido, solicita junto do IMTT a atribuição de um certificado de matrícula, o que só acontece, quando algum dos seus concessionários a informa de que foi celebrado um contrato de compra e venda para um determinado veículo.
11 - Que, sendo obrigatório a apresentação da DAV, para efeitos da solicitação do certificado de matrícula, o primeiro registo de cada veículo é sempre processado/concretizado em nome da Requerente.
12 - Que, face ao disposto no nº 1 do art.º 3.º e no nº 1 do art.º 6.º, ambos do CIUC, o facto gerador do IUC é constituído pela propriedade dos veículos, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional, sendo sujeitos passivos desse imposto as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
13 - Que, embora o art.º 3.º do CIUC consigne que são sujeitos passivos do IUC os proprietários registados dos veículos, trata-se de uma presunção ilidível, permitindo demonstrar que os veículos, embora estejam registados em nome da Requerente, foram transmitidos a terceiros antes de ocorrer a exigibilidade do referido imposto.
14 - Que, nos termos do estabelecido no nº 1 do art.º 17.º do CIUC, no ano da matrícula ou do registo do veículo em território nacional, o IUC é liquidado pelo sujeito passivo do imposto nos 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para o respectivo registo.
15 - Que, de acordo com o disposto no nº 2 do art.º 42.º do Regulamento do Registo Automóvel, caso se trate de registo inicial de propriedade, o veículo deverá ser registado no prazo de 60 dias a contar da data da atribuição da matrícula.
16 - Que, entre a atribuição da matrícula e o termo do prazo para liquidação e pagamento do imposto medeia um prazo de 90 dias, resultantes do prazo de 60 dias para o registo, acrescido de 30 dias para liquidação e pagamento do imposto.
17 - Que, face ao consagrado no art.º 18.º do CIUC, caso ocorra a ausência de registo de propriedade dentro do prazo de legal de 60 dias, o IUC devido no ano da matrícula é liquidado ao sujeito passivo, com base na DAV.
18 - Que a legislação aplicável permite, no ano da matrícula, distinguir duas distintas situações no domínio da responsabilidade pelo pagamento do IUC, posto que, se o veículo for registado nos 60 dias posteriores à matrícula o imposto deverá ser liquidado pelo proprietário do veículo que constar no registo, nos trinta dias posteriores ao termo do prazo para registo; e, se o registo não for efectuado nos mencionados 60 dias posteriores à data da matrícula, o imposto em causa é liquidado e exigido, no ano da matrícula, ao sujeito passivo do ISV, com base na DAV.
19 - Que procedeu à transmissão da propriedade de todos os veículos identificados nos autos, durante o decurso do prazo para o correspondente registo, e, consequentemente, antes do prazo de liquidação e pagamento do imposto.
20 - Que, no início do mês de Agosto de 2013, recebeu 277 notificações de liquidações, provenientes do Serviço de Finanças de Oeiras - … para que, relativamente a tais notificações, exercesse o seu direito a audição prévia.
21 - Que exerceu o seu direito de audição prévia, instruído com os documentos que provavam que, à data da liquidação e vencimento do imposto, os veículos já não se encontravam registados em seu nome, não sendo, por isso, sujeito passivo do IUC correspondente.
22 - Que o Serviço de Finanças de Oeiras - … considerou improcedentes os argumentos apresentados, em sede audição prévia, entendendo, por um lado, que os sujeitos passivos do imposto são os proprietários dos veículos, considerando-se, como tais, as pessoas, em nome de quem os mesmos se encontrem registados e, por outro, que vencendo-se o IUC no primeiro dia do mês da matrícula, é nessa data que deve ser aferido quem é o sujeito passivo desse imposto.
23 - Que a liquidação à Requerente dos impostos em questão viola o disposto no CIUC, porquanto, à data da liquidação e dentro do prazo para pagamento voluntário dos tributos a mesma não era sujeito passivo, na medida em que, então, já não era, na realidade e efectivamente, a proprietária dos veículos, conforme resulta das correspondentes facturas-recibo, que junta como prova da transmissão da propriedade dos veículos em questão.
24 - Que as facturas-recibo apresentadas como prova da transmissão da propriedade dos veículos em causa, para além de gozarem da presunção de veracidade, face ao disposto no n.º 1 do art.º 75.º da LGT, ilidem a presunção estabelecida no art.º 3.º do CIUC de propriedade dos veículos.
25 - Que a propriedade dos veículos é transmitida por mero efeito do contrato, e que, como se dispõe no art.º 897.º do Código Civil, o seu elemento essencial é a entrega do bem e o recebimento do preço, o que aconteceu relativamente a todos os veículos.
26 - Que a Requerente, enquanto importadora de veículos automóveis, nunca seria sujeito passivo do imposto único de circulação, atento a génese do referido imposto e considerando o princípio da equivalência que o informa.
27 - Que as liquidações do imposto único de circulação em causa, efectuadas pelo Serviço de Finanças de Oeiras - 2, assentam numa errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do IUC, constantes do art.º 3.º do CIUC, o que consubstancia a prática de actos tributários falhos de legalidade por erro nos pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos 580 actos de liquidação em causa, relativos ao imposto único de circulação e aos juros compensatórios.
D - RESPOSTA DA REQUERIDA
28 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou, em 09/05/2014, Resposta e procedeu, por um lado, à junção aos autos de cópia do Processo Administrativo Tributário para efeitos do previsto, respectivamente, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), e, por outro, apresentou, oportunamente, tal como havia ficado estabelecido na reunião do artigo 18.º do RJAT, as suas alegações por escrito, nas quais, para além de reiterar os argumentos inicialmente apresentados na Resposta, faz, todavia, alusão a uma decisão arbitral, relativa ao Proc. N.º 55/2014-T, transcrevendo parte da referida decisão, designadamente para lembrar que, no caso dos veículos sujeitos à primeira matrícula, é na data em que esta é efectuada que se define o momento da exigibilidade do imposto, ou seja, o momento a partir do qual o credor tributário pode fazer valer, face ao devedor, o seu direito ao pagamento do imposto.
29 - Na referida Resposta e nas suas alegações, a AT entende que os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, pronunciando-se pela improcedência do requerido e pela manutenção dos actos de liquidação questionados, defendendo, em suma:
30 - Que todos os argumentos esgrimidos pela Requerente, não tendo qualquer apoio na letra da lei, partem de premissas erradas, pretendendo por essa via, a aplicação de um regime de exclusão de tributação sem sede de IUC.
31 - Que, no âmbito do art.º 17.º do Código de Imposto sobre Veículos - CISV, a introdução no consumo e liquidação de imposto sobre os veículos, que não possuam matrícula nacional, é titulada pela emissão de uma Declaração Aduaneira de Veículos - DAV, emissão que constitui facto gerador do imposto, nos termos do disposto no art.º 5.º do CISV.
32 - Que, nos termos do disposto no nº 4 do art.º 117.º do Código da Estrada, a matrícula dos veículos é pedida ao IMTT pela entidade que proceder à sua admissão ou introdução no consumo, sendo certo, por outro lado, que, face ao disposto no nº 1 do art.º 24.º do Regulamento de Registo Automóvel, aprovado pelo Decreto - Lei nº 55/75, de 12 de Fevereiro, na redacção dada pelo Decreto - Lei nº 178 - A/2005, de 28 de Outubro, “O registo inicial de propriedade de veículos importados, admitidos, montados, construídos ou reconstruídos em Portugal tem por base o requerimento respectivo e a prova do cumprimento das obrigações fiscais relativas ao veículo”.
33 - Que, da articulação da incidência subjectiva (art.º 3.º do CIUC) com o facto constitutivo da obrigação do imposto (art.º 6.º do CIUC) decorrem as situações jurídicas que geram o nascimento da obrigação de imposto, ou seja, a matrícula ou o registo.
34 - Que, face ao disposto no n.º 3 do art.º 6.º do CIUC, o imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação referido no n.º 2 do art.º 4.º, o que significa que o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação directa com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo.
35 - Que, tendo em atenção o disposto no art.º 24.º do Regulamento de Registo Automóvel e as normas atrás mencionadas, o registo inicial de propriedade de veículos admitidos - como é o caso dos autos - tem por base o requerimento respectivo e a prova do cumprimento das obrigações fiscais relativas ao veículo, o que significa que o certificado de matrícula implica a apresentação de uma DAV, por parte da Requerente e origina automaticamente, nos termos do art.º 24.º do RRA, o registo da propriedade do veículo em nome da entidade que procedeu à sua importação e ao pedido de matrícula, ou seja, a Requerente, o que significa que o primeiro registo de cada veículo é concretizado em nome da entidade importadora, no caso a Requerente.
36 - Que o ideário argumentativo seguido pela Requerente não encontra o mínimo de correspondência com a ratio legis constante do art.º 6.º do CIUC, nem com a mens legislatoris.
37 - Que o legislador tributário não ficcionou que o imposto seria devido pelo proprietário do veículo que se encontrasse registado nos 60 dias a que alude o nº 2 do art.º 42.º do RRA, imposto que seria pago nos 30 dias posteriores, nos termos do art.º 17.º do CIUC.
38 - Que o legislador tributário também não ficcionou que os importadores, não obstante figurarem como primeiros proprietários dos veículos importados, poderão ver afastada a tributação em sede de IUC, caso no prazo de 60 dias o veículo seja registado em nome de outro proprietário, o qual liquida e paga o IUC no prazo de 30 dias nos termos do art.º 17.º do CIUC.
39 - Que, o legalmente estabelecido consagra que o facto gerador do imposto é aferido pela matrícula ou pelo registo, prevendo expressamente o art.º 24.º que, tendo sido pago o ISV e pedida a matrícula, o veículo fica automaticamente registado em nome do importador, ou seja, da Requerente, sendo-lhe exigido o pagamento do IUC, nos termos do art.º 3.º do CIUC. (Cfr. nºs 48.º e 49.º da Resposta)
40 - Que, encontrando-se os veículos registados em nome da Requerente, é-lhe exigido o imposto nos termos dos art.ºs 3.º e 6.º do CIUC, não sendo possível afastar a incidência subjectiva do imposto. (Cfr. n.º 57.º da Resposta)
41 - Que o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como sujeitos passivos de imposto os proprietários, em nome dos quais os veículos se encontrem registados.
42 - Que, ao contrário do alegado pela Requerente, não se antevê de que forma é aplicável o disposto no art.º 42.º do RRA, o qual consubstancia, como aliás, a própria norma indica, o prazo para os registos que ocorram posteriormente, e não para efeitos de primeiro registo.
43 - Que, tendo os veículos sido registados, primeiramente, em nome da Requerente compete-lhe a ela suportar o IUC, o qual poderá ser posteriormente repercutido na esfera do consumidor final, à luz do que ocorre com os valores suportados pelos importadores com o ISV e com o IVA. (Cfr. nºs 60.º e 61.º da Resposta)
44 - Que, seguindo o entendimento propugnado pela Requerente, a incidência do imposto não ocorreria com o 1.º registo, em nome da Requerente, mas em nome do posterior proprietário, o qual procedeu ao registo no prazo de 60 dias, tendo posteriormente o imposto de ser pago no prazo de 30 dias a que alude o disposto no art.º 17.º do CIUC, descurando-se, assim, por completo o facto gerador consignado com a atribuição da matrícula, como estabelecido no art.º 6.º do CIUC. (Cfr. nºs 69.º e 70.º da Resposta)
45 - Que as preocupações ambientais alegadas pela Requerente como subjacentes ao regime consagrado no CIUC, não podem afastar outras preocupações fundamentais do CIUC, nomeadamente a de que o legislador fiscal pretendeu criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo, tal como constante do registo automóvel.
46 - Que a interpretação da Requerente em ordem a afastar a incidência subjectiva e a tributação do IUC, no caso do registo do veículo ser efectuado nos 60 dias seguintes à matrícula não se mostra conforme com a Constituição, violando os princípios constitucionais da legalidade e justiça tributária, da capacidade contributiva, da igualdade, da certeza e da segurança jurídicas.
47 - Que, deve ser julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados.
E - QUESTÕES DECIDENDAS
48 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.
49 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as seguintes:
- Saber se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º nº 1 do CIUC, estabelece, ou não, uma presunção;
- Saber qual o sujeito passivo de IUC, sempre que, entre a data do registo inicial de propriedade, associado à primeira matrícula do veículo, e a data legalmente prevista para a liquidação do imposto, ocorrer um “novo” registo em nome de uma terceira pessoa, para quem a propriedade do mesmo foi, entretanto, transferida e, como tal, constante do registo.
F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
50 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
51 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
52 - O processo não padece de vícios que o invalidem.
53 - Tendo em conta o processo administrativo tributário, cuja cópia foi remetida pela AT, a prova documental junto aos autos e as alegações produzidas, apresentadas por escrito, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa nos seguintes termos.
II - FUNDAMENTAÇÃO
G - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
54 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:
55 - A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de importação, comercialização e distribuição de veículos automóveis.
56 - Os veículos identificados no processo, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, tiveram, tal como decorre da documentação da Conservatória do Registo de Automóveis, junto aos autos, um registo inicial de propriedade, em nome da Requerente, e um segundo registo, em nome do consumidor final, ou seja, das pessoas a quem os veículos foram vendidos pela Requerente.
57 - Os dois referidos registos de propriedade dos veículos foram efectuados dentro do prazo de 60 dias, previsto para efeitos do registo inicial de propriedade, contados a partir da atribuição da matrícula, a que se alude nos nºs 1 e 2 do art.º 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis,
58 - No início do mês de Agosto de 2013, a Requerente, recebeu provenientes do Serviço de Finanças de Oeiras - 2, notificações de liquidações, em número de 277, demonstrativas de 580 actos de liquidação, quer relativos ao Imposto Único de Circulação, quer a juros compensatórios, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, com o valor de € 48.111,31.
59 - A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, instruído, nomeadamente com as facturas de venda aos concessionários, com as facturas de venda dos concessionários aos consumidores finais, bem como com as declarações de tomada de posse dos veículos por parte desses consumidores, destinados a fazer prova de que, à data da liquidação e vencimento do imposto, os veículos já não se encontravam registados em seu nome, considerando não ser, por isso, sujeito passivo do IUC correspondente, não sendo, assim, responsável pelo seu pagamento.
60 - O Serviço de Finanças de Oeiras - 2, notificou a Requerente, em 11 de Setembro de 2013, da resposta à audição prévia, conforme documento junto aos autos, no sentido de que, por inexistência de fundamento legal, não fora dado provimento às suas petições/pretensões, mantendo o entendimento de que a Requerente era o sujeito passivo da obrigação de pagamento do IUC em questão.
FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
61 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados relativamente a cada um deles, e na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.
FACTOS NÃO PROVADOS
62 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.
H - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO
63 - A matéria de facto está fixada, importando agora proceder à subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas enunciadas no nº 49.
64 - Quer a Requerente, quer a Requerida consideram que, face ao disposto no nº 1 do art.º 3.º e no nº 1 do art.º 6.º, ambos do CIUC, o facto gerador do IUC é constituído pela propriedade dos veículos, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional, sendo sujeitos passivos desse imposto as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
65 - Tal sintonia não é, porém, extensível ao alcance da norma de incidência subjectiva inscrita no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, dado que, se para a Requerente a referida norma estabelece uma presunção ilidível, permitindo demonstrar que os veículos, embora inicialmente registados em nome da Requerente, foram transmitidos a terceiros antes de ocorrer a exigibilidade do referido imposto, para a Requerida não é possível afastar a incidência subjectiva do imposto, pelo que encontrando-se os veículos inicialmente registados em nome da Requerente, é ela que, nos termos dos art.ºs 3.º e 6.º do CIUC, é responsável pelo pagamento do imposto.
66 - A questão que importará, antes de mais, conhecer e decidir consiste em saber se a norma de incidência subjectiva constante do nº 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece, ou não, uma presunção susceptível de ser ilidida.
I - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO Nº 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC
67 - Antes de mais, deve notar-se ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.
68 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se de diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que implica, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.
69 - A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos nºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não pode deixar de considerar-se.
DO ELEMENTO LITERAL
70 - Neste enquadramento, importará encontrar resposta para a questão de saber se o artigo 3.º, nº 1 do CIUC, estabelece, ou não, uma presunção, começando pelo elemento literal.
71 - Dispõe o n.º 1 do referido artigo 3º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” (sublinhado nosso)
72 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se” o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões frequentemente utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.
73 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.
74 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão abundantemente enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas, nomeadamente, no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73/2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.
75 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que verifica no nº 1 do art.º 3.º do CIUC.
76 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no n.º 1 do art.º 3.º tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.
77 - O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).
78 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 28 (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, a “[…] análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.
79 - Assim sendo, vejamos, então, o elemento histórico e o racional (ou teleológico).
DO ELEMENTO HISTÓRICO E RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)
80 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor histórico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007 de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”, referindo, ainda, ser “[…] este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate […]”.
81 - Neste quadro, parece claro que a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo sujeito causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência, inscrito do art.º 1.º do CIUC.
82 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual imposto único de circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio que, de algum modo, tem assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do nº 2 do art.º 66.º da nossa Constituição, tem também consagração no plano do direito comunitário, seja ao nível do direito originário, o que se verifica desde 07 de Fevereiro de 1992, altura em que foi assinado, em Maastrich, o Tratado da União Europeia, em cujo art.º 130.º-R, nº 2, o aludido princípio passou a constar como suporte da política Comunitária no domínio ambiental, seja ao nível do direito derivado.
83 - O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos, que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus “proprietários económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.
84 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio, consubstanciando um valor transversal a todo o Código, não pode, pois, deixar de constituir uma finalidade que se quer legalmente prosseguir, corporizando, nessa medida, uma luz de assinalável fulgor que, constante e continuadamente, não pode deixar de iluminar o caminho do intérprete.
85 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.
86 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.
87 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais e efectivos poluidores corresponde a um importante fim visado pela lei, no caso pelo CIUC, fim que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2.ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
88 - Assim, deve notar-se que, seja face aos referidos elementos históricos, seja à luz dos elementos de carácter racional ou teleológico de interpretação que se deixam referenciados, impõe-se, igualmente, concluir que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.
89 - Caberá ainda considerar o elemento sistemático de interpretação.
DO ELEMENTO SISTEMÁTICO
90 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.
91 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema do IUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso do CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.
92 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no 1.º artigo do Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em assentam em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.
93 - O elemento sistemático de interpretação e a interação entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito do CIUC, apela também ao entendimento de que o estabelecido no nº 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção.
94 - Dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas.
Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção ilidível, o que significa que os sujeitos passivos do IUC não são apenas os proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados.
95 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no nº 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.
96 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados. Serão, pois, essas pessoas, identificadas nessas condições, a quem, desde logo e em princípio, a AT, antes da liquidação ser concretizada, se tem, necessariamente, de dirigir, comunicando-lhes o projecto de decisão correspondente.
97- Todavia, assim será apenas em princípio, dado que no quadro da audição prévia, de carácter obrigatório, face ao disposto na alínea a) do n.º 1, do art.º 60.º da LGT, a relação tributária poderá ser reconfigurada, validando-se o sujeito passivo inicialmente identificado, ou redirecionando-se o procedimento no sentido daquele que vier a ser indicado pelo titular do direito de audição, como proprietário do veículo em causa.
98 - A audição prévia é, aliás, a sede própria, para se procurar a verdade material dos elementos essenciais à liquidação do imposto, entre os quais estará o conhecimento dos verdadeiros sujeitos passivos do imposto, enquanto elementos primeiros da relação jurídico- fiscal. A este propósito, cabe lembrar o que nos dizem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, na anotação nº 5 ao art.º 55.º, quando aí referem que, no domínio do procedimento tributário, a administração tributária, particularmente à luz dos princípios da justiça e da imparcialidade, deve nortear-se por “[…] critérios de isenção na averiguação das situações fácticas, realizando todas as diligências que se afigurem necessárias para averiguar a verdade material, independentemente de os factos a averiguar serem contrários aos interesses patrimoniais que à administração tributária cabe defender”. (sublinhado nosso)
99 - Relativamente à verdade material que se visa conhecer - a qual, tivesse tido, no presente caso, o devido atendimento, teria conduzido a que os sujeitos passivos do IUC fossem os adquirentes dos veículos, enquanto seus reais e efectivos proprietários, e não o vendedor, enquanto proprietário “meramente jurídico” dos veículos em questão - cabe ainda lembrar o princípio do inquisitório, que fixado no art.º 58.º da LGT, estatui no sentido de que “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”. (sublinhado nosso)
100 - A propósito deste princípio, cabe, de novo, aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.
O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, ibidem, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.
DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO
101 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.
102 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu nº 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)
Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.
103 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reias (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.
Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador tendo, como causa do próprio contrato.
104 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ nºs 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, n.º 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)
105 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.
106 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, (diversas vezes alterado, a última das quais por via da Lei n.º 39/2008, de 11/08), que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)
107 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)
108 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, o qual, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84, de 06 de Julho, e alterado pela última vez, por via do Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto, dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)
109 - A conjugação do disposto nos três artigos retromencionados, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular, em prol de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.
110 - Assim, pode, com segurança, concluir-se que o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, prova em contrário, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, entre outros, verem-se os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.
111 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a ilisão da presunção estabelecida no art.º 3.º do CIUC, consubstanciada na transferência da propriedade dos veículos em questão, por mero efeito do contrato, antes de findar o prazo de liquidação e pagamento voluntário do IUC, previsto no n.º 1 do art.º 17.º do CIUC, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise não podem merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.
112 - A liquidação, sendo, com efeito, um acto definidor da posição da Administração tributária perante os particulares, torna certa e exigível a obrigação tributária. Ora, na data estatuída no art.º 17.º, n.º 1 do CIUC, para que o IUC fosse liquidado, a Requerente não era sujeito passivo do imposto, ou seja, tal como fixado no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, não era o proprietário dos veículos, enquanto pessoa em nome da qual os mesmos se encontrassem registados.
DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS
113 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por diversos meios, nomeadamente por via testemunhal ou documental, nesta se incluindo as facturas/recibo relativas às vendas dos veículos.
114 - Como meio de prova, a Requerente apresentou facturas de venda relativas às vendas dos veículos, quer aos concessionários, quer aos consumidores finais, bem como declarações de “tomada de posse” dos veículos por parte desses consumidores. Tais documentos, gozam, face ao disposto no n.º 1 do art.º 75.º da LGT, da presunção de veracidade. Por outro lado, entende-se que os referidos documentos, sendo idóneos para fazer prova das transações dos veículos identificados nos autos, têm força bastante para ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.
J - SOBRE OS ARTIGOS 17.º E 18.º DO CIUC
115 - Antes de mais, estando, como estamos, no domínio da atribuição da primeira matrícula, importará ter em conta os mecanismos legais estabelecidos a esse propósito, relativamente aos veículos identificados no processo e ao correspondente registo inicial de propriedade.
116 - Face ao disposto no n.º 4 do art.º 117.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 72/2013, de 3 de setembro, a matrícula do veículo que “[…] deve ser requerida à autoridade competente pela pessoa, singular ou coletiva, que proceder à sua admissão, importação ou introdução no consumo em território nacional”. (sublinhado nosso)
117 - Dispõe o n.º 1 do art.º 24.º do Regulamento do Registo de Automóveis, aprovado pelo Decreto-Lei nº 55/75, de 12 de Fevereiro, com a última redação introduzida pelo DL n.º 185/2009, de 12/08, que “O registo inicial de propriedade de veículos importados, admitidos, montados, construídos ou reconstruídos em Portugal tem por base o requerimento respectivo e a prova do cumprimento das obrigações fiscais relativas ao veículo”. (sublinhado nosso)
118 - Por outro lado, estatui o n.º 1 do art.º 118.º do referido Código da Estrada que “Por cada veículo matriculado deve ser emitido um documento destinado a certificar a respetiva matrícula, donde constem as características que o permitam identificar”, acrescentando o n.º 2 do mesmo artigo que “É titular do documento de identificação do veículo a pessoa, singular ou coletiva, em nome da qual o veículo for matriculado e que, na qualidade de proprietária ou a outro título jurídico, dele possa dispor […]”. (sublinhado nosso)
119 - O documento destinado a certificar a respetiva matrícula, conforme decorre do estabelecido no n.º 1 do art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 178-A/2005, de 28 de Outubro que aprovou o Documento Único Automóvel e criou o Certificado de Matrícula é emitido “[…] quando se efectue o primeiro registo de veículo importado, admitido, montado, construído ou reconstruído em Portugal”, dispondo o n.º 2 do referido artigo que “A realização de qualquer acto relativo a veículo que implique alteração dos elementos constantes do certificado de matrícula determina a emissão de novo certificado, sendo obrigatória a entrega do anterior”. (sublinhado nosso)
120 - Note-se que o atrás referido primeiro registo, deve ser requerido no prazo de 60 dias, após a atribuição da matrícula, face ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, quando aí se estabelece que “1 - O registo obrigatório deve ser requerido no prazo de 60 dias a contar da data do facto. 2 - Tratando-se de registo inicial de propriedade, o prazo referido no número anterior conta-se a partir da data de atribuição da matrícula”. (sublinhado nosso)
121 - A conjugação das mencionadas normas, aponta no sentido de que o primeiro registo do veículo não pode deixar de ser efectuado em nome da pessoa que proceder à sua admissão, importação ou introdução no consumo em território nacional, no caso, em nome da Requerente, que deverá fazer prova do cumprimento das suas obrigações fiscais, particularmente do ISV.
122 - É neste quadro, que o primeiro registo de cada um dos veículos em questão não poderá deixar de ser efectuado em nome da Requerente. Trata-se de um registo de propriedade dos veículos, absolutamente incontornável e ab initio conhecido, corporizado na pessoa do importador, que, enquanto proprietário “feito à força”, porque a isso legalmente é obrigado, assume, assim, um carácter de proprietário “em trânsito”, “de passagem” e de pendor estritamente jurídico.
123 - O primeiro registo de cada um dos veículos identificados nos autos, não podendo, de todo, ser contornado pela Requerente (sociedade de importação, comercialização e distribuição de veículos automóveis), na medida da sua associação à DAV e ao pagamento do Imposto sobre Veículos (ISV), assume, para o Estado, enquanto credor do imposto, uma importante função de certeza, e segurança fiscal, na medida em que na ausência desse registo, dentro do prazo legal, o IUC será liquidado e exigido ao sujeito passivo do ISV, corporizado nos respectivos importadores, dado serem eles e não outros, as pessoas referenciadas na DAV, tal como decorre do n.º 1, alínea a) do art.º 18.º do CIUC, o que significa que apenas no caso da propriedade dos veículos não ter sido registada dentro do referido prazo de 60 dias é que o IUC será exigido à Requerente.
124 - O registo da propriedade inicial do veículo deve, pois, ser efectuado no prazo de 60 dias, contados a partir da atribuição da matrícula, tal como resulta do disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, devendo o imposto ser liquidado pelo sujeito passivo nos 30 dias seguintes ao termo do prazo exigido para o registo, face ao estalecido no n.º 1 do art.º 17.º do CIUC, sendo que, nos anos subsequentes, como se estatui no n.º 2 do referido artigo 17.º, o imposto deve ser liquidado e torna-se exigível nos termos do n.º 2 do art.º 4.º do CIUC, ou seja, no ano que se inicia com a data da matrícula.
125 - O referido no mencionado n.º 1 do art.º 17.º, cuja epígrafe se refere ao “Prazo para liquidação e pagamento”, que, tal como o artigo 18.º, corporiza uma norma especialmente aplicável à liquidação do imposto, quando se trate de matrícula ou registo inicial dos veículos em território nacional, estatui que no “No ano da matrícula ou registo do veículo em território nacional, o imposto é liquidado pelo sujeito passivo do imposto nos 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para o respectivo registo”, prazo que, como atrás já se notou, é de 60 dias, nos termos do n.º 2 do art.º 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis.
126 - Resulta, assim, das referidas normas, que, no ano da matrícula, a determinação do sujeito passivo só será possível nas circunstâncias aí mencionadas, ou seja, são as pessoas, em nome das quais a propriedade dos veículos se encontre registada, no aludido período de 30 dias, posteriores aos 60 dias previstos para o pedido do respectivo registo, que corporizam os sujeitos passivos a quem, legalmente, compete a liquidação do IUC e a quem o correspondente pagamento deve ser exigido.
Convém, aliás, não esquecer que as normas em questão, configuram, na economia do CIUC, normas especiais, sendo, por isso, especialmente aplicáveis às situações de matrícula ou registo inicial do veículo, derrogando, consequentemente, as demais normas, de natureza geral, atinentes à matéria.
127 - No caso dos autos, a Requerente não era, nesse momento, relativamente a qualquer um dos veículos que vendeu, e que estão identificados no processo, a pessoa, em nome da qual a propriedade dos veículos se encontrava registada, não sendo, pois, nos termos do estabelecido no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, o sujeito passivo do imposto em causa.
128 - Por outro lado, não se pode deixar de considerar o estabelecido no art.º 18.º do CIUC, que tem como epígrafe a “liquidação oficiosa”, quando no seu n.º 1, alínea a) estatui que “Na ausência de registo de propriedade do veículo efectuado dentro do prazo legal, o imposto devido no ano da matrícula do veículo é liquidado e exigido: Ao sujeito passivo do imposto sobre veículos com base na declaração aduaneira do veículo, ou com base na declaração complementar de veículos em que assenta a liquidação desse imposto, ainda que não seja devido”. (sublinhado nosso)
129 - O disposto nas mencionadas normas, como já atrás foi aflorado, assume para o Estado, enquanto sujeito activo do imposto, uma importante função de certeza e segurança fiscal, na medida em que na ausência de registo de propriedade do veículo, dentro do prazo legal, que, como já se referiu, é de 60 dias, nos termos do n.º 2 do art.º 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, o pagamento do imposto, no ano da matrícula, está salvaguardado.
130 - O IUC será, assim, nessas circunstâncias, liquidado e exigido apenas ao sujeito passivo do ISV, corporizado nos respectivos importadores, dado serem eles e não outros, as pessoas, como tal, referenciadas nas DAVs, o que significa que apenas no caso da propriedade dos veículos, em causa no processo, não ter sido registada dentro do referido prazo de 60 dias é que o IUC seria, legalmente, exigido à Requerente.
131 - No caso dos autos, face à junção dos meios de prova identificados no n.º 114, dúvidas não há de que, na data em que legalmente o imposto devia ser liquidado, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 17.º do CIUC, a Requerente não era sujeito passivo do imposto, dado que, nessa data e, consequentemente, antes de decorrido o referido prazo de 60 dias previsto para o registo, a propriedade dos veículos tinha sido transmitida aos consumidores finais, não estando mais registada em nome da Requerente, mas sim das pessoas a quem os mesmos foram vendidos e que, como tal, constam no registo como seus proprietários.
132 - A propósito da liquidação do imposto sublinhe-se, tal como já atrás se notou, que a liquidação, sendo um acto definidor da posição da Administração tributária perante os particulares, torna certa e exigível a obrigação tributária. Ora, na data em, face ao disposto no art.º 17.º, n.º 1 do CIUC, a obrigação de imposto se tornou certa e exigível, a Requerente não era sujeito passivo do imposto, ou seja, tal como fixado no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, não era o proprietário dos veículos, enquanto pessoa em nome da qual os mesmos se encontrassem registados.
133 - Note-se, aliás, porque não é questão de somenos, que o entendimento da AT, ao considerar a Requerente como sujeito passivo do imposto, por ter sido a pessoa em nome de quem, primeira e originalmente, o veículo foi registado, com o fundamento de que, face ao disposto no n.º 3 do art.º 6.º do CIUC, o mesmo se considera exigível no primeiro dia do período de tributação referido no n.º 2 do art.º 4.º, o que apresenta uma relação directa com a emissão do certificado de matrícula, transporta-nos para a impossibilidade total de proceder à sua compaginação com o princípio da equivalência.
134 - Na verdade, se assim fosse, estaríamos perante uma interpretação radicalmente restritiva das normas integrantes do sistema de IUC plasmado no respectivo Código, conducente ao esmagamento do referido princípio da equivalência, que, tendo sido estabelecido a favor de certas pessoas em particular e da comunidade em geral, teria, assim, por via dessa interpretação, as suas finalidades completamente invertidas.
135 - Com efeito, a ser a Requerente o sujeito passivo do imposto, que, enquanto importadora dos veículos, procede à sua aquisição sem que os mesmos tenham circulado, vendendo-os, consequentemente, nessas mesmíssimas condições, ou seja com 0 km, estaríamos perante uma situação corporizadora de um paradoxo legal intolerável, dado que, por um lado, quem jamais circulou ou circulará com os veículos, na medida em que procedeu à sua venda com 0 km, iria suportar um imposto que, justamente, incide sobre a sua circulação, desonerando-se, por outro lado, do referido imposto, quem, a final, é o seu “proprietário económico-utilizador”, que, real e efectivamente, circula com os ditos veículos.
136 - O princípio da equivalência, sendo estruturante do sistema IUC e do seu Código, e tendo, como já atrás se assinalou, um valor transversal a todo o CIUC, seria frontal e absolutamente desconsiderado. O referido princípio seria, se assim fosse, completamente esvaziado no seu alcance, e sentido mais inovador e relevante, que, como é sabido, apontam, fundamentalmente, para que os contribuintes sejam onerados, na medida dos custos que provocam, nomeadamente, ao ambiente e à rede viária, o que corresponderia, também, a uma interpretação reveladora de total falta de acerto, que, como se retira do disposto no n.º 3 do art.º 9.º do CC, não se imagina ter sido querida pelo legislador.
CONCLUSÃO
137 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados na ideia de que “não é possível afastar a incidência subjectiva do imposto” prevista no artigo 3.º, nº.1 do CIUC e de que o n.º 1 do artigo 17.º do referido Código “não ficcionou que os importadores poderão ver afastada a tributação em sede de IUC caso no prazo de 60 dias o veículo seja registado em nome de outro proprietário”, faz errada interpretação e aplicação destas normas, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.
138 - Por outro lado, porque a AT, à data em que o IUC, face ao disposto no n.º 1 do art.º 17.º do CIUC devia ser liquidado, considerou a Requerente proprietária dos veículos referenciados no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.
III - DECISÃO
139 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
- Julgar procedente por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios, a que se refere o pedido da Requerente;
- Anular, quer os actos de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, identificados nas notificações junto aos autos, quer os actos de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associados;
- Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.
VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nº 2 do CPC (ex-315º, nº 2) e 97º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 48.111,31.
CUSTAS
De harmonia com o n.º 4 do art.º 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de Agosto de 2014
O Árbitro
António Correia Valente
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)