Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 196/2013-T
Data da decisão: 2014-07-31  IRS  
Valor do pedido: € 151.354,19
Tema: Mais-valias; Cláusula-geral antiabuso
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Decisão

 

 

       Os árbitros, Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Dr. José Rodrigo de Castro e Prof. Doutor. Miguel Patrício (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), de acordo com o disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (adiante “RJAT”), para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 8 de Outubro de 2013, acordam no seguinte:

 

 

  1. RELATÓRIO

 

A…, doravante Requerente, contribuinte n.º …, com domicílio na Rua …, em Lisboa, requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do RJAT, para apreciação da ilegalidade dos actos tributários de liquidação de IRS e dos inerentes juros compensatórios sob os n.ºs 2013 …, respectivamente, referentes ao ano 2009, no valor global de € 151.354,19.

 

Alegou, em síntese, o seguinte:

 

  1. As acções transmitidas foram detidas por um período superior a 12 meses e, nessa medida, as mais-valias obtidas com a respectiva alienação estavam excluídas de tributação em IRS, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 2, alínea a) do Código deste imposto, na redacção em vigor à data dos factos;
  2. A aplicação da norma anti-abuso constante do artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”) é ilegal, pois não se verificam os requisitos indispensáveis à aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso (adiante também referida por “CGAA”), desde logo, por não ter sido por si celebrado qualquer acto ou negócio de carácter ardiloso, sendo [a Requerente] livre de decidir se pretendia alienar a sua participação social em forma de quotas ou de acções, não representando a opção pelas acções qualquer abuso de formas jurídicas ou comportamento antijurídico;
  3. A transformação para a forma jurídica de sociedade anónima foi adequada ao resultado pretendido que era o de alienar a participação social;
  4. Não lhe teria sido possível alienar a sua participação social se não tivesse previamente transformado a sociedade por quotas em sociedade anónima;
  5. A transmissão da participação social foi realizada entre entidades sem qualquer vínculo entre si;
  6. A sociedade transformada – Farmácia …, S.A. – apenas voltou a alterar a sua forma jurídica para sociedade por quotas em 30 de Junho de 2011, ou seja, mais de 2 anos após a alienação da participação social por parte da Requerente;
  7. A não tributação em IRS das mais-valias auferidas pela Requerente constitui um mero resultado da opção legítima de alienação da sua participação social sob a forma de acções;
  8. Não se verifica qualquer reprovação normativo-sistemática referente ao regime fiscal aplicável à transmissão de participações sociais por parte da Requerente;
  9. A Autoridade Tributária e Aduaneira procura, retroactivamente, eliminar a exclusão de tributação das mais-valias obtidas pela Requerente, sustentando existir uma alegada lacuna na Lei que deverá ser integrada através da aplicação da CGAA.

                                                                              

Conclui pela procedência da acção, pedindo a declaração de ilegalidade das liquidações de IRS e de juros compensatórios, a restituição da importância paga no montante de € 151.354,19 e a indemnização da Requerente de todos os prejuízos sofridos incluindo os respectivos juros indemnizatórios. 

 

Com a petição juntou 16 documentos, não tendo sido arroladas testemunhas.


 

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta e sustenta, por impugnação, que:

 

  1. A transformação temporária da natureza jurídica da “Farmácia…, Lda.” de sociedade por quotas em sociedade anónima visou, como principal objectivo, beneficiar a Requerente da exclusão de tributação que vigorava para as mais-valias provenientes da alienação de acções detidas há mais de 12 meses;
  2. Uma vez obtido esse benefício, passado pouco tempo, a sociedade voltou a transformar-se em sociedade por quotas, o que configura um comportamento pré-determinado de elisão fiscal desconforme com a ordem jurídico tributária, através de um esquema artificioso;
  3. Tal transformação e reposição da forma societária originária se ficou a dever apenas ao objectivo de não pagar impostos pelo que é aplicável a CGAA prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, sem prejuízo de o acto de transformação da sociedade ser, em si mesmo, um acto válido, eficaz e lícito;
  4. Não se identifica qualquer razão – económica, financeira ou comercial – que tornasse necessária a transformação da sociedade porque aquela sempre foi uma pequena empresa, com actividade regular e estável, não sendo por acaso que regressou à forma antiga;
  5. Se encontram, assim, reunidos os quatro elementos para aplicação da CGAA: o elemento meio (esquema artificioso), o elemento resultado (supressão do encargo fiscal), o elemento intelectual (motivação exclusivamente fiscal) e o elemento normativo (reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida);
  6. Se impunha reconstituir a situação tributária que existiria caso não se tivesse verificado o esquema abusivo, por forma a tributar a Requerente de acordo com a sua real capacidade contributiva, na salvaguarda da prossecução da justa repartição da carga tributária e na prossecução das necessidades financeiras do Estado.

 

Conclui dever a acção ser julgada improcedente. 

 

Juntou a estes autos o processo administrativo, de que se deu conhecimento à Requerente.

 

Em 16 de Janeiro de 2014, teve lugar, na sede do CAAD, a primeira reunião do Tribunal Arbitral Colectivo, em conformidade com o artigo 18.º do RJAT. Não tendo sido deduzidas ou identificadas excepções, foram as partes notificadas para alegações escritas e fixada a data para a prolação da decisão.

 

As partes apresentaram alegações por escrito, mantendo as posições anteriormente enunciadas.

 

Em 25 de Março de 2014 e em 6 de Junho de 2014 foi decidido, fundamentadamente, prorrogar por 2 meses o prazo para a prolação da decisão arbitral, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT.

 

 

  1. SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, de acordo com o artigo 2.º do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

 

  1. QUESTÕES A DECIDIR

 

A principal questão a apreciar e decidir prende-se com a aferição, no caso concreto, do preenchimento dos quatro pressupostos cumulativos de aplicação do regime anti-abuso constante do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, consubstanciados (i) no meio artificioso, (ii) motivado exclusivamente por um propósito fiscal, (iii) de redução, eliminação ou diferimento do imposto, (iv) sendo o resultado alcançado não querido pelo legislador e, por essa razão, objecto de reprovação normativo-sistemática.

Importa, de igual modo, aquilatar dos fundamentos e extensão do pedido indemnizatório deduzido pela Requerente.

 

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO

 

  1. DOS FACTOS

 

  1. Factos provados

 

  1.  Em 14 de Agosto de 2002, foi por A…, aqui Requerente, celebrado um contrato de sociedade unipessoal por quotas, tendo a sociedade adoptado a firma “Farmácia … – Unipessoal, Limitada” – de acordo com a cópia da escritura pública outorgada no Quinto Cartório Notarial de Lisboa, junta com o pedido arbitral como Documento 1, e com a Certidão Permanente constante do processo administrativo (“PA”) 2.

 

  1. A Requerente recebeu uma carta de oferta, datada de 25 de Junho de 2008, subscrita por B…, para aquisição de 100% do capital social da sociedade Farmácia … – Unipessoal, Limitada, pelo montante de 1.300.000 euros, ajustável em função dos activos e dos passivos da sociedade – cf. cópia da oferta para aquisição junta com o pedido arbitral como Documento 2 (também constante do PA4).

 

  1. Consta como condição da referida oferta a “Transformação jurídica da Sociedade em Sociedade Anónima” – cf. cópia da oferta para aquisição junta com o pedido arbitral como Documento 2 (também constante do PA4).

 

  1. Em 22 de Julho de 2008, foi, entre a Requerente e B…, celebrado um contrato-promessa de compra e venda de acções, cujo Considerando E. menciona: “(…) a Promitente vendedora [ora Requerente] e Promitente Compradora acordaram e condicionaram a compra e venda referida no número anterior à transformação jurídica da Sociedade em Sociedade Anónima, compreendendo essa transformação a realização de um aumento de capital da sociedade para o montante mínimo legal necessário à transformação jurídica da sociedade em sociedade anónima (…)”  – cf. cópia do contrato-promessa de compra e venda de acções junto com o pedido arbitral como Documento 3.

 

  1.  De acordo com a Cláusula Primeira, n.º 1 deste contrato-promessa “(…) a Promitente vendedora promete alienar à Promitente compradora, ou a quem esta indicar, que por sua vez lhas promete adquirir, livre de quaisquer ónus e encargos, as Acções de que a Promitente vendedora será titular após transformação jurídica da Sociedade em Sociedade Anónima, transmitindo-se com a aquisição das acções todos os direitos económicos e sociais respectivos” pelo preço de 1.350.000 euros, em conformidade com a Cláusula Terceira – cf. cópia do contrato-promessa de compra e venda de acções junto com o pedido arbitral como Documento 3.

 

  1. Em 26 de Fevereiro de 2009, é inscrito no Registo Comercial de Lisboa o aumento de capital social da Farmácia …– Unipessoal, Limitada de 7.500 euros para 10.000 euros, por incorporação de reservas – cf. Certidão Permanente constante do PA2 e acta n.º 11 constante do PA4.

 

  1. Em 27 de Fevereiro de 2009, são inscritos no Registo Comercial de Lisboa o aumento de capital em 40.000 euros da Farmácia... – Unipessoal, Limitada, subscrito em dinheiro com a admissão de quatro novos sócios (fixando-se o capital social em 50.000 euros) e, bem assim, a transformação da Farmácia … – Unipessoal, Limitada em sociedade anónima – cf. Certidão Permanente constante do PA2 e acta n.º 12 constante do PA4.

 

  1. A transformação da Farmácia … – Unipessoal, Limitada em sociedade anónima foi precedida de um relatório justificativo, organizado pela gerência dessa sociedade no qual é mencionada a necessidade de adequação da sua estrutura jurídica-societária às necessidades reais da empresa. Este relatório considera que “o desenvolvimento empresarial da Sociedade deve ser acompanhado por uma modificação substancial da sua estrutura jurídica, conferindo-lhe maior agilidade na sua actuação e gestão quotidiana, também com a entrada de novos investidores” – cf. Relatório Justificativo junto à acta n.º 12 constante do PA4.

 

  1.  O capital social da Farmácia … ficou em consequência distribuído da seguinte forma:

 

  • Requerente, A…, 2.000 acções, 10.000 euros;
  • B…, 7.940 acções, 39.700 euros;
  • C…, 20 acções, 100 euros;
  • D…, 20 acções, 100 euros; e
  • E…, 20 acções, 100 euros,

cf. Certidão Permanente constante do PA2.

 

  1. No mesmo dia, isto é, em 27 de Fevereiro de 2009, foi celebrado o contrato definitivo de compra e venda de acções, pelo qual a Requerente vendeu à sociedade …, Lda., a titularidade de 2.000 acções do capital da Farmácia …, S.A. pelo preço de 1.372.500 euros, dos quais 22.500 euros correspondem a uma penalização pela possibilidade de diferimento do prazo de pagamento – cf. cópia do contrato de compra e venda de acções junto com o pedido arbitral como Documento 4.

 

  1. A sociedade …, Lda. tinha como única sócia e gerente B…. A sociedade declarou o seu início de actividade em 20 de Agosto de 2008 e a respectiva cessação em 1 de Março de 2009, tendo sido incorporada, por fusão, na sociedade Farmácia …, S.A., em 17 de Junho de 2009 – cf. Certidão Permanente constante do PA2 e actas n.ºs 14 e 15.

 

  1. A Requerente reportou no anexo G1, referente a “mais-valias não tributadas”, da Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS do ano 2009, submetida em 27 de Maio de 2010, a alienação onerosa de acções detidas há mais de 12 meses, pelo valor de realização de 1.372.500 euros, declarando como valor de aquisição 7.500 euros – cf. cópia da Declaração Modelo 3 e Anexos juntos com o pedido arbitral como Documento 5.

 

  1. Em 30 de Junho de 2011, a sociedade Farmácia …, S.A. retomou a forma jurídica de sociedade por quotas, alterou a sua denominação para Farmácia …, Lda. e a sua sede social para a freguesia da …, concelho de … – cf. Certidão Permanente constante do PA2 e acta n.º 18 constante do PA4.

 

  1. A transformação da sociedade Farmácia …, S.A. em sociedade por quotas foi precedida de um relatório justificativo subscrito pela sua administração [B…] que indica que esta operação “representa um realinhamento com a real estrutura da empresa, que é uma estrutura essencialmente familiar, a fim também de assegurar uma redução de custos com a manutenção de uma forma societária não adequada ao projecto de desenvolvimento, actual, da sociedade” – cf. Relatório Justificativo junto à acta n.º 18 constante do PA4.

 

  1. Em 9 de Janeiro de 2012, foi a Requerente notificada do projecto de aplicação de normas anti-abuso relativamente ao ano 2009, ao abrigo do artigo 63.º, n.ºs 4 e 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), para exercício do direito de audição no prazo de 30 dias – cf. cópia do ofício junto com o pedido arbitral como Documento 7.

 

  1. No entender da Autoridade Tributária e Aduaneira:
  1. Não existia nenhum motivo de natureza económica que justificasse a transformação da sociedade em sociedade anónima;
  2. Não era visível o interesse da Requerente em alterar a natureza jurídica da sociedade;
  3. Se a promitente-compradora tivesse interesse de natureza operacional em alterar a natureza jurídica da sociedade tê-lo-ia feito e não, como fez, passando novamente à figura de sociedade por quotas em momento posterior;
  4. A composição accionista não revelava a intenção de criação de qualquer unidade económica que justificasse a utilização da figura de sociedade anónima;
  5. A transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima permitiu à Requerente alienar a participação no capital dessa sociedade, redenominado em acções, pelo valor de € 1.372.500,00 com exclusão da tributação da mais-valia obtida, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 2, alínea a) do Código do IRS, substituindo uma operação sujeita a imposto (a alienação de quota) por outra, economicamente equivalente, não sujeita a tributação (venda de acções) passível de enquadramento na norma anti-abuso constante do artigo 38.º, n.º 2 da LGT;
  6. Pelo que “a transformação temporária da natureza jurídica da entidade empresarial “Farmácia …” de sociedade por quotas em sociedade anónima teve como principal e único objectivo evitar que o contribuinte A… ficasse sujeito a IRS, pela mais valia que, de facto, realizou na transmissão das partes sociais do capital que detinha na sociedade “Farmácia … Lda” que, no caso, corresponderia a um montante de imposto a pagar de € 136.500,00. Ficou também evidenciado que o negócio jurídico subjacente foi efectuado de forma ardilosa.”

cf. cópia do ofício junto com o pedido arbitral como Documento 7.

 

  1. A Requerente exerceu o direito de audição em discordância da aplicação da norma anti-abuso por considerar que:
  1. Não celebrou quaisquer actos ou negócios de carácter ardiloso;
  2. Em qualquer caso, sempre seria livre de decidir se pretendia alienar as suas participações sociais em forma de quotas ou de acções, não representando tal opção qualquer abuso de forma jurídica;
  3. Se não tivesse celebrado os negócios jurídicos em questão não lhe teria sido possível alienar as participações sociais nos termos e nas condições em que o fez;
  4. A não tributação em IRS resulta de consequência automática em virtude de norma legal expressamente consagrada, constituindo um mero resultado da opção legítima de alienação das suas acções,

 – cf. cópia do direito de audição junto ao pedido arbitral como Documento 8.

 

  1. No âmbito da ordem de serviço n.º OI201201331, de 23 de Março de 2012, sancionada por despacho de 28 de Março de 2012, foi determinado o procedimento inspectivo externo, de âmbito parcial (IRS), à Requerente com referência ao ano de 2009, cujo início ocorreu em 17 de Abril de 2012. Esta acção inspectiva integrou o procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT, para aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT – cf. Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”) junto ao pedido arbitral como Documento 13.

 

  1. Em 21 de Maio de 2012, foi a Requerente notificada para, novamente, querendo, se pronunciar sobre o Projecto de Aplicação da Cláusula Geral Anti-abuso o qual veio replicar e desenvolver a argumentação anteriormente invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira – cf. cópia do ofício e documentos anexos juntos com o pedido arbitral como Documento 9.

 

  1. A Requerente exerceu o direito de audição dando por integralmente reproduzido o direito de audição anterior, concluindo pela ilegitimidade da aplicação da cláusula geral anti-abuso – cf. cópia do “segundo” direito de audição junto ao pedido arbitral como Documento 10.

 

  1. Em 17 de Janeiro de 2013, foi a Requerente notificada para exercer o direito de audição sobre o Projecto de Relatório da Inspecção Tributária, o qual já incluía a autorização, por parte do Director Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, para a aplicação da CGAA – cf. cópia do ofício de notificação do Projecto de Relatório da Inspecção Tributária junto ao pedido arbitral como Documento 11.

 

  1. A Requerente exerceu o direito de audição sobre o teor do Projecto de Relatório da Inspecção Tributária, no qual reiterou o pedido de alteração do conteúdo e sentido da proposta de decisão, em virtude da falta de legitimidade para o recurso à aplicação da cláusula geral anti-        -abuso – cf. cópia do “terceiro” direito de audição junto ao pedido arbitral como Documento 12.

 

  1. Em 27 de Fevereiro de 2013 foi a Requerente notificada do Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), que mantém o recurso à aplicação da cláusula geral anti-abuso e determina a tributação em IRS, à taxa de 10%, de acordo com o artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS, incidente sobre a mais-valia fiscal de € 1.365.000,00 – cf. RIT junto ao pedido arbitral como Documento 13.

 

  1. Constituem fundamentos para as correcções constantes do RIT os que de seguida parcialmente se transcrevem:

 

C – Principais indicadores da actividade da sociedade “Farmácia …”

 

Entre 2006 e 2010 o contribuinte …. designado “Farmácia ….. Lda.”, “Farmácia … SA” e atualmente “Farmácia … Lda” teve o seguinte nível de actividade:


 

Anos

2006

2007

2008

2009

2010

V.Vendas/Proveitos €

543.215

611.727

588.278

604.864

774.212

Nº de trabalhadores

5

5

4

6

4

Custos c/ pessoal €

98.297

120.934

101.439

93.232

92.420

Fonte: Declaração anual/IES

 

Resulta da leitura do quadro que, entre 2006 e 2010, a empresa manteve um nível de actividade operacional semelhante.

 

D – Motivos invocados para justificar as alterações jurídicas efectuadas

 

A justificação para as alterações verificadas na fórmula jurídica da sociedade Farmácia …, estão refletidas no respetivo livro de atas donde destacamos as seguintes:

-------» ata nº 11 – trata particularmente do aumento do capital social da sociedade Farmácia …, Lda de € 7 500,00 para € 10 000,00.

-------» ata nº 12 – trata entre outros assuntos:

  • do aumento do capital social da sociedade Farmácia …, Lda para € 50 000,00;
  • da dispensa do exame do relatório justificativo da transformação da sociedade em anónima por um revisor oficial de contas independente;
  • transformação da sociedade em sociedade anónima;
  • aprovação do contrato de sociedade pelo qual a sociedade se passará a reger após a transformação;

-------» ata nº 14 – cujo ponto único era constituído pela apreciação e aprovação do projeto de fusão datado de 28/4/2009, por incorporação da sociedade… Unipessoal, Lda, com o NIPC ….

-------» ata nº 15 – cujo ponto único era a deliberação e aprovação da fusão por incorporação da sociedade …, Unipessoal, Lda, com o NIPC … na sociedade Farmácia …, S.A.

-------» ata nº 18 – em que, entre outros assuntos, é aprovada a transformação da sociedade Farmácia …, S.A. em sociedade por quotas.

 

  O relatório justificativo da transformação jurídica da sociedade por quotas Farmácia … Lda. em sociedade anónima, elaborado pela gerência, nos termos e para os efeitos do artº 132º do Código das Sociedades Comerciais, com data de 27/2/2009 salienta que: a transformação da sociedade em sociedade anónima é justificada pela necessidade de adequação da sua estrutura jurídica – societária às necessidades reais da empresa referindo que o tipo de “sociedade por quotas” e em especial, o respetivo subtipo de “sociedade unipessoal por quotas”, encontra-se essencialmente vocacionado para a organização da pequena empresa, revelando pouca maleabilidade no que respeita à caducidade de resposta da sociedade a novas situações.

“Nestes termos, entende-se que o desenvolvimento empresarial da sociedade deve ser acompanhado por uma modificação substancial da sua estrutura jurídica, conferindo-lhe maior agilidade na sua atuação e gestão quotidiana, também com a entrada de novos investidores.

A transformação tem ainda como objetivos o aumento do valor e eficiência da sociedade, através de uma estrutura societária habilitada a fazer face aos desafios do mercado.

Pretende-se, pois reforçar a empresa, por forma a conferir-lhe a maior capacidade financeira, solidez e estabilidade, proporcionando aos seus parceiros a integração numa organização mais forte e estruturada de forma mais adequada.

 

O relatório justificativo da transformação jurídica da sociedade anónima Farmácia …, S.A., em sociedade por quotas, elaborado pela administração, nos termos e para os efeitos do artº 132º do Código das Sociedades Comerciais, com data de 30/5/2011, refere, em defesa dessa transformação, que a alteração jurídica da sociedade anónima para sociedade por quotas representa um realinhamento com a real estrutura da empresa, que é uma estrutura essencialmente familiar, a fim de assegurar uma redução de custos com a manutenção de uma forma societária não adequada ao projecto de desenvolvimento à data da redação do relatório.

Será ainda de referir que paralelamente à transformação e atenta a deslocação do seu estabelecimento principal para o concelho de Oeiras, é mencionado que seria reajustada a denominação da sociedade em função da nova realidade.

 O relatório justificativo da transformação jurídica da sociedade anónima Farmácia …, S.A. em sociedade por quotas, com alteração da sua anterior denominação para Farmácia …, Lda, elaborado pela Sociedade de Revisores Oficiais de Contas …, nos termos e para os efeitos do artº 132º do Código das Sociedades Comerciais, com data de 30/5/2011 refere que lhe foi apresentado pela Administração da sociedade o relatório justificativo da transformação, o projeto do contrato pelo qual a sociedade se iria passar a reger e o balanço com referência a 31-12-2011, não tendo encontrado qualquer impedimento à transformação projetada.

 

E – Evidência de que a celebração do negócio jurídico teve como objetivo a obtenção de vantagens fiscais

 

Conjugando os factos descritos em B, C e D verifica-se:

 

Não existe nenhum motivo de natureza económica que possa justificar a alteração da natureza jurídica da sociedade por quotas para sociedade anónima porquanto, pelo menos entre 2006 e 2010, o nível de atividade da firma Farmácia … foi semelhante assim como a sua estrutura de pessoal, devendo em face disso ser considerada uma pequena empresa.

 

De acordo com o relatório justificativo da transformação jurídica da sociedade por quotas Farmácia …, Lda. em sociedade anónima, a transformação da sociedade em sociedade anónima é justificada pela necessidade de adequação da sua estrutura jurídica – societária às necessidades reais da empresa, sendo aí referido que, o tipo de “sociedade por quotas”, se encontra especialmente vocacionado para a organização da pequena empresa.

Nos termos do relatório justificativo da transformação jurídica da sociedade anónima Farmácia …, S.A., em sociedade por quotas, a transformação jurídica da sociedade em sociedade por quotas representa um realinhamento com a real estrutura da empresa, que é uma estrutura essencialmente familiar.

Face ao exposto, parece evidente, como a própria empresa reconhece, que a forma jurídica de sociedade por quotas é a que melhor se adequa à real dimensão da empresa, a qual se tem mantido praticamente constante ao longo do tempo.

- Também a composição acionista não revela que a intenção fosse a criação de qualquer unidade económica que justificasse a utilização da figura de sociedade anónima, porquanto, os quatro novos acionistas são familiares próximos e 3 deles subscrevem apenas valores simbólicos e a acionista que já era sócia/gerente do estabelecimento comercial já havia manifestado a intenção da respetiva venda à acionista maioritária (79% do capital) ou seja, apesar da existência formal de 5 subscritores do capital na realidade apenas existe 1 mais, simbolicamente, 3 familiares próximos.

O ato ou negocio jurídico da transformação da sociedade “Farmácia …, Lda” em sociedade anónima não resultou, conforme os factos descritos comprovam, da necessidade de ajustar a sua natureza jurídica a qualquer alteração na sua estrutura operacional no entanto, teve como consequência fiscal possibilitar a A… efetuar a alienação da participação que detinha no capital da referida sociedade, após a transformação em sociedade anónima e redenominação do capital em ações, pelo valor de € 1.372.500,00 com o benefício da exclusão da tributação da mais-valia obtida, por força do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 10 do CIRS e, por esta via, evitar o pagamento de IRS no montante de € 136.500,00.

 

F) Enquadramento jurídico

 

(…)

 Os negócios jurídicos efetuados em 2008 e 2009 entre A… e B… corresponderam de facto à alienação, pela primeira, e aquisição pela segunda, da participação social que a primeira detinha na sociedade Farmácia …

 Em condições normais esta operação implicaria a sujeição a tributação em IRS de A…, a título de rendimentos de mais valias, [à] taxa de 10%, conforme artigos 10 e 72 do CIRS que, no caso, corresponderia a um imposto a pagar no montante de € 136.500,00 (1.365.000*0,10).

 O aumento do capital da empresa “Farmácia …” de € 10.000,00 para € 50.000,00 e a entrada de quatro novos sócios/acionistas teve como único objetivo o cumprimento formal dos requisitos mínimos necessários à criação de uma sociedade anónima e permitir que, por isso, o capital fosse denominado em ações e, por essa via, substituir uma operação sujeita a imposto (alienação de partes sociais-quotas) por outra, economicamente equivalente, mas não sujeita a tributação (venda de ações).

Neste particular não deixa de ser relevante referir que, a que a transformação da empresa de sociedade por quotas em sociedade anónima, foi apenas temporária facto que demonstra bem que, a alteração da natureza jurídica da empresa não correspondeu a nenhuma necessidade de ajustamento decorrente de qualquer alteração operacional.

 

G) Proposta de aplicação da norma antiabuso

 

Resulta da presente informação evidência significativa de que, a transformação temporária da natureza jurídica da entidade empresarial “Farmácia …” de sociedade por quotas em sociedade anónima teve como principal e único objetivo evitar que o contribuinte A… ficasse sujeito a IRS, pela mais-valia que, de facto, realizou na transmissão das partes sociais do capital que detinha na sociedade “Farmácia …, Lda” que, no caso, corresponderia a um montante de imposto a pagar de € 136.500,00.

 

Ficou também evidenciado que o negócio jurídico subjacente foi efetuado de forma ardilosa.

 

Para se proceder à liquidação dos tributos em falta propõe-se a abertura do procedimento para aplicação da disposição anti abuso a que se refere o artigo 63º do CPPT.

 

H) Exercício do direito de audição

 

(…)

3.  O contribuinte, no exercício do seu direito de audição, vem dizer que o recurso à transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, não tem caráter “ardiloso”, porque esta última forma jurídica era essencial para que o negócio jurídico em questão fosse celebrado “nos termos e condições em que o fez e a quem o fez”.

No entanto, não concretizou, de qualquer forma que fosse, as razões que explicariam a essencialidade do recurso àquelas formas jurídicas.

Dessa forma, tal defesa é meramente formal, não tendo a virtualidade de representar qualquer justificação plausível, de forma a afastar a aplicação do artº 38º da LGT.

 

Senão vejamos:

O contribuinte refere a liberdade empresarial de escolha das estruturas organizativas mais adequadas à atividade económica, assim como cita a liberdade de escolha da forma jurídica a adotar (quotas ou ações) para a alienação de participações sociais.

No que diz respeito ao artº 38º da LGT, as citadas liberdades são limitadas, mas só no âmbito tributário.

Mesmo o regime jurídico da liberdade contratual (artº 405º e seguintes do Código Civil) prevê diversas limitações ao seu exercício. Assim como qualquer outra liberdade, as referidas liberdades admitem limitação legal, quando estão em causa outros interesses superiores.

O artº 38º da LGT não torna, por si, os atos ou negócios jurídicos inválidos, nulos ou anuláveis. Esse dispositivo legal apenas prevê a sua ineficácia em termos tributários, quando sejam “essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Portanto os negócios jurídicos celebrados pelo contribuinte enquanto sócia ou gerente da “Farmácia …, unipessoal, Lda” e posterior “Farmácia ..., SA”, continuam válidos, mas são ineficazes para a Administração Tributária no que diz respeito à tributação de mais-valias em IRS.

Também é falacioso o argumento de que o resultado pretendido se pautou essencialmente na “vontade de alienar as participações sociais em questão”, posto que não se rejeita tal facto. Muito pelo contrário. O negócio pretendido [é] de facto a alienação da participação social do contribuinte. Mas o que se põe em questão é a forma pela qual tal alienação foi efetuada. No caso concreto, foi efetuada artificiosamente com claro abuso das formas jurídicas.

 

I – Conclusão

 

Assim, por não ter sido apresentada justificação económico-financeira para o recurso às formas jurídicas utilizadas de transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima para posterior alienação das respetivas ações detidas pelo contribuinte, com exceção da vantagem fiscal, é de se manter o conteúdo e sentido da proposta de aplicação das normas antiabuso, sujeitando a mais valia em causa à tributação nos termos do artº 10º do CIRS.”

cf. RIT junto ao pedido arbitral como Documento 13.

 

  1. Em consequência, foi a Requerente notificada em 10 de Abril de 2013 da liquidação de IRS n.º 2013 … referente ao ano de 2009, resultando da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013 …, a importância a pagar de € …, incluindo juros compensatórios, cuja liquidação tem o n.º 2013 ..., com data limite de pagamento em 13 de Maio de 2013 – cf. cópia da Demonstração de Liquidação de IRS junta ao pedido arbitral como Documento 14 e da Demonstração de Acerto de Contas junta como Documento 15.

 

  1. A referida importância no valor global de € 151.354,19 foi paga em 10 de Maio de 2013 – em conformidade com o extracto do Banco Espírito Santo junto ao pedido arbitral como Documento 16 e conforme resulta do PA2.

 

  1. A Requerente foi informada, por carta datada de 7 de Junho de 2013, de que a Farmácia …, Lda. requereu junto do Tribunal de Comércio de Lisboa a abertura de um Processo Especial de Revitalização de Empresa, ao abrigo do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas Oeiras – cf. carta junta ao pedido arbitral como Documento 6.

 

  1. Em 7 de Agosto de 2013, a Requerente apresentou requerimento de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo junto do CAAD – cf. requerimento electrónico no sistema do CAAD.

 

  1. Factos não provados

 

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa e designadamente que:

 

– não teria sido possível à Requerente alienar a sua participação social na sociedade “Farmácia …” se não tivesse previamente transformado a sociedade por quotas em sociedade anónima.

 

  1. Motivação da decisão de facto

 

A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações juntos ao processo e acima discriminados a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

 

Quanto ao facto não provado, a decisão assenta na insuficiência para a respectiva prova dos documentos referenciados nas alíneas C, D e E, pois, a existência de uma carta de “oferta” e de um contrato-promessa condicionados ao requisito de transformação em sociedade anónima não têm aptidão para demonstrar que efectivamente o negócio nunca se teria realizado caso se mantivesse a forma de sociedade por quotas.

 


 

  1. DO DIREITO

 

  1. Introdução

 

Está em causa a qualificação da operação de transformação societária da “Farmácia …” (de sociedade por quotas em sociedade anónima), realizada pela Requerente previamente à alienação da sua participação social naquela, como conduta abusiva para efeitos fiscais. Importa, neste contexto, fazer um breve enquadramento.

 

De acordo com a classificação tradicional levada a efeito por Sampaio Dória[1] e maioritariamente retomada pela ulterior doutrina[2], a actuação fiscalmente menos onerosa pode suscitar três regimes com distintas consequências:

 

  1. Num pólo, temos a irrelevância jurídico-tributária das condutas comissivas (por acção) ou omissivas fiscalmente menos onerosas que não suscitam qualquer juízo de desvalor jurídico, não infringindo normas fiscais, quer na sua letra, quer no seu espírito e teleologia (intra legem);
  2. No extremo oposto, situa-se o campo da evasão fiscal stricto sensu, em que a lei fiscal é infringida de forma directa e frontal (contra legem);
  3. Num ponto intermédio, surge a elisão fiscal, consubstanciada num comportamento de contorno da lei fiscal em que apesar de a mesma não ser literalmente infringida (os meios empregues não são ilícitos per se) se visa “manifestamente ladear o ordenamento jurídico-tributário para conseguir um objectivo oposto aos valores que o estruturam” (extra legem)[3].

 

Sobre a pretensa licitude dos meios ou processos empregues na conduta elisiva caracterizada na alínea (c) que antecede, esta é, em rigor, meramente aparente. O resultado alcançado apresenta-se anti-jurídico e anti-sistemático, redunda numa fraudem legis[4].

 

Assim, o fenómeno elisivo revela-se contrário aos fins da(s) norma(s) fraudada(s) e da própria ordem jurídica[5], embora seja uma evasão perpetrada por meios lícitos, quando isoladamente considerados. Apresenta menor grau de desvalor quando comparada com a evasão, o que justifica uma reacção atenuada por parte da ordem jurídica. Esta reacção, sem pôr em causa a validade dos actos jurídicos, passa necessariamente por desconsiderar os efeitos fiscais deles tipicamente decorrentes[6]

 

Têm sido desenvolvidas múltiplas construções com o objectivo de autonomizar e enquadrar conceptualmente os comportamentos com finalidades elisivas, seja por intermédio do instituto da fraus legis acima referido (consagrado por via legislativa ou em decorrência de uma interpretação sistemática e teleológica[7]), seja pela configuração dos negócios jurídicos fraudatórios (indirectos, anómalos), distinguindo-os da categoria admitida do negócio fiscalmente menos oneroso, este tolerado, atenta a sua conformidade aos fins da ordem jurídica. 

 

Nesta última linha de pensamento, surgem diversas teorias que fazem referência ao negócio anómalo, nas quais enquadramos a doutrina do “abuso de formas jurídicas”, surgida na Alemanha[8]

 

Acompanha esta doutrina a ideia de que se forem utilizadas vias não normais para alcançar determinado resultado económico traduzindo-se em situações de não incidência tributária, que não estejam em conformidade com os fins da norma fiscal, a ordem jurídica deve sujeitá-las a uma tributação idêntica à que recairia sobre as vias normais ou típicas de alcançar esse resultado. 

 

Uma manifestação desta doutrina é a tese do negócio indirecto desenvolvida por Alberto Xavier[9], de acordo com a qual se considera elisivo o negócio adoptado pelas partes quando estas pretendem deliberadamente atingir fins diversos daqueles que lhe são próprios mediante processos insólitos, formas anormais ou inadequadas no plano jurídico, ou seja, fins diversos dos que representam a estrutura típica do esquema negocial em causa[10]

 

Também a propósito do negócio anómalo, é de salientar a doutrina francesa do acto anormal de gestão desenvolvida em complemento à teoria do abuso do direito de origem civilística[11].

 

Por último, de referir a teoria do contrato imperfeito de Tulio Rosembuj[12], segundo a qual a celebração de contratos com fins elisivos se enquadra na tipologia dos contratos imperfeitos, que surge no âmbito do direito privado através da análise económica do Direito. Ao contrário do que sucede com os chamados contratos perfeitos que criam situações de vantagem para ambos os contratantes, o que lhes outorga eficiência e aumenta a utilidade e bem estar das partes, os contratos imperfeitos têm subjacentes, entre outros traços distintivos, informação manipulada e efeitos negativos para terceiros, incluindo a Administração Tributária. A “imperfeição” do contrato conduz à poupança fiscal ilícita, pelo que devem reconstruir-se os efeitos correspondentes ao “contrato perfeito”, aquele que as partes “deviam” ter celebrado. 

 

  1. O regime da Cláusula Geral Anti-Abuso constante do artigo 38.º, n.º 2 da LGT

 

No caso português, o artigo 38.º, n.º 2 da LGT consagrou uma norma geral anti-elisiva em matéria fiscal[13], cuja aplicação está em causa no presente processo arbitral, e que combina cumulativamente diversos dos elementos assinalados, designadamente o critério do fim prosseguido, subjacente à doutrina da fraude à lei, e o critério do meio empregue, desenvolvido pela tese do “abuso das formas jurídicas” que delimita o seu âmbito de aplicação[14].

 

Dispõe esta norma que:

 

“2 - São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas[15].

 

Conforme reconhecem Requerente e Requerida, o preceito decompõe-se em cinco elementos, dos quais quatro formam a respectiva factispecie tributária, i.e., constituem os pressupostos cumulativos de aplicação da CGAA (elementos meio, resultado, intelectual e normativo)[16], e o quinto corresponde à sua estatuição (elemento sancionatório).

 

Também neste sentido preconiza a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo (“TCA”) Sul que a previsão do artigo 38.º, n.º 2 da LGT “consagra quatro pressupostos da sua aplicação, os quais são: 1 - O elemento meio - o qual tem a ver com a forma utilizada, portanto, com a prática de certos actos ou negócios dirigidos, essencial ou principalmente, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos; 2 - O elemento resultado - o qual visa a vantagem fiscal como fim da actividade do contribuinte, portanto, a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos; 3 - O elemento intelectual - o qual tem a ver com a motivação fiscal do contribuinte, portanto, com o facto dos actos ou negócios pelo mesmo praticados serem essencial ou principalmente dirigidos ao resultado que é a vantagem fiscal; 4 - Elemento normativo - o qual tem a ver com a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, portanto, o contribuinte actua com manifesto abuso das formas jurídicas (cfr.art°.63, n°,2, do C.P.P. Tributário).” cf. Acórdão de 15 de Fevereiro de 2011, processo n.º 4255/10. 

 

No entanto, as partes divergem quanto à verificação dos mencionados requisitos no caso concreto, pelo que importa apreciar de forma autónoma cada um deles, sem prejuízo da sua “relação de conexão e interdependência”, como refere J.L. Saldanha Sanches[17], ou, no dizer de Gustavo Lopes Courinha, da relação de auxílio mútuo[18].

 

 


 

Elemento resultado

 

Dúvidas não existem de que o encargo tributário que resultaria da venda de quotas, cujas mais-valias estariam sujeitas a IRS à taxa de 10%[19], é distinto daquele que derivou da alienação de acções, excluídas da tributação para efeitos deste imposto, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 2, alínea a) do Código do IRS, na redacção à data[20].

 

Assim, por efeito da adopção da forma de sociedade anónima por parte da sociedade a que respeitava a participação transmitida – Farmácia …, S.A. (anteriormente, Farmácia …, Unipessoal, Limitada) – a Requerente[21] beneficiou de uma poupança de imposto relativa à venda da sua participação social, correspondente a 136.500,00 euros que, de outra forma, teria incidido sobre a mais-valia auferida.

 

A existência de uma vantagem fiscal não é, contudo, de modo algum suficiente para caracterizar uma conduta abusiva, sob pena de, para efeitos tributários, se erigir como pressuposto de eficácia de uma qualquer conduta fiscalmente relevante a escolha daquela que conduzisse ao regime fiscalmente mais oneroso, o que liminarmente se repudia. 

 

Elemento intelectual

 

Exige-se neste ponto que o meio utilizado tenha sido escolhido com a finalidade principal de “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos”, pois apenas devem ser havidas como elisivas as transacções em que o objectivo de economia fiscal seja manifestamente o principal (“tax driven transaction”).  

 

A demonstração deste intuito principal (fiscal) pode revelar-se complexa, e na maioria das vezes sê-lo-á, com as dificuldades inerentes à prova da vertente subjectiva que, no limite, conduziria a uma “prova diabólica”. Deste modo, a prova do fim fiscal deve partir de uma presunção cuja ilação assente em elementos de facto objectivos: ficando evidenciados os factos que demonstrem manifestamente a vantagem fiscal obtida pelo contribuinte, é de presumir, com base nessa prova, a intenção do contribuinte, concepção objectiva que foi abraçada pelo artigo 63.º do CPPT. 

 

Da análise da matéria de facto constata-se a referência formal na carta de oferta e no contrato-promessa a uma exigência de prévia transformação da sociedade Farmácia …., Unipessoal, Limitada numa sociedade anónima, como condição de realização do negócio de venda daquela. No entanto, o estabelecimento desta condição não é acompanhado nem alicerçado em motivos substantivos, quer do lado da promitente-vendedora, quer por banda da promitente-compradora.

 

Por outro lado, as razões aduzidas no relatório justificativo da transformação (na perspectiva da sociedade transformada, portanto), prendem-se com a adequação da “estrutura jurídica-societária” às necessidades reais da empresa, ficando sem se saber a que necessidades se refere e por que motivo o modelo de sociedade anónima (por contraposição à sociedade por quotas) é, na situação concreta, o que melhor se adequa. Para além de que, como sublinha a Autoridade Tributária e Aduaneira, cerca de dois anos volvidos a sociedade voltou a retomar a forma de sociedade por quotas tendo precisamente como motivo o “realinhamento com a real estrutura da empresa”.

 

Neste quadro, face à considerável vantagem fiscal para a Requerente derivada da transformação da Farmácia … (de cujo capital social era titular) de sociedade por quotas em sociedade anónima e à falta de concretização de razões concretas tangíveis que afastem a presunção assente naquele elemento objectivo, concluímos que efectivamente a eliminação da tributação em IRS da mais-valia foi a principal razão subjacente para a adopção daquela forma societária.

 

A vantagem fiscal traduzida na não incidência de IRS no montante de 136.500,00 euros beneficiou directamente a Requerente, que não suportou tal encargo, e também, de forma mediata, reflectiu-se no plano económico da adquirente, na formação do preço do negócio, face à eliminação do custo (fiscal) da transacção para a vendedora. A existir tal encargo fiscal, o mesmo provavelmente seria repercutido, no todo ou em parte, no referido preço, incrementando-o e tornando mais onerosa a aquisição.

 

Elemento meio

 

De acordo com o artigo 38.º, n.º 2 da LGT a vantagem fiscal, para ser considerada abusiva, tem de ser alcançada através de actos ou negócios jurídicos “por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”. Como realça Gustavo Lopes Courinha, visam-se aqui “formas complexas e insólitas (as mais das vezes formando uma estrutura desrazoável e incómoda (…)” no contexto de uma “opção anómala”[22].

 

Segundo Sérgio Vasques está em causa “uma fraude aos princípios do sistema, em que o contribuinte realiza um negócio liminarmente conforme à lei mas cujos contornos escapam a toda e qualquer racionalidade económica, explicando-se apenas pelo intuito de obviar ao imposto que decorreria do recurso a formas negociais mais comuns.”[23]

 

Vejamos.

 

De acordo com a Autoridade Tributária e Aduaneira a composição accionista da “Farmácia …” não revelava a intenção de criação de uma “unidade económica que justificasse a utilização da figura de sociedade anónima, porquanto, os quatro novos acionistas são familiares próximos e 3 deles subscrevem apenas valores simbólicos”, constituindo uma pequena empresa e oscilando os volumes anuais de facturação entre 2006 e 2010 entre os 543.215 euros e os 774.212 euros numa progressão em regra crescente (com excepção do ano 2008).

 

Salvo o devido respeito, desta argumentação não se extrai evidência do carácter ardiloso, artificioso ou com abuso de formas jurídicas da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima a que se seguiu a alienação da respectiva participação social detida pela Requerente.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira prende-se a uma visão redutora da sociedade anónima cujo modelo corresponderia apenas ao da grande sociedade de capitais, de cariz não familiar. Afigura-se, porém, que não é esta a matriz actual desta forma societária no direito das sociedades.

 

Ensina Paulo Olavo Cunha que “As sociedades anónimas podem assumir, presentemente, diversas configurações, consoante a estrutura do respectivo capital, podendo:

- apresentar-se relativamente fechadas, com limitações à transmissibilidade das respectivas participações;

-    corresponder ao modelo típico de sociedade anónima, tal como está consagrada no CSC, ou

-    constituir-se como sociedades com o capital aberto ao investimento do público, designando-se abreviadamente como sociedades abertas.”[24].

 

 ”As primeiras são sociedades anónimas de cariz vincadamente familiar, em que o reduzido número de sócios optou por este tipo por razões alheias às suas características substantivas. A lei não as autonomiza relativamente às segundas, mas permite-lhes o aproveitamento de regras que as aproximam das sociedades por quotas (…) Tem-se vindo a assistir à opção, cada vez mais frequente, pela forma de sociedade anónima e à transformação de inúmeras sociedades por quotas em anónimas[25].

 

Rematando este autor que “as sociedades anónimas correspondem, por excelência, à moderna empresa comercial (…) Nelas se concentra hoje grande parte do resultado produtivo da economia e da riqueza das nações desenvolvidas[26].

 

Afigura-se, assim, que a forma de sociedade anónima não só não é desadequada às empresas de cariz familiar como constitui mesmo o paradigma actual das modernas empresas comerciais, pelo que não se vislumbra que tenha ficado evidenciado que o negócio jurídico subjacente de transformação foi efectuado de forma artificial, abusiva ou ardilosa, uma vez que tal forma societária é adequada a empresas de diverso formato e dimensão, abrangendo tanto a pequena e média empresa familiar como as sociedades abertas[27].

 

Com efeito, a sociedade anónima constitui um veículo adequado e idóneo à prossecução de uma actividade económica, no quadro de um negócio de família, em diversas dimensões empresariais, seja de pequena, média ou grande empresa, ou com o capital social mais ou menos aberto a terceiros.

 

A transformação da forma societária (de sociedade por quotas em sociedade anónima) não consubstancia nestas circunstâncias uma opção anómala e inusual ou um “negócio indirecto”, nem se pode afirmar que a sociedade por quotas seja a forma mais comum por oposição à sociedade anónima.

 

Como, de idêntica forma, não se pode considerar anómala a subsequente alienação das acções, perfeitamente adequada à transmissão do negócio subjacente.

 

O facto de a adopção da referida forma societária ter como consequência (e até como móbil, como acima se verificou) uma vantagem fiscal não constitui critério válido para aquilatar da artificialidade do meio, a apreciar num outro plano, que é o da idoneidade dos actos à prossecução do negócio visado num quadro de normalidade.

 

Estamos, em síntese, no domínio do espaço de livre escolha dos meios de actuação privada e económica, concluindo-se pela não verificação do elemento relativo à artificialidade do meio ou ao abuso de formas jurídicas. 

 

Elemento normativo

 

A verificação deste requisito visa distinguir os casos de elisão fiscal (extra legem), dos casos de planeamento fiscal intra legem

 

A delimitação das fronteiras do acto elisivo depende do “requisito da condenação pelo Ordenamento Fiscal do resultado obtido[28] mediante o confronto do resultado visado com a intenção ou espírito da lei, do Código do imposto em causa ou da própria ordem jurídica tributária como sistema de partilha de encargos tributários.

 

A divergência do tratamento das mais-valias obtidas com a alienação de quotas e de acções constitui o exemplo de escola em que se apoia J.L. Saldanha Sanches para concluir que: “se o legislador, ao mesmo tempo que tributa as mais-valias das alienações de quotas, deixa por tributar as mais-valias das acções ou as tributa com uma taxa mais reduzida, não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por acções mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais.”[29]

 

E bem assim, acrescentamos nós em reforço desta ilustração, se o legislador decidir que um determinado instrumento de aforro, como por exemplo um plano poupança reforma ou um plano de poupança em acções, deve ter um regime fiscal privilegiado, não é de todo censurável pela ordem jurídica que os contribuintes canalizem as suas poupanças que estavam aplicadas noutros instrumentos (como sejam, a título de exemplo os depósitos a prazo) para os novos produtos que beneficiam de vantagens fiscais, única e exclusivamente para aceder a esse tratamento fiscal mais favorável e reduzir ou eliminar o seu encargo de imposto.

 

Questão diversa é a de saber se no plano legislativo tais distinções reflectem a correcta repartição dos encargos fiscais e, em caso negativo, se essa desadequação é, ao menos, devidamente justificada à face de outros objectivos, extra-fiscais. 

 

Com efeito, desde o início da vigência do Código do IRS, que o diferente tratamento tributário das mais-valias obtidas com a alienação de quotas e acções tem merecido críticas e propostas de alteração legislativa.

 

Recorde-se, por exemplo, as propostas dos Relatórios da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, em 1996[30], e do Grupo de Trabalho para o Estudo da Política Fiscal, Competitividade, Eficiência e Justiça do Sistema Fiscal, em 2009[31], e as tentativas de implementar alterações legislativas que acabassem com esta discriminação[32].

 

Sobre esta discordância e a evolução e razão de ser de tal regime compulsa-se a decisão arbitral do processo n.º 43/2013, de 26 de Novembro de 2013, que refere que se tratava de “uma medida destinada a incentivar a transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas (Maria Teresa Barbot Veiga Faria, Estatuto dos Benefícios Fiscais, notas explicativas, 1995, Editora Rei dos Livros, p. 176). E, ao contrário do que a AT defende nos autos, a lei não restringe tal incentivo a certas situações do mercado de capitais (por ex. sociedades cotadas em bolsa), sendo muito duvidoso que tal restrição aumentasse a legitimidade da discriminação...”.

 

Porém, independentemente da discordância da política legislativa subjacente, neste contexto normativo, há que concluir “como já se concluiu em situações idênticas (Processos, 123/2013, 124/2013 e 138/2013) submetidas a arbitragem tributária no CAAD, que falta, neste caso, o elemento normativo, associado à condenação do ordenamento jurídico-tributário, sem o qual não é aplicável a cláusula geral anti-abuso.” [33]

 

“É que mesmo que a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, não se estaria perante um acto condenável face ao ordenamento jurídico tributário, uma vez que o próprio legislador fiscal optou por tributar em sede de IRS os ganhos decorrentes da venda de quotas e por não tributar em sede daquele imposto os ganhos resultantes da venda de acções.”  [34]

 

“Uma situação destas, em que o legislador resistiu longamente a eliminar tal regime mantendo uma “lacuna consciente de tributação”, não se mostra susceptível de aplicação da cláusula geral anti-abuso. E não cabe ao aplicador da lei substituir-se às opções de tributar ou não tributar certas realidades seguidas pelo legislador fiscal” [35].

 

Por conseguinte, não se pode dar por verificado o elemento (de desvalor) normativo que constitui pressuposto essencial de aplicação do regime da CGAA.

 

Elemento sancionatório

 

Não se tendo demonstrado a verificação cumulativa de todos os requisitos exigidos para aplicação da CGAA, em concreto no que se refere ao elemento meio e ao elemento normativo, não há lugar à aplicação da estatuição da norma, conducente à ineficácia dos negócios jurídicos no âmbito tributário, contrariamente à posição defendida pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Em conclusão,

 

Para que se concluísse pela aplicabilidade da CGAA teríamos de identificar uma intenção de comportamento abusivo que fosse “tão clara e inequívoca quanto é clara e inequívoca a intenção do legislador de tributar aquele tipo de operações”.[36] Ora, à face do exposto, tal certeza não se alcança neste caso.

 

O que se afigura claro neste caso é que o legislador quis excluir da incidência de IRS as mais-valias obtidas com a transmissão de acções como medida de incentivo de transformação das sociedades por quotas em sociedades anónimas, pelo que não é censurável a actuação da Requerente que se conformou com essa finalidade.

 

Por outro lado e como se decidiu, por exemplo, no Processo n.º 43/2013-T acima referido, “não existe qualquer proibição de optar por uma conduta menos gravosa fiscalmente, quando essa opção não é artificiosa e/ou proibida pela lei (…)”. Com efeito, escolher a conduta menos gravosa não significa, ipso facto, que se esteja diante de um planeamento fiscal ilegítimo.

 

Não se julgam deste modo verificados os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso.

 

Em consequência, os actos de liquidação de IRS e de juros compensatórios referentes ao ano de 2009 são declarados ilegais por violação do disposto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, enfermando de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e, em consequência, são anulados ao abrigo do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo.

 

  1. Sobre os juros indemnizatórios

 

A Requerente deduz um pedido de indemnização de “todos os prejuízos sofridos (…) incluindo os respectivos juros indemnizatórios".

 

Dúvidas não existem de que a pretensão relativa a juros indemnizatórios tem cabimento no presente meio processual.

 

Com efeito, dispõe o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT que é “devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que, conjugado com o facto de o processo arbitral ser uma alternativa à impugnação judicial, deve ser entendido como permitindo a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

Compulsa-se a este respeito o artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

 

De notar, ainda, que sem prejuízo de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação, caracterizado por pronúncias constitutivas (artigos 99.º e 124.º do CPPT), nele a Autoridade Tributária e Aduaneira pode ser condenada ao pagamento de juros indemnizatórios que, de acordo com o artigo 30.º, n.º 1, alínea e) da LGT, integram a relação jurídica tributária e de indemnização por garantia indevida (também militam neste sentido os artigos 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º n.º 4 do CPPT).

 

Acresce que de harmonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT "a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão".

 

As citadas normas da LGT e do CPPT são aplicáveis não só em decorrência da mencionada alternatividade do meio arbitral à impugnação judicial, como ainda pela expressa remissão, a título de direito subsidiário, do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT.

 

No caso em apreço estão reunidos os pressupostos do artigo 43.º, n.ºs 1 e 2 da LGT, atenta a ilegalidade dos actos de liquidação de IRS e de juros compensatórios, que implica a restituição da importância paga pela Requerente no montante de € 151.354,19, e a sua imputação à Autoridade Tributária e Aduaneira, que praticou os actos tributários por sua iniciativa em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e, deste modo, sem fundamento legal.

 

Assim, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, calculados sobre a importância de € 151.354,19, à taxa aplicável que vigorar entre a data do pagamento efectuado pela Requerente e aquela em for restituída desse valor, actualmente de 4% (cf. artigos 43.º, n.º 4 e 35.º, n.º 10, ambos da LGT; 61.º, n.ºs 2 a 5 do CPPT; 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril).

 

Porém, a procedência do pedido de juros indemnizatórios não se estende ao pedido de indemnização de todos os prejuízos sofridos deduzido pela Requerente, o qual não pode ser conhecido nem apreciado em sede arbitral.

 

De facto, nos casos em que o contribuinte pretenda uma indemnização superior à que resulta dos juros indemnizatórios o meio próprio para concretizar tal direito será uma acção para o reconhecimento de um direito (cf. artigo 145.º do CPPT) ou, no limite, uma acção administrativa comum (veja-se a este respeito o estudo de Jorge Lopes de Sousa, Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por Actos Ilegais, Notas Práticas, Áreas Editora, 2010, em particular de pp. 127 a 131).

 

Apesar de a Lei que autorizou o Governo a legislar sobre o RJAT prever o processo arbitral também como meio alternativo à “acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária[37], certo é que “o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), concretizou a mencionada autorização legislativa com um âmbito mais restrito do que o inicialmente previsto, não contemplando designadamente uma competência alternativa à da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”, como salientado no acórdão arbitral proferido no processo n.º 76/2012-T, de 29 de Outubro de 2012.  

 

Assim, não é possível conhecer do pedido nesse segmento, sendo o mesmo indeferido.

 

 

  1. DECISÃO

 

Termos em que este colectivo de árbitros conclui pela procedência do pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IRS e de juros compensatórios objecto desta acção e, em consequência, acorda em:

 

  1. Anular os actos de liquidação de IRS e de juros compensatórios, no montante global peticionado de € 151.354,19;
  2. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a restituir à Requerente o montante pago de € 151.354,19;
  3. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios sobre aquela importância, à taxa legal, contados desde a data em que foi efectuado o pagamento até ao integral reembolso dessas quantias.

 

* * *

 

Fixa-se o valor do processo em € 151.354,19, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

 

O montante das custas é fixado em € 3.672,00 a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, como parte vencida nestes autos com decaimento integral, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT e com a regra geral processual em matéria de custas constante do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

Notifique.

Lisboa, 31 de Julho de 2014

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco e revisto pelo colectivo de árbitros.

 

A redacção do presente acórdão arbitral rege-se pela ortografia antiga.

 

 

Os árbitros,

 

 

 

Alexandra Coelho Martins

 

 

 

José Rodrigo de Castro

 

 

 

Miguel Patrício

 



[1] Cf. “A Evasão Fiscal Legítima: Conceito e Problemas”, in Ciência e Técnica Fiscal n.º 143, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, Novembro de 1970, pp. 41-97.

[2]  Ainda que nem sempre acompanhada de uniformidade terminológica por todos os autores. Em ilustração e a título de exemplo, veja-se, Luís Menezes Leitão “A Evasão e a Fraude Fiscais face à Teoria da Interpretação da Lei Fiscal”, in Fisco n.º 32, 1991, p. 12 e segs.; João Taborda da Gama, “Acto Elisivo, Acto Lesivo – Notas sobre a Admissibilidade do Combate à Elisão Fiscal no Ordenamento Jurídico Português”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XL, n.ºs 1 e 2, Coimbra Editora, 1999, pp. 289-316; J. L. Saldanha Sanches, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, 2006, pp. 21-24. 

[3] Cf. J. L. Saldanha Sanches, Os Limites …, p. 22.

[4] Sobre a doutrina da fraude à lei, com origem no direito romano, veja-se António Menezes Cordeiro, “Notas Breves sobre a Fraude à Lei”, in Estudos por ocasião do XXX aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1993, pp. 121-128: “Contra legem facit quid id facit quod lex prohibet, in fraudem vero qui salvis legis verbis sententiam eius circumvenit” - (Paulus, D. 1.3.29; cf. também Ulpianus, D.1.3.30), na tradução de J. de Castro Mendes “Age contra a lei aquele que fez aquilo que a lei proíbe; age em fraude à lei aquele que evita o comando dela respeitando as palavras da lei” - Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, AAFDL, 1979, p. 332. 

[5] Neste sentido, João Taborda da Gama, “Acto elisivo …”, pp. 294, 313 e 314, e J. L. Saldanha Sanches, Os Limites …, pp. 102-104 e, deste Professor, “O Abuso de direito em matéria fiscal: natureza, alcance e limites”, in Ciência e Técnica Fiscal n.º 398, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, Abr.-Jun. 2000.

[6] A ineficácia que afecte os actos jurídicos deve ser meramente fiscal. Até porque os comportamentos em fraude à lei podem ter outros fins não fiscais que sejam legítimos e, por conseguinte, não devem, nesse âmbito, ser feridos por qualquer estatuição sancionadora invalidante.

[7] Neste sentido, Manuel de Andrade prescinde da consagração do regime da fraude à lei por via legislativa: “se bem pensarmos, todo o problema se reconduz ao da exacta interpretação da norma proibitiva, segundo a sua finalidade e alcance substancial. Isto posto, haverá fraude relevante caso se mostre que o intuito da lei foi proibir não apenas os negócios que especificamente visou, mas quaisquer outros tendentes a prosseguir o mesmo resultado, só não os mencionando por não ter previsto a sua possibilidade, ou ter sido deliberadamente mero propósito exemplificativo. Fala-se neste caso em normas materiais. Não haverá fraude relevante caso se averigue que a lei especificou uns tantos negócios por só ter querido combater certos meios (esses mesmos negócios) de atingir um dado fim ou resultado, em razão de os julgar particularmente graves e perigosos” – cf. Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, 9.ª reimpressão, Coimbra, 2003, pp. 377 e segs.. Vide ainda, com idêntica posição, Carlos Pamplona Corte-Real, “A interpretação extensiva como processo de reprimir a fraude à lei no direito fiscal português”, in Ciência e Técnica Fiscal n.º 152-153, Ago.-Set 1971, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, pp. 43-75.

[8]  Vide o elucidativo resumo de Gustavo Lopes Courinha, in A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário Contributos para a sua Compreensão, Almedina, 2004, pp. 149 a 161, remontando esta doutrina à  Reichsabgabenordnung de 1919.

[9] Cf. O Negócio Indirecto em Direito Fiscal, in Ciência e Técnica Fiscal n.º 147, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, Março de 1971, pp. 7-9 (separata).

[10] Não obstante os méritos destas teorias, salienta-se, que a elisão não se concretiza somente pela adopção de negócios jurídicos, podendo ser atingida através de simples actos jurídicos, meros procedimentos ou operações materiais.

[11] Sobre este tema vide Charles Robbez Masson, La Notion d’Évasion Fiscale en Droit Interne Français, Bibliothèque de Science Financière, Tome 29, LGDJ, Paris, 1990 (com prefácio de Maurice Cozian), pp. 289 e segs., segundo o qual a noção de acto anormal de gestão resulta de um “edifício pretoriano longamente e pacientemente construído de raiz jurisprudencial”, e apresenta inegáveis vantagens para a Administração Tributária francesa, em face do seu vastíssimo campo de aplicação.

[12] Cf. El Fraude de Ley, la Simulation y el Abuso de las Formas en el Derecho Tributario, segunda edición, Marcial Pons – Monografias Jurídicas, 1999, pp. 65 e segs.. 

[13] Complementada pelo artigo 63.º do CPPT que contém o regime procedimental de aplicação da CGAA.

[14] Sobre este tema vejam-se J.L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2002, pp. 120-123; José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 207-223 e M.H. de Freitas Pereira, Fiscalidade, Almedina, Setembro de 2005. Este último sublinha que “estamos perante uma aplicação no domínio fiscal da chamada doutrina de abuso das formas jurídicas.  Assim, a lei tributária, pretendendo atingir com o imposto determinada capacidade contributiva, recorre para o efeito aos actos ou negócios jurídicos que normalmente são utilizados para alcançar o fim ou o resultado económico associados a essa capacidade. Se o contribuinte atinge este mesmo fim ou resultado usando actos ou negócios, ainda que lícitos, inusuais ou artificiosos na situação em causa deverá sujeitar-se a idêntica carga fiscal. É essa a verdadeira razão de ser da norma anti-abuso”, pp. 415-416.

[15] Redacção introduzida pela Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro.

[16] Vide Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula …, p. 165.

[17] Cf. Os Limites …, p. 170.

[18] Cf. A Cláusula …, p. 165.

[19] Nos termos dos artigos 10.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 4 do Código do IRS, na redacção do Decreto-lei n.º 192/2005, de 7 de Novembro.

[20] Introduzida pelo Decreto-lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro.

[21] Na qualidade de titular da participação societária alienada e de beneficiária do rendimento.

[22] Cf. A Cláusula …, p. 185.

[23] Cf. Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, p. 313.

[24] Cf. Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, Maio de 2006, pp. 30 e 31.

[25] Cf. Direito …, pp. 33 e 34.

[26] Cf. Direito …, p. 34.

[27] De notar que nunca foi posta em causa a substância económica da “Farmácia …” que desenvolvia efectivamente uma actividade empresarial com fim lucrativo, cuja facturação no ano de 2009 ascendeu a 604.864 euros. Assim, não estamos perante uma situação semelhante ou equiparável à apreciada pelo Acórdão do TCA Sul, de 14 de Fevereiro de 2012, no processo n.º 5104/11, em que a sociedade detida não tinha “actividade comercial típica e normal e nem património ou qualquer estrutura física, em que os actos praticados não tiveram em vista gerar qualquer lucro para si, enquanto ente autónomo, tendo apenas praticado actos formais de intermediação”.

[28] Cf. J.L. Saldanha Sanches, Os Limites …, pp. 182-183.

[29] Cf. J.L. Saldanha Sanches, Os Limites …, p. 182.

[30] Cf. Edição do Ministério das Finanças, 1996, p. 479.

[31] Cf. pp. 195-196, nota 89.

[32] Cf. as Resoluções do Conselho de Ministros n.º 119/97, de 14 de Julho, e n.º 10/98, de 23 de Janeiro.  

[33] Acompanhamos a fundamentação da decisão proferida no Processo n.º 43/2013 acima citado.

[34] Idem.

[35] Idem. Cf. J.L. Saldanha Sanches, Os Limites , pp. 180-182.

[36] Cf. Processo n.º 43/2013 (nota 21), acima citado.

[37] Cf. artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010.