Decisão Arbitral
Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Francisco Carvalho Furtado e Dr. Emanuel Augusto Vidal Lima, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 04-04-2014, acordam no seguinte:
1. Relatório
“A…” Sociedade Unipessoal Lda., NIF …, com sede na Avenida …, …, em …(doravante “A ou “Requerente”), na sequência do despacho de 01-11-2013 proferido por delegação do Director de Finanças de Faro que indeferiu a reclamação que apresentou nos termos do artigo 131.º do Código de Procedimento de Processo Tributário (CPPT) dos actos de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) de Setembro de 2011 a Abril de 2013 no valor cumulado de € 853.351,89 veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, e 15.º e seguintes, Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), deduzir pedidos de declaração de ilegalidade e anulação parcial dos referidos actos de autoliquidação e do acto de indeferimento da reclamação necessária que os confirmou.
A Requerente optou pela não designação de árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, o Dr. Francisco Carvalho Furtado e o Dr. Emanuel Augusto Vidal, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 04-04-2014.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que suscitou a excepção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria e defendeu que, a assim, não se entender, que o pedido deve ser julgado improcedente.
Na reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por a Autoridade Tributária e Aduaneira ter declarado aceitar os factos alegados pela Requerente, foi dispensada produção de prova testemunhal e as Partes produziram alegações orais.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não se vislumbra qualquer outra nulidade.
2. Questão da incompetência do Tribunal Arbitral
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita a questão da incompetência do Tribunal Arbitral por, em suma, a Requerente pretender o reconhecimento do direito à devolução da quantia de imposto que entende ter sido liquidada ilegalmente aos seus clientes e, à luz do artigo 2º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreender, entre outras, a apreciação de pretensões relativas à "declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta".
A Autoridade Tributária e Aduaneira entende que daí resulta, de forma inequívoca, ter o legislador optado por não contemplar (no RJAT) a possibilidade de apreciação de pedidos tendentes ao reconhecimento de direitos em matéria tributária.
A Requerente defende que os actos de liquidação de IVA as seus clientes à taxa de 23% foi ilegal, porque deveria ter sido aplicada a taxa de 6%, e apresentou uma reclamação graciosa em que apresentou a sua pretensão e que foi indeferida.
O pedido formulado pela Requerente é o seguinte:
Nestes termos e nos demais de Direito que serão doutamente supridos por V.Exas, deve a presente acção arbitral ser julgada inteiramente provada e procedente, e por via disso, com as inerentes consequências de lei, declarados ilegais e parcialmente anulados os actos de autoliquidação de IVA de Setembro de 2011 a Abril de 2013 pelo valor global de € 853.351.89 e bem assim o acto de indeferimento da reclamação necessária em tempo deles apresentada que os confirmou».
É inequívoco, assim, que a Requerente pretende, em primeira linha, ver declarada a ilegalidade de actos de autoliquidação de IVA, directamente e através da declaração de ilegalidade do acto que indeferiu a reclamação graciosa.
Por isso, o pedido formulado é abrangido pela competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, que inclui a competência para apreciação de pretensões de «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» [artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT].
Para além disso, da referência feita no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT ao artigo 102.º, n.º 2, do CPPT, que se refere à impugnação de decisões de reclamações graciosas, conclui-se que o pedido de apreciação da legalidade de actos de liquidação pode ser apresentado na sequência de decisões deste tipo.
A pretensão de receber as importâncias que tenham sido liquidadas de forma ilegal é uma consequência da eventual declaração de ilegalidade, no âmbito do dever de «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado», referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, pelo que a existência de essa pretensão não afasta a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, antes pressupõe a prévia declaração de ilegalidade dos actos de liquidação.
Por isso, improcede a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3. Matéria de facto
3.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente “A”, Sociedade Unipessoal Lda, é um sujeito passivo de IRC, residente em território nacional e enquadrada no regime normal de IVA de periodicidade mensal;
b) A Requerente tem como actividade principal a exploração de aldeamentos turísticos com serviço de restauração;
c) A Requerente é proprietária de um estabelecimento de alojamento turístico;
d) O estabelecimento da ora Requerente integra todos os elementos típicos que caracterizam a generalidade dos estabelecimentos destinados ao alojamento turístico, prestando nele os serviços que se prestam nos hotéis;
e) O estabelecimento da Requerente dispõe de quartos, de 96 moradias totalmente equipadas e prontas a ocupar e utilizar que gozam de um serviço diário de arrumação e limpeza, reposição de toalhas, roupa de cama e de consumíveis de higiene pessoal;
f) O estabelecimento referido integra campos para a prática de ténis e ginásio, salão de jogos, recepção, restaurante, bares, campo de futebol, piscinas exterior e interior, sauna e jacuzzi, parque infantil, espaços comuns de descanso e um cabeleireiro, entre outros equipamentos;
g) O estabelecimento da Requerente presta serviços acessórios aos clientes nele hospedados, designadamente serviços de atendimento personalizado, refeições ou outros serviços complementares específicos como aulas monitorizadas de várias práticas desportivas e outras actividades lúdicas;
h) A Impugnante presta todos os seus serviços ao público em geral, mas oferece condições mais vantajosas aos designados membros do “A” (Clube).
i) A qualidade de membro do Clube confere aos clientes o direito de uso para alojamento temporário de uma determinada moradia durante uma determinada semana de cada ano, a preços preferenciais;
j) A qualidade de membro do Clube depende de um pagamento anual que dispensa o pagamento de qualquer outra contraprestação pelo alojamento, mas que é tendencialmente inferior ao preço de idêntico alojamento cobrado aos demais clientes;
k) Caso falte a qualquer pagamento anual, o cliente perderá definitivamente a sua qualidade de membro e passará a ser tratado como qualquer outro cliente, podendo apenas ocupar uma moradia disponível mediante o pagamento do preço devido por qualquer cliente não membro do Clube;
l) O serviço que a Requerente presta a todos os seus clientes membros e não membros do Clube é idêntico;
m) O serviço que a Requerente presta a todos os seus clientes – membros e não membros do Clube – consiste em alojamento em estabelecimento do tipo hoteleiro;
n) Sobre o valor do pagamento anual facturado a clientes membros do Clube, a Requerente vinha liquidando IVA à taxa normal, ao passo que sobre o valor facturado aos demais clientes pelo alojamento nas mesmas moradias vinha liquidando IVA à taxa reduzida;
o) Dada a identidade dos serviços que presta a todos os seus clientes, a Requerente entendeu que devia tratá-los de modo uniforme para efeitos da sua sujeição a IVA;
p) Para tanto, passou a liquidar IVA à taxa reduzida também sobre o pagamento anual facturado aos membros do Clube, a título de alojamento, nos meses de Fevereiro a Agosto de 2011.
q) De modo a afastar qualquer dúvida sobre esse seu entendimento, a Requerente apresentou, em 28-03-2011, um pedido de informação vinculativa;
r) A informação vinculativa da Direcção de Serviços do IVA dada no processo n.º …, sancionada pelo Senhor Director-Geral, e notificada à ora impugnante no dia 3-10-2011, fixou o entendimento de que os serviços prestados a membros do Clube são sujeitos a IVA à taxa normal e não à taxa reduzida que a Requerente aplicara na sua facturação;
s) Fundamentou-se a referida informação vinculativa que o pagamento anual é relativo a um conjunto de direitos e não apenas ao direito de ocupação de uma semana em determinada moradia e como tal configura uma operação sujeita a imposto, tributada à taxa normal de IVA, que não se subsume numa prestação de serviço de alojamento de tipo hoteleiro;
t) Em face da informação obtida, a Requerente autoliquidou adicionalmente, em 31-10-2011, sobre o valor do mesmo serviço, imposto à taxa normal por via de declarações de substituição relativas a Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2011;
u) Ao cumprir a informação vinculativa, a Requerente entendeu dar azo a um erro em cada um dos referidos actos de autoliquidação adicional de IVA;
v) Por essa razão, deduziu reclamações graciosas contra todos os actos de autoliquidação adicional de IVA de Fevereiro a Agosto de 2011, todos datados de 31 de Outubro de 2011;
w) As reclamações deduzidas contra os actos de autoliquidação de IVA de Fevereiro e de Março de 2011 que aplicavam a taxa normal foram indeferidas por decisão do Director Adjunto da Direcção de Finanças de Faro, consignada nos processes n.ºs … e … dessa Direcção de Finanças;
x) Desse indeferimento deduziu a Requerente impugnação arbitral que correu termos no CAAD com o n.º 117/2012-T;
y) Em 21-05-2013, foi proferido o acórdão do Tribunal Arbitral, que julgou totalmente procedente o pedido e anulou os actos de autoliquidação de IVA de Fevereiro e de Março de 2011 que aplicavam a taxa normal (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
z) A reclamação deduzida contra o acto de autoliquidação de IVA de Abril de 2011 que aplicava a taxa normal foi igualmente indeferida por decisão do Director Adjunto da Direcção de Finanças de Faro, consignada no processo n.º … dessa Direcção de Finanças;
aa) Desse indeferimento deduziu a Requerente impugnação judicial que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé com o n.º …/13.0BELLE;
bb) Em 31-10-2013, foi proferida a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que julgou totalmente procedente o pedido e anulou o acto de autoliquidação de IVA de Abril de 2011 que aplicava também a taxa normal (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
cc) A reclamação deduzida contra os actos de autoliquidação de IVA de Maio a Agosto de 2011 que aplicavam a taxa normal foi integralmente deferida por decisão do Director Adjunto da Direcção de Finanças de Faro, proferida no processo n.º … dessa Direcção de Finanças que logo os anulou (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
dd) O preço estabelecido pela Requerente junto dos seus clientes membros do Clube pelo serviço de alojamento hoteleiro que lhes presta é, desde sempre, um preço final com IVA incluído;
ee) O imposto apurado, quer seja ou não legalmente devido, acha-se incorporado nesse preço e corre por conta e risco da Requerente;
ff) Se liquidar imposto superior ao devido, a Requerente verá a sua margem reduzir-se e se liquidar imposto inferior ao devido, a Requerente terá de suportar a parcela adicional sem que a possa exigir ao seu cliente;
gg) Entre Fevereiro e Agosto de 2011, a Requerente facturou o serviço de alojamento hoteleiro à taxa reduzida de IVA;
hh) Confrontada com a informação vinculativa referida, a Requerente autoliquidou nas sobreditas declarações de substituição a parcela adicional de IVA que entregou ao Estado sem que a pudesse exigir dos seus clientes;
ii) Entre Setembro de 2011 e Abril de 2013, a Requerente cobrou pelo mesmo serviço de alojamento hoteleiro idêntico preço ao que cobrara aos seus clientes membros do Clube entre Fevereiro e Agosto de 2011, mas nele incluiu IVA à taxa normal de 23 % que autoliquidou nas declarações periódicas respectivas e entregou ao Estado;
jj) Sem que pudesse cobrar aos seus clientes qualquer importância adicional ao valor do encargo anual fixo que com estes contratou, a ora Impugnante reduziu a sua margem, para que no mesmo preço pudesse incluir IVA de 23%;
kk) Entre Fevereiro e Agosto de 2011, como entre Setembro de 2011 e Abril de 2013, a Requerente não cobrou aos seus clientes qualquer quantia adicional ao valor do encargo anual fixo que se achava estabelecido como contrapartida do serviço de alojamento hoteleiro que lhes prestou;
ll) Nos meses de Setembro de 2011 a Abril de 2013, a Requerente, aceitou integralmente a referida Informação Vinculativa e pagou o valor adicional dali decorrente, referente à diferença entre o IVA à taxa normal e à taxa reduzida, relativamente aos membros do Clube, de harmonia com o quadro que segue:
mm) A partir de Setembro de 2011, a ora Requerente passou a liquidar imposto aos seus clientes à taxa de 23 %;
nn) Relativamente aos períodos de Setembro de 2001 a Abril de 2013, foi apresentada pela Requerente reclamação graciosa, relativamente a todas as liquidações mensais de IVA, que teve o n.º …;
oo) A reclamação graciosa referida na alínea anterior não foi deferida, por a Autoridade Tributária e Aduaneira ter entendido que não foi a Requerente quem suportou a diferença entre o IVA à taxa normal e à taxa reduzida;
pp) A decisão de indeferimento da referida reclamação graciosa, proferida em 01-11-2013 pelo Senhor Director de Finanças de Faro em regime de substituição, manifesta concordância com uma informação dos respectivos serviços, que consta do documento n.º 1 FSCC RG 02 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:
«Relativamente aos períodos de IVA reclamados nos vários processos apresentados, temos de considerar dois períodos distintos, sendo o primeiro respeitante aos meses de Fevereiro de 2011 a Agosto do mesmo ano, período em que a reclamante, tendo cobrado aos Membros do Club, IVA à taxa reduzida, suportou, após conhecimento da Informação vinculativa emitida pela Administração Tributária, a diferença do IVA para a taxa Normal, tendo essa diferença sido entregue conjuntamente com as declarações de substituição para cada um daqueles meses e posteriormente restituída por força do acórdão do Tribunal Arbitral, e o segundo, que corresponde aos meses de Setembro de 2011 a Abril de 2013, período em que o contribuinte entregou, ao Estado, o IVA cobrado à taxa Normal aos seus membros do clube, razão pela qual, não tendo suportado qualquer IVA adicional, também não terá direito à restituição ou dedução de qualquer quantia, uma vez que se limitou a entregar o imposto cobrado aos seus clientes, e não se conhecem, de conformidade com a informação dos Serviços de Inspecção, já atrás referida, lançamentos contabilísticos referentes a regularizações a favor do sujeito passivo (pela rectificação do imposto para menos), nem foram cumpridos os requisitos exigidos pelo art. 78º, nomeadamente no seu nº 5, do CIVA».
qq) A Requerente cobrava um preço anual fixo, com IVA incluído, aos seus clientes que eram membros do clube assumindo ela própria, através da redução do seu rendimento, o encargo de suportar a diferença entre o IVA à taxa norma e à taxa reduzida;
rr) Em 31-01-2014, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
3.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
3.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral e que constam do processo administrativo e com base em acordo das Partes, pois a Autoridade Tributária e Aduaneira, na reunião referida no artigo 18.º do RJAT aceitou todos os factos alegados pela Requerente.
4. Matéria de direito
4.1. Questão que é objecto do processo
É defendido pela Requerente e aceite pela Autoridade Tributária e Aduaneira que, nos meses de Setembro de 2011 a Abril de 2013, o IVA foi liquidado pela Requerente aos membros do clube A… à taxa normal quando era devido IVA a taxa reduzida.
A controvérsia assenta apenas no entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, referido no parecer em que assentou a decisão da reclamação graciosa, de que a Requerente «não tendo suportado qualquer IVA adicional, também não terá direito à restituição ou dedução de qualquer quantia, uma vez que se limitou a entregar o imposto cobrado aos seus clientes, e não se conhecem ... lançamentos contabilísticos referentes a regularizações a favor do sujeito passivo (pela rectificação do imposto para menos), nem foram cumpridos os requisitos exigidos pelo art. 78º, nomeadamente no seu nº 5, do CIVA».
Assim, a questão a decidir é a de saber se, apesar de a Requerente ter liquidado indevidamente aos seus clientes membros do clube IVA à taxa normal e não tendo havido qualquer rectificação, tem direito a impugnar os actos de autoliquidação com fundamento na ilegalidade dessa liquidação e, em consequência, reaver o IVA liquidado em excesso.
Como se está perante um imposto de génese europeia e sujeito a regulamentação da União Europeia, é de acatar a jurisprudência do TJUE sobre esta matéria, o que é corolário da obrigatoriedade do reenvio prejudicial, prevista no § 3 do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
4.2. Apreciação da questão
Como resulta da posição assumida pela Autoridade Tributária e Aduaneira quanto à aplicabilidade da taxa reduzida de IVA às operações a que a Requerente aplicou a taxa normal, é ponto assente que as liquidações cuja declaração de ilegalidade a Requerente pretende enfermam efectivamente de ilegalidade, o que não é sequer objecto de controvérsia.
Por isso, a real causa da posição da Autoridade Tributária e Aduaneira de indeferimento da reclamação graciosa em que a Requerente pretendeu ver declarada tal ilegalidade, é a falta de legitimidade da Requerente para pedir tal declaração e receber a quantia liquidada indevidamente, derivada de, no entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, a Requerente não ser lesada pela ilegal liquidação de IVA, que foi integralmente repercutido nos seus clientes membros do clube. Numa situação deste tipo pode-se ver, doutra perspectiva, a criação de uma situação de enriquecimento sem causa da Requerente ao permitir-se-lhe a obtenção de quantias de IVA que cobrou aos seus clientes.
Mas, se é certo que há situações deste tipo em que se pode configurar uma situação de enriquecimento sem causa que justifica o não reconhecimento de legitimidade para impugnar liquidações de tributos repercutidos em terceiros, também há situações em que isso não sucede, como já reconheceu o TJUE no acórdão 06-09-2011, proferido no processo n.º C-398/09 (citado pela Requerente) em que se entendeu o seguinte:
«As regras do direito da União relativas à repetição do indevido devem ser interpretadas no sentido de que a repetição do indevido só pode dar lugar a um enriquecimento sem causa na hipótese de os montantes indevidamente pagos por um sujeito passivo, por força de um imposto cobrado num Estado-Membro em violação do direito da União, terem sido repercutidos directamente no comprador».
Por outro lado, como se entendeu no acórdão do TJUE de 21-02-2000, proferido no processo n.º C-441/98, «embora o direito comunitário não se oponha a que um Estado-Membro recuse o reembolso de taxas cobradas em violação das suas disposições desde que se prove que esse reembolso provocará um enriquecimento sem causa, exclui a aplicação de toda e qualquer presunção ou regra de prova destinada a fazer recair no operador em causa o ónus de provar que os encargos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e destinada a impedir a apresentação de elementos de prova para contestar uma alegada repercussão».
Assim, em sintonia com esta jurisprudência do TJUE, a resposta à questão da legitimidade da Requerente para pedir a declaração de ilegalidade dos actos de autoliquidação de IVA, depende de apurar, à face das concretas circunstâncias de facto, se com o reembolso à Requerente do IVA liquidado ilegalmente se gera ou não uma situação de enriquecimento sem causa. Ou, doutra perspectiva, a solução da questão depende de saber se a Requerente foi ou não lesada pela liquidação ilegal.
Ora, no contexto fáctico que resulta da prova produzida, foi a Requerente quem acabou por suportar a diferença entre o IVA à taxa normal e o IVA à taxa reduzida, no período de Setembro de 2011 a Abril de 2013.
Na verdade, provou-se que a Requerente cobrava a todos os seus clientes um preço idêntico, com IVA incluído, o que se reconduzia a que, quando indevidamente liquidava o IVA à taxa normal, a Requerente obtinha pelos serviços prestados um rendimento inferior ao que auferia quando aplicava a taxa reduzida.
Aliás, a prática da Requerente compreende-se perfeitamente, pois, tendo a taxa normal sido aplicada aos clientes que eram membros do clube e não ao público em geral, a manutenção de um rendimento fixo pelos serviços a que acrescesse o IVA teria como consequência que os membros do clube teriam um tratamento mais desfavorável do que do público em geral quanto ao preço que pagariam pelos mesmos serviços, o que não teria razoabilidade, pois é óbvio que se a qualidade de membro do clube pode justificar alguma discriminação em relação ao público em geral, a discriminação será positiva, traduzida num preço mais favorável, e não negativa.
Nestas circunstâncias, tem de se concluir que as consequências da ilegalidade da liquidação de IVA recaíram sobre a Requerente e não sobre os membros do clube a quem cobrou IVA à taxa normal, pois estes membros beneficiaram de uma diminuição do rendimento da Requerente, em medida igual à diferença entre a taxa normal e a taxa reduzida de IVA, para que o preço que pagaram pelos serviços não excedesse o que era pago pelo público em geral, relativamente aos mesmos serviços.
Sendo assim, a restituição à Requerente, como consequência da ilegalidade da liquidação, do valor do IVA suportado em excesso não implicará uma situação de enriquecimento sem causa, pois, apesar da aparente repercussão desse excesso nos clientes membros do clube, a realidade é a de que foi a Requerente que o suportou, o que se torna patente quando se constata que o preço pago pelos membros do clube era anual e fixo, não tendo sido alterado nos meses em que a Requerente passou a liquidar IVA à taxa reduzida a todos os clientes.
Por outro lado, na situação em apreço, em que se considera provado que foi a Requerente que suportou o IVA liquidado indevidamente, não há lugar à exigência feita no artigo 78.º, n.º 5, do CIVA, que estabelece que, quando o «imposto sofrer rectificação para menos, a regularização a favor do sujeito passivo só pode ser efectuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considera indevida a respectiva dedução».
Na verdade, esta norma é aplicável aos casos de rectificação efectuada pelo próprio sujeito passivo e não àqueles em que há uma declaração jurisdicional de ilegalidade, que tem como corolário o dever da Autoridade Tributária e Aduaneira reconstituir a situação que existiria se o acto ilegal não tivesse sido praticado [artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT], independentemente de o adquirente dos serviços ter ou não conhecimento da ilegalidade.
Pelo exposto, conclui-se que a Requerente tem razão e que deve ser declarada a ilegalidade das autoliquidações de IVA referidas.
5. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar improcedente a excepção da incompetência do Tribunal Arbitral;
b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
c) Declarar a ilegalidade parcial dos actos de autoliquidação de IVA praticados pela Requerente no período de Setembro de 2001 a Abril de 2013, na parte em que foi liquidado IVA à taxa normal em vez de IVA à taxa reduzida, no valor global de € 853.351,89;
d) Declarar a ilegalidade da decisão do despacho de 01-11-2013, que indeferiu a reclamação graciosa n.º … .
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 853.351,89.
7. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 12.240,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 11 de Julho de 2014
Os Árbitros
(Jorge Manuel Lopes de Sousa)
(Francisco Carvalho Furtado)
(Emanuel Augusto Vidal Lima)