DECISÃO ARBITRAL
Acorda o Árbitro Suzana Fernandes da Costa, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar Tribunal Arbitral, na seguinte:
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Relatório
No dia 20-11-2018, A..., contribuinte n.º..., e marido B..., contribuinte n.º..., ambos residentes em ...– Reino Unido, apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2018 ... do ano de 2017, referente à Requerente mulher, e do ato de liquidação de IRS n. n.º 2018 ..., do ano de 2017, referente ao Requerente marido, no valor total de 7.014,76 €.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD em 20--11-2018 e notificado à Requerida na mesma data.
Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º n.º 2 alínea a) do RJAT, foi designada como árbitro, pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em 10-01-2019, a Dra. Suzana Fernandes da Costa, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.
Na mesma data foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6º e 7º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 30-01-2019.
Em 04-02-2019, foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional e remeter ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta.
Em 11-03-2019, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Entende ainda a Requerida que se “deverá suspender a presente instância arbitral e sujeitar a questão ao Tribunal de Justiça, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE)”, por não haver jurisprudência do TJUE que se debruce sobre a questão a dirimir nos presentes autos.
No dia 15-03-2019, foi proferido despacho, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais, a dispensar a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, e a conceder prazo de 20 dias para as partes apresentarem alegações. No mesmo despacho, foram convidadas as partes para enviarem as peças produzidas em formato word, no prazo de 30 dias, e foi fixado o dia 04-07-2019 para a prolação da decisão arbitral. Foram ainda advertidos os Requerentes para, até àquela data, efetuarem o pagamento da taxa arbitral subsequente.
Em 26-03-2019, os Requerente vieram aos autos informar que prescindiam do direito de alegar a juntar o comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.
A Requerida optou por não apresentar alegações.
Em 04-07-2019, foi proferido despacho a prorrogar o prazo para a decisão para o dia 12-07-2019, por não estar concluída a decisão do processo.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março).
O pedido arbitral é tempestivo, nos termos do artigo 10º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro e do artigo 102º n.º 1 alínea a) do Código do Procedimento e do Processo Tributário.
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias, à exceção da coligação, que de seguida se decidirá.
Os Requerentes pedem a coligação de autores ao abrigo do disposto nos artigos 3º n.º 1 do RJAT, 104º do CPPT e 36º n.º 2 do CPC.
O artigo 3º n.º 1 do RJAT refere que é possível a coligação de autores quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.
No presente caso, a coligação de autores é admissível, pelo que se admite.
2. Posição das partes
Os Requerentes começam por referir que, em 02-01-2014, adquiriram a fração J do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da união das freguesias de ... e ..., concelho de Coimbra, sob o artigo ..., pelo valor de 170.000 €, tendo contraído um empréstimo junto do Banco C..., SA no valor de 165.000 €.
Referem também que, em janeiro de 2015, se mudaram para o Reino Unido, começando lá a trabalhar.
Os Requerentes alegam que, em 24-05-2017, requereram à AT a atualização dos seus domicílios fiscais com efeitos retroativos desde janeiro de 2015. Declararam ainda que em 06-07-2017, venderam o imóvel referido pelo preço de 215.000 €.
Os Requerentes referem que procederam, individualmente, à entrega da sua declaração de rendimentos de 2017, tendo cada um declarado a sua quota parte do imóvel alienado no anexo G da referida declaração de rendimentos, assim como a intenção de reinvestimento do valor de realização do imóvel. Os Requerentes fazem também referência ao facto de terem declarado que eram não residentes em Portugal, nas aludidas declarações de rendimentos do ano de 2017.
Os Requerentes alegam que as liquidações de IRS em questão incorrem em ilegalidade por vício de falta de fundamentação legalmente exigida, uma vez que, no seu entender, a AT não logrou fundamentar a motivação subjacente à suposta não consideração dos valores a reinvestir por eles declarados, e à suposta consideração da totalidade das mais valias por eles obtidas com a alienação do imóvel.
Por outro lado, alegam os Requerentes que as liquidações sempre seriam ilegais por violação do princípio da participação, ao abrigo dos artigos 267º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 60º n.º 1 alínea a) da Lei Geral Tributária (LGT), pelo facto da AT não ter permitido aos Requerentes o exercício do direito de audição prévia a que legalmente têm direito.
Os Requerentes também alegam a ilegalidade das liquidações por falta de notificação dos atos de alteração dos elementos declarados nas respetivas declarações de IRS.
Os Requerentes fazem ainda referência à ilegalidade das liquidações em causa nos autos por violação do artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). No entender dos Requerentes, a limitação da tributação das mais valias em apenas 50% do seu valor é aplicável a todos os sujeitos passivos, quer sejam residentes em Portugal, quer sejam residentes noutro qualquer território da União Europeia. E sobre esta questão, os Requerentes referem acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia, do Supremo Tribunal Administrativo e do CAAD.
Por fim, os Requerentes referem que procederam ao pagamento das liquidações de IRS em questão nestes autos, e pedem a condenação da AT na restituição dos valores aos Requerentes, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43º e 100º da LGT e 61º do CPPT.
Já a Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na sua resposta, apresentou defesa por impugnação, referindo, em suma, que os Requerentes poderiam beneficiar da limitação a 50% da tributação das mais valias obtidas, desde que tivessem optado pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território.
A Requerida pede ainda a suspensão da instância arbitral e a sujeição da questão ao Tribunal de Justiça, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267º do TFUE), com o fundamento de se desconhecer jurisprudência do TJUE que se debruce sobre a questão a dirimir nos presentes autos, designadamente proferida em casos com todas as caraterísticas factuais apontadas.
3. Matéria de facto
3. 1. Factos provados:
Analisada a prova documental produzida e a posição das partes constante das peças processuais, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:
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Os Requerentes adquiriram, em 02-01-2014, pelo valor de 170.000 €, a fração J do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da união das freguesias de ... e ..., concelho de Coimbra, sob o artigo ..., sito na ..., ..., União das freguesias de ... e ..., concelho de Coimbra, tendo contraído um empréstimo junto do banco C..., SA no valor de 165.000 €, conforme documento 5 junto ao pedido arbitral;
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Os Requerentes passaram a residir no Reino Unido desde janeiro de 2015.
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Em 24-05-2017, os Requerentes requereram ao Chefe do Serviço de Finanças de Coimbra ..., a alteração do seu domicílio fiscal para o Reino Unido com efeitos retroativos desde janeiro de 2015, conforme documento 6 junto ao pedido arbitral;
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Os Requerentes alienaram, em 06-07-2017, pelo valor de 215.000 €, o imóvel identificado no ponto 1 e que tinha sido adquirido em 02-01-2014, conforme documento 7 junto ao pedido arbitral.
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Os Requerentes apresentaram, em 31-05-2018, individualmente, as declarações de rendimentos modelo 3 do ano de 2017, nas quais declararam, no anexo G, cada um dos Requerentes, por referência ao imóvel alienado e à sua quota parte sobre o mesmo (50%), o valor de realização de 107.500 €, o valor de aquisição de 85.000 € e o valor de despesas e encargos de 9.123,63 €, conforme documentos 8 e 9 juntos ao pedido arbitral.
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A Requerente mulher declarou ainda no quadro 5 do mesmo anexo G, o valor de 77.421,77 € de valor em dívida do empréstimo à data da alienação do imóvel e o valor de 13.497,09 € como valor de realização que pretendia reinvestir sem recurso ao crédito, conforme documento 8 junto ao pedido arbitral.
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O Requerente marido declarou no quadro 5 do mesmo anexo G, o valor de 77.421,77 € de valor em dívida do empréstimo à data da alienação do imóvel e o valor de 13.778,03 € como valor de realização que pretendia reinvestir sem recurso ao crédito, conforme documento 9 junto ao pedido arbitral.
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Os Requerentes declararam também no campo 8 da folha de rosto das suas declarações de IRS de 2017, que eram não residentes, que tinham residência em país da UE ou EEE e que pretendiam a tributação pelo regime geral, conforme documentos 8 e 9 juntos ao pedido arbitral.
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Os Requerentes foram notificados, em 11-07-2018, de que as declarações de IRS entregues haviam sido selecionadas para análise por terem sido detetadas as seguintes situações: alienação de imóveis não declarada ou necessidade de comprovação dos valores das despesas, valor de alienação, data de aquisição dos imóveis alienados e afetação a atividade profissional, conforme documentos 10 e 11 juntos ao pedido arbitral.
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A Requerente mulher foi notificada da liquidação de IRS n.º 2018 ... do ano de 2017, com o valor a pagar de 3.507,38 € até ao dia 31-08-2018, conforme documento 1 junto ao pedido arbitral.
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O Requerente marido foi notificado da liquidação de IRS n.º 2018 ... do ano de 2017, com o valor a pagar de 3.507,38 € até ao dia 31-08-2018, conforme documento 2 junto ao pedido arbitral.
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Os Requerentes submeteram, em 19-07-2018, no portal das Finanças, a documentação solicitada pela AT para justificação dos valores declarados, conforme documento 12 junto ao pedido arbitral.
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Os Requerentes procederam ao pagamento das liquidações acima referidas, em 29-08-2018, conforme documentos 3 e 4 juntos ao pedido arbitral.
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Os Requerentes interpuseram o presente pedido de pronúncia arbitral em 20-11-2018.
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
3.2. Factos não provados
Não se verificaram quaisquer factos que não tenham sido provados.
3.3. Fundamentação da matéria de facto provada:
A convicção do árbitro fundou-se nos documentos juntos aos autos pela Requerente e na posição das partes demonstrada nas peças processuais produzidas.
4. Matéria de direito:
4.1. Objeto e âmbito do presente processo
As questões essenciais de direito que se colocam neste processo são as seguintes:
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Saber se as liquidações incorrem em ilegalidade por violação do artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
Caso se justifique:
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Saber se as liquidações em causa nestes autos incorrem ou não em ilegalidade por vício de falta de fundamentação legalmente exigida;
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Saber se as liquidações em causa são ou não ilegais por violação do princípio da participação, ao abrigo dos artigos 267º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 60º n.º 1 alínea a) da Lei Geral Tributária (LGT);
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Saber se as liquidações enfermam de ilegalidade por falta de notificação dos atos de alteração dos elementos declarados nas respetivas declarações de IRS.
Do alegado vício de violação do artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)
A questão decidenda essencial prende-se com a compatibilidade com o Direito da União Europeia (em particular, a liberdade de circulação de capitais, estabelecida no artigo 63.º do TFUE) da não aplicação do regime de exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias em 50%, conforme previsto no artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, a residentes fiscais noutro Estado-membro da União Europeia.
Vejamos.
Em sede de IRS, determina a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS que, «Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (…), sendo o ganho constituído pela diferença entre o valor da realização e o valor de aquisição, líquidos das partes qualificada como rendimento de capitais (…)» (cfr. n.º 4 do artigo 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, doravante Código do IRS).
No que respeita à tributação de não residentes em território português, o artigo 13.º, n.º 1 do Código do IRS dispõe que «Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos», acrescentando o artigo 15.º, n.º 2 do mesmo diploma legal que, quanto aos não residentes, aquele imposto «incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português».
Assim sendo, de acordo com o artigo 18.º, n.º 1, alínea h) do Código do IRS, as mais-valias resultantes da transmissão de imóveis nele situados constituem rendimentos obtidos em território português.
De harmonia com a declaração de rendimentos dos Requerentes, a Requerida AT liquidou o imposto, à taxa de 28%, prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 72.º do Código do IRS.
Determina este normativo o seguinte: “Taxas especiais” «1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %: a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;».
A taxa de 28% foi aplicada à totalidade do rendimento global o que determinou um imposto a pagar por parte da Requerente mulher no valor de €3.507,30 e, por parte do Requerente marido no valor de €3.507,38.
Da compatibilidade do regime nacional de tributação de mais-valias imobiliárias com o Direito da União Europeia:
O artigo 63.º, n.º 1 do TFUE apresenta a livre circulação de capitais como elemento estruturante do processo de integração europeia, determinando-se que “são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”.
De harmonia com o disposto no artigo 18.º do TFUE, “No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação.”
É ao abrigo do disposto nestes artigos do TFUE, que a Requerente invoca a desconformidade da legislação fiscal portuguesa com a legislação da União Europeia.
O TJUE, no acórdão de 11-10-2007, no processo C-443/06, Hollman versus Fazenda Pública, considerou incompatível com o Direito da União Europeia, por se tratar de um tratamento indiferenciado incompatível com a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63º do TFUE, o regime do artigo 72.º, n.º 1 do CIRS, na redação anterior à Lei n.º 67-A/2007 de 31 de dezembro, por tributar as mais-valias de contribuintes não residentes a uma taxa fixa, enquanto os residentes estão sujeitos a um imposto progressivo sobre o rendimento.
Refere o TJUE naquele acórdão que é incompatível com a norma que assegura a liberdade de circulação de capitais um regime que “sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que indiciaria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel”.
Este entendimento foi também recentemente defendido no Despacho do TJUE (sétima secção) de 06-09-2018, processo C-184/18, em que se entendeu que “uma legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado-Membro, efetuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais valias realizadas por um residente naquele Estado-Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela exceção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.
Esta última decisão foi também proferida tendo como pressuposto a redação do artigo 72.º introduzida pela Lei n.º 109/2001, de 27 de dezembro, anterior à Lei n.º 67-A/2007, pelo que como afirma a Requerida, não há jurisprudência específica do TJUE sobre a compatibilidade do regime introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, nos n.ºs 7 e 8 do CIRS com o artigo 63.º do TFUE.
No entanto, o TJUE entendeu naquele acórdão do processo C-443/06, que o essencial da incompatibilidade do regime do artigo 71.º, n.º 1, com o direito de União resulta de instituir “um tratamento fiscal desigual para os não residentes, na medida em que permite, no caso de realização de mais‑valias, uma tributação mais gravosa e, por isso, uma carga fiscal superior à que é suportada pelos residentes numa situação objectivamente comparável”.
Assim, o que essencialmente releva para este efeito é saber se existe ou não uma discriminação negativa na aplicação aos Requerentes do regime que lhes foi aplicado.
Ora no caso de venda de um bem imóvel sito em Portugal, ocorrendo a realização de mais valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos.
Com efeito, enquanto que a um não residente é aplicada a taxa de 28% sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria coletável correspondente às mais valias realizadas por um residente permite que este beneficie de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 48%.
Dito de outro modo, o regime previsto, na falta de opção, no n.º 1 do artigo 72.º é mais oneroso para os não residentes do que para os residentes, pois enquanto a taxa máxima aplicável às mais-valias realizadas por residentes é de 24% do seu valor (taxa máxima de 48% prevista no artigo 68.º, aplicável a 50% do saldo das mais-valias), a taxa prevista no n.º 1 do artigo 72.º é de 28%, aplicável à totalidade do saldo.
Assim, é seguro que o regime de tributação a taxa liberatória previsto no artigo 7.º do CIRS, na redação em vigor em 2017, é incompatível com o artigo 63.º do TFUE, pois torna a transferência de capitais menos atrativa para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo tratado.
Esta diferença de tratamento não pode ser justificada em função da verificação de qualquer das exceções previstas no artigo 65.º do TFUE não podendo a discriminação da norma nacional daí decorrente ser justificável pelo objetivo de evitar penalizar os residentes, porque, sendo o escalão mais elevado 48%, conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento coletável do residente, não existindo, objetivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos.
Foi este regime negativamente discriminatório para os não residentes que foi aplicado nas liquidações impugnadas.
O facto de atualmente este regime poder ser afastado pelos sujeitos passivos, se manifestarem uma opção, não afasta a discriminação negativa, pois é nele imposta uma obrigação de opção que não é extensiva aos residentes.
Um regime facultativo como aquele que está previsto no artigo 72.º do CIRS faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não sendo a opção de equiparação suscetível de excluir a discriminação em causa.
A este propósito, a jurisprudência do TJUE no acórdão de 28-02-2013, processo C168/11 refere que “Mesmo admitindo que tal sistema seja compatível com o direito da União, resulta contudo da jurisprudência que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode permanecer incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, acórdão de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 162, e de 18 de março de 2010, Gielen, C-440/08, Colet., p. I-2323, n.º 53). A este respeito, a existência de uma opção que permitiria eventualmente tornar uma situação compatível com o direito da União não tem assim por efeito sanar, por si só, o carácter ilegal de um sistema, como o previsto pela regulamentação controvertida, que compreende um mecanismo de tributação não compatível com este direito. Importa acrescentar que tal ocorre por maioria de razão no caso em que, como no caso em apreço, o mecanismo incompatível com o direito da União é aquele que é automaticamente aplicado na inexistência de escolha efetuada pelo contribuinte.” (no mesmo sentido se pronunciou o TJUE no acórdão de 18-03-2010, processo C-440/08 e acórdão de 08-06-2016, processo C-479/14).
Com efeito, o regime de equiparação atualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de optar por dois regimes, um legal e outro ilegal. Neste sentido, refere o TJUE no acórdão de 18-03-2018, no processo C-440/08, “a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (…) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente mais discriminatório”.
Neste sentido se pronunciaram também as Decisões do CAAD proferidas, nomeadamente, nos processos 45/2012-T, 127/2012-T, 748/2015-T, 89/2017-T e 74/2019-T.
É à luz da jurisprudência referida que se deverá analisar a pretensão da Requerida de reenvio prejudicial.
O instituto do reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.º do TFUE, pode ser utilizado por este Tribunal Arbitral como, aliás, já foi reconhecido pelo TJUE no processo C-377/13, de 12 de junho de 2014.
Nestes termos, e de acordo com o referido artigo 267.º, os tribunais nacionais – onde se inclui, naturalmente, este Tribunal – devem proceder ao reenvio de questões prejudiciais, conforme previsto no artigo 267.º do TFUE, quando se coloquem questões ou dúvidas relativas à validade, interpretação e compatibilidade das normas de direito interno com direito da União Europeia.
Tal significa que, não se suscitando quanto às normas em questão quaisquer dúvidas ou tendo as mesmas sido já esclarecidas pelo TJUE – considerando, nomeadamente a chamada “teoria do acto claro” (cfr. acórdão do TJUE CILFIT, de 6 de outubro de 1982, processo C-283/81) –, não devem os tribunais nacionais proceder ao reenvio prejudicial.
Assim, se já existir (i) jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou (ii) quando o modo correto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco, um órgão jurisdicional nacional pode “decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece”, conforme pontos 12 e 13 das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), do TJUE.
No presente caso, conclui-se, perante a jurisprudência reiterada do TJUE acerca da matéria sub judice, não ser necessário proceder ao reenvio ao TJUE de supostas dúvidas sobre interpretação de normas de Direito da União Europeia.
Existe, aliás, jurisprudência nacional, designadamente do Supremo Tribunal Administrativo, no processo 0901/11.0BEALM 0692/17, de 20-02-2019, que concluiu pela ilegalidade do regime que resulta dos artigos 43.º, n.º 2 e 72.º, ambos do Código do IRS, sem que tenha procedido ao reenvio.
Face o que vem de dizer-se procede o pedido de pronúncia arbitral deduzido pela Requerente por estarem as liquidações em clara violação do artigo 63.º, n.º 1 do TFUE, ficando prejudicado o conhecimento dos demais vícios apontados pela Requerente.
Nestes termos os atos de liquidação de IRS n.º 2018 ... e n.º 2018 ..., relativo a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do exercício de 2017, no valor no valor total de 7.014,76 €, são ilegais, devendo ser anulados nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c) da LGT.
4.2. Juros indemnizatórios
Os Requerentes pedem que seja condenada a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º n.º 1 da LGT.
O artigo 43º n.º 1 da LGT determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 4 do art. 61.º do CPPT que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.
Nos presentes autos, verifica-se que a ilegalidade das liquidações controvertidas é imputável à AT.
Assim, os Requerentes têm direito, em conformidade com o disposto nos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, ao reembolso do montante de imposto indevidamente pago e aos juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos arts. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados desde a data do pagamento do imposto, à taxa resultante do n.º 4 do art. 43.º da LGT, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que serão incluídos.
5. Decisão
Em face do exposto, determina-se:
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Julgar procedente o pedido formulado pelos Requerentes no presente processo arbitral, quanto à liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2018... do ano de 2017, referente à Requerente mulher, e do ato de liquidação de IRS n. n.º 2018..., do ano de 2017, referente ao Requerente marido, no valor total de 7.014,76 €, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total da mais valia imobiliária;
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Julgar procedente o pedido de condenação da AT a reembolsar os Requerentes do valor do imposto indevidamente pago, e ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data em que tal pagamento foi efetuado até à data do integral reembolso do mesmo;
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Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
6. Valor do processo:
De acordo com o disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se o valor da ação em 7.014,76 €.
7. Custas:
Nos termos do artigo 22º, n.º 4, do RJAT, e da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 612,00 €, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 22º n.º 4 do RJAT.
Notifique.
Lisboa, 12 de julho de 2019.
Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, por mim revisto.
A Juiz-Árbitro
(Suzana Fernandes da Costa)