DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. A contribuinte A... LDA., com o NIPC ... (doravante "Requerente" ou "A..."), e sede na Av. ..., n.º..., ..., ..., apresentou, no dia 13 de Julho de 2018, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelos artigos 228.º e 229.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante "RJAT"), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante "AT" ou "Requerida").
2. A Requerente vem pedir a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da liquidação adicional de IRC n.º 2013... e correspondentes juros compensatórios – no valor global a pagar de € 157.851,72 (€ 143.551,62 de IRC e € 14.300,10 de juros), conforme demonstração de acerto de contas n.º 2013 ... –, com referência ao exercício de 2010, mantida na sequência de despacho de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2015... proferido pela Directora de Serviços da DSIRC, em 11 de Abril de 2018, e notificado a 16 de Abril de 2018. A Requerente pede a anulação de tais actos tributários com todas as consequências legais. Junta 29 documentos e arrola uma testemunha.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
5. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 25 de Setembro de 2018; foi-o regularmente e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos. 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, do RJAT.
6. Nos termos do artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, foi a AT notificada, em 25 de Setembro de 2018, para apresentar resposta.
7. A AT apresentou, em 23 de Outubro de 2018, um Requerimento solicitando uma prorrogação por 30 dias do prazo para resposta, invocando a necessidade de obter mais informação sobre a situação em litígio.
8. Esse Requerimento foi deferido por Despacho de 24 de Outubro de 2018.
9. A AT apresentou a sua resposta em 28 de Novembro de 2018, acompanhada do Processo Administrativo (“PA”).
10. Nessa resposta a AT, além de suscitar matéria de excepção, alega, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente. E indica uma testemunha.
11. O Despacho Arbitral de 7 de Dezembro de 2018 notificou a Requerente para exercício do contraditório perante a invocação de matéria de excepção; e solicitou-lhe a definição dos factos, ou tema de prova, a que respeita a inquirição de testemunha por ela requerida.
12. Em Requerimento de 12 de Dezembro de 2018 a Requerente tomou posição sobre a matéria de excepção suscitada pela Requerida; à cautela, clarificou o pedido no sentido de ele corresponder a uma impugnação tanto da liquidação como do indeferimento do Recurso Hierárquico; e indicou ainda os artigos do seu requerimento inicial que seriam objecto de prova pelo depoimento da testemunha por si arrolada.
13. O Despacho Arbitral de 17 de Dezembro de 2018 designou o dia 14 de Janeiro de 2019 para realização da diligência de inquirição das testemunhas.
14. Em Requerimento de 10 de Janeiro de 2019 a Requerida solicitou a alteração da data da diligência de inquirição das testemunhas, por impossibilidade de comparência da testemunha por si arrolada.
15. Em Requerimento de 29 de Janeiro de 2019 a Requerente solicitou igualmente a alteração da data da diligência de inquirição das testemunhas.
16. Por Despachos Arbitrais de 11 e 14 de Janeiro, e 1 de Fevereiro, de 2019, a diligência foi remarcada para o dia 28 de Fevereiro de 2019.
17. No dia 28 de Fevereiro de 2019 teve lugar a inquirição da testemunha arrolada pela Requerente, B... .
18. No final da diligência, o Tribunal determinou a prorrogação por dois meses do prazo referido no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.
19. Por Requerimento da Requerida, apresentado em 7 de Março de 2019 e deferido por Despacho de 11 de Março de 2019, foi fixada nova data para a inquirição, por videoconferência, da testemunha arrolada pela AT.
20. No dia 13 de Março de 2019 teve lugar a inquirição da testemunha arrolada pela Requerida, C... .
21. No final da audiência Requerente e Requerida foram notificadas para apresentarem alegações escritas em prazos sucessivos de 15 dias, fixando-se ainda como data limite de prolação da decisão arbitral o dia 23 de Maio de 2019.
22. A Requerente apresentou em 29 de Março de 2019 as suas Alegações escritas.
23. A Requerida apresentou em 26 de Abril de 2019 as suas Contra-alegações escritas.
24. Por último, por Despacho Arbitral de 22 de Maio de 2019, tendo em atenção a complexidade do processo, foi prorrogado por dois meses, ao abrigo do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, o prazo da prolação da decisão arbitral.
* * *
25. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
26. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
27. O processo não enferma de nulidades.
II. A EXCEPÇÃO DE INTEMPESTIVIDADE
II.A. Posição das partes quanto à excepção
1. Na sua resposta ao pedido de pronúncia arbitral, a Requerida suscita a questão de estar ultrapassado o prazo legalmente definido para a impugnação deste acto tributário de liquidação, em concreto, em sede arbitral, na medida em que o pedido de pronúncia arbitral tem por finalidade a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC n.º 2013 ... com todas as legais consequências, designadamente a sua anulação.
2. A liquidação adicional foi notificada ao sujeito passivo ora Requerente em 20 de Dezembro de 2013, e o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 13 de Julho de 2018 – sendo, portanto, claramente intempestivo face ao preceituado no artigo 10.º do RJAT e no artigo 102.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT, que estabelece um prazo de 90 dias. A Requerida convoca em apoio do seu entendimento abundante jurisprudência arbitral (Processos n.ºs 62/2012-T, 188/2013-T, 244/2013-T, 38/2015-T, 195/2015-T, 196/2015-T, 211/2015-T, 261/2015-T, 346/2015-T, todos do CAAD).
3. Assim, segundo a Requerida, o pedido deveria ser declarado improcedente por intempestivo, devendo daí decorrer a absolvição da instância, nos termos do artigo 278.º, n,º 1, e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT.
4. Em Requerimento apresentado em 12 de Dezembro de 2018, a Requerente respondeu à excepção.
5. Começa por esclarecer que, ao contrário do sugerido, o seu pedido não se cinge à impugnação da liquidação de imposto, antes contesta imediatamente o acto de indeferimento do Recurso Hierárquico (e, portanto, só mediatamente a liquidação).
6. O acto de indeferimento do Recurso Hierárquico, proferido em 11 de Abril de 2018 e notificado em 16 de Abril de 2018, manteve administrativamente na ordem jurídica o acto de liquidação que a Requerente reputa de ilegal – e que contesta de forma continuada desde 19 de Maio de 2014, primeiro através de Reclamação Graciosa e, depois, de Recurso Hierárquico; e agora, esgotados os meios de impugnação administrativa da liquidação, através da via arbitral.
7. Isso não significa que as decisões de indeferimento da Reclamação Graciosa, e depois de Recurso Hierárquico, não sejam especificamente contestadas, e que a última não seja directamente visada. Mas a Requerente assume que o que pretende é que, em sede de consequências legais dessa contestação, seja indirectamente atingida a liquidação que reputa de ilegal.
8. No entender da Requerente, a excepção só procederia se do pedido de pronúncia arbitral resultasse que a Requerente se conformou com o indeferimento do Recurso Hierárquico, para se concentrar na ilegalidade da liquidação: mas, insiste, é transparente, no pedido de pronúncia arbitral, que não é esse o caso.
9. Logo, infere, um qualquer pedido de pronúncia arbitral apresentado na sequência de uma decisão de indeferimento de reclamação graciosa ou recurso hierárquico, no âmbito do qual se discutiu o acto de liquidação impugnado, tem sempre por objecto imediato a decisão de indeferimento, embora o objecto real e mediato seja a própria liquidação.
10. Assim, alega a Requerente, ainda que ela própria não tenha peticionado expressamente a anulação da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico, remetendo essa anulação para os demais efeitos da procedência do pedido – mas apenas, de forma autónoma, a declaração expressa de ilegalidade do acto de liquidação –, a verdade é que os dois objectos integram o conhecimento do tribunal arbitral, já que a pronúncia pela ilegalidade dos actos de liquidação stricto sensu implicará, necessariamente, ainda que porventura implicitamente, a ilegalidade da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico, pelo que tal questão não contende directamente com a determinação do prazo para efeitos de apresentação do pedido de pronúncia arbitral.
11. Além disso, lembra a Requerente que o artigo 10.º, n.º 1, a) do RJAT estabelece que o pedido de constituição do tribunal arbitral é apresentado “No prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico”, significando isso, portanto, que sempre que o contribuinte tenha apresentado reclamação administrativa ou recurso hierárquico, o prazo de 90 dias para apresentação do pedido de pronúncia arbitral se conta a partir da decisão de indeferimento da reclamação graciosa ou de recurso hierárquico.
II.B. Decisão quanto à excepção
1. Avaliada a posição das partes na matéria da excepção, julgamos esta como não procedente.
2. Resulta do artigo 10.º, n.º 1, a) do RJAT que o prazo para impugnar, nas situações em que houve reclamação graciosa ou recurso hierárquico seguidos de decisão expressa, se conta da notificação desta última decisão, e não do termo do prazo de pagamento voluntário da liquidação.
3. Dado que a reclamação graciosa ou o recurso hierárquico se reportam à própria liquidação impugnada, a reacção à decisão de indeferimento na reclamação ou no recurso toma esta decisão por objecto imediato, mas o objecto mediato é, necessariamente, a própria liquidação.
4. Não é descabido que, por cautela, sejam expressamente impugnados, em simultâneo, ambos os actos, o de liquidação (mediatamente) e o de indeferimento (imediatamente). Mas não se afigura que isso seja indispensável, ou sequer necessário.
5. Lembremos que, em rigor, a jurisdição arbitral só tem competência material para apreciar a ilegalidade da liquidação, não os vícios do indeferimento de reclamações e recursos.
6. Em contrapartida, não se impõe que a via arbitral deva ser a primeira forma de reacção à ilegalidade de uma liquidação, excluindo a via administrativa; e, pelo contrário, a via arbitral configura-se como um meio adequado de reacção ao esgotamento da via administrativa, num plano paralelo ao da via jurisdicional de reacção contenciosa, que também ela assenta no esgotamento da via administrativa, pressupondo-o explicitamente.
7. Assim, ao apreciar o indeferimento de um recurso hierárquico que manteve uma liquidação cuja legalidade se contesta, o que materialmente se aprecia são os vícios da liquidação, em relação à qual aquele indeferimento se apresenta como acto de segundo (ou terceiro) grau.
8. Do que se trata é de conferir uma tutela jurisdicional efectiva aos direitos do impugnante (artigo 268.º, n.º 4 da Constituição), não a condicionando em função da primeira escolha que o impugnante tenha feito – nomeadamente, não prejudicando a impugnação da liquidação pelo facto de o impugnante ter começado pela via administrativa, reservando para mais tarde o recurso à via arbitral, para a hipótese de insucesso na via administrativa – como faria com o recurso à via jurisdicional.
9. O facto de tanto a reclamação graciosa como o recurso hierárquico terem por objecto a liquidação impugnada é que lhes confere o carácter de actos de segundo grau, face ao acto primário da liquidação.
10. E por isso a reacção aos actos de segundo grau implica que é o acto primário que se pretende impugnar ainda – quando isso não seja porventura explicitado na própria reacção.
11. E, inversamente, a reacção ao acto primário, na sequência dos actos de segundo (ou terceiro) grau, implica que estes são igualmente visados e devem ser removidos da ordem jurídica porque os vícios do acto primário, por eles confirmados, os “contaminam” – mesmo quando isso não seja porventura explicitado naquela reacção.
12. Daí que uma interpretação favorável ao acesso ao Direito (artigo 7.º do CPTA) e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 268.º, n.º 4 da Constituição) – favorável, portanto, à apreciação do mérito das questões e não enredada em formalismos procedimentais e processuais –, deva incluir o indeferimento expresso de uma reclamação graciosa ou de um recurso hierárquico no objecto do processo, como expressão de uma reacção tempestiva à ilegalidade do acto primário.
13. Entender de outro modo seria forçar o impugnante a uma opção exclusiva entre a via administrativa e a via arbitral, dentro do prazo para a impugnação da liquidação; mas isso contende com a arquitectura básica que presidiu ao estabelecimento da via arbitral em sede tributária – que em parte nenhuma coloca, como condição de acesso, a inexistência de uma via administrativa precedente, ou mais especificamente a inexistência de actos confirmativos que tivessem mantido, na ordem jurídica, do acto primário.
14. Mais ainda, na medida em que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD só têem competência para apreciar a legalidade de actos de liquidação, e não de decisões de indeferimento de recursos hierárquicos ou de reclamações graciosas, poderíamos chegar à conclusão de que, tendo havido impugnação administrativa de actos de liquidação, e ultrapassando-se com isso o prazo de impugnação directa da liquidação, a via arbitral estaria vedada – não fosse o caso de o artigo 10.º, n.º 1, a) do RJAT explicitar, pelo contrário, que a notificação da decisão de indeferimento na via administrativa serve como termo inicial, afastando, assim, um tal entendimento.
15. O artigo 10.º do RJAT não confere, pois, aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a competência para apreciação directa dos actos de segundo (ou terceiro) grau; é uma norma que, referindo embora esses actos, respeita exclusivamente ao termo inicial do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral.
16. A tempestividade afere-se, portanto, em relação a esses actos de segundo (ou terceiro) grau, embora a materialidade do litígio se reporte a uma liquidação que aqueles actos se limitaram a confirmar.
17. Logo, em bom rigor, a Requerente não teria sequer de impugnar separadamente os indeferimentos na reclamação graciosa ou no recurso hierárquico, se não encontrasse neles vícios próprios (já que como meros actos confirmativos eles são irrecorríveis) – bastando porventura tornar mais explícito que reagia a esses actos para mero efeito da tempestividade da reacção ao acto de primeiro grau, a liquidação.
18. Tendo a Requerente referido, expressamente, que deduzia o pedido de pronúncia arbitral para apreciação do acto tributário de liquidação de IRC, na sequência de despacho de indeferimento do Recurso Hierárquico e que não poderia conformar-se com a decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico (intróito e artigos 177.º a 179.º do pedido de pronúncia arbitral), por directa aplicação do artigo 10.º, n.º 1, a) do RJAT se concluirá que o prazo para esse pedido se iniciou no dia 17 de Abril de 2018, o dia seguinte ao da notificação do indeferimento do Recurso Hierárquico, e terminaria a 16 de Julho de 2018.
19. O que faz com que tenha que entender-se que a apresentação do pedido, a 13 de Julho de 2018, foi tempestiva.
20. Não se julga, por isso, sequer necessário solicitar à Requerente uma clarificação, correcção ou aperfeiçoamento do seu pedido de pronúncia arbitral, hipótese aventada pela Requerente nos n.os 101 a 106 do seu Requerimento de 12 de Dezembro de 2018.
21. Resolvida que está a questão de excepção que foi suscitada, pode avançar-se para a apreciação do mérito da causa, de modo a alcançar-se a decisão final.
III. FUNDAMENTAÇÃO: A MATÉRIA DE FACTO
III.A. Factos que se consideram provados com relevância para a decisão
1. A sociedade requerente, A..., LDA., foi constituída a 5 de Julho de 2006 como sociedade unipessoal, com o capital social de € 5.000,00 detido pela única sócia D... (“D...”), contribuinte fiscal n.º..., casada com E..., contribuinte fiscal n.º ... (RIT).
2. A A... é uma entidade que tem por objeto social o desenvolvimento, produção, instalação e exploração de sistemas de energia renovável e está inscrita no cadastro das finanças pela atividade de produção de eletricidade de origem hídrica, com o código 2704 correspondente ao CAE 35111 (Contrato de parceria – considerando A do Anexo 8 do RIT, e informação registal).
3. A Requerente apresentou junto da Direção Regional do Comércio, Indústria e Energia (“DRCIE”) da Região Autónoma da Madeira um Pedido de Informação Prévia (“PIP”) sobre a possibilidade de ligação, às redes do Sistema Eléctrico do Serviço Público, de energia eléctrica por ela produzida a partir de um Centro Electroprodutor Fotovoltaico a instalar no ... (cf. anexo 4 do RIT e documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral (“ppa”)).
4. Em 17 de Janeiro de 2007 foi emitida a favor da Requerente uma Informação Prévia favorável à ligação à rede de energia eléctrica de um centro electroprodutor fotovoltaico (de 1000 KW) a instalar no ..., Madeira. (Anexo 4 do RIT; PA, 301ss. e documentos juntos com o ppa)
5. Tendo o PIP em questão sido favorável, foi apresentado um pedido de atribuição de ponto de recepção de energia eléctrica, nos termos previstos no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 312/2001, de 10 de Dezembro, e esse ponto de recepção veio a ser concedido à Requerente em 20 de Abril de 2007 (cf. anexo 6 do RIT e documentos juntos com o ppa).
6. A atribuição do ponto de recepção conferia, apenas, a possibilidade de a Requerente solicitar a respectiva licença de estabelecimento, de forma a poder iniciar os trabalhos de instalação (artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 312/2001, de 10 de Dezembro). (Anexos 6 e 7 do RIT; PA, 312ss., 316ss., documentos juntos com o ppa e depoimento da testemunha da Requerente)
7. Dado que a Requerente se encontrava em situação de falência técnica no final de 2007 (com capitais próprios negativos no montante de € 13.880,08) e não dispunha de estrutura, nem de meios técnicos, precisava de reunir tais meios – financeiros e técnicos – necessários ao desenvolvimento do projecto de construção do parque solar fotovoltaico, sem os quais não podia solicitar a respectiva licença de estabelecimento e realizar as obras de instalação (a licença estava sujeita a um prazo de caducidade por força do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 312/2001, de 10 de Dezembro). (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral e depoimento da testemunha da Requerente)
8. No dia 28 de Março de 2008, a Requerente, a F..., S.A., a G..., SGPS, S.A., a H..., SGPS, S.A., a I..., SGPS, S.A., E... e D..., celebraram um Contrato de Parceria, para desenvolvimento de um conjunto de projectos. De acordo com este Contrato, os custos de desenvolvimento relativos aos projectos e, bem assim, os relativos à manutenção e gestão da A... ficaram a cargo, na sua totalidade e exclusivamente, da F..., S.A.. (Anexo 8 do RIT; PA, 319ss. e depoimento da testemunha da Requerente)
9. Também ficou convencionada a transformação da Requerente numa sociedade por quotas, com o nome A... LDA.. (Anexo 8 do RIT; PA, 319ss.)
10. Mais ainda, a F..., S.A. assumia o encargo de suportar integralmente o financiamento da realização do capital social, e aumentos, por parte de D... e E...– isto até ao momento de se iniciar a venda de energia eléctrica à rede pública. (Anexo 8 do RIT; PA, 319ss.)
11. Nos termos da Parceria, a Requerente obrigava-se a constituir sociedades anónimas independentes para cada projecto que viesse a obter autorização de construção e que fosse decidido pela Gerência levar por diante, e especificamente em cada projecto fotovoltaico essas sociedades anónimas independentes, sociedades-veículo, teriam uma distribuição de capital com 51% para a A..., 26% para a F..., S.A., 10% para D..., 10% para E... e 1% para cada um dos outros 3 sócios: G... SGPS, S.A., H... SGPS, S.A. e I... SGPS, S.A.. (Anexo 8 do RIT; PA, 319ss.)
12. Isso correspondia às exigências do regime do Decreto-Lei n.º 312/2001, de 10 de Dezembro, que estabelece o princípio geral da intransmissibilidade dos direitos adquiridos com a atribuição dos pontos de recepção, não impedindo, no entanto, a transmissão do ponto de recepção integrado no conjunto das instalações construídas após o respectivo licenciamento administrativo. (artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 312/2001 e depoimento da testemunha da Requerente)
13. Assim, iniciada a venda de energia eléctrica à rede pública, a Requerente obrigava-se a vender à F..., S.A. a totalidade das suas participações na(s) sociedade(s) anónima(s) constituída(s), por um valor igual ao montante total das suas participações em cada projecto. (Anexo 8 do RIT; PA, 319ss. e depoimento da testemunha da Requerente)
14. Em 4 de Abril de 2008 foi celebrada escritura pública de cessão de quota, aumento de capital e alteração do pacto social da Requerente A..., tendo sido admitida como sócia a sociedade F..., S.A. (Anexo 1 do RIT, PA, 282ss.).
15. A quota detida pela sócia única D..., no valor nominal de € 5.000,00, foi dividida em duas novas quotas: uma no valor nominal de € 4.900,00 que reservou para si, e outra, no valor nominal de € 100,00, que em conjunto com o seu marido E... cedeu à F..., S.A. pelo preço de € 50.000,00 (no Contrato de Parceria tinha-se estabelecido um “prémio de entrada na sociedade” de € 65.000,00, a pagar pela F..., S.A. a D...). (Anexo 1 do RIT, PA, 282ss., capítulo II, cláusula terceira, n.º 2).
16. Na mesma escritura foi aumentado o capital social da Requerente mediante a entrada em dinheiro no montante de € 5.000,00, subscrito e realizado pela sócia F..., S.A., que passou a deter uma quota no valor nominal de € 5.100,00. (Anexo 1 do RIT, PA, 282ss.)
17. Ou seja, a F..., S.A. passou a deter 51% do capital da Requerente, ficando a sócia D... com 49% do capital social. (Anexo 1 do RIT, PA, 282ss.)
18. A F..., S.A. passou depois a designar-se por J..., S.A., com o NIPC... (inicialmente participavam no capital da J..., S.A. a própria G..., SGPS, S.A., a I..., SGPS, S.A. e a H... SGPS, S.A.). (RIT)
19. Em 14 de Outubro de 2008 foi concedida à Requerente licença de estabelecimento da instalação do Parque Solar Fotovoltaico do ... (documentos n.os 12 e 13 juntos com o pedido de pronúncia arbitral. (Anexo 7 do RIT, PA, 129ss.)
20. Em 14 de Abril de 2009 foi celebrado um Acordo Parassocial (aditado em 31 de Outubro de 2009) entre a Requerente, a F..., S.A., K..., E... e D..., nos termos do qual se obrigaram a constituir uma sociedade comercial denominada L..., S.A. (NIPC...). (Anexo 13 do RIT; PA, 376ss.)
21. A L..., S.A. foi constituída na mesma data de 14 de Abril de 2009, e o seu objecto social é o desenvolvimento, produção, instalação e exploração de sistemas de energia renovável, construção e exploração de parque fotovoltaico e comercialização de energia. O seu capital social, no valor de de € 50.000,00, foi subscrito e realizado da seguinte forma: - E...- € 4.000,00; - D...- € 4.000,00; - K...- € 1.000,00; - A...- € 25.500,00; - F..., S.A. - € 15.500,00. (Anexo 11 do RIT; PA, 341ss.)
22. Nos termos desse Acordo Parassocial, os accionistas obrigaram-se a, em momento seguinte ao da constituição da sociedade L..., S.A., deliberar um aumento de capital social desta para € 500.000,00 e a entrada de um novo accionista, um Fundo de Investimento gerido pelo M..., S.A., ao qual a F..., S.A. cederia uma parte da sua participação social na L..., S.A. (Anexo 11 do RIT; PA, 341ss.)
23. E, num momento posterior, para assegurar os capitais próprios exigidos pelo esforço do investimento, todos os accionistas se obrigaram a proceder a um novo aumento de capital de € 1.600.000,00 ou outro adequado ao investimento projectado, mas nunca para valor inferior a 20% do investimento total do projecto, na proporção da sua participação (Anexo 11 do RIT; PA, 341ss.)
24. Neste âmbito, a F..., S.A., obrigou-se a colocar à disposição de E... e de D... os meios financeiros para que estes pudessem realizar o capital social da L..., S.A., e ainda os meios financeiros futuros indispensáveis a prover futuros aumentos de capital social – até ao momento de se iniciar a venda de energia eléctrica à rede pública (entrada em funcionamento do Parque Fotovoltaico), altura em que:
a. D... era obrigada a ceder à J..., S.A. acções correspondentes a 1% do capital social da L..., S.A., em compensação dos meios financeiros obtidos da J..., S.A. para realizar o capital e aumentos de capital daquela, sem qualquer contrapartida adicional;
b. A Requerente ficava obrigada a transmitir as suas acções na L..., S.A. à J..., S.A. sem que fosse devida qualquer importância suplementar. (Anexo 11 do RIT; PA, 341ss.)
25. Nos termos do aditamento de 31 de Outubro de 2009 ao Acordo Parassocial, após se conhecer a dimensão financeira efetiva do projecto, estimada em cerca de 8 milhões de euros, dos quais 2 milhões aportados com fundos próprios, ficou especificamente consignado que no momento em que o parque fotovoltaico do ... entrasse em funcionamento:
a. D... cederia 0,5% e E... os remanescentes 0,5% de acções da L..., S.A. à J..., S.A., em compensação dos meios financeiros obtidos da J..., S.A., sem qualquer contrapartida adicional;
b. A J..., S.A. disponibilizava à Requerente os meios financeiros para realizar o capital social e os aumentos de capital da L..., S.A.;
c. A Requerente transmitiria à F..., S.A. as suas acções na L..., S.A., nos moldes do ponto anterior. (Anexo 11 do RIT; PA, 341ss.)
26. Cumprindo o Acordo Parassocial, a J..., S.A. subscreveu 31% do capital social da L..., S.A. e realizou os 51% da Requerente e os 16% (8% + 8%) de D... e E... . (RIT)
27. Como derivava do Acordo Parassocial, a J..., S.A., para reforço da capacidade financeira da sociedade veículo – L..., S.A. – podia ceder a sua participação nesta a um novo parceiro. Este parceiro foi a N..., SGPS, S.A. (RIT)
28. Em 31 de Outubro de 2009, a J..., S.A. alienou à N..., SGPS, S.A., 20% da participação social que detinha na L..., S.A., pelo preço total de € 350.000,00. (RIT)
29. Em 4 de Novembro de 2009, a J..., S.A. alienou à N..., SGPS, S.A., 10% da participação social que detinha na L..., S.A., pelo preço total de € 1,00. (RIT)
30. Com esses dois negócios, a J..., S.A. passou a deter apenas uma participação directa de 1% no capital social da L..., S.A., e uma participação indirecta de 26%, via detenção de 51% do capital social da Requerente. (RIT)
31. Por seu lado, sem qualquer dispêndio próprio os sócios E... e D... passaram a deter uma participação total na L..., S.A. de 41%, (participação directa de 16% e uma participação indirecta, via Requerente, de 25%). (RIT)
32. Em 18 de Novembro de 2009 celebrou-se um Acordo de Realização de Fundos Próprios, e novamente a J..., S.A., não obstante a sua participação directa de somente 1% no capital social da L..., S.A., assumiu a obrigação de realizar prestações acessórias e suprimentos, em nome próprio e em nome da Requerente e de E... e D... . (Anexo 15 do RIT; PA, 410ss.)
33. O projecto de investimento do Parque Fotovoltaico do ... veio a ter um custo aproximado de 9,5 milhões de euros. Obteve-se um financiamento de € 7.000.000,00 na modalidade de “Project Finance” com garantia hipotecária sobre os terrenos rústicos adquiridos pela L..., S.A. por € 293.000,00, avais pessoais e penhor de acções; e, para assegurar a realização de fundos próprios, foi apresentada uma garantia bancária autónoma no valor de € 2.000.000,00, subscrita exclusivamente pela J..., S.A., não pelos demais sócios, e nomeadamente não por E... e D... . Além dela, foram prestadas diversas garantias no âmbito do financiamento (como Penhor financeiro das acções, Registo do penhor financeiro, Direitos inerentes, Venda judicial ou extra-processual das acções, Promessa de penhor sobre novas acções, Penhor de direitos accionistas, Penhor de contas bancárias, Penhor de activos, Cessão de créditos com escopo de garantia, e Procuração irrevogável). (RIT e documento nº 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral)
34. Em 7 de Outubro de 2009 foi emitido o alvará de licença de obras. (documento nº 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral; PA, 121ss.)
35. Cumprindo o acordado no Contrato de Parceria, e no Acordo Parassocial e respectivo aditamento, a J..., S.A. desenvolveu todas as tarefas previstas e necessárias à instalação do Parque Fotovoltaico de ...: obteve a tarifa garantida bonificada para a Região da Madeira a 13 de Outubro de 2008; obteve a Licença de Estabelecimento, emitida pela DRCIE a 14 de Outubro de 2008, depois de validado o projecto elaborado pela O..., negociou o Contrato de Cessão a título precário e oneroso celebrado com a P... S.A., no dia 3 de Agosto de 2009, para instalação do Parque Fotovoltaico de ...; obteve o alvará de obra, emitido em 7 de Outubro de 2009 pela Câmara Municipal de ...; celebrou, após entrega do projecto de execução, o Acordo com a Q..., S.A., a 12 de Novembro de 2009; negociou o financiamento de 18 de Novembro de 2009 com várias entidades bancárias. (documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral; PA, 123ss.)
36. A tarifa bonificada para a Região da Madeira, obtida a 13 de Outubro de 2008 e garantida por um período de 15 anos, foi tida como essencial para a viabilidade financeira do Parque Fotovoltaico de ..., na medida em que, sem esta tarifa, a electricidade teria de ser vendida no mercado a um preço consideravelmente inferior, nos termos do Decreto-Lei n.º 189/88, de 27 de Maio e do Anexo II do Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de Fevereiro, para que remete a cláusula 14.ª do Acordo de 12 de Novembro de 2009. (documento n.º 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral e depoimento da testemunha da Requerente)
37. Com efeito, a Q..., S.A. ficou obrigada a adquirir a electricidade produzida a essa tarifa (pelo acordo celebrado com a J..., S.A. em 12 de Novembro de 2009), o que garantia o rendimento do projecto, perspectivando-se a possibilidade de recuperar, num prazo razoável, os custos da obra e dos equipamentos. (documento nº 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral; PA, 133ss. e depoimento da testemunha da Requerente)
38. Em 27 de Abril de 2010 foi remetida à L..., S.A. a Licença de Exploração da Instalação de Produção Independente de Energia Eléctrica do Parque Solar Fotovoltaico instalado no sítio da ..., ..., no ... . (Anexo 9 do RIT, documento nº 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral; PA, 119ss., 335ss.)
39. Depois de uma deliberação nesse sentido tomada em 30 de Junho de 2010, em 2 de Julho de 2010 a Requerente alienou, a favor da sociedade J..., S.A., a totalidade da participação social (51% do capital, 5100 acções) que detinha na sociedade L..., S.A., pelo preço de € 5,00 por acção (preço total de € 25.500,00), tendo a Requerente garantido à J..., S.A. o direito de evicção. (Anexo 2 do RIT; PA, 290ss.)
40. O Contrato de Compra e Venda de Acções celebrado entre a Requerente e a J..., S.A., de 2 de Julho de 2010, menciona que o mesmo é celebrado, “Considerando os compromissos assumidos entre a «A... », seus sócios, e a «F... » no âmbito do Contrato de Parceria de 28 de Março de 2008” e “Considerando o Acordo Parassocial celebrado entre as aqui primeira e segunda outorgantes em 14 de Abril de 2009 e a Alteração/Aditamento desse Acordo Parassocial de 31 de Outubro de 2009”. (Anexo 2 do RIT; PA, 290ss.)
41. Ainda de acordo com o Contrato de Compra e Venda de Acções de 2 de Julho de 2010, o seu título “QUARTO” dispõe que o “preço global convencionado [de venda das ações] é o correspondente ao valor nominal das acções (€ 25.500,00), que a «A... » declara devidamente compensado com as importâncias disponibilizadas pela «F... » a favor da «A... » no ato da realização da participação desta no capital social da «L... »”. (Anexo 2 do RIT; PA, 290ss.)
42. As participações existentes na L..., S.A. à data da alienação da participação detida pela Requerente eram as seguintes (cf. RIT):
a) A Requerente detinha uma participação directa no capital da L..., S.A. de 51%;
b) A J..., S.A. detinha uma participação total de 27% [1% + 26%] (quota de 51% na Requerente, logo participação indirecta de 26% [0,51 * 0,51] + participação directa de 1%);
c) D... detinha uma participação total de 33% (participação directa de 8% e uma participação indireta, via A..., de 25% [0,49 * 0,51]);
d) E... detinha uma participação directa de 8% (logo, D... e E... detinham uma participação total de 41% [33% + 8%]);
e) K... detinha uma participação directa de 2%.
43. Na declaração anual de informação contabilística e fiscal respeitante ao exercício de 2010 da Requerente não consta qualquer referência à existência de operações entre a J..., S.A. e a Requerente [A...], apesar de a J..., S.A. deter uma participação de 51% no capital da Requerente e de esta ter vendido àquela uma participação social (os 51% que detinha na L..., S.A.). (RIT)
44. A alienação das participações sociais detidas pela Requerente na L..., S.A. a favor da J..., S.A. correspondeu ao cumprimento do acordado no Contrato de Parceria (de 28 de Março de 2008) e no aditamento ao Acordo Parassocial (de 31 de Outubro de 2009), que impunha essa alienação quando ocorresse o prazo previsto no artigo 16.º do Decreto-Lei nº 312/2001, no momento em que o parque fotovoltaico do ... entrasse em funcionamento (Anexo 8 do RIT; PA, 319ss. e Anexo 11 do RIT; PA, 341ss.)
45. Na cláusula 4ª, 5 do Contrato de Parceria, estabelecia-se que “Quer nos projectos fotovoltaicos, quer nos projectos de biomassa e/ou projecto integrado, a A... LDA obriga-se a vender à F... [agora J..., S.A.] a totalidade das suas participações referidas em 3 e 4, por um valor igual ao montante total das suas participações em cada projecto, a partir do momento da ocorrência do prazo previsto no Artigo 16º do Decreto-Lei nº 312/2001”. (Anexo 8 do RIT; PA, 319ss.)
46. No Acordo Parassocial/Aditamento, estabeleceu-se que “9. (…) A “A..., LDA. ”transmitirá obrigatoriamente à “F...”, no momento em que o parque fotovoltaico do ... entrar em funcionamento, as suas acções na L..., S.A., sem que na sequência e por causa dessa transmissão seja devida, directa ou indirectamente, aos outorgantes, E... e/ou D..., enquanto sócios da “A...”, LDA.” ou à “A..., LDA., enquanto tal, qualquer importância suplementar, uma vez que a contrapartida referida no número anterior já engloba e consome a compensação de todos os valores associados. [§] 10. A presente cláusula deste Acordo Parassocial adapta e substitui, no que toca à L..., SA, o que dispõe nos pontos 4., 4.1., 4.2., 4.3 e 5 do Contrato de Parceria (…)”. (Anexo 11 do RIT; PA, 341ss.)
47. A alienação das participações sociais detidas pela Requerente na L..., S.A. a favor da J..., S.A. foi objecto de contestação pela sócia D... . (RIT)
48. Da declaração de voto da sócia D..., na Assembleia Geral da Requerente realizada em 28 de Março de 2011 (acta nº 17), consta, entre outras, a seguinte passagem: “Além do mais, como evidência do grande negócio lucrativo que a F..., S,A. pretende realizar em quase exclusivo para si própria, com a conivência da administração da L..., S.A, desprezando o conteúdo do Acordo Parassocial existente e, assim, "lesar' outros acionistas, nomeadamente com o Acordo Parassocial/Aditamento do Contrato da Sociedade da L..., S.A, verifica-se que, em conjunto, os acionistas E... e D... vão ceder legalmente à F..., SA, 1% das suas ações que detêm na L..., S.A. e cerca de 25% [49% x 51%] das ações que, indiretamente, detêm na mesma L... S.A., via A..., Lda. De acordo com a sócia, os acionistas E... e D... estão a oferecer a F..., S.A., 26% [1% + 25%] das ações que detêm na L..., S.A., em troca do pagamento dos fundos próprios que a F..., S.A. supostamente efetuou em nome dos mesmos, no valor de cerca de € 360.000,00, acrescidos de € 7.500,00 para a realização do capital social inicial [15% de € 50.000,00). Sabendo-se que 26% das ações só pelo montante do investimento [investimento total de cerca de € 9.200.000,00), tem um valor de mercado na ordem dos € 2.400.000,00 conclui-se que, o que a F..., S.A. "oferece" aos acionistas E... e D... é completamente insignificante, comparativamente com o valor que os mesmos acionistas dão a F... S.A.. A F..., S.A. pretende ficar com a exclusividade da gestão do parque fotovoltaico e da totalidade do valor relativo ao Contrato de Desenvolvimento, o que, conforme alegações da sócia, é completamente inaceitável, ilegal e desprovido de idoneidade e moral, sabendo que estes dois contratos têm um valor superior a € 224.000,00, na parte que cabe aos acionistas E..., em conjunto, e de um montante superior a € 714.000,00 no que diz respeito à A..., Lda.” (pp. 72-73 / 145 da Sentença de 15 de Março de 2018 do TAF de …, Proc. .../18...B… - documento nº 23 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
49. A alienação das participações sociais detidas pela Requerente na L..., S.A. a favor da J..., S.A. foi objecto de um Procedimento Cautelar Especificado de Suspensão de Deliberação Social contra a Requerente, intentado por E... e D... (Processo n.º .../10...T…). A Providência foi indeferida. (documentos nºs 16, 17 e 18 juntos com o pedido de pronúncia arbitral)
50. Nesse Procedimento Cautelar foi alegado que “tal deliberação afecta os direitos especiais de gerência da requerente D... e que tal deliberação prejudica do ponto de vista financeiro a requerida”.
51. Depois intentaram os mesmos E... e D... uma acção declarativa comum, na qual peticionaram a nulidade da deliberação de 30 de Junho de 2010 (processo n.º .../12...T…), acção que veio a ser julgada improcedente. (documentos nºs 20, 21 e 22 juntos com o ppa)
52. Nas acções foi questionado o valor pelo qual a Requerente alienou à J..., S.A. a participação que detinha na L..., S.A.: “Tendo incansavelmente repetido que a deliberação tomada, ao ter como fundamento estar a querer fazer cumprir uma parte do acordo parassocial e do contrato de parceria, e não as outras, tem um conteúdo abusivo, prosseguindo os objectivos de sucção de recursos da L... SA por parte da F... SA, de R..., K..., B..., G..., SGPS SA, e I... SGPS SA, prejudicando claramente os accionistas ré A... e os demandantes” (Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 2016, p. 5, documento nº 22 junto com o pedido de pronúncia arbitral)
53. Mais tarde, em 31 de Janeiro de 2011, a Requerente alienou, a favor da sociedade J..., S.A., a totalidade da participação social (51% do capital) que detinha na sociedade S..., S.A., a outra “sociedade-veículo”, que resultou do Contrato de Parceria (uma operação que deu lugar a uma liquidação de IRC distinta, porque reportada ao exercício de 2011, referente ao Parque Fotovoltaico do ...).
54. Resumo cronológico de alguns dos factos, como consta do RIT:
55. A Requerente foi sujeita a acção inspectiva externa ao seu exercício de 2010, iniciada em 6 de Dezembro de 2012, com base na Ordem de Serviço n.º OI2012... (RIT).
56. Constatando os Serviços de Inspeção que a declaração anual de informação contabilística e fiscal da Requerente não continha qualquer referência à existência de operações com entidades relacionadas, relativas ao exercício de 2010, a Requerente foi notificada, em 25 de Fevereiro de 2013, para que demonstrasse que nas operações subsumíveis ao artigo 63.º, n.º 4, a) e b) do CIRC tinham sido contratados, aceites e praticados termos e condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis; apresentando, para o efeito, todos os elementos a que se refere o artigo 63.º, 6 do CIRC, designadamente “… a documentação respeitante à política adoptada em matéria de preços de transferência, incluindo as diretrizes ou instruções relativas à sua aplicação, os contratos e outros atos jurídicos celebrados com entidades que com ele estão em situação de relações especiais, com as modificações que ocorram e com informação sobre o respectivo cumprimento, a documentação e informação relativa àquelas entidades e bem assim às empresas e aos bens ou serviços usados como termo de comparação, as análises funcionais e financeiras e os dados sectoriais, e demais informação e elementos que tomou em consideração para a determinação dos termos e condições normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes e para a seleção do método ou métodos utilizados.”. (Anexos 17 e 18 do RIT; PA, 449ss.)
57. Tendo as alegações da Requerente sido no sentido de que a sua participação nos investimentos se deveu a imperativos legais, e que a entidade promotora dos mesmos foi a J..., S.A., empresa que concentrou, de acordo com os termos dos acordos parassociais, todo o esforço financeiro e económico de desenvolvimento dos projectos, foi entendido pela Inspecção Tributária que não tinha sido justificada nem demonstrada a aderência ao Principio de Plena Concorrência das condições estabelecidas na venda das participações detidas na L..., S.A. à J..., S.A. (RIT).
58. No projecto de Relatório da Inspecção Tributária (PA, 1ss.) vinha proposto o acréscimo à matéria colectável da Requerente, em sede de IRC e relativamente ao exercício de 2010, do montante de € 569.517,00, decorrente de um ajustamento em sede de preços de transferência. (documento 3 junto com o ppa e PA).
59. A AT entendia que se tinha desrespeitado, na alienação das participações sociais detidas pela Requerente na L..., S.A. a favor da J..., S.A., o princípio da plena concorrência, e procurou remediar a situação recorrendo, ela própria, ao “método do preço comparável do mercado”, para sustentar que o valor de mercado das acções da sociedade L..., S.A. correspondia à média dos preços praticados nas vendas de 31 de Outubro e 4 de Novembro de 2009, ou seja € 116,67 por acção, e não os € 5,00 declarados e correspondentes ao valor nominal. (documento 3 junto com o ppa e PA).
60. A Requerente nos exercícios anteriores aos verificados, registou um volume anual de vendas líquidas e outros proveitos inferior a € 3.000.000,00, enquadrando-se na dispensa de manter organizado o processo de documentação fiscal respeitante à política de preços de transferência. (RIT e artigo 63.º, n.º 6 do CIRC e artigo 13.º, n.º 3 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro)
61. Segundo o RIT “Do mesmo modo estava dispensada de manter, de forma organizada, elementos suficientes o bastante para provar [ver nº 1 do artigo 13º da portaria]:
a) A paridade de mercado nos termos e condições acordados, aceites e praticados nas operações efectuadas com entidades relacionadas;
b) A selecção e utilização do método ou métodos mais apropriados de determinação dos preços de transferência que proporcionem uma maior aproximação aos termos e condições praticados por entidades independentes e que assegurem o mais elevado grau de comparabilidade das operações ou séries de operações efectuadas com outras substancialmente idênticas realizadas.
Contudo, aquela dispensabilidade não obsta à apresentação, quer da informação quer da prova, quando solicitada, uma vez que se está perante operações financeiras efectuadas entre dois sujeitos passivos de imposto sobre o rendimento – J..., S.A. e A..., Lda –, com a qual esta última está em situação de relações especiais. Consequentemente, há incumprimento das obrigações estatuídas na lei para essa situação, designadamente o artigo 63º do CIRC e Portaria 1446-C/2001, de 21.12.
62. Quanto ao método para determinar o preço de plena concorrência escolheram os Serviços de Inspecção Tributária, face às características das operações e à informação disponível, o “Método do Preço Comparável de Mercado” (MPCM), ao abrigo do previsto no artigo 4.º, n.º 2 da Portaria 1446-C/2001, de 21 de Dezembro. (RIT)
63. Procederam, seguidamente, os Serviços de Inspecção Tributária à identificação de negócios que consideraram de substância económica semelhante aos efectivamente praticados, considerando os que respeitam ao mesmo investimento – parque fotovoltaico do ... com uma potência de 2 MW e parque fotovoltaico do ..., com uma potência de 6 MW. Considerou-se que as características dos activos subjacentes às operações praticadas eram as mesmas, assim como os riscos assumidos e o enquadramento económico – e daí terem feito a comparação com os negócios de 31 de Outubro e 4 de Novembro de 2009, nos quais a J..., S.A. vendeu participações na L..., S.A. à N..., SGPS, S.A. – acções de valor nominal de € 5,00 que foram então transacionadas ao preço médio de € 116,67. (RIT)
64. Segundo o RIT, a comparabilidade assentou no facto de se tratar de um negócio celebrado entre entidades independentes, não obstante respeitarem ao mesmo investimento, ao mesmo activo subjacente, aos mesmos riscos assumidos e ao mesmo enquadramento económico da transacção de 2 de Julho de 2010.
65. O RIT conclui que o preço praticado pela Requerente nas operações vinculadas de venda das participações detidas na L..., S.A. não respeitou o princípio de plena concorrência, considerando haverem provas sobre operações realizadas entre entidades independentes com características idênticas às operações vinculadas em análise que podem constituir comparáveis para aferição do preço de mercado adequado às mesmas, num contexto de aplicação do Método do Preço Comparável de Mercado.
66. O RIT conclui também que os elementos obtidos permitiram demonstrar que foram praticadas condições diferentes daquelas que seriam praticadas entre entidades independentes, pelo que é devida uma correcção positiva ao lucro tributável do exercício de 2010, nos termos do artigo 63.º, n.º 8 do CIRC e artigo 3.º, n.º 1 da Portaria 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, por forma a que os valores resultantes não sejam diferentes do que seria apurado na ausência de relações especiais.
67. Acrescentando-se no RIT que, relativamente à J..., S.A., não seria efectuado qualquer ajustamento por se tratar de um investimento financeiro que não tinha qualquer impacto imediato na contabilidade da empresa, em termos de resultados.
68. Em conclusão, o RIT propõe uma correcção quantificada nos seguintes termos:
69. Em cumprimento do artigo 60.º da LGT e artigo 60.º do RCPIT procedeu-se, através dos ofícios n.ºs ... e ..., ambos de 6 de Novembro de 2013, à notificação da Requerente para, querendo, exercer o direito de audição sobre o projeto de decisão (documento nº 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral). Foi-lhe concedido o prazo de 15 dias e remetido o projeto de relatório e respetivos anexos.
70. Em sede de exercício do direito de audição, no dia 25 de Novembro de 2013 a Requerente manifestou a sua discordância relativamente a essa metodologia de cálculo, sustentando não haver comparabilidade entre as operações de Outubro / Novembro de 2009 e a de Julho de 2010, que não constituiria uma referência credível a valores “de mercado” (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral; PA, 70ss.).
71. Após análise do direito de audição, consideraram os Serviços de Inspecção Tributária, em conclusão, que: “Da análise efetuada à audição interposta conclui-se que, os factos e fundamentos apresentados pelo s.p. ao longo dos pontos 1 a 206, não mudam em nada o rumo das correções propostas e constantes do projeto de relatório. [§] Cabia ao s.p., o ónus de provar que as condições ou termos praticados relativamente às operações com a J..., S.A. respeitavam o princípio da plena concorrência. Como não o fez coube à A.T., conforme o disposto no n.º3 do artigo 77º da LGT fundamentar as correções à matéria coletável. Ao longo do projeto de relatório foi demonstrado o cumprimento dos requisitos de fundamentação previstos no n.º3 do artigo 77º da LGT. [§] Assim, a determinação da matéria tributável corrigida dos efeitos das relações especiais teve em conta os seguintes requisitos: “a] Descrição das relações especiais; b] Indicação das obrigações incumpridas pelo sujeito passivo; c] Aplicação dos métodos previstos na lei, podendo a AT utilizar quaisquer elementos de que disponha e considerando-se o seu dever de fundamentação dos elementos de comparação adequadamente observado ainda que de tais elementos sejam expurgados os dados susceptíveis de identificar as entidades a quem dizem respeito; d] Quantificação dos respectivos efeitos.” [§] Por esse motivo propõe-se que sejam mantidas as correções inicialmente propostas constantes do relatório inicial de inspeção e que estão reproduzidas nos capítulos anteriores, com os fundamentos nele constantes.” (documento nº 5 junto com o ppa; PA, 196ss.)
72. A Requerente foi notificada, em 20 de Dezembro de 2013, da liquidação de IRC n.º 2013..., a qual teve origem na referida acção inspectiva externa ao exercício de 2010 (documento nº 1 junto com o ppa; provado por acordo).
73. Resultou da respectiva Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013... a importância global a pagar de € 157.851,72, da qual € 14.300,10 respeitante a juros compensatórios e € 143.551,62 a IRC (documentos nºs 1 e 2 juntos com o ppa).
74. A Requerente apresentou, em 19 de Maio de 2014, a Reclamação Graciosa autuada sob o n.º ...2014... contra a liquidação em crise. O Projecto de Decisão, notificado em 1 de Setembro de 2014, propunha o indeferimento dessa Reclamação Graciosa. A Requerente exerceu em 19 de Setembro de 2014 o Direito de Audição, tendo a Reclamação Graciosa vindo a ser indeferida na sua totalidade, por despacho proferido no dia 5 de Novembro de 2014 e notificado à Requerente no dia 7 de Novembro de 2014. (documentos nºs 24, 25, 26 e 27 juntos com o ppa; PA, 465ss., 667ss., 698ss., 812ss.)
75. Não se conformando, a Requerente apresentou, em 5 de Dezembro de 2014, Recurso Hierárquico da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, o qual foi indeferido por despacho proferido a 11 de Abril de 2018, e notificado à Requerente no dia 16 de Abril de 2018. (documentos nºs 28 e 29 juntos com o ppa; PA, 852ss., 1316ss.)
76. Assim, em 13 de Julho de 2018, cumprindo o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, a) e 10.º do RJAT, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral.
III.B. Factos que se consideram não provados
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova, e cuja veracidade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada. Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.
III.C. Motivação da decisão da matéria de facto
1. No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se nas posições assumidas pelas partes, na análise crítica da prova documental junta aos autos e, sempre que aplicável, nos depoimentos das testemunhas inquiridas, que depuseram com objetividade e consistência e revelando conhecimento direto e pessoal dos factos relatados. A primeira testemunha, B..., foi indicada pela Requerente e interveio no processo de negociação da parceria e na instalação do Parque Fotovoltaico de ... . A testemunha indicada pela Requerida, C..., é técnica de inspecção tributária e acompanhou o procedimento tributário que está na origem da liquidação de IRC em crise.
2. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de Direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, a) e e), do RJAT.
IV. POSIÇÕES E ARGUMENTOS DAS PARTES
IV.A. Posição da Requerente
a) A Requerente sustenta que a alienação das participações sociais detidas por ela na L..., S.A. a favor da J..., S.A. correspondeu a um justo valor de mercado, porque resulta de um equilíbrio de prestações anteriormente acordado (no Contrato de Parceria, de 28 de Março de 2008, e no aditamento ao Acordo Parassocial, de 31 de Outubro de 2009), e que espelha o investimento realizado pela J..., S.A. até ao momento da alienação em benefício dos demais sócios, incluindo entre estes a Requerente.
b) No seu entendimento, o equilíbrio reflectido nesse preço compreende-se numa visão global e integrada dos diversos passos que conduziram do Contrato de Parceria, em 28 de Março de 2008, até à alienação das participações sociais da Requerente na L..., S.A., em 2 de Julho de 2010 – e que podem resumir-se numa fórmula simples: a J..., S.A. não tinha que pagar muito mais pela aquisição dessas participações, porque até àquele momento fora ela praticamente a pagar tudo. Na medida em que tudo o que era essencial para que o projecto existisse e fosse executado não estava garantido e foi a J..., S.A. quem o garantiu, não poderia exigir-se que a J..., S.A. tivesse que pagar como preço de aquisição a valorização que apenas resultou da sua própria actividade! Em suma, não há, para a Requerente, qualquer fundamento económico ou financeiro que justificasse a obtenção de uma mais-valia por ela própria aquando da transmissão das participações na L..., S.A. à J..., S.A..
c) Nem sequer se poderia dizer que houvesse que compensar a Requerente pelo valor do PIP, ou da atribuição de um ponto de recepção, pois sem todo o investimento suportado pela J..., S.A. todo o projecto não representaria qualquer valor económico relevante.
d) Tendo-se verificado que a Requerente não detinha os meios financeiros necessários ao desenvolvimento do Projecto, os quais foram fornecidos pela J..., S.A., e comprovando-se que a Requerente adquiriu uma percentagem de 51% no capital da L..., S.A. apenas porque a J..., S.A. assumiu a realização do capital social, e ainda porque legalmente a Requerente não poderia deter uma participação que não fosse considerada maioritária, o preço da transmissão das participações a favor da J..., S.A. tinha que ser encontrado numa criteriosa ponderação de todos esses factores.
e) O preço de venda teria sido determinado em função do exacto valor realizado pela J..., S.A., em nome e por conta da Requerente, no capital social da L..., S.A., equivalente a 51% desse capital ao valor nominal da participação, ou seja, € 25.500,00.
f) A Requerente sustenta, pois, que a transmissão das acções se destinava exclusivamente à compensação do capital social inicial da nova sociedade realizado pela J..., S.A., bem como dos fundos próprios realizados pela J..., S.A. em nome e por conta da Requerente – e daí que, ao contrário de se aproximar de “operações comparáveis”, a operação de alienação tenha sido fixada, nos seus contornos e no seu preço, em momentos anteriores – os do Contrato de Parceria e do aditamento ao Acordo Parassocial.
g) Se porventura tivesse ocorrido alguma valorização da L..., S.A. desde o momento da sua constituição (em 14 de Março de 2009) até ao da sua alienação pela Requerente à J..., S.A. (em 2 de Julho de 2010), não só essa valorização teria sido posterior ao momento em que foi fixado o preço, como também a Requerente nunca fora obrigada a desenvolver qualquer esforço financeiro tendo em vista essa eventual valorização da L..., S.A.; e mesmo que tivesse sido, compreende-se que não fosse factor relevante, para o preço de uma transacção entre accionistas, uma valorização suportada pelos próprios accionistas.
h) Acresce que, no entender da Requerente, o preço nem sequer lhe foi pago, mas sim directamente a D... e a E... – que, por força dos sucessivos pagamentos suportados, em nome deles, pela J..., S.A., aquando de realizações de capital social, de prestações acessórias e de suprimentos, foram adquirindo créditos sobre esses montantes, a custo zero.
i) Estaria assim devidamente demonstrada, para a Requerente, a justificação económica da transmissão, pelo valor nominal, das participações sociais que ela detinha na L..., S.A.; e que, face às obrigações assumidas pela J..., S.A., não poderia ser exigido a esta o pagamento de um preço superior ao que um terceiro não relacionado estaria na disposição de suportar em idênticas condições.
j) A aceitar-se o valor de € 595.017,00 proposto pela AT, isso significaria que a J..., S.A., para lá de todas as despesas em que tinha incorrido, pagaria ainda a D..., sócia da Requerente, a quantia de € 291.558,33 (49% de € 595.017,00).
k) Esse encargo adicional repercutiria negativamente no modelo financeiro, impedindo, na prática, a J..., S.A. de recuperar o seu investimento – dada a limitação temporal do regime de tarefa bonificada (a terminar no 1.º semestre de 2025). (ver “Modelo Financeiro”, documento n.º 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral)
l) Para refutar a ideia de que a alienação das participações sociais na L..., S.A., pela Requerente à J..., S.A., se fez a um preço inferior àquele que seria praticado por entidades independentes, a Requerente lembra que a aplicação do regime dos preços de transferência não se pode bastar com a mera demonstração de ter havido uma transacção entre entidades relacionadas e uma outra, tida como comparável, entre entidades não relacionadas; sendo igualmente necessário demonstrar-se que foram, numa determinada operação entre entidades relacionadas, praticados termos e condições diferentes dos que foram, ou seriam, usados em operação comparável, realizada entre entidades não relacionadas – o que implica um duplo juízo: por um lado, sobre os termos e condições efectivamente praticados e, por outro, sobre os termos e condições que se crê deverem ser usados como referência.
m) Ou seja, impõe-se num primeiro momento a demonstração de que o preço não foi razoável, para só depois se procurar descortinar, com base em elementos e estudos de comparabilidade robustos e tecnicamente inatacáveis, uma subavaliação resultante das relações especiais existentes entre os contraentes.
n) No entender da Requerente, cabia à AT fazer a demonstração de que se tinha violado o princípio da Plena Concorrência pelo simples facto de a transacção se ter realizado pelo valor nominal das participações e não pelo valor de mercado das sociedades transacionadas (que, no entender da AT, não poderia deixar de reflectir as elevadas quantias investidas no desenvolvimento dos parques fotovoltaicos, assim como as subjacentes expectativas de receitas futuras). Mas, no entender da Requerente, não o fez, não chegando sequer a apurar o valor contabilístico substancial da L..., S.A. à data da alienação das participações da Requerente.
o) Para lá da falta de demonstração pela AT de que o preço não era razoável, “não era o do mercado”, a Requerente sustenta ainda que fica também por demonstrar que outro preço, além do efectivamente praticado, poderia ter sido estabelecido nas circunstâncias específicas, e particulares, que levaram à respectiva definição.
p) Em consequência, considera a Requerente ser insustentável a obtenção de uma mais-valia, por parte da Requerente, no montante de € 569.517,00, quando (i) a sua intervenção e contribuição para o desenvolvimento e valorização da L..., S.A. foi praticamente nula, (ii) o preço pela aquisição das participações sociais foi pago aos accionistas D... e E..., (iii) a ligação da Requerente a esta última sociedade apenas se deveu a constrangimentos legais, motivo pelo qual foi desde logo acordado que a participação seria apenas temporária, inexistindo qualquer fundamento económico ou financeiro que justificasse a obtenção de uma mais-valia por parte da Requerente aquando da transmissão das participações em questão.
q) Relativamente às relações especiais, a Requerente sustenta que a fixação do preço de alienação das participações sociais na L..., S.A. foi determinada num contexto em que inexistiam relações especiais entre a Requerente e a J..., S.A. – especificamente, no Contrato de Parceria, em 28 de Março de 2008, antes da entrada da J..., S.A. no capital social da Requerente, a qual só teria lugar em 4 de Abril de 2008. Retirando daí a ilação de que ao negócio é inaplicável o disposto no artigo 63.º do CIRC, em sede de regras de preços de transferência.
r) Além disso, a Requerente alega que não existe qualquer base de “comparabilidade” que permita determinar-se um “valor de mercado” diverso daquele que foi praticado, nos termos e para os efeitos do artigo 63.º, n.º 3 do Código do IRC e do artigo 4.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, pela aplicação dos “métodos tradicionais” (1. método do preço comparável de mercado; 2. método do preço de revenda minorado; 3. método do custo majorado), bem como os designados “métodos não tradicionais” (4. método do fraccionamento do lucro; 5. método da margem líquida da operação).
s) A Requerente lembra que, nos termos da Portaria n.º 1446-C/2001, o método do preço comparável de mercado exige que as características económicas e financeiras das operações consideradas sejam suficientemente comparáveis, não devendo existir diferenças entre as situações comparadas susceptíveis de afectar a condição a analisar, nomeadamente o preço.
t) No mesmo sentido iriam as Guidelines da OCDE, que recomendam uma análise funcional do valor económico dos bens comparáveis, já que o método do preço comparável tenderia a perder um pouco da sua fiabilidade, enquanto substituto de uma negociação de plena concorrência, sempre que as características das operações no mercado aberto com substancial incidência sobre o preço praticado entre empresas independentes não fossem todas elas comparáveis.
u) Ora, segundo a Requerente, seria precisamente uma análise funcional que favoreceria o exame dos compromissos contratuais assumidos pelas partes no caso vertente, uma vez que tais compromissos contratuais que estiveram na origem da transacção das participações sociais, objecto de comparação, assumiram uma importância decisiva na definição do valor económico pelo qual as participações foram transmitidas. Sendo que, como enfatiza, é importante reter que o método do preço comparável de mercado só garantirá resultados seguros num quadro de grande comparabilidade, ou seja, quando nenhuma das diferenças que possam ocorrer entre as operações em análise for susceptível de exercer uma influência material e relevante sobre o preço de mercado, ou possam ser realizados ajustamentos suficientemente precisos para eliminar os efeitos materiais dessas diferenças (uma comparabilidade, pois, cumulativamente verificada no objecto, termos e condições da operação, para além da análise funcional das entidades intervenientes).
v) Por isso entende a Requerente que a AT não podia ter assumido como operações comparáveis as realizadas entre a J..., S.A. e a N..., SGPS, S.A., por um lado, e as realizadas pela própria Requerente e a J..., S.A., por outro.
w) Além disso, a Requerente chama a atenção para o facto de que um dos elementos que deverão ser valorados para efeitos de aferição do grau de comparabilidade entre operações corresponde, nos termos do artigo 5.º, b) da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, ao risco assumido pelas partes intervenientes nas operações em comparação – bastando isso, no seu entender, para bloquear a comparabilidade, visto que os riscos assumidos nas diversas operações que foram comparadas é absolutamente distinto.
x) No caso vertente, a Requerente não assumiu qualquer risco inerente à real valorização do activo vendido, na medida em que não realizou capital algum, não contribuiu com quaisquer fundos próprios, e nem sequer subscreveu qualquer tipo de garantia tendo em vista garantir o financiamento do projecto.
y) Assim, perante a ausência de quaisquer riscos para a Requerente, que corriam (continuavam a correr) por conta da adquirente, o preço que a J..., S.A. estava disposta a pagar seria, forçosamente, mais reduzido.
z) Por isso o preço encontrado nesta transacção não pode corresponder ao preço exigido pela J..., S.A. aquando da transmissão das participações sociais a favor da N..., SGPS, S.A., atendendo, precisamente, aos riscos assumidos pela J..., S.A. e pela própria N..., SGPS, S.A..
aa) Pior, no caso da alienação de participações sociais pela J..., S.A. à N..., SGPS, S.A. há dois negócios distintos com preços bem diferentes – o que, no entender da Requerente, não foi devidamente ponderado pela AT: na primeira transmissão, no dia 31 de Outubro de 2009, cada acção foi transmitida pelo valor de € 175,00, enquanto na segunda transmissão, em 4 de Novembro de 2009, cada acção foi transmitida pelo valor de € 0,001 – uma disparidade extrema de valores, que a AT não se preocupou em entender, limitando-se a utilizar, para referência como “valor de mercado”, uma média desses valores extremos. O que, por si só, e para lá da artificialidade desse valor médio, bastaria para demonstrar que há valores de mercado muito díspares, e que, portanto, a requerida comparabilidade é um exercício difícil, senão mesmo ocasionalmente impossível, conduzindo a valores arbitrários.
bb) Nas suas Alegações, a Requerente retoma os argumentos expendidos no seu Pedido Inicial e no Requerimento apresentado em 12 de Dezembro de 2018.
cc) Como novidade, sustenta a Requerente que a prova testemunhal oferecida por B... demonstrou que, se o espírito da negociação desde o seu início implicasse a transmissão, a favor da J..., S.A., da participação social detida na L..., S.A. pela Requerente, por um qualquer outro valor que não pelo valor nominal, então os termos e condições acordados no âmbito da globalidade das operações, nomeadamente os riscos assumidos e fundos próprios aportados, sempre teriam sido distintos.
dd) E insiste ainda ter ficado claro, no seu entendimento, e nos termos do n.º 5 da Cláusula Quarta do Contrato de Parceria, que a Requerente se obrigava a alienar a totalidade do capital social que viesse a deter na sociedade veículo – no caso, L..., S.A. – logo que fosse legalmente admissível (após o respectivo licenciamento administrativo – cfr. artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 312/2001, de 10 de Dezembro), o que alegadamente demonstraria que a participação detida pela Requerente naquela sociedade tinha uma natureza meramente provisória, atentas as restrições legais já identificadas; e que, se tal tivesse sido legalmente possível, a J..., S.A. teria ficado logo com a participação de 51% na L..., S.A., ou a alienação pela Requerente teria sido realizada logo naquele momento.
ee) Por fim, a Requerente volta a sublinhar que, se se aceitasse o valor das correcções efectuadas pela Autoridade Tributária, relativamente ao valor da transmissão das participações sociais detidas pela Requerente a favor da J..., S.A., no montante € 595.017,00, tal significaria que, uma vez que o capital social da Requerente é detido em 49% por D..., estaria a admitir-se que, para além de todas as contrapartidas financeiras atribuídas pela J..., S.A. à sócia em questão e a E..., deveria a J..., S.A. pagar a D... um preço adicional no montante de € 291.558,33 (€ 595.017,00 X 49%). Só que, conclui, isso equivaleria a sustentar-se que a J..., S.A. suportou, à custa de recursos próprios e financiamentos garantidos através de garantias pessoais, a valorização da L..., S.A., mas que, no entanto, teria forçosamente de pagar à Requerente (e indirectamente aos seus sócios) o preço que resultou de tal valorização; ou seja, na prática, a J..., S.A., depois de capitalizar a L..., S.A., teria ainda que pagar um preço que resultou precisamente de tal capitalização, suportando assim duas vezes o mesmo investimento!
IV.B. Posição da Requerida
a) Na sua resposta, a AT mantém o entendimento de que a liquidação controvertida consubstancia uma correcta aplicação do Direito, não enfermando de qualquer vício.
b) A Requerida começa por recordar que, nos termos legais, o sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco (artigo 63.º, n.º 2 do CIRC e artigo 4.º da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro).
c) A Requerida lembra ainda os contornos conceptuais precisos daquilo que são “relações especiais”, nos termos e para os efeitos do artigo 63.º, n.º 4 do CIRC.
d) A Requerida realça também a abundante e detalhada informação contida no RIT, e a forma como, no seu entender, ela preenche cabalmente os requisitos legais da fundamentação da determinação da matéria tributável corrigida dos efeitos das relações especiais, tal como esses requisitos resultam, em matéria de operações vinculadas, do artigo 77.º, n.º 3 da LGT: a) Descrição de relações especiais; b) Indicação das obrigações incumpridas pelo sujeito passivo; c) Aplicação dos métodos previstos na lei; d) Quantificação dos respectivos efeitos.
e) Aquando da transacção de 2 de Julho de 2010, a Requerente e a J..., S.A. (ou F..., S.A.) eram “entidades relacionadas”, ligadas por relações especiais que vinham de 20 de Março de 2008, com a assinatura do “Contrato de Parceria”, e de 4 de Abril de 2008, com a transformação da Requerente em sociedade por quotas, aumento do capital e a entrada da J..., S.A. (ou F..., S.A.) na estrutura societária, ficando detentora de uma quota representativa de 51% do capital. Integrando-se na definição dada pelo artigo 1.º, n.º 3, d) da Portaria n.º 1446-C/2001, as operações realizadas entre ambas, como entidades relacionadas, deviam, e devem, ser pautadas pelo princípio de plena concorrência enunciado no artigo 63.º, n.º 1 do CIRC e no artigo 1.º, n.º 1 da Portaria n.º 1446-C/2001.
f) Ora, no entender da Requerida, o confronto dos efeitos das estipulações vertidas nos acordos e contratos celebrados entre as partes relacionadas, no tocante aos termos e condições praticados em operações de alienação das participações na L..., S.A.,, com os efeitos das operações tendo por objecto também participações na mesma sociedade mas realizadas com entidade independente – a N..., SGPS, S.A., – revela discrepâncias que só podem ser justificadas pela existência de relações especiais.
g) Lembra ainda a Requerida que, uma vez que a Requerente não deu cumprimento à obrigação de inscrever na declaração anual de informação contabilística e fiscal a existência de operações com entidades relacionadas (artigo 63.º, n.º 7 do CIRC), embora estivesse dispensada de dispor do dossier de preços de transferência previsto no artigo 63.º, n.º 6 do CIRC, por aplicação do disposto no artigo 13.º, n.º 3 da Portaria n.º 1446-C/2001, instada a apresentar uma justificação para os termos e condições praticados na operação de alienação das acções à J..., S.A., remeteu para o Acordo de Parceria celebrado em 28 de Março de 2008 – isto é, celebrado menos de um mês antes de esta sociedade ter adquirido a qualidade de sócia maioritária, e controladora, da Requerente.
h) Mas lembra também que, nem através dessa remissão, nem em qualquer dos documentos disponíveis, consta a obrigação de venda pelo valor nominal das participações detidas pela Requerente – sendo que não foi por esse valor nominal, mas sim pelo preço médio de € 116,67 por acção, que a Requerente vendera a uma entidade independente, menos de um ano antes, 30% das acções da mesma L..., S.A..
i) Não tendo havido um cabal esclarecimento acerca das razões pelas quais o preço das acções da L..., S.A. desceu dos € 116,67 para o seu valor nominal, ou acerca de eventuais contrapartidas que a Requerente tenha obtido para aceitar esse preço mais baixo, conclui a Requerida que está claramente incumprido o princípio da plena concorrência.
j) A Requerida sustenta que a regulação das relações internas (intragrupo) entre as sociedades intervenientes na operação vinculada, nomeadamente em matéria de compromissos relativos à angariação dos meios financeiros utilizados para financiar a execução do parque fotovoltaico do ..., não relevam para efeitos de comparabilidade dos termos e condições praticados na operação vinculada.
k) E acrescenta que, na ausência de mais informação, é legítima a dúvida quanto às razões que levaram os accionistas – incluindo a Requerente – a afastar-se de um negócio com tanto potencial lucrativo, de geração de receitas futuras, a troco, aparentemente, de um preço que se cingiu ao valor nominal das acções.
l) A Requerida refuta o argumento de que a Requerente não teria contribuído para a valorização do parque solar fotovoltaico do ..., começando pelo facto de ela dispor, no seu activo, de algo com elevado valor económico: o PIP, que originou a atribuição do ponto de recepção de energia, que por um lado conferia e garantia à requerente a autorização de interligação à rede pública da ligação do parque fotovoltaico e a concessão da licença de estabelecimento da instalação do Parque Solar Fotovoltaico do ...; e que por outro lado era intransmissível, de acordo com o artigo 16.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 312/2001, de 10 de Dezembro.
m) No entender da Requerida, o preço praticado no negócio teria desconsiderado o justo valor do activo da empresa, nomeadamente:
a detenção da licença de exploração de produção de energia eléctrica do tipo fotovoltaico que constitui um activo intangível com elevados benefícios futuros;
o goodwill adquirido;
a entrada em pleno funcionamento do parque fotovoltaico do ... em 27 de Abril de 2010;
a venda garantida da energia eléctrica gerada no parque solar fotovoltaico do ... à Q..., S.A., com tarifa bonificada.
n) Além disso, a Requerida aponta para a disparidade de valorização das acções da L..., S.A. consoante a sua transmissão seja efectuada entre entidade relacionada (J..., S.A.) com a qual o preço praticado corresponde ao valor nominal (€ 5,00), ou entre entidades independentes (no caso a N..., SGPS, S.A.) com a qual é praticado um preço superior ao valor nominal (€ 116,67).
o) Esses negócios com valores tão diferentes reportados a um mesmo activo e num intervalo de tempo tão curto constituiriam a base rigorosa para a aplicação do “Método do Preço Comparável de Mercado”, nos termos da Portaria nº 1446-C/2001.
p) A Requerida reconhece que o que a Requerente pretende é que seja dado relevo aos compromissos contratuais assumidos pelas partes que estiveram na origem da transacção das participações sociais, objecto de comparação, mormente no Acordo de Parceria. Todavia, tais compromissos inscrevem-se no quadro das relações internas das entidades que integram o grupo, não podendo projectar-se nem influenciar a determinação dos termos e condições praticados nas operações realizadas no mercado entre entidades independentes, sob pena de esvaziarem a aplicação do princípio de plena concorrência.
q) A Requerida não põe em causa que a Requerente estivesse vinculada a alienar as participações sociais, de acordo com os termos e condições previamente estabelecidas no Acordo de Parceria (embora insista que em lado nenhum se indica o valor nominal como preço para a alienação); mas argumenta que o que releva, no caso, é que esses termos e condições não estão definidos em conformidade com o princípio de plena concorrência, cuja observância o artigo 63.º, n.º 1 do CIRC exige às operações realizadas entre entidades relacionadas.
r) E a Requerida remata a sua Resposta manifestando a sua oposição à produção de prova testemunhal, que entende ser inútil. Mas, à cautela, arrolou também uma testemunha.
s) Em Contra-Alegações, a Requerida procura rebater a tese da unilateralidade de esforços e de contributos para a formação do valor da L..., S.A. e do projecto mais geral que esta serviu como empresa-veículo, lembrando que, se por um lado a J..., S.A. contribuiu com os meios financeiros, a A... contribuiu com um activo – os PIP’s que tinham um valor substancial, o que por si só teria justificado a parceria. Assim, o ponto fulcral dos negócios teria sido precisamente o PIP detido pela A... : aquele tinham tanta relevância económica que a A... foi sujeita a um contrato de parceria; e, sem o PIP, a J..., S.A., mesmo com todos os recursos financeiros que tivesse ao seu dispor, não conseguiria desenvolver os negócios. Não se podendo, pois, afirmar que a Requerente não suportou qualquer esforço financeiro ou operacional para desenvolver o parque solar fotovoltaico do ... .
t) E não deixa de notar que, segundo o testemunho de B..., foi a F..., S.A. quem procurou a A... UNIPESSOAL – certamente porque vislumbrou, na circunstância em que se encontravam D... e E..., uma oportunidade de negócios lucrativos (tendo mesmo acrescentado, no seu depoimento, que presentemente continua a não se arrepender da parceria, nem dos negócios subsequentes).
u) A Requerida, referindo-se às operações objecto de comparação, as não-vinculadas com a vinculada, e face aos critérios do artigo 6º, b) da Portaria nº 1446-C/2001, lembra que:
(i) têm por objecto as acções da L..., S.A.,
(ii) a quantidade de acções alienadas na operação vinculada até justificaria um preço mais elevado, a título do prémio de controlo, dado que representam 51% do capital;
(iii) no tempo que medeia entre as operações não houve ocorrências conhecidas que implicassem uma perda de valor significativa da L..., S.A., e pelo contrário a operação vinculada ocorre quando o parque fotovoltaico do ... já se encontra em exploração, enquanto que a operação não vinculada foi realizada ainda durante a fase de execução.
v) Insiste que, considerando o valor do activo intangível – principalmente a licença de estabelecimento da instalação do Parque Solar – na fase prévia ao desenvolvimento e construção do parque fotovoltaico do ..., assim como as expectativas de receitas futuras subjacentes, o Relatório Final do Procedimento de Inspecção concluiu correctamente que a venda das participações da requerente na L..., S.A. à J..., S.A. pelo seu valor nominal, não reflectiu o valor da sociedade transaccionada pelo que não corresponde ao preço que seria praticado entre entidades independentes, não respeitando o principio de plena concorrência.
w) A Requerida lembra, por fim, que, estando em causa averiguar se o preço praticado na operação em análise foi razoável ou de mercado, isto é, se nele se observou, ou não, o princípio de plena concorrência, cabia e cabe à Requerente, em primeira linha, o ónus da prova, nos termos e para os efeitos do artigo 74.º, n.º 1 da LGT, na ausência do dossier de preços de transferência e perante a inexistência de ajustamento ao lucro tributável à luz do artigo 63.º do CIRC.
V. FUNDAMENTAÇÃO: A MATÉRIA DE DIREITO
V.A. A teleologia da disciplina fiscal dos preços de transferência. Regras aplicáveis
1. Rege nesta matéria o princípio de plena concorrência, acolhido pelo artigo 63.º, n.º 1 do CIRC e pela Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, na sequência das orientações que têm sido adoptadas pela OCDE, no âmbito das relações entre empresas multinacionais com operações plurilocalizadas que, há longa data, suscitam problemas de repartição de competências tributárias dos Estados e de erosão das respectivas bases tributáveis .
2. De salientar que a própria Portaria aconselha a consulta dos Relatórios produzidos pelo Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, sob a designação “OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations” (adiante “Guidelines”), cuja adopção é objeto de recomendações aprovadas pelo Conselho da OCDE (“soft law”). Estas orientações constituem um importante parâmetro interpretativo para a adequada apreensão e aplicação da disciplina dos preços de transferência. Uma vez que a liquidação de IRC vertente respeita ao exercício de 2010, as remissões são feitas para a versão das Guidelines de 2010 .
3. O regime dos preços de transferência enquadra-se na área das normas tributárias anti-abuso. Trata-se de evitar que o credor de imposto fique refém de ponderações que podem fazer todo o sentido nas relações internas entre empresas interdependentes, mas que têm o efeito externo indesejado de atentarem contra o princípio da igualdade na repartição da carga tributária e na prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas.
4. No entanto, não é necessário apurar-se um intuito evasivo ou fraudatório: basta reconhecer-se que na formação de um determinado facto tributário intervieram ponderações e equilíbrios que não teriam tido relevância num contexto aberto de mercado; e que, portanto, esse facto foi distorcido relativamente à “normalidade” com que o credor de imposto, dada a proeminência de valores e interesses constitucionalmente protegidos, tem o direito de contar, face aos “grandes números” que correspondem às transacções de mercado – os parâmetros da própria razoabilidade para que remetem as alusões genéricas para o “mercado”.
5. Em rigor, um preço de transferência não tem de ser inválido, embora possa sê-lo; mas, válido ou não, ele será ineficaz perante a administração tributária.
6. Como se estabelece no § 1.2 das Guidelines da OCDE: “a tax adjustment under the arm's length principle would not affect the underlying contractual obligations for non-tax purposes between the associated enterprises, and may be appropriate even where there is no intent to minimize or avoid tax. The consideration of transfer pricing should not be confused with the consideration of problems of tax fraud or tax avoidance, even though transfer pricing policies may be used for such purposes”.
7. Significa isso que a consagração legal do princípio “arm´s length” não se destina simplesmente à consecução de fins anti-evasivos, mas possui valor geral, já que a sua aplicação faculta a adequada equivalência entre o tratamento fiscal das sociedades pertencentes a grupos integrados e das sociedades independentes, o que por sua vez evita a criação de vantagens ou desvantagens fiscais susceptíveis de distorcer a posição competitiva das empresas em função da sua estruturação jurídica e relações de titularidade.
8. Por outras palavras, o princípio de plena concorrência permite assegurar que todos os operadores económicos são tratados do mesmo modo no que respeita à determinação da base tributável para efeitos de imposto sobre o rendimento, independentemente do facto de fazerem parte de um grupo, ou de constituírem entidades independentes no mercado. O “arm’s length principle”, tal como é formulado pela OCDE, visa colocar empresas relacionadas e empresas independentes em igualdade de circunstâncias para efeitos fiscais, servir como princípio geral de igualdade e neutralidade, evitar distorções de concorrência e promover a troca internacional e o investimento, afastando razões fiscais de decisões económicas. Todavia, desde a publicação do Base Erosion and Profit Shifting Project (BEPS) que esta questão ganhou novos contornos, vindo a OCDE, pela primeira vez, a admitir que o actual sistema de preços de transferência, assente no princípio do preço pleno de concorrência, é insuficiente na resposta a vários problemas de abuso e erosão fiscal.
9. Não se trata, portanto, de recorrer a um método indirecto para se contornar e vencer, através de uma presunção de valor do facto tributário, uma qualquer situação de alegada falsidade ou simulação levada a cabo pelos sujeitos passivos: não se trata, tão-pouco, de afirmar que o valor da transacção não foi o que foi, mas sim outro, substituindo aquele por este.
10. Trata-se, antes, nos casos de preços de transferência, de reconhecer que, tendo sido o preço efectivamente aquele, esse preço não foi formado nas condições que, para meros efeitos tributários, o credor de imposto pode exigir às empresas que se encontram em relações especiais; isto é, condições equiparadas às “de mercado”, para que a riqueza criada no facto tributário típico (o lucro tributável), em vez de se diluir numa rede de equilíbrios e contrapartidas, seja concentrada num preço que transparentemente a traduza, e permita a tributação que ocorreria sem aquela eliminação ou distorção do valor tributável.
11. A teleologia da disciplina fiscal dos preços de transferência é, pois, a de se impedir a flexibilidade completa dos grupos empresariais na alocação de resultados a partir de operações vinculadas – independentemente da validade ou invalidade dos meios colocados ao serviço da referida flexibilidade.
12. Daí que a lei estabeleça uma disposição específica anti-abuso para as situações em que, havendo relações especiais entre contribuintes, as operações por eles realizadas não respeitem as condições de mercado, provocando aumentos ou reduções “anómalas” da matéria coletável – determinando que em tais casos a Autoridade Tributária possa proceder à correção do preço para o seu valor “justo”, no sentido de valor objectivamente adequado às condições de mercado com as quais “normalmente” se determina a matéria colectável (artigos 77.°, n.º 3 da LGT e 63.º do CIRC).
13. Em suma: não se trata, no regime de preços de transferência, da aplicação de métodos indirectos (artigos 87.º e seguintes da LGT), pois não se visa a “determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha” (artigo 83.°, n.º 2 da LGT).
14. E que, pelo contrário, se trata de realidades distintas resulta expressamente do artigo 91.º, n.º 14 da LGT, que estabelece que o procedimento de revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos não se aplica às correções efetuadas em virtude da existência de relações especiais, porque estas são correções meramente aritméticas.
15. Por isso, importa não confundir o regime de preços de transferência, por um lado, e a aplicação de métodos indirectos, por outro – equívoco em que parece laborar a Requerente quando, concentrando-se no preço que diz ter sido efectivamente praticado, contesta o recurso ao preço “de mercado” como se este fosse um rendimento presumido, procurando, através de prova, ilidir uma tal “presunção”. Não se trata aqui de métodos indirectos, mas sim de correcções meramente aritméticas: é inútil a insistência de que a transacção das acções se deu efectivamente pelo seu valor nominal, o que nem sequer tem que ser questionado, quando o que interessa é apenas determinar-se as razões especiais pelas quais essa transacção se realizou a esse valor, comprovado o facto de que, sem essas razões especiais, o preço seria outro.
16. E o regime dos preços de transferência é uma disposição anti-abuso especial, de aplicação automática verificados os pressupostos do artigo 63.º do CIRC, e não dependente de abertura prévia de um procedimento próprio, como aquele que o artigo 63.º do CPPT estabeleceu para a aplicação da cláusula geral anti-abuso do artigo 38.°, n.º 2 da LGT (e, até 2012, a do artigo 67.º, n.º 10 do CIRC); nem associada a qualquer meio de defesa específico a que os sujeitos passivos devam lançar mão (isto pelo menos desde que a Lei nº 32-B/2002, de 30 de Dezembro, eliminou o artigo 129.º do CIRC).
17. Assim, em traços gerais, o regime português segue as Guidelines da OCDE e reclama o preenchimento cumulativo de três requisitos: 1) que existam relações especiais entre o contribuinte e uma outra entidade, sujeita ou não ao regime de IRC; 2) que em virtude dessas relações sejam estabelecidas condições substancialmente diferentes das que seriam normalmente acordadas entre entidades independentes; 3) que essas condições tenham conduzido ao apuramento de uma base tributária distinta da que seria apurada na ausência de tais relações.
18. Uma vez que se conclua pela verificação dos referidos pressupostos, importa determinar o preço de plena concorrência, de acordo com a metodologia desenvolvida no âmbito da OCDE e recebida pelo direito interno, que postula a comparabilidade das transações utilizadas como referencial (ou termo) de comparação com as operações efectuadas pelas entidades relacionadas. É fundamental que a realidade comparada e a comparável comunguem de idênticas propriedades ou “factores de comparabilidade”, ou em caso de essa comparabilidade ser parcial, que seja viável realizar os ajustamentos necessários em ordem a assegurá-la.
19. Neste âmbito, compulsa-se o artigo 63.º do CIRC, na redacção aplicável em 2010 (anterior à dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro), que dispõe o seguinte:
“Artigo 63.º
Preços de transferência
1 – Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.
2 – O sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco.
3 – Os métodos utilizados devem ser:
a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;
b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.
4 – Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:
a) Uma entidade e os titulares do respectivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;
[…]
13 – A aplicação dos métodos de determinação dos preços de transferência, quer a operações individualizadas, quer a séries de operações, o tipo, a natureza e o conteúdo da documentação referida no n.º 6 e os procedimentos aplicáveis aos ajustamentos correlativos são regulamentados por portaria do Ministro das Finanças.”
20. A Portaria n.º 1446-C/2001 veio regulamentar o regime dos preços de transferência, na sequência da habilitação legal e, em observância do princípio de plena concorrência, detalhar os critérios de determinação dos métodos adequados ao apuramento do “preço de mercado” e os factores de comparabilidade, denominando as operações realizadas entre entidades relacionadas por “operações vinculadas”.
21. Estabelece a Portaria de Regulamentação, com relevo para a situação sub iudice:
“Artigo 4.º
Determinação do método mais apropriado
1 – O sujeito passivo deve adoptar, para determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método mais apropriado a cada operação ou série de operações, tendo em conta o seguinte:
a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;
b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro método apropriado aos factos e às circunstâncias específicas de cada operação que satisfaça o princípio enunciado no n.º 1 do artigo 1.º desta portaria, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.
2 – Considera-se como método mais apropriado para cada operação ou série de operações aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordos, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, devendo ser feita a opção pelo método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e outras não vinculadas e entre as entidades seleccionadas para a comparação, que conte com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis.
3 – Duas operações reúnem as condições para serem consideradas comparáveis se são substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares, de tal modo que as diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são susceptíveis de afectar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efectuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas.
4 – Sempre que existam dúvidas fundadas acerca da fiabilidade dos valores que seriam obtidos com a aplicação de um dado método, o sujeito passivo deve tentar confirmar tais valores mediante a aplicação de outros métodos, de forma isolada ou combinada.
5 – Se, no âmbito de aplicação de um método, a utilização de duas ou mais operações não vinculadas comparáveis ou a aplicação de mais de um método considerado igualmente apropriado conduzir a um intervalo de valores que assegurem um grau de comparabilidade razoável, não se torna necessário proceder a qualquer correcção, caso as condições relevantes da operação vinculada, nomeadamente o preço ou a margem de lucro, se situarem dentro desse intervalo.”
Artigo 5.º
Factores de comparabilidade
Para efeitos do artigo anterior, o grau de comparabilidade entre uma operação vinculada e uma operação não vinculada deve ser avaliado, tendo em conta, designadamente, os seguintes factores:
a) As características específicas dos bens, direitos ou serviços que, sendo objecto de cada operação, são susceptíveis de influenciar o preço das operações, em particular as características físicas, a qualidade, a quantidade, a fiabilidade, a disponibilidade e o volume de oferta dos bens, a forma negocial, o tipo, a duração, o grau de protecção e os benefícios antecipados pela utilização do direito e a natureza e a extensão dos serviços;
b) As funções desempenhadas pelas entidades intervenientes nas operações, tendo em consideração os activos utilizados e os riscos assumidos;
c) Os termos e condições contratuais que definem, de forma explícita ou implícita, o modo como se repartem as responsabilidades, os riscos e os lucros entre as partes envolvidas na operação;
d) As circunstâncias económicas prevalecentes nos mercados em que as respectivas partes operam, incluindo a sua localização geográfica e dimensão, o custo da mão-de-obra e do capital nos mercados, a posição concorrencial dos compradores e vendedores, a fase do circuito de comercialização, a existência de bens e serviços sucedâneos, o nível da oferta e da procura e o grau de desenvolvimento geral dos mercados;
e) A estratégia das empresas, contemplando, entre os aspectos susceptíveis de influenciar o seu funcionamento e conduta normal, a prossecução de actividades de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, o grau de diversificação da actividade, o controle do risco, os esquemas de penetração no mercado ou de manutenção ou reforço de quota e, bem assim, os ciclos de vida dos produtos ou direitos;
f) Outras características relevantes quanto à operação em causa ou às empresas envolvidas.
Artigo 6.º
Método do preço comparável de mercado
1 – A adopção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes.
[…]
Artigo 13.º
Processo de documentação fiscal
1 – O sujeito passivo deve dispor, nos termos do n.º 6 do artigo 58.o do Código do IRC, de informação e documentação respeitantes à política adoptada na determinação dos preços de transferência e manter, de forma organizada, elementos aptos a provar:
[…]
3 — Fica dispensado do cumprimento do disposto no n.º 1 o sujeito passivo que, no exercício anterior, tenha atingido um valor anual de vendas líquidas e outros proveitos inferior a € 3 000 000.”
22. É este quadro regulatório que importa aplicar ao caso concreto, devidamente complementado pelas Guidelines da OCDE, concluindo-se que a sua teleologia é a de tributar as transações entre entidades associadas da mesma forma que são tributadas as operações sujeitas apenas aos ditames do mercado.
23. É que, no caso de entidades associadas, as condicionantes externas do mercado podem com facilidade ser distorcidas pela influência de outros vectores, como as relações comerciais e financeiras entre essas entidades. Dadas as relações especiais entre os intervenientes, a formação do preço pode não espelhar a verdadeira capacidade contributiva das empresas – o próprio alicerce de legitimação da tributação das empresas (artigo 4.º, n.º 1 da LGT, artigo 104.º, n.º 2 da Constituição).
24. Para prevenir a desigualdade, a disciplina legal impõe a adopção de mecanismos de correcção dos valores das operações vinculadas em ordem à sua equiparação quantitativa a operações não vinculadas que sejam comparáveis.
V.B. Análise concreta: partes não relacionadas
1. A primeira questão que importa examinar prende-se com a aferição da existência de relações especiais entre as partes contratantes na operação de compra e venda de acções de 2 de Julho de 2010, cujo valor foi corrigido pela AT para efeitos de apuramento da base fiscal de IRC. Com efeito, a falta de independência das partes constitui o pressuposto subjetivo essencial, aliás a primacial razão de ser da convocação e aplicação do regime de preços de transferência previsto no artigo 63.º, n.ºs 1 e 4 do CIRC.
2. Neste âmbito, está provado que em 2 de Julho de 2010 a Requerente alienou à F..., S.A. (actualmente J..., S.A.), a participação social que detinha na sociedade L..., S.A., e que correspondia a 51% do capital social desta última, pelo preço de € 5,00 por acção coincidente com o seu valor facial (um preço total de € 25.500,00, respeitante a 5.100 acções).
3. A entidade alienante, a ora Requerente, é detida em 51% pela entidade adquirente, a F..., S.A. (J..., S.A.), pelo que ambas estão em situação de relação especial nos termos do artigo 63.º, n.º 4, a) do CIRC, segundo o qual, na redacção à data dos factos, existem relações especiais entre duas entidades na situação em que uma tem o poder de exercer, direta ou indiretamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra; o que se considera verificado, designadamente, entre uma entidade e os titulares do respetivo capital, que detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto .
4. Assim, com referência ao momento em que se realizou a operação de compra e venda das acções, as duas entidades, alienante e adquirente, estavam em situação de relações especiais.
5. No entanto, esta operação provém de um Acordo de Parceria que foi celebrado entre partes não relacionadas, em 28 de Março de 2008, em contexto de mercado.
6. Aliás, o próprio contrato de compra e venda das ações, remete para o referido Contrato de Parceria, de 28 de Março de 2008 (bem como para os ulteriores Acordo Parassocial de 14 de Abril de 2009 e Aditamento ao Acordo Parassocial de 31 de Outubro de 2009, que ligam as partes do contrato), estabelecendo que o “preço global convencionado é o correspondente ao valor nominal das acções (€ 25.500,00), que a "A...” declara devidamente compensado com as importâncias disponibilizadas pela "F..." a favor da "A...” no acto da realização da participação desta no capital social da "L...”, deixando inteiramente claro que o preço alcançado era reflexo de um equilíbrio de compensações entre aquelas entidades, e que, portanto, o valor transaccionado só se encontraria plenamente espelhado no somatório do preço com aquilo que tinha sido “devidamente compensado” antes da transacção.
7. O Acordo de Parceria envolveu a Requerente, a sua sócia e respectivo cônjuge, por um lado, e a F..., S.A., a G... SGPS, S.A., a H..., SGPS, S.A., e a I..., SGPS, S.A., por outro lado. Quando da celebração da parceria a Requerente e a sua sócia eram entidades independentes em relação às empresas do universo da F..., circunstância que não vem controvertida.
8. Também é consensual que a Requerente, à data do Acordo de Parceria, era titular de dois Pedidos de Informação Prévia (“PIP”) que lhe permitiam instalar dois pontos de recepção de energia eléctrica (Parques Fotovoltaicos), dos quais um (o de ...) está em discussão nos presentes autos. Porém, os capitais próprios da Requerente eram negativos e esta não dispunha de estrutura e de recursos – meios financeiros, técnicos e humanos – para concretizar o investimento necessário e expressivo que a instalação de um Parque Fotovoltaico implicava e implica e que no caso concreto se cifrou em quase 10 (dez milhões) de euros.
9. Deste modo, com relevância para a questão em discussão nos presentes autos, a Requerente possuía um activo – o PIP para instalação de um Parque Fotovoltaico em ...–, mas não reunia as condições para o desenvolver, sendo que, quer o PIP, quer a ulterior licença de estabelecimento, estavam sujeitas a prazos de caducidade. Por outro lado, a F..., S.A. dispunha de meios técnicos e de condições financeiras para realizar o investimento e operacionalizar a exploração energética com recurso parcial a crédito bancário (e credibilidade para o obter).
10. Como o ponto de recepção (de energia eléctrica) de ... estava sujeito a um ónus de inalienabilidade até à entrada em funcionamento e exploração do Parque Fotovoltaico, nos termos da legislação aplicável, a Requerente, a sua sócia e a F..., S.A. (e demais parceiros) acordaram num conjunto de condições em que, de forma resumida, esta última desenvolvia e financiava exclusivamente o projeto (relembra-se, de cerca de 10 milhões de euros), ficando a seu cargo ainda a manutenção e gestão da própria Requerente. Em contrapartida, a sócia da Requerente e o seu cônjuge recebiam (e receberam) um pagamento inicial e diversas contribuições ulteriores, relativas ao valor das entradas de capital (incluindo aumentos de capital), prestações suplementares e suprimentos (na proporção que lhes cabiam) da sociedade-veículo que foi criada para este efeito (a L..., S.A.). Acresce que a Requerente e a sua sócia comprometiam-se a vender participações sociais detidas na sociedade-veículo, logo que o projecto entrasse em exploração “por um valor igual ao montante total das suas participações em cada projecto”.
11. Assim, ao contrário do que vem afirmado pela AT, não foram entidades em situação de relações especiais que definiram os contornos da parceria, as condições contratuais desta emergentes e as relações de troca respectivas. Foram, sim, entidades independentes, com interesses distintos e conflituantes, em momento anterior (mais de dois anos antes), ao da realização das operações.
12. É verdade que o Acordo de Parceria não refere “valor nominal”, relativamente ao preço pelo qual a venda das acções da sociedade-veículo havia de ser realizada. Afigura-se, porém, que tal conclusão está implícita neste e no Acordo Parassocial subsequente (e aditamento) e perpassa na expressão “por um valor igual ao montante total das suas participações em cada projecto”.
13. Convém notar a ulterior actuação da sócia D..., que veio a impugnar a deliberação de venda das acções pelo valor nominal, de 30 de Junho de 2010, e o negócio de 2 de Julho de 2010 (em Assembleia Geral da Requerente realizada em 28 de Março de 2011), dando início a diversos litígios nos tribunais, que foram sistematicamente (e sem excepção) decididos em sentido contrário ao pretendido pela referida sócia, validando, por conseguinte, o negócio e as condições em que foi realizado pela Requerente (valor nominal). Tal que significa que se esse valor (nominal) não estivesse em conformidade com o Acordo de Parceria e com o Acordo Parassocial teria certamente sido invalidado o negócio, nas condições em que foi feito (i.e., precisamente pelo valor nominal).
14. Em suma, a venda de acções em causa fez parte de um acordo global, que envolveu diversas contrapartidas, tendo toda a parceria ou “Joint Venture” sido delineada e acordada entre partes independentes, pelo que não se trata de um caso de preços de transferência. É verdade que, posteriormente, tais partes passaram a ser relacionadas, mas o que se verificou foi a execução faseada no tempo de compromissos previamente assumidos entre partes independentes (nos quais se inclui a compra e venda de partes sociais da sociedade-veículo especificamente criada para o efeito), pelo que os preços praticados foram, por definição, de plena concorrência, i.e., “contratados, aceites e praticados […] entre entidades independentes em operações comparáveis”, conforme postula o artigo 63.º, n.º 1 do CIRC.
V.C. Análise concreta: falta de comparabilidade
1. Acresce assinalar que, ainda que se entendesse que a venda das acções pela Requerente à J..., S.A. tinha sido realizada por sociedades em situação de relações especiais, impunha-se, nessas circunstâncias, a adopção de um método de determinação do respectivo preço susceptível de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade.
2. Para se alcançar esse desiderato da comparabilidade, estabelece-se que os sujeitos passivos devem seguir um de três métodos (o método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado), ou, na sua impossibilidade ou insuficiência, outros métodos (nomeadamente o método do fracionamento do lucro ou o método da margem líquida da operação, conforme preceitua o artigo 63.º, n.º 3, a) e b) do CIRC).
3. Quanto à comparabilidade, estabelece o artigo 4.º, n.º 3 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, que “Duas operações reúnem as condições para serem consideradas comparáveis se são substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares, de tal modo que as diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são susceptíveis de afectar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efectuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas.” (sublinhado nosso)
4. Assim, todas as características que sejam susceptíveis de afectar o preço têm de ser semelhantes, designadamente e com relevância para o caso, as funções desempenhadas pelas entidades intervenientes nas operações, tendo em consideração os activos utilizados e os riscos assumidos; os termos e condições contratuais e a estratégia das empresas (estes e outros factores de comparabilidade são enunciados pelo artigo 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001).
5. Considerações estas que advêm dos princípios estabelecidos no seio da OCDE, referindo-se no parágrafo § 1.33 das Guidelines: “Application of the arm’s length principle is generally based on a comparison of the conditions in a controlled transaction with the conditions in transactions between independent enterprises. In order for such comparisons to be useful, the economically relevant characteristics of the situations being compared must be sufficiently comparable. To be comparable means that none of the differences (if any) between the situations being compared could materially affect the condition being examined in the methodology (e.g. price or margin), or that reasonably accurate adjustments can be made to eliminate the effect of any such differences.”
6. Aliás, o artigo 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001 limita-se a reproduzir os cinco factores que, de acordo com os parágrafos § 1.36 e seguintes das Guidelines da OCDE, podem determinar a comparabilidade dos preços (ou das margens) das operações: “Attributes or «comparability factors» that may be importante when determining comparability include the characteristics of the property or services transferred, the functions performed by the parties (taking into account assets used and risks assumed), the contractual terms, the economic circumstances of the parties, and the business strategies pursued by the parties.”
7. Quanto à metodologia a adoptar pelos sujeitos passivos para se assegurar essa comparabilidade, esclarece também a Portaria nº 1446-C/2001, no seu artigo 4.º, n.º 2: “Considera-se como método mais apropriado para cada operação ou série de operações aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordos, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, devendo ser feita a opção pelo método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e outras não vinculadas e entre as entidades seleccionadas para a comparação, que conte com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis.” (sublinhado nosso)
8. A opção, no caso vertente, pelo “método do preço comparável de mercado” significa que a AT entendeu preenchido o requisito do “grau mais elevado de comparabilidade”, através da identificação de uma das situações que o aconselham: “Quando o sujeito passivo ou uma entidade pertencente ao mesmo grupo realiza uma transação da mesma natureza que tenha por objecto um serviço ou produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares” (artigo 6.º, n.ºs 1 e 2, a) da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro).
9. Todavia, este entendimento da AT desconsidera diversos factores de comparabilidade, cuja análise permite alcançar a conclusão contrária: o negócio de 2 de Julho de 2010, através do qual a Requerente vendeu as acções que detinha na L..., S.A. (pelo valor nominal), tem condicionantes bem distintas daquelas que presidiram ao negócio de alienação, pela J..., S.A., de duas participações, perfazendo 30%, na L..., S.A. à N..., SGPS, S.A.. Não são, portanto, comparáveis.
10. Desde logo, a disparidade de preços, usada como referencial pela AT, num lapso temporal de apenas 4 dias de diferença, aliada ao preço simbólico de € 1,00, põe em causa a adequação do próprio comparável. Importa não esquecer que a operação em causa é de transmissão de participações sociais e que a aplicação de um método desta natureza (MPCM), para ser fidedigno, deveria basear-se em cotações múltiplas.
11. Por outro lado, a AT vem alegar que o valor de mercado dessas participações não podia deixar de reflectir as elevadas quantias investidas no desenvolvimento do Projecto do ..., assim como as subjacentes expectativas de receitas futuras. Não obstante, a AT nem sequer ensaiou apurar o valor da L..., S.A. à data da alienação das participações da Requerente (nestes casos, a OCDE não recomenda a valorização com base num “equity method” – custo de aquisição adicionado de prestações suplementares/acessórias – mas a aplicação de um método com base na expectativa de rendibilidade/cash flows descontados).
12. Porém, mais importante a salientar é que, em observância do Acordo de Parceria celebrado havia mais de 2 anos, todo o desenvolvimento do único activo da L..., S.A. (“Parque Fotovoltaico” do...) e o respectivo investimento de quase 10 milhões de euros foi realizado (nesse período de cerca de 2 anos) pela J..., S.A., com o risco do negócio a ser suportado integralmente por esta entidade. Sem o investimento suportado unicamente na J..., S.A., seja do ponto de vista técnico ou financeiro, o valor do projecto seria bem distinto e significativamente menor.
13. Acresce que, como referido pela Requerente, esta só adquiriu uma percentagem de 51% no capital da L..., S.A. porque a J..., S.A. na altura assumiu (pagou!) a realização deste capital em nome da Requerente.
14. A aquisição das participações sociais pela J..., S.A. enquadra-se num negócio global que gerou diversos pagamentos por parte desta, para além do valor nominal das acções, à Requerente. Mais ainda, a onerosidade desse negócio traduziu-se em diversos pagamentos efectuados, em diversos momentos, pela J..., S.A. directamente à sócia D... e ao seu cônjuge E..., ou em nome destes, quando de realizações de capital social, de prestações acessórias e de suprimentos, através dos quais D... e o seu cônjuge adquiram créditos sobre esses montantes a custo zero.
15. Os factores que acabaram de se referir implicam que a aquisição pela J..., S.A. de uma participação na L..., S.A. (sociedade cujo único activo foi desenvolvido e financiado por aquela, com diversas contrapartidas estabelecidas no Acordo de Parceria e Acordo Parassocial previamente celebrados, algumas dessas contrapartidas sendo pagas directamente à sócia da Requerente e respectivo cônjuge) não é comparável à aquisição pela N..., SGPS, S.A. de participações na mesma L..., S.A., entidade para a qual a N... nada havia contribuído previamente (em especial para o activo valorizado que esta detinha) e da qual se iria tornar parcialmente titular, ingressando nesse acervo patrimonial.
16. A Requerida não poderia fazer esta correção por comparabilidade, porque, neste caso, a J..., S.A. assumiu todo o investimento, desenvolvimento e risco do projeto, enquanto que no caso, alegadamente comparável (que não o é), da N..., SGPS, S.A., as condições da transação não são em nada semelhantes à da J... .
17. Seria paradoxal, como argui a Requerente, que a J..., S.A. tivesse suportado à custa dos seus próprios recursos a valorização da L..., S.A. e que “resultasse do mercado” que teria de pagar o preço integral que tivesse resultado dessa valorização. Ou seja, depois de desenvolver o projecto em todas as suas vertentes e de capitalizar a L..., S.A. por sua conta e risco, como está contratualmente previsto, teria de pagar o preço “que resultou precisamente de tal capitalização, pagando assim duas vezes o mesmo investimento!”.
18. Não se ignora que o PIP que foi o mote do Acordo de Parceria tinha de ser valorizado, mas não só esse valor é bem distinto daquele que resultou do projecto em funcionamento, depois de um investimento de quase 10 milhões de euros indispensáveis à sua implementação (reitera-se, a cargo da J..., S.A.), como a sua valorização foi efectuada nas razões de troca estabelecidas contratualmente, e que envolveram diversas contraprestações, a maioria das quais aos sócios da Requerente, não se cingindo ao valor nominal da participação transacionada da L..., S.A.. Por fim, salienta-se que todas as licenças posteriores ao PIP (de estabelecimento da instalação e de exploração do Parque Fotovoltaico) foram obtidas já sob a égide da J..., S.A. e graças à sua intervenção.
V.D. Ónus da Prova
1. Na ausência da documentação relativa a operações com entidades relacionadas no exercício de 2010, a Requerente foi notificada pelos Serviços de Inspecção, em 25 de Fevereiro de 2013, para que demonstrasse que, na referida operação de compra e venda de acções, praticada entre entidades em situação de relações especiais, tinham sido contratados, aceites e praticados termos e condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, apresentando, para o efeito, todos os elementos a que se refere o artigo 63.º, n.º 6 do CIRC.
2. A Requerente respondeu a esta solicitação explicando o contexto do Acordo de Parceria no qual essa operação se inseriu, e alegando que, em seu entender, as operações foram realizadas entre partes independentes, em concreto: “Na génese dos contratos de venda das ações das sociedades anónimas detentoras dos parques fotovoltaicos, entre a A... Unipessoal e F... SA, está o Contrato de Parceria assinado a 28 de março de 2008, sublinhe-se entre partes não relacionadas”.
3. Explicitou também que a sua participação nos investimentos se deveu a imperativos legais (o ónus de inalienabilidade do ponto de recepção de energia até ao momento da entrada em exploração), e que a entidade promotora dos mesmos foi a J..., S.A., empresa que concentrou, nos termos dos Acordos Parassociais, todo o esforço financeiro e económico de desenvolvimento dos projectos, facultando os elementos documentais à AT.
4. Convém ainda referir que a Requerente estava dispensada da obrigação de dispor de informação e documentação respeitantes à política adoptada na determinação dos preços de transferência, por não atingir o patamar de valor anual de vendas líquidas e outros proveitos previsto no artigo 13.º, n.º 3 da Portaria n.º 1446-C/2001.
5. Nestes termos, atenta a dispensa legalmente prevista e o facto de a Requerente ter dado resposta oportuna ao pedido de esclarecimentos dos Serviços de Inspecção, tendo facultado todos os elementos necessários à compreensão da transacção e do negócio global em que a mesma se inseriu, não pode considerar-se que tenha sido violado ou incumprido o dever de colaboração e que se justifique uma inversão do ónus da prova.
6. Acresce que da análise dos elementos facultados pela Requerente aos Serviços de Inspecção é de concluir que aquela justificou devidamente a aderência ao Princípio de Plena Concorrência (o “Arm’s Length Principle”) das condições estabelecidas na venda da participação por si detida na L..., S.A. à J..., S.A..
7. Cabia, deste modo, à Requerida, ao abrigo do disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT, o ónus de demonstrar o afastamento das condições de mercado. O que não fez, seja por aplicar um método (MPCM) desadequado ao tipo de transacção (respeitante à venda de partes de capital), seja, em especial, por desconsiderar relevantes factores condicionantes da operação comparada – funções desempenhadas, riscos suportados, condições contratuais previamente acordadas e estratégia da empresa – que afastam inequivocamente a comparabilidade das transacções (a comparada e a alegadamente comparável).
V.E. Conclusão
1. À face do exposto, o ato tributário de liquidação de IRC supra identificado, referente ao exercício de 2010, é anulável por vício de violação de lei, em conformidade com o disposto no artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), com correspondência no artigo 163.º, n.º 1 do novo CPA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.
2. Com efeito, para além de a operação em causa ter sido gizada e as respectivas condições acordadas entre partes independentes, no âmbito de um prévio Acordo de Parceria, mesmo que assim não se considerasse, a quantificação levada a efeito pela AT, desconsiderou factores de comparabilidade incontornáveis e assentou em operações cujos atributos não são comparáveis, em violação do disposto no artigo 63.º, n.º 2 do Código do IRC e dos artigos 4.º a 6.º da respectiva Portaria de regulamentação.
3. Ilegal é também o indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico sucessivamente deduzidos contra o mencionado ato tributário e que o confirmaram.
VI. DECISÃO
Em face de tudo quanto antecede, decide-se:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular o acto tributário de liquidação adicional de IRC n.º 2013..., relativo ao exercício de 2010, e consequente demonstração de acerto de contas n.º 2013...;
b) Condenar a Requerida nas custas processuais,
tudo com as legais consequências.
VII. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 157.851,72, nos termos do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VIII. CUSTAS
Custas a cargo da Requerida, dado que o presente pedido foi julgado procedente, no montante de € 3.672,00, nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
Lisboa, 26 de junho de 2019
Os Árbitros
Alexandra Coelho Martins
Paula Cristina Gomes Florindo
Fernando Araújo
(Vencido, conforme declaração de voto)
DECLARAÇÃO DE VOTO
INTRODUÇÃO
I. SÍNTESE TEÓRICA
I. 1. DO IMPACTO TRIBUTÁRIO DA PRÁTICA DOS PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA AO PRINCÍPIO DA PLENA CONCORRÊNCIA
I. 2. UM MÉTODO “MÍOPE”?
I. 3. A COMPARAÇÃO DO INCOMPARÁVEL? EFEITOS DA INTEGRAÇÃO EMPRESARIAL
I. 4. A (IN)COMPARABILIDADE DIRECTA DE PREÇOS
I. 5. A BUSCA DE ALTERNATIVAS, DE “SAFE HARBOURS” E DE MÉTODOS “FORMULAICOS”
II. O CASO EM APREÇO
II. 1. A TELEOLOGIA DA DISCIPLINA FISCAL DOS PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA NA LEI PORTUGUESA
II. 2. PARTES RELACIONADAS E COMPARABILIDADE
II. 3. COMPARAÇÃO E PROVA
II. 4. CONCLUSÕES
INTRODUÇÃO
Para fundamentar o meu voto, convirá começar por uma breve síntese do “estado da arte” em matéria de preços de transferência, antes mesmo de avançar para referências específicas ao caso em apreço.
E isto porque o meu argumento básico é o de que o regime legal dos preços de transferência gera graves problemas de aplicabilidade, e se adensam as indicações, e recomendações, no sentido do abandono das soluções que hoje predominam – mas, enquanto esse regime não for revogado e substituído por outro, não dispomos senão dele, e por isso os juízos de estrita legalidade não podem enredar-se em meras constatações de impraticabilidade ou exigências inatingíveis de rigor de cálculo, sob pena de destruirmos sistematicamente, e prematuramente, o único meio de que dispomos, por ora, para lidar com o fenómeno.
I. SÍNTESE TEÓRICA
I. 1. DO IMPACTO TRIBUTÁRIO DA PRÁTICA DOS PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA AO PRINCÍPIO DA PLENA CONCORRÊNCIA
Comecemos por lembrar que há três finalidades básicas para os preços de transferência, em função da perspectiva adoptada:
1. Para um qualquer negócio descentralizado, trata-se de aumentar a eficiência nas transacções entre unidades diferentes, vencendo a assimetria informativa entre elas ;
2. Para uma empresa, trata-se de evitar o “tunneling” que sonegaria informação aos credores e aos accionistas minoritários ;
3. Para qualquer credor tributário, trata-se de evitar que uma alocação específica de recursos, à margem do mecanismo de mercado, se faça em detrimento da receita .
O princípio da plena concorrência, ou “arm’s length”, defendido pela doutrina e experimentado pelo menos desde 1933, e agora consagrado no art. 9º da Convenção-Modelo da OCDE e nas Directrizes (“Guidelines”) sobre Preços de Transferência (ou num âmbito mais amplo do que o da EU, por exemplo na Convenção-Modelo da ONU sobre Dupla Tributação entre Países Desenvolvidos e em Desenvolvimento ), é ainda a norma para se determinar se houve manipulação de preços de transferência, e, através desta, manipulação da base de incidência – sempre que (ceteris paribus) o preço estabelecido numa transacção entre entidades relacionadas se afaste do preço praticado numa transacção entre entidades não-relacionadas.
A ideia assenta no consenso de que transacções “controladas” não devem ser distorcidas para gerar uma sub-valorização de lucros tributáveis, por comparação com a situação de transacções que, por serem “não-controladas”, se presume estarem mais imunizadas contra uma tal distorção – servindo estas últimas de padrão de comparabilidade, uma referência aos contactos pontuais e atomísticos que associamos às transacções “de mercado”.
Daí que, para evitar a distorção, se averigue o que se passaria se as partes de uma transacção “controlada” pudessem manter-se à distância do “não-controle” (o “arm’s length”), buscando determinar-se o que hipoteticamente sucederia se pudesse remover-se o “controle” de modo a haver “plena concorrência” entre transacções “puramente horizontais”, por um lado, e, por outro, todas aquelas que denotam, na presença de “relações especiais” entre as partes, um qualquer grau de “verticalidade”, de integração – buscando, na prática, remover, por ajustamento dito “primário”, toda a erosão de ganhos ou custos que possam imputar-se a esse “afastamento do mercado”, a esse “grau de integração vertical” entre as partes numa transacção geradora de rendimentos tributáveis .
Assim, compreende-se que Directrizes e Convenções-Modelo, não obstante o seu carácter originariamente não-vinculativo, caracterizado por alguns como “soft law” – decerto uma incorrecção, dada a natureza interpretativa que lhes pode ser reconhecida em outros instrumentos convencionais que tenham versado o mesmo tema dos preços de transferência, para efeitos do art. 31º, 2, da Convenção de Viena de 1969 – tenham vindo a insinuar-se no direito interno dos países da ONU, da OCDE e da EU, como é o caso de Portugal, convertendo-se em normas de direito positivo – resolvendo as dúvidas que pudessem suscitar-se, em atenção às consabidas limitações do princípio da “concorrência plena”, a favor da efectividade irrestrita desse princípio até que as normas sejam revogadas por um diploma posterior, se vierem a sê-lo .
Compreende-se também que, independentemente dos méritos do princípio “arm’s length” – a propalada promoção de “paridade” ou “neutralidade” entre empresas “relacionadas” e “não-relacionadas” , e a promoção da aproximação ao funcionamento de um mercado aberto . –, e sobretudo antes de se soerguerem as críticas, tantos países tivessem aderido a ele – bastando pensar-se nos “ganhos de compatibilidade”, as “externalidades (positivas) de rede” que asseguravam a mais ampla paridade de tratamento internacional do fenómeno dos preços de transferência, até porque é um fenómeno cuja origem se prende com a coexistência de diversos regimes jurídicos e de diversas jurisdições .
I. 2. UM MÉTODO “MÍOPE”?
Toda a comparabilidade em abstracto, como a que é exigida pelo princípio “arm’s length”, é aproximativa e limitada, porque o aumento de comparabilidade e de fiabilidade só se atingem através de agravamento de custos administrativos . Por isso o objectivo do regime de preços de transferência é o de alcançar uma “estimativa razoável” da aplicação do princípio “arm’s length” a partir de informação fiável – não sendo uma “ciência exacta”, como enfatiza a OCDE (ao admitir especificamente que os preços “arm’s length” possam variar de mercado para mercado, mesmo que decorram entre as mesmas partes ou envolvam os mesmos produtos ), subsistindo sempre margens discricionárias no seu funcionamento quando se procura encontrar “intervalos de valores” que sejam aceitáveis .
A “miopia congénita” desta metodologia – traduzida em irrealismos e de impraticabilidades – será porventura mais evidente quando se trata de proceder a comparações directas, preço a preço; mas é mais profunda, porque conceptualmente mais problemática, quando ela desafia, com a sua exigência de comparabilidade, a lógica económica dos fenómenos de integração – a ponto de levar alguns especialistas a defenderem o abandono do princípio “arm’s length”, ou pelo menos a sua remoção das Directrizes da OCDE .
I. 3. A COMPARAÇÃO DO INCOMPARÁVEL? EFEITOS DA INTEGRAÇÃO EMPRESARIAL
O princípio “arm’s length” desvaloriza as associações de empresas, e o impacto, nesse âmbito, da formação de “cost centers” e de “profit centers”, e não pondera adequadamente o fenómeno do “controle” que é capaz de demarcar transacções autónomas, de um lado, e subordinadas, de outro . Esse princípio autoriza, com a insistência na comparabilidade, o desrespeito pela circulação de rendimento entre entidades “relacionadas”, porque no mercado aberto as transacções não são regidas pelo objectivo de circulação de rendimento .
Assim sendo, o princípio “arm’s length” fornece-nos uma visão estritamente “molecular” das empresas e das “joint ventures”, pressupondo que o resultado da integração é um todo cujo valor não supera o simples somatório das partes – o que equivale a fazer tábua-rasa das vantagens, do valor acrescentado, que podem resultar da integração e a motivam economicamente – .
Por outro lado, é de salientar que a maior parte das transacções entre partes “relacionadas” não respeitam a bens e serviços tipicamente transaccionados num mercado aberto e para os quais existam preços estabilizados e facilmente determináveis (como o são as cotações, por exemplo), até porque, sendo bens “intermédios”, normalmente não estarão disponíveis no mercado como produtos, ou bens “finais” – sendo que, mesmo quando não seja assim e surjam oportunidades objectivas de comparação, sempre se suscitarão divergências jurídicas e económicas quanto à “comparabilidade”, dado os interesses objectivamente contrapostos dos contribuintes e da administração tributária . Por outro prisma, os activos específicos de que dispõe uma empresa não são muitas vezes transacionáveis em mercado aberto – e nesse caso o princípio “arm’s length” tem que assentar em dados relacionados com o funcionamento do mercado, mas não directamente emanados do mercado – o que abre espaço à discricionariedade .
Lembremos que em empresas verticalmente integradas, os preços de transferência desempenham a função de determinarem a distribuição do rendimento entre os diversos segmentos (divisões) da empresa – o que ocorre tanto para efeitos contabilísticos como para efeitos fiscais, circunstância que tem levado alguns a referir a possibilidade de coexistência de duas contabilidades, e do “decoupling” entre contabilidade para efeitos organizativos e contabilidade para efeitos tributários ; sendo que a ausência de “decoupling” pode criar uma tensão entre objectivos fiscais e económicos no interior da mesma empresa; e só não o fará mais porque muitas empresas concedem agora prioridade aos objectivos fiscais, moldando por eles a distribuição interna de rendimentos tributáveis , até por receio de conflitos com as autoridades tributárias .
O problema complica-se porque o custo médio (por unidade) de um produto é difícil de definir em situações de produção conjunta, e isso basta para tornar ambíguos os preços de transferência – e recomendar a adopção de intervalos de preços, em vez de preços precisos . Além disso, para muitos bens e produtos intermédios as transferências internas entre segmentos empresariais integrados não têm qualquer correspondência com um mercado externo – e daí precisamente, tantas vezes, a decisão de integrar. Essa integração gera poderes monopolísticos de montante para jusante na cadeia produtiva, com produtos específicos que não têm correspondência externa, e com descontos de valor que têm a ver com o facto de o adquirente não representar risco de incumprimento nem custos de transacção acrescidos - factos por si mesmos distorcem a avaliação do impacto económico da transacção, independentemente do escopo de planeamento tributário .
Assim sendo, a comparação de uma situação real de “grau de integração vertical” com uma outra situação real de “horizontalidade plena”, para efeitos de reconstrução de uma situação hipotética em que o “grau de integração vertical” não obstaria à “concorrência plena”, é eminentemente problemática: porque ela manda fazer tábua-rasa das próprias razões que determinam qualquer grau de integração empresarial, e que são razões de afastamento dos custos de “coordenação horizontal” (isto é, de “recurso ao mercado” das transacções entre entidades não-relacionadas) em favor das poupanças, quando existam, resultantes da “integração” numa cadeia transacional em que há entidades subordinadas – a razão para as próprias “fronteiras da empresa”, na construção clássica de Ronald Coase .
Por outras palavras: na medida em que o pano de fundo da comparação requerida pelo princípio “arm’s length” é a transacção “de mercado”, entre entidades não-relacionadas (seja essa comparação “interna” se a transacção “não-controlada” teve, como uma das partes, uma parte da transacção “controlada”; seja ela “externa” se a transacção de referência tiver envolvido apenas partes independentes, e nenhuma das partes envolvidas na transacção “controlada” ) – transacção na qual se presume que o preço reflecte um equilíbrio encontrado naquela transacção (uma funcionalidade que não tem a ver com a estrutura organizativa das partes nela envolvidas) , isso desconsidera, ou pelo menos desvaloriza, o facto de nas transacções “controladas” existirem contrapartidas (“set-offs”) intencionais, um balanço de benefícios e custos que circulam no interior de uma organização integrada e que remetem para um momento preciso de computação de ganhos e perdas à margem da simples consideração dos preços explícitos calculados para cada transacção – não devendo as empresas “dependentes” ser oneradas tributariamente apenas pela opção que tenham seguido de não explicitarem todos os ganhos e perdas em cada preço de cada transacção .
Em suma, e como defendem os partidários de alternativas “formulaicas” que referiremos de seguida, num mundo empresarial cada vez mais interdependente, cada vez mais sofisticado tecnologicamente, globalizado e informatizado, torna-se cada vez mais arbitrário, irreal e incorrecto querer avaliar os resultados da integração vertical de uma cadeia produtiva – com todas as transacções entre entidades relacionadas e “controladas” no interior dessa integração – como se essa integração não tivesse tido lugar e as entidades se tivessem mantido “at arm’s length”, desperdiçando as vantagens próprias da integração .
Assim sendo, a insistência do princípio “arm’s length” escamoteia, como referimos, as razões pelas quais um agente económico pode, em concreto, optar pela permanência num âmbito de “mercado puro” ou pelo ingresso em estruturas de progressiva integração e de relacionamento permanente – apenas permitindo revelar que a integração pode ser efectivamente instrumentalizada aos desígnios do “planeamento tributário”, habilitando partes relacionadas a reduzirem a base de incidência dos impostos através de uma teia de preços explícitos que escondem contrapartidas implícitas, ou desfasadas no tempo .
Uma transacção perfeitamente concebida deveria, para ser eficiente, espelhar no seu preço a distribuição de risco pelas partes, e a inerente remuneração que compensa a tomada de um risco superior por uma delas – o que está implícito numa estrutura integrada, e verdadeiramente só tem que ser explicitado em termos contratuais específicos numa transacção entre entidades não relacionadas (momento em que o mecanismo de preços, actuando na sua máxima amplitude, tende a reflectir precisamente as “contrapartidas do risco).
Significa isso, portanto, que toda a comparabilidade, mesmo em casos em que há coincidência de partes envolvidas ou de objectos transaccionados ou de tipos contratuais adoptados, deve ser admitida com uma grande margem de imprecisão, como já referimos, com recurso a intervalos de valores mais do que a valores precisos : e daí que em 2016 o “Joint Transfer Pricing Forum” tenha emitido recomendações sobre “boas práticas” em matéria de comparações, com o “Report on the Use of Comparables in the EU” .
Retenhamos, portanto, que a comparabilidade que é reclamada pela aplicação do princípio “arm’s length” é conceptualmente problemática – se é que é mesmo sustentável. Bastará relembrarmos que, por definição, um grau qualquer de “integração” (da integração “externa” da “joint venture” até à integração “forte” da fusão ou da incorporação) já significará que os envolvidos pretendem alcançar vantagens que eventualmente não estarão disponíveis em simples transacções “de mercado”: sinergias (com decisões de afectação de recursos ditadas por comando central, e não por transacções de mercado, poupando em custos de transacção que oneram partes “não-relacionadas” ), economias de escala – e também vantagens de planeamento tributário que só possa alcançar-se de forma coordenada.
Mas há mais: mesmo a admitirmos a comparabilidade de transacções – até porque a lei no-lo impõe –, a escolha da metodologia mais adequada acarreta novos problemas, nomeadamente o da divergência de resultados que cada metodologia produz, seja internamente, seja em comparação com as demais: o que pode recomendar a utilização de métodos estatísticos para “calibrar” o espectro de resultados obtidos, reduzindo a dispersão de valores .
Em suma, o problema conceptual consiste no facto de o princípio “arm’s length” implicar que, do prisma da lei, as transacções intra-empresariais devam aproximar-se de transacções de mercado “aberto”, ou seja, que partes “relacionadas” devam lidar entre elas como se fossem “não-relacionadas” – deixando de lado todas as vantagens que advêm desse “relacionamento intra-empresarial”, em suma as vantagens da própria integração . A situação ainda se complica com a exigência de uma “análise funcional” que pressupõe, irrealisticamente, que quem fixa os preços nas transacções intra-empresariais, ou intra-grupo, é alguém que domina todos os detalhes e complexidades dos equilíbrios entre entidades “relacionadas”, e que ao mesmo tempo dispõe de dados confiáveis sobre os preços praticados em grandes massas de transacções entre partes “não-relacionadas”, para usar estes dados como termos de comparação (“benchmarks”) dos seus próprios preços .
Verdadeiramente, a comparação do incomparável.
I. 4. A (IN)COMPARABILIDADE DIRECTA DE PREÇOS
As Directrizes da OCDE dão preferência, em condições de igual fiabilidade, ao método do “preço comparável de mercado” (CUP, “Comparable Uncontrolled Price”) , visto que, não obstante as dificuldades conceptuais, esse método habilita a comparação directa entre preços – das operações “controladas” e não-controladas” –, substituindo os primeiros pelos segundos se se verificarem os demais requisitos (pressupondo-se que nenhuma das diferenças detectadas influenciou o preço – pois, caso contrário, haverá que recorrer à comparação indirecta através do “ajustamento” de diferenças relevantes para o preço).
A “comparabilidade”, no critério da OCDE, significa, portanto, que não há diferenças significativas entre as situações comparadas; ou que, havendo-as, elas não relevam para a metodologia empregue para a análise dos preços de transferência; ou que, sendo relevantes, existem “ajustamentos razoavelmente fiáveis” para eliminar os efeitos dessas diferenças .
Não obstante as dificuldades específicas deste método CUP (com padrões muito exigentes em termos de comparabilidade e de aferição dos ajustamentos nas comparações “indirectas”, que serão muito numerosas porque raramente diferenças nas circunstâncias das transacções deixarão de ter impacto no preço), há que admitir que ele será especialmente útil e convincente em casos de comparação directa, mormente naqueles em que uma empresa transacciona com outra “relacionada” o mesmo produto que transacionou com uma “não-relacionada” .
São dificuldades práticas; mas não surgem aqui perplexidades conceptuais como as que detectámos a propósito das razões económicas para a integração, e desintegração, da estrutura produtiva
I. 5. A BUSCA DE ALTERNATIVAS, DE “SAFE HARBOURS” E DE MÉTODOS “FORMULAICOS”
Dadas as dificuldades apontadas (e diversas outras), há quem proponha que, no mínimo, se recalibre o princípio “arm’s length” para recentrá-lo no combate ao oportunismo organizativo que gera elisão fiscal, reduzindo ou eliminando incentivos à divergência entre objectivos económicos e tributários (um dos sentidos de “neutralidade”), e incrementando a coordenação das respostas jurisdicionais .
Mas na verdade, como começámos por salientar, na EU não existe ainda alternativa ao princípio “arm’s length”, por muito que essa alternativa venha sendo ponderada, e seja até o objecto de um “fórum” de peritos (o “Joint Transfer Pricing Forum”) estabelecido pela Comissão em Dezembro de 2006 .
As aludidas inconsistências, mas mais ainda uma extensa perda de receita na tributação das multinacionais, levou a OCDE e os países do G20 a tentarem rever o princípio “arm’s length” através do lançamento, em 2013, do projecto BEPS (“Base Erosion and Profit Shifting”) , com diversos “planos de acção”, alguns especificamente visando os preços de transferência, e traduzidos na revisão, em Julho de 2017, das Directrizes sobre Preços de Transferência, e na Directiva (EU) 2016/1164 do Conselho, a Directiva “Anti-Elisão” – sem que possa dizer-se que estes esforços tenham conseguido resolver as dificuldades teóricas e práticas, tenham ajudado a afinar o conceito de “arm’s length” ou tenham tornado evidentes as vantagens do abandono desta técnica “alocativa” de rendimentos tributáveis, em favor de outras que se apresentam como candidatas à sua sucessão. Embora possa dizer-se – isso sim – que estes desenvolvimentos mais recentes ajudaram a afinar a “análise funcional” que é requerida pela comparabilidade ínsita no critério da “plena concorrência”, procurando proceder a uma triagem entre diferenças relevantes e irrelevantes para se aferir a verdadeira “concorrência” entre transacções “controladas” e “não-controladas” .
As exigências de documentação, por um lado, e as limitações de comparabilidade nos métodos empregues, por outro, tornam todas as abordagens aos preços de transferência, tentadas ou propostas até agora, muito pesadas em termos de custos de acatamento (“compliance costs”), custos dos demais deveres acessórios e administrativos, e custos de oportunidade (de tempo); e tanto mais pesadas quanto menor for o sujeito passivo ou menos economicamente valiosas as transacções, já que muitas dessas onerações são uniformes – o que é oficialmente reconhecido há muito – . Isso tem levado à consideração da possibilidade de estabelecimento de “safe harbours”, isenções ou reduções de deveres secundários que permitam, com razoabilidade, simplificar e desonerar a tributação em sede de preços de transferência – ao menos para sujeitos passivos de menor dimensão económica –, tendo algumas encontrado já reflexo nas próprias Directrizes .
Com efeito, algo disso já se espelha na Directiva CCCTB (“Common Consolidated Corporate Tax Base”), na qual se visa a harmonização da tributação das pessoas colectivas e ao mesmo tempo se procura reduzir custos de acatamento e administrativos, retirar incentivos fiscais à prática de preços de transferência compensando-os com técnicas de “loss offsetting”, e abrir o caminho à partilha de receitas tributárias e ao estabelecimento de concorrência fiscal mais saudável – o que não impediu que vários Estados-Membros tenham bloqueado essa evolução .
Em termos efectivos, a OCDE tem falhado na missão de estabelecer regras de “safe harbour” que permitam simplificar o regime de preços de transferência – assentes, por exemplo, numa aceitação automática dos preços de transferência apresentados pelo contribuinte, sem outra fiscalização salvo alguma que se fizesse pontualmente e por amostragem, ou quando fossem ultrapassados certos limites de aceitabilidade .
Além do “safe harbour”, também se tem ponderado o estabelecimento de um regime de ónus da prova que permita presumir como verdadeiras as declarações entregues pelo contribuinte, fazendo recair nas administrações tributárias o ónus da prova – o que não é incompatível com o estabelecimento de mais particulares poderes de exame da situação fiscal por parte das autoridades, nem implica que as regras do ónus da prova se sobreponham ao cumprimento de deveres acessórios, nomeadamente os de documentação, ou a princípios de diligência e de boa fé .– não sendo de excluir que a flexibilização de outras regras administrativas sirva de sucedâneo ao estabelecimento de “safe harbours” mais plenos .
Finalmente, a transição para soluções “formulaicas”, nomeadamente para o “formulary apportionment system” que se pretendeu que complementasse a CCCTB, afigura-se ainda impraticável, dada a extrema complexidade política e administrativa que acarretaria, e as complicações previsíveis com flutuações cambiais, com custos de acatamento e com deveres acessórios, mormente contabilísticos e organizativos , e até com custos para os legisladores, que teriam que rever toda a legislação hoje alinhada pelas directrizes da OCDE .
É verdade que os métodos “formulaicos”, porque desligados do fenómeno das transacções , prometem a vantagem da relativa simplicidade (bastaria a uma multinacional reportar os totais tributáveis, que seriam rateados por uma “fórmula” entre todas as jurisdições relevantes); mas fazem-no através de ficções irrealistas, como a da uniformidade da produtividade dos factores em qualquer estágio da cadeia produtiva – abrindo a perspectiva, ou risco, de regresso à tributação por métodos indiciários por capitulação face às dificuldades de observação das variáveis relevantes , sendo que isso pode comprometer iniciativas como a da CCCTB se estas ficarem dependentes destas novas metodologias .
Rematemos esta abordagem mais abstracta com a constatação de que, por todas as imperfeições que contenha, por todas as perplexidades que a sua concretização possa causar, a aplicação do princípio da “plena concorrência” ao fenómeno dos preços de transferência é ainda a menos má das possibilidades teóricas – além de constituir, no momento presente, um imperativo legal.
II. O CASO EM APREÇO
II. 1. A TELEOLOGIA DA DISCIPLINA FISCAL DOS PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA NA LEI PORTUGUESA
Recapitulando: o regime tributário dos preços de transferência enquadra-se na área das normas anti-abuso, pois se trata de evitar que o credor de imposto fique refém de ponderações que podem fazer todo o sentido nas relações internas entre empresas interdependentes, mas que têm o indesejado efeito externo de atentarem contra o princípio da igualdade na repartição da carga tributária e na prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas.
Assim sendo, não é necessário, para colocar em marcha o regime, apurar-se um intuito evasivo ou fraudatório: basta reconhecer-se que na formação de um determinado facto tributário intervieram ponderações e equilíbrios que não teriam tido relevância num contexto aberto de mercado; e que, portanto, esse facto foi distorcido relativamente à “normalidade” com que o credor de imposto, dada a proeminência de valores e interesses constitucionalmente protegidos, tem o direito de contar, face aos “grandes números” que correspondem às transacções de mercado – os parâmetros da própria razoabilidade para que remetem as alusões genéricas para o “mercado”.
Em suma, um preço de transferência não tem de ser inválido, embora possa sê-lo; mas, válido ou não, ele será ineficaz perante a administração tributária. Como se estabelece no § 1.2 das Directrizes da OCDE, “a tax adjustment under the arm's length principle would not affect the underlying contractual obligations for non-tax purposes between the associated enterprises, and may be appropriate even where there is no intent to minimize or avoid tax. The consideration of transfer pricing should not be confused with the consideration of problems of tax fraud or tax avoidance, even though transfer pricing policies may be used for such purposes”.
Significa isso que a consagração legal do princípio “arm´s length” não se esgota na consecução de fins anti-evasivos, mas possui valor geral, já que a sua aplicação faculta um grau (aproximativo embora) de equivalência entre o tratamento fiscal das sociedades pertencentes a grupos integrados, de um lado, e das sociedades independentes, de outro lado, o que por sua vez evita a criação de vantagens ou desvantagens fiscais susceptíveis de distorcer a posição competitiva das empresas em função da sua estruturação jurídica e das relações de titularidade no tecido empresarial. Por outras palavras, o princípio de plena concorrência permite idealmente assegurar que todos os operadores económicos são tratados do mesmo modo no que respeita à determinação da base tributável para efeitos de imposto sobre o rendimento, independentemente do facto de fazerem parte de um grupo, ou de constituírem entidades independentes no mercado.
O “arm’s length principle”, nos termos em que é consagrado pela OCDE, visa:
colocar empresas relacionadas e empresas independentes em igualdade de circunstâncias para efeitos fiscais
servir como princípio geral de igualdade e neutralidade
evitar distorções de concorrência
promover a troca internacional e o investimento, afastando razões fiscais de decisões económicas.
Isto não obstante o facto, já referido, de, desde a publicação do BEPS, esta questão ter ganho novos contornos, admitindo-se que o actual regime dos preços de transferência, assente no princípio do preço pleno de concorrência, é insuficiente na resposta a vários problemas de abuso e erosão fiscal.
Para o caso em apreço, releva em especial que não se trata, assim, de recorrer a um método indirecto para se contornar e vencer, através de uma presunção de valor do facto tributário, uma qualquer situação de alegada falsidade ou simulação levada a cabo pelos sujeitos passivos: não se tratando, tão-pouco, de afirmar que o valor da transacção não foi o que foi, ou de afirmar que teria sido outro, substituindo aquele por este. Trata-se, antes, no regime tributário dos preços de transferência, de reconhecer que, tendo sido o preço efectivamente aquele, esse preço não foi formado nas condições que, para meros efeitos tributários, o credor de imposto pode exigir às empresas que se encontram em relações especiais; isto é, condições “equiparadas” – por um critério limitado e decerto falível – às “de mercado”, para que a riqueza criada no facto tributário típico (o lucro tributável), em vez de se diluir numa rede de equilíbrios e contrapartidas, seja concentrada num preço que convencionalmente a traduza, e permita a tributação que ocorreria sem aquela eliminação ou distorção do valor tributável.
A teleologia da disciplina fiscal dos preços de transferência é, pois, a de se impedir a flexibilidade completa dos grupos empresariais na alocação de resultados a partir de operações vinculadas – independentemente da validade ou invalidade dos meios colocados ao serviço da referida flexibilidade.
Daí que a lei estabeleça uma específica disposição anti-abuso para as situações em que, havendo relações especiais entre contribuintes, as operações por eles realizadas não respeitem as condições de mercado, provocando aumentos ou reduções “anómalas” da matéria coletável – determinando que em tais casos a Autoridade Tributária possa proceder à correção do preço para o seu valor “justo”, no sentido de valor objectivamente adequado às condições de mercado com as quais “normalmente” se determina a matéria colectável (arts. 77°, 3 da LGT e 63º do CIRC).
Em suma, não se trata, no regime de preços de transferência, da aplicação de métodos indirectos (arts. 87º segs. da LGT), pois não se visa a “determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha” (art. 83°, 2 da LGT). E que, pelo contrário, se trata de realidades distintas resulta expressamente do art. 91º, 14 da LGT, que estabelece que o procedimento de revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos não se aplica às correções efetuadas em virtude da existência de relações especiais, porque estas são correções meramente aritméticas.
Por isso se estranha, no caso em apreço, a insistência da Requerente na confusão entre regime de preços de transferência, por um lado, e aplicação de métodos indirectos, por outro – porque, concentrando-se no preço que diz ter sido efectivamente praticado, a Requerente contesta essencialmente o recurso ao preço “de mercado” como se este fosse um rendimento presumido, procurando, através de prova, ilidir uma tal “presunção”.
Ora, não se tratou aqui de métodos indirectos, mas sim de correcções meramente aritméticas: é inútil a insistência de que as transacções se efectuaram pelo seu valor nominal – o que nem sequer tem que ser questionado, quando o que interessa é apenas determinar-se as razões especiais pelas quais essa transacção se realizou a esse valor, comprovado o facto de que, sem essas razões especiais, o preço seria plausivelmente outro.
E o regime dos preços de transferência é uma disposição anti-abuso especial, de aplicação automática, no sentido de que, verificados os pressupostos do art. 63º do CIRC, não depende de abertura prévia de um procedimento próprio, como aquele que o art. 63º do CPPT estabeleceu para a aplicação da cláusula geral anti-abuso do artigo 38° no 2 da LGT (e, até 2012, a do art. 67º, 10 do CIRC); nem associada a qualquer meio de defesa específico a que os sujeitos passivos devam lançar mão (isto pelo menos desde que a Lei nº 32-B/2002, de 30 de Dezembro, eliminou o art. 129º do CIRC).
Em síntese, o regime dos preços de transferência na lei portuguesa reclama o preenchimento cumulativo de três requisitos:
1) que existam relações especiais entre o contribuinte e uma outra entidade, sujeita ou não ao regime de IRC;
2) que em virtude dessas relações sejam estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre entidades independentes;
3) que essas condições tenham conduzindo ao apuramento de uma base tributária distinta da que seria presumivelmente apurada na ausência de tais relações.
II. 2. PARTES RELACIONADAS E COMPARABILIDADE
Está provado, nos presentes autos, que em 2 de Julho de 2010 a Requerente alienou à F... S.A. (actualmente J... S.A.), a participação social detida na sociedade L..., S.A., que correspondia a 51% do capital social, pelo preço de €5,00 por acção (um preço total de €25.500,00, respeitante a 5.100 acções).
Esse facto tem evidente relevância em sede de preços de transferência. Aliás, isso foi imediatamente reconhecido no próprio contrato, quando, depois de, em considerandos, remeter para o Contrato de Parceria de 28 de Março de 2008, para o Acordo Parassocial de 14 de Abril de 2009 e para o Aditamento a esse Acordo Parassocial de 31 de Outubro de 2009, a ligarem as partes do contrato, estabeleceu que “O preço global convencionado é o correspondente ao valor nominal das acções (€ 25.500,00), que a "A...” declara devidamente compensado com as importâncias disponibilizadas pela "F..." a favor da "A...” no acto da realização da participação desta no capital social da "L...” (sublinhado nosso), deixando inteiramente claro que o preço alcançado era reflexo de um equilíbrio de compensações intragrupo, e que portanto o valor transaccionado só se encontraria plenamente espelhado no somatório do preço com aquilo que tinha sido “devidamente compensado” antes da transacção.
No negócio em apreço, a entidade alienante, e ora Requerente, é detida em 51% pela entidade adquirente, a F... S.A (agora J... S.A.), pelo que ambas estão em situação de relação especial para efeitos do art. 63º, 4, a) do CIRC, que estabelece que se considera existirem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra; o que se considera verificado, designadamente, entre uma entidade e os titulares do respectivo capital, que detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a uma determinada percentagem do capital ou dos direitos de voto (que passou a 20% do capital ou dos direitos de voto, na redacção dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro).
Verificada esta circunstância, nas operações realizadas entre ambas as entidades deviam – e devem – ser contratados, aceites e praticados termos ou condições “substancialmente idênticos” aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, em cumprimento do princípio de plena concorrência (art. 63º, 1 do CIRC; sublinhado nosso).
Na ausência da documentação exigida para operações com entidades relacionadas, e relativas ao exercício de 2010, a Requerente foi notificada, em 25 de Fevereiro de 2013 (por aplicação do art. 13º, 3 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro), para que demonstrasse que, na referida operação de compra e venda de acções, praticada entre entidades relacionadas com quem existem relações especiais, tinham sido contratados, aceites e praticados, termos e condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis; apresentando, para o efeito, todos os elementos a que se refere o art. 63º, 6 do CIRC.
Tendo-se a resposta da Requerente a essa solicitação limitado, na essência, a afirmar que a sua participação nos investimentos se deveu a imperativos legais, e que a entidade promotora dos mesmos foi a J... S.A., empresa que concentrou, de acordo com os termos dos acordos parassociais, todo o esforço financeiro e económico de desenvolvimento dos projectos – foi entendido pela Inspecção Tributária que não tinha sido justificada nem demonstrada a aderência ao Principio de Plena Concorrência (o princípio “arm’s length”) das condições estabelecidas na venda das participações detidas na L... à J... S.A.
Para justificar que os termos e condições praticados nas operações foram “substancialmente idênticos” aos que normalmente seriam aceites e praticados entre entidades independentes em condições comparáveis, a Requerente alegou na sua resposta que “Na génese dos contratos de venda das ações das sociedades anónimas detentoras dos parques fotovoltaicos, entre a A... Unipessoal e F... SA, está o Contrato de Parceria assinado a 28 de março de 2008, sublinhe-se entre partes não relacionadas”.
Contudo, da leitura dos termos do Contrato de Parceria efectivamente resulta o estabelecimento de relações especiais entre as entidades envolvidas no negócio de 2 de Julho de 2010; mas nada resulta, como seria de esperar, quanto aos termos e condições precisos desse negócio, nem a razão pela qual o preço foi o do valor nominal das acções da sociedade-veículo (que nem sequer existia à data do Contrato de Parceria); nem esgota, decerto, a descrição do que foi “devidamente compensado” entre compradora e vendedora, no tempo que medeia entre 28 de Março de 2008 e 2 de Julho de 2010 (datas, respectivamente, do contrato de parceria, e do contrato de alienação, das acções da L...).
O mesmo se dirá do facto de os Acordos Parassociais, subsequentes ao Contrato de Parceria (e, portanto, celebrados já entre entidades dependentes) estabelecerem a transmissão obrigatória à J... SA da participação da Requerente na sociedade-veículo, no período de desenvolvimento e construção dos parques: porque isso não significa que o valor das acções transmitidas seja necessariamente o valor nominal, aquele que veio a verificar-se.
Ou seja, o Contrato de Parceria confirma plenamente que o negócio de 2 de Julho de 2010 foi concebido e levado a cabo por entidades relacionadas, e de acordo com uma lógica de preços de transferência – mas, porque não entrou na especificação desses termos, e por isso não vinculou as partes a quaisquer termos precisos, não desloca para si aquilo que foi autonomamente decidido na deliberação de 30 de Junho de 2010, e foi consumado no negócio de 2 de Julho de 2010.
O argumento de que o Contrato de Parceria foi celebrado entre partes que à data não eram relacionadas (mas que visavam ficar relacionadas através do próprio Contrato de Parceria) nada prova, portanto, pela simples razão de que não é o Contrato de Parceria que foi objecto da correção pela AT em sede de Preços de Transferência, e nem sequer o contrato de 2 de Julho de 2010 o toma por contrato-quadro, nem se apresenta como um seu aditamento ou alteração, nem remete para ele para definir o seu objecto ou as suas condições.
Mais ainda, o princípio nesta área é o da análise individualizada das operações, nos termos do art. 1º, 2 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro: o que as entidades relacionadas tenham feito num determinado momento não alastra para a legitimação, ou para a ilegitimação, do que tenham realizado em momentos diferentes, anteriores ou subsequentes.
Acresce que a deliberação de 30 de Junho de 2010, e o negócio de 2 de Julho de 2010, foram objecto de contestação pela sócia D..., em Assembleia Geral da Requerente realizada em 28 de Março de 2011; e isso prova, de forma cabal, que os termos e condições alcançados nesse negócio não eram simples decorrência, ou corolário, do estabelecido no Contrato de Parceria, antes eram bastante distintos – porque esse Contrato de Parceria não foi contestado por essa sócia, o que só pode significar que, para ela, o que era aceitável no Contrato de Parceria se tornou inaceitável nos termos deliberados em 30 de Junho de 2010 e executados em 2 de Julho de 2010.
Por outro prisma, pode o Contrato de Parceria ter tornado inevitável que, mais tarde ou mais cedo, se celebrasse o contrato de 2 de Julho de 2010, de alienação a um dos parceiros da sociedade-veículo. Só que isso não tem que ser colocado em questão, simplesmente porque é irrelevante do ponto de vista tributário – e deve até ser respeitado, por observância do princípio da autonomia privada.
O que releva são os termos e condições específicas do negócio, e mais precisamente o seu preço, na medida em que a respectiva formação tenha, dadas as relações especiais entre os intervenientes, abusivamente distorcido a função sinalizadora do preço quanto aos valores transferidos – porque sem a preservação dessa função pode estar comprometida a possibilidade de os negócios espelharem a capacidade contributiva das empresas – o próprio alicerce de legitimação da tributação das empresas (art. 4º, 1 da LGT, art. 104º, 2 da Constituição).
Como se estabelece na “Convenção Modelo da OCDE em matéria de imposto sobre o rendimento e sobre o património”, no seu art. 9º, 1 (“Empresas associadas”), “Quando (…) duas empresas, nas suas relações comerciais ou financeiras, estiverem ligadas por condições aceites ou impostas que difiram das que seriam estabelecidas entre empresas independentes, os lucros que, se não existissem essas condições, teriam sido obtidos por uma das empresas, mas não foram por causa dessas condições, podem ser incluídos nos lucros dessa empresa e, consequentemente, tributados.” (sublinhado nosso).
Esse mesmo o princípio acolhido no art. 63º do CIRC, ao determinar que as operações entre entidades relacionadas devem ser valoradas tal como se fossem realizadas entre entidades independentes, impondo aos sujeitos passivos, no seu nº 2, que adoptem nas suas operações o mais elevado grau de comparabilidade: “O sujeito passivo deve adotar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos suscetíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efetua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as caraterísticas dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais caraterísticas relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os ativos utilizados e a repartição do risco” (sublinhado nosso).
Para se alcançar esse desiderato da comparabilidade, estabelece-se que os sujeitos passivos devem seguir um de três métodos (o método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado), ou, na sua impossibilidade ou insuficiência, outros métodos (nomeadamente o método do fracionamento do lucro ou o método da margem líquida da operação - art. 63º, 3, a) e b) do CIRC).
Quanto à comparabilidade, estabelece o art. 4º, 3 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, que “Duas operações reúnem as condições para serem consideradas comparáveis se são substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares, de tal modo que as diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são susceptívies de afectar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efectuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas.” (sublinhado nosso)
E quanto à metodologia a adoptar pelos sujeitos passivos para se assegurar essa comparabilidade, esclarece também a Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, no seu art. 4º, 2: “Considera-se como método mais apropriado para cada operação ou série de operações aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordos, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, devendo ser feita a opção pelo método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e outras não vinculadas e entre as entidades seleccionadas para a comparação, que conte com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis.” (sublinhado nosso)
A opção, no caso vertente, pelo “método do preço comparável de mercado” significa que se entendeu preenchido o requisito do “grau mais elevado de comparabilidade”, e que foi identificada uma das situações que o aconselham e permitem uma comparação “interna”: “Quando o sujeito passivo ou uma entidade pertencente ao mesmo grupo realiza uma transação da mesma natureza que tenha por objecto um serviço ou produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares” (art. 6º, 1 e 2, a) da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro).
II. 3. COMPARAÇÃO E PROVA
Que operações poderiam ser comparadas, no caso vertente?
De um lado da comparação, o negócio de 2 de Julho de 2010 era tido por não respeitador do princípio de plena concorrência:
não apenas por não ser concebível que entre entidades independentes o preço não tivesse reflectido o valor do activo da sociedade-veículo, mormente em termos de expectativas de receitas futuras subjacentes (por exemplo a importância da licença de estabelecimento da instalação do parque fotovoltaico do ..., detida pela L... S.A., ou a facturação garantida da energia à Q... S.A. a preços cinco vezes superiores aos de mercado), atendo-se apenas ao valor nominal dos títulos representativos do capital social,
como também porque o próprio clausulado, fazendo referência a um “preço global convencionado” “devidamente compensado” por contrapartidas não-explicitadas entre as partes contratantes, deixava claro que o preço, considerado isoladamente, ficava aquém de um preço no qual essas contrapartidas não existissem – ou seja, um preço entre entidades independentes, não ligadas por tais contrapartidas intra-grupo.
Do outro lado da comparação, os mesmos activos da L... S.A. tinham sido objecto de um outro negócio em 31 de Outubro e 4 de Novembro de 2009, mediante o qual a J... S.A. alienara à N... SGPS S.A. 30% do capital social da L..., a preços superiores ao valor nominal das acções.
Na verdade, na primeira “tranche” alienara 20% do capital – 2000 acções – por um preço de €350.000,00, acima do valor nominal total de €10.000,00; e na segunda “tranche” alienara os restantes 10% – 1000 acções – por um preço de €1,00, abaixo do valor nominal total de €5.000,00. O que esta disparidade de preços, e sobretudo o preço simbólico de €1,00, tem que significar é que o negócio só faz sentido como um todo, e daí que no RIT se tenha feito uma avaliação conjunta, concluindo-se que o preço de venda das 3.000 acções fora de €350.001,00, para um valor nominal de €15.000,00. Sendo portanto que cada acção, que tinha um valor nominal de €5,00, valeu €116,67 nesse negócio celebrado com uma entidade independente, extra-grupo, a N... SGPS S.A..
Pode esse valor não corresponder senão a circunstâncias muito específicas num determinado momento do projecto do grupo em que se integra a Requerente; e pode mesmo alegar-se que, sendo um valor médio, ele verdadeiramente não corresponde ao preço praticado em qualquer das “tranches” do negócio de alienação de 30% do capital social da L... S.A. à N... SGPS S.A.. Em todo o caso, não é descabido imaginar-se que o preço de €116,67 por acção espelhasse o real valor dos activos da L... S.A. (a detenção da licença de exploração de produção de energia eléctrica do tipo fotovoltaico, que constitui um activo intangível com elevados benefícios futuros; o “goodwill” adquirido; a próxima entrada em funcionamento do parque fotovoltaico do ...; a venda garantida da energia eléctrica gerada no parque solar fotovoltaico do ... à Q..., S.A., com tarifa bonificada) e o valor do retorno esperado do investimento efectuado pela N... SGPS, S.A. na empresa (começando pela realização de fundos próprios que condicionava o financiamento de €7.000.000,00, e que ocorreu pouco depois).
Igualmente é possível que o preço de €116,67 por acção esteja até subestimado por referência às condições existentes em 2 de Julho de 2010 – o que foi expressamente alegado pela sócia D...: porque nessa altura os activos da L... S.A. estavam objectivamente valorizados por comparação com aquilo que sucedia em 31 de Outubro e 4 de Novembro de 2009: a construção dos parques solares fotovoltaicos tinha sido entretanto concluída, e tinha sido obtida a Licença de Exploração – dois passos cruciais e viabilizadores, mas ainda ausentes em final de 2009, quando o preço médio por acção fora o de €116,67. Além disso, à alienação em bloco de 51% do capital corresponderia normalmente um “prémio de controlo”, não-negligenciável no cômputo final do preço.
Em todo o caso, por tudo o que inicialmente referimos a determinação precisa de um preço nem sequer é necessária, aceitando-se que, para efeitos de aplicação do regime dos preços de transferência, baste uma mera “banda valorimétrica”. Fala-se a esse propósito de um “intervalo de plena concorrência”, um “arm’s length range” – estabelecendo-se no § 3.60 das Diretrizes da OCDE que “If the relevant condition of the controlled transaction (e.g. price or margin) is within the arm’s length range, no adjustment should be made”; o que encontra tradução no art. 4º, 5 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro: “Se, no âmbito de aplicação de um método, a utilização de duas ou mais operações não vinculadas comparáveis ou a aplicação de mais de um método considerado igualmente apropriado conduzir a um intervalo de valores que assegurem um grau de comparabilidade razoável, não se torna necessário proceder a qualquer correcção, caso as condições relevantes da operação vinculada, nomeadamente o preço ou a margem de lucro, se situarem dentro desse intervalo” (sublinhado nosso).
Importa ainda enfatizar, uma vez mais, que as regras sobre preços de transferência não permitem actuar com o rigor e a precisão próprios de uma ciência exacta, porquanto a fiabilidade dos resultados obtidos com a aplicação das metodologias preconizadas para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente aceites ou praticados numa operação comparável entre partes independentes exige, em larga medida, análises complexas e elaboradas, em que entra um grande número de variáveis, dependendo, para a sua comprovação, da disponibilidade e facilidade de recolha de dados comparáveis externos, e do maior ou menor apelo a critérios de índole subjectiva e aos pressupostos básicos assumidos.
Seja como for, e com esta margem de apreciação, o que fica comprovado é que no negócio em causa nos autos o preço por acção teria sido diferente do respectivo valor nominal se não tivesse sido concluído entre entidades relacionadas; e que, portanto, está feita a comparação relevante para efeito de correcção tributária em sede de preços de transferência.
Com efeito, nos termos e para os efeitos do art. 6º, 2, a) da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro:
1) uma entidade pertencente ao mesmo grupo do sujeito passivo (a J... S.A.)
2) realizou uma transação da mesma natureza (alienou partes de capital social)
3) tendo por objecto um produto idêntico (partes do capital social da L... S.A.)
4) em quantidade análoga (30% no primeiro caso, 51% no segundo)
5) em termos e condições substancialmente idênticos (em ambos os casos os contratos estão padronizados)
6) com uma entidade independente (a N... SGPS S.A.)
7) no mesmo mercado (o mercado do fornecimento de energia eléctrica de parques fotovoltaicos na Região Autónoma da Madeira).
E não se passou demasiado tempo entre as transacções comparadas, o que preenche ainda o requisito do § 3.68 das Diretrizes da OCDE, “In principle, information relating to the conditions of comparable uncontrolled transactions undertaken or carried out during the same period of time as the controlled transaction ("contemporaneous uncontrolled transactions") is expected to be the most reliable information to use in a comparability analysis, because it reflects how independent parties have behaved in an economic environment that is the same as the economic environment of the taxpayer’s controlled transaction”.
Está assim preenchido o requisito do “grau mais elevado de comparabilidade” que autoriza a aplicação do “método do preço comparável de mercado”.
E o preenchimento de todos os requisitos de comparabilidade permite concluir-se, nos termos e para os efeitos do art. 4º, 3 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, que os negócios de 31 de Outubro e 4 de Novembro de 2009, por um lado, e o negócio de 2 de Julho de 2010, por outro, são operações comparáveis porque “são substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares”.
Comprovada que tinha sido a comparabilidade desses negócios, cabia à Requerente o ónus de reunir a prova que permitisse demonstrar que os termos e condições estabelecidos na transacção de 2 de Julho de 2010 se regeram pelo princípio da plena concorrência, isto é, que foram em tudo idênticos aos que se verificariam num contexto de ausência de relações especiais (o dos negócios de 31 de Outubro e 4 de Novembro de 2009, ou outro contexto qualquer). O objectivo do sujeito passivo tinha que ser, pois, o de determinar um intervalo de preços que pudesse ser considerado de plena concorrência, por forma a evidenciar que o preço por si praticado se enquadrava naquele intervalo e, portanto, nenhum ajustamento é devido. Incumbia à Requerente fazê-lo. Não o conseguiu.
II. 4. CONCLUSÕES
Face a tudo o exposto, impõe-se concluir que, não tendo a Requerente justificado ou demonstrado a aderência ao Princípio da Plena Concorrência das condições estabelecidas na venda das participações detidas na L..., S.A. em 2 de Julho de 2010, fica justificada a intervenção em sede de Preços de Transferência para efeitos de tributação em IRC, com uma correcção positiva ao lucro tributável no exercício de 2010 (no montante de €569.517,00), de modo a que esse lucro tributável não fosse diferente daquele que seria apurado na ausência de relações especiais.
Estando-se, na arbitragem tributária, num contencioso de mera legalidade, interessa somente apreciar se é adequado à situação o método adoptado pela Requerida, nas medidas adoptadas para a liquidação corrigida do imposto e na correspondente fundamentação. Se o método escolhido tiver sido o mais adequado, o acto será mantido na ordem jurídica.
E ficou comprovado que o método escolhido pela Requerida foi efectivamente o mais adequado. Não se descortina qualquer erro sobre os pressupostos de facto ou de Direito.
Nenhuma ilegalidade foi cometida.
Não cabe a um contencioso de mera legalidade explorar os efeitos da indefinição, ou da falta de definição precisa, do que seja “identidade substancial”, ou “elevado grau de comparabilidade”, ou “analogia e similaridade suficiente”, cláusulas gerais e conceitos indeterminados contidos nas normas legais e convencionais que conferem ao intérprete e ao aplicador uma margem de interpretação e aplicação de critérios positivados – para colocar fasquias de rigor superiores aos contidos nessa já ampla margem.
No fundo, ilegitimamente transferindo para o domínio da legalidade as considerações, cada vez mais numerosas e cada vez mais convincentes, quanto aos graves problemas de aplicabilidade do regime legal, nacional e internacional, dos preços de transferência, e até quanto à conveniência de abandono, a curto prazo, das soluções que hoje predominam – porque, como argumentámos inicialmente nesta Declaração, enquanto o regime fiscal dos preços de transferência não for revogado e substituído por outro, não dispomos senão dele, e por isso os juízos de estrita legalidade não podem enredar-se em meras constatações de impraticabilidade ou exigências inatingíveis de rigor absoluto de cálculo, sob pena de destruirmos sistematicamente, e prematuramente, o único meio de que dispomos, por ora, para lidar com o fenómeno.
Isso seria ainda presumir, erradamente, que caberia à AT recolocar-se, nos seus critérios de avaliação e reacção, nessa área de dúvidas doutrinais, subscrevendo-as, derrogando na sua actuação a margem de legalidade, já de si ampla, de que dispõe para legitimar a sua actuação nesta área do regime fiscal dos preços de transferência.
Isso, sim, constituiria uma verdadeira e própria ilegalidade, face às normas em vigor: ora a actuação da AT deve cingir-se à estrita legalidade, não podendo acompanhar os desafios intelectuais – e as dúvidas e as incertezas, por mais legítimas que sejam – da doutrina.
Por tudo o que antecede, o meu raciocínio diverge do dos meus Ilustres Co-árbitros no presente processo; e, se tivesse procedido, conduziria a julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, à manutenção dos actos tributários de liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício de 2010, nº 2013..., e respectiva demonstração de acerto de contas nº 2013...; em suma, conduziria à absolvição, neste processo, da Autoridade Tributária e Aduaneira.
(Fernando Araújo)