Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 489/2018-T
Data da decisão: 2019-05-31  IRC  
Valor do pedido: € 393.847,64
Tema: IRC - Dedutibilidade de juros - Pagamentos a entidades residentes em offshore. Tributações autónomas.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

            Os árbitros José Baeta de Queiroz (árbitro-presidente), Luís M. S. Oliveira e João Taborda da Gama (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 11-12-2018, acordam no seguinte:

I. RELATÓRIO

 

1.1.        A..., LDA., pessoa coletiva número ..., com sede na ..., ..., ...-... Lisboa (doravante, a “Requerente” ou “A...”), veio, nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral coletivo, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a anulação das liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante, “IRC”), e juros correspondentes, n.º 2017... e n.º 2017..., relativas, respetivamente, aos exercícios de 2013 e de 2014, que originaram um valor adicional a pagar em sede de IRC (incluindo tributação autónoma) no montante de € 301.037,51 (2013) e de € 166.459,88 (2014), a que acresceram juros no montante de € 31.142,94 (2013) e de € 10.533,78 (2014), tudo no total de € 509.174,11, e declarada a ilegalidade e anulado o indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2017... e reconhecido o direito a indemnização pelos prejuízos resultantes da garantia prestada.

1.2.        O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 02-10-2018.

1.3.        Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

1.4.        Em 21-11-2018, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

1.5.        Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 11-12-2018.

1.6.        Por despacho de 11-02-2019, foi agendado o dia 27-02-2019 para a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

1.7.        As partes apresentaram alegações, tendo sido designado o dia 10-05-2019 para prolação da decisão arbitral, prazo que foi posteriormente prorrogado para o dia 31-05-2019.

 

II. SANEAMENTO

 

1.8.        O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, do RJAT.

1.9.        As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

1.10.      O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

1.11.      Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III. POSIÇÃO DAS PARTES

 

2.            A Requerente alega, em síntese, que:

2.1.        É uma empresa que opera no sector imobiliário de luxo, sendo sobretudo vocacionada para a reabilitação urbana em Lisboa.

2.2.        Em 2007, adquiriu o imóvel designado por “...” situado na freguesia de ... em Lisboa e classificado como imóvel de interesse público.

2.3.        Em 14-02-2007, celebrou com o B..., S.A. (“B...”) um contrato de mútuo com hipoteca no montante de € 16.000.000 (CPI n.º ...), dos quais € 7.900.000 se destinavam à aquisição do “...” e € 8.100.000 à realização de obras. Ficou convencionado (cfr. cláusula 8 do contrato) que “[o] empréstimo vence juros sobre o capital em dívida, contados dia a dia e cobrados postecipadamente ao trimestre, sendo susceptíveis de actualização trimestral, ficando assim a taxa contratual indexada a uma taxa de referência”.

2.4.        O prazo final acordado para o financiamento foi de 36 meses, devendo o empréstimo ser “amortizado à medida que a mutuária realize os contratos de compra e venda das futuras fracções do(s) edifício(s), sem prejuízo de liquidar o remanescente, se o houver, até ao termo do prazo…” (cfr. cláusula 10 do contrato).

2.5.        As obras de reabilitação ficaram concluídas no final do primeiro semestre do ano 2012, tendo a licença de utilização sido obtida em agosto do mesmo ano.

2.6.        No período que decorreu entre a celebração do contrato de mútuo e a venda das primeiras frações, a Requerente não desenvolveu atividade operacional que lhe permitisse gerar meios financeiros para pagar juros do financiamento concedido pelo B... .

2.7.        Neste contexto, celebrou com o B... sucessivos aditamentos ao contrato de mútuo, com prorrogação do prazo, sucessivas alterações da taxa de juro e diferimento da exigibilidade dos juros.

2.8.        À medida que foi vendendo frações do “...”, efetuou amortizações de capital e de juros em dívida.

2.9.        A 31-12-2014, relativamente ao financiamento inicial no montante de € 16.000.000 (CPI n.º...), já só era devedora de € 6.519.629.

2.10.      O montante de € 2.020.149,06 (referente a juros de € 1.939.343,10 e imposto do selo de € 80.805,96) corresponde ao montante registado no período de tributação de 2014, atendendo aos diversos aditamentos ao contrato de mútuo celebrados com o B..., por efeito dos quais os juros foram sendo sucessivamente diferidos.

2.11.      A AT desconsiderou como gasto dedutível, na correção e subsequente liquidação que fez, o referido valor de € 2.020.149,06, com fundamento em que não está suportado em documento válido.

2.12.      Não obstante diversas tentativas de obtenção de fatura ou nota de débito emitida pelo B..., o que a Requerente conseguiu obter foi a confirmação dos montantes em dívida por email e uma declaração relativa à posição da Requerente a 31-12-2014, para além do contrato de mútuo (empréstimo) com hipoteca, que faz parte integrante da escritura lavrada em 14-02-2007 e das sucessivas modificações ao contrato de empréstimo.

2.13.      Por força do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 23.º do Código do IRC, na redação em vigor em 2014, passou a estabelecer-se claramente a necessidade de prova documental, mas admite-se para esse efeito qualquer documento, com exceção dos casos em que esteja em causa uma aquisição de bens e serviços, enumerando-se os elementos que o documento comprovativo desta operação deverá conter.

2.14.      Assim, “apesar de a declaração emitida pelo B... não assumir a forma reivindicada pela AT, não existem dúvidas de que os juros de € 1.939.343,10 e o Imposto do Selo de € 80.805,96 são referentes ao contrato de mútuo com hipoteca no montante de € 16.000.000,00 celebrado a 14 de Fevereiro de 2007 […], onde constam todos os elementos identificativos das partes exigidos pela lei e bem assim a delimitação exacta do mútuo então concedido e suas condições contratuais, sendo que a revisão dessas condições contratuais está também contratualizada por escrito e igualmente com cumprimento de todos os requisitos identificativos que geralmente constam de uma factura.” (cfr. artigo 101.º do pedido de pronúncia arbitral, doravante, “PPA”).

2.15.      Assim, prossegue a Requerente: “se os juros em apreço estão relacionados com o financiamento obtido para a compra do “...” e para as obras de conservação do mesmo (tal como pode ser verificado nas declarações emitidas pelo B... […], onde é referido o número do empréstimo, que por sua vez cruza com os aditamentos ao contrato de mútuo, que por sua vez cruzam com o contrato de mútuo) é evidente que existe uma relação directa entre o gasto, a actividade da requerente e o rendimento obtido (decorrente da venda das fracções).” (cfr. artigo 102.º do PPA).

2.16.      Para a Requerente “não existem dúvidas de que os juros de € 1.939.343,10 e o Imposto do Selo de € 80.805,96 são referentes ao contrato de mútuo com hipoteca no montante de € 16.000.000,00 celebrado a 14 de Fevereiro de 2007 com todas as formalidades legais (Doc. n.º 5 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral), onde constam todos os elementos identificativos das partes exigidos pela lei, e bem assim a delimitação exacta do mútuo então concedido e suas condições contratuais, sendo que a revisão dessas condições contratuais está também contratualizada por escrito e igualmente com cumprimento de todos os requisitos identificativos que geralmente constam de uma factura.” (cfr. artigo 101.º do PPA).

2.17.      E conclui: “Ora, se os juros em apreço estão relacionados com o financiamento obtido para a compra do "..." e para as obras de conservação do mesmo (tal como pode ser verificado nas declarações emitidas pelo B... juntas como Docs. n.ºs 15 e 17 ao Pedido de Pronúncia Arbitral, onde é referido o número do empréstimo, que por sua vez cruza com os aditamentos ao contrato de mútuo, que por sua vez cruzam com o contrato de mútuo) é evidente que existe uma relação directa entre o gasto, a actividade da requerente e o rendimento obtido (decorrente da venda das fracções).”, “(…) devendo a AT reconhecer a indispensabilidade dos encargos financeiros (…).” (cfr. artigos 102.º e 104.º do PPA).

2.18.      Assim, o montante a deduzir só deve estar limitado nos termos do n.º 1 do artigo 67.º do Código do IRC, isto é, na circunstância do caso limite de € 1.000.000.

2.19.      Pelo que a AT deve reconhecer a indispensabilidade dos encargos financeiros em causa, aqui devidamente comprovados, nos termos legais aplicáveis e, consequentemente, ser anulada a correção efetuada pela AT ao exercício de 2014.

2.20.      Na sequência da crise financeira mundial de liquidez e de crédito que explodiu a partir de 2008 e afetou duramente o nosso país por muitos anos, o sector do imobiliário e da construção civil foi, a par do da banca, o mais severamente atingido.

2.21.      Havia imobiliário em construção e em stock para venda, mas repentinamente deixou de haver compradores, em grande parte porque o crédito à aquisição de casa foi severamente restringido via aumento das taxas de juro e via atrofiamento da capacidade da banca para emprestar mais, em razão das muitas imparidades que começou a acumular nos créditos concedidos que já detinha em carteira.

2.22.      Para as empresas imobiliárias ou de construção, com compromissos financeiros a vencerem-se, com juros e outros encargos correntes a pagar, e com os apartamentos e lojas já construídos ou em construção a enfrentarem um mercado em colapso, foram anos difíceis, que inevitavelmente, e infelizmente, foram originando falências e que por sua vez colocavam mais problemas aos balanços (e resultados) da banca, o que por sua vez reforçava ainda mais a crise de crédito, num ciclo vicioso de todos bem conhecido de anos recentes.

2.23.      Os chamados vistos gold, e com eles os mercados estrangeiros, incluindo o asiático (sobretudo o asiático numa primeira fase), foram um instrumento fundamental para a recuperação nos anos mais recentes do sector do imobiliário em Portugal.

2.24.      A Requerente, bem como os demais players do mercado imobiliário português, sobretudo os que operavam no mesmo segmento que a Requerente, tentaram utilizar o mercado asiático como alternativa de mercado para contrariar a queda abrupta de atividade que se verificava à data.

2.25.      No caso do mercado chinês, com apetência por vistos de residência e compra de habitação na Europa, chegar ao mesmo a partir de Portugal, com recurso aos meios de uma pequena empresa imobiliária portuguesa, cujo know-how e pessoal o que sabe é criar e reabilitar edifícios, seria como procurar agulha num palheiro, seria impossível. E mesmo que fosse, em teoria, possível, seria economicamente inviável.

2.26.      Daí que as empresas imobiliárias portuguesas como a Requerente tenham de recorrer a empresas com capacidade de acesso ao mercado chinês nesta vertente da apetência por imobiliário no estrangeiro, empresas essas que naturalmente têm uma posição negocial sólida, porque são incontornáveis, perante o potencial vendedor português.

2.27.      Em concreto, a Requerente recorreu a uma empresa com origem em Colónia, Alemanha, a “C...”, especializada em serviços de investimento imobiliário (incluindo o investimento associado à obtenção de autorizações de residência) e que opera em várias partes do mundo, uma das quais Hong Kong (praça financeira mundial, como é sabido, com um estatuto especial, de desenho ocidental, relativamente à China continental, ou mainland China como se lhe chama), e que aí está estabelecida através da “C...”.

2.28.      Ficou acordado que, em caso de venda de algum dos imóveis em causa, seria paga uma comissão de 25% sobre o preço de venda, acrescida de IVA.

2.29.      E, em maior escala, uma outra empresa, a “D...” (doravante, “D...” ou “D...”), permitiu também o acesso da A... ao mercado chinês (ver contrato de cooperação imobiliária internacional assinado a 05-06-2014, onde também se estabeleceram honorários de 25% a favor da D..., com a particularidade de ter sido esta empresa quem apresentou a C... à A...).

2.30.      Por último, houve também intervenção, a uma escala muito menor, de uma empresa com sede na Suécia, “E...  (doravante, “E...” ou “E...”), que se dedica, entre outras atividades, à consultoria comercial entre a Ásia e a Europa, e que apresentou à Requerente a empresa “F... Ltd” (doravante, “F...”) com sede em Hong Kong, tendo ficado estabelecido que, em caso de venda de imóveis através desta parceria, a empresa sueca cobraria uma comissão de 10%, tendo mais tarde indicado que metade desse valor seria faturado via Hong Kong.

2.31.      Estas empresas, naturalmente, têm de fornecer um serviço global ao potencial investidor chinês, porquanto também para estes é enorme a distância (e ignorância) cultural, legal, civilizacional e linguística que os separa de Portugal ou de qualquer outro país europeu onde pensem em fazer um investimento em imobiliário.

2.32.      As referidas empresas tratam de tudo, de A a Z, no que respeita ao investimento que o prospetivo comprador chinês pondere fazer em Portugal: deslocação e alojamento para visitas a imóveis objeto de potencial investimento, tradutores, deslocações devidamente acompanhadas dentro do país em causa, entretenimento e lazer pelos dias em que permanecerem no país em causa, papéis de documentação necessária a essas viagens, obtenção de visto de residência, abertura de conta bancária, documentação necessária à outorga de escritura pública de aquisição de imóvel se se chegar a concluir uma compra, acompanhamento do eventual tratamento de problemas pós-venda, e tudo o mais que se possa vir a revelar necessário no caso concreto.

2.33.      E naturalmente estas empresas necessitarão de ter pessoal não só em Hong Kong (no caso), mas também (no caso) em Portugal, de modo a poderem prestar estes serviços, precisam ainda de contratar e pagar serviços de advocacia em Portugal, de contratar tradutores, de incorrer em custos com viagens e lazer dos prospetivos compradores, e de incorrer em todos os demais custos que venham a revelar-se necessários na operação em causa para levar a bom porto o investimento imobiliário em equação.

2.34.      O tratamento de tudo o que tenha que ver com o prospetivo comprador é da responsabilidade e risco da C..., D... ou empresa semelhante que trabalhe no mercado chinês:  (i) todo o trabalho de representar os interesses do prospetivo comprador estava com a C.../D... (e similares) e seus advogados; (ii) estas entidades são independentes da Requerente; (iii) o acompanhamento dos prospetivos compradores pela C.../D... /seus advogados incluía, para além da negociação dos contratos, gestão de atrasos no cumprimento de prestações acordadas e formalização dos contratos, também assuntos pós-venda como a entrega física do imóvel, suas chaves, sinalização de eventuais defeitos, reparação de defeitos no imóvel, e tudo o que tivesse que ver com a entrada e permanência dos cidadãos chineses em território português, como seja autorização de residência, abertura de contas bancárias, tradutores, carros, refeições e hotéis nas visitas a Portugal, etc.; (iv) a Requerente não incorre em nenhum risco/encargo com a vinda de prospetivos compradores a Portugal e, pelo contrário, a C.../D... e similares suportam os custos económicos e respetivos riscos das atividades de pré-venda e de prospeção de potenciais compradores interessados e de fazê-los deslocar a Portugal, etc.

2.35.      No caso do grupo sueco E..., está em causa um grupo com presença em Hong Kong, cujo objeto é facilitar negócios com a Ásia, tendo sido por este grupo proposto (e naturalmente a Requerente não recusou) uma remuneração em termos percentuais mais baixa que os habituais 20%/25% exigidos pelas empresas que trabalham o mercado chinês. Possivelmente, este percentual mais baixo é sintoma de se fazer já sentir alguma concorrência entre empresas deste tipo, que levou um grupo com origem sueca como este, interessado em fechar negócios neste mercado (investimento imobiliário chinês em Portugal), a apresentar uma remuneração mais baixa.

2.36.      A Requerente aproveitou para fechar negócio com comissão a pagar mais baixa do que a habitualmente praticada para negócios agenciados no mercado chinês.

2.37.      Uma comissão mais baixa não significa necessariamente um preço de venda líquido de comissões mais alto para a Requerente. O facto de a comissão ser mais baixa reflete-se também, e em certos casos apenas, no aumento da capacidade de oferecer um preço mais atrativo ao cliente final (o comprador do imóvel) sem prejuízo para o vendedor (a Requerente), porque efetuado à custa da baixa da comissão do prospetor de mercado na China (no caso).

2.38.      O referido grupo sueco, com ramificações em Hong Kong e dispondo de clientes chineses interessados no Golden Visa português, contactou a Requerente no sentido de intermediar a venda dos imóveis em causa para o mercado asiático, tendo sido inicialmente proposta uma comissão de 15%, já de si mais baixa que o habitual, mas como esta negociação inicial não foi feita com o representante devido da Requerente, acabou por ficar acordada, para o que aqui importa (a venda do apartamento 30 do “...”), uma comissão de 10%, negociada através dos advogados (Dr. G..., que à data trabalhava na Sociedade de Advogados H...) daquela empresa, o que permitiu salvaguardar inteiramente o preço líquido de comissões que a Requerente recebe em negócios comparáveis de venda a clientes de outras paragens que não a China.

2.39.      Aparte os e-mails trocados e as conferências telefónicas havidas, não foi celebrado contrato escrito com o grupo sueco, por ambas as partes considerarem que nas circunstâncias do caso a troca de e-mails seria suficiente para fixar o valor definitivo da comissão devida pela obtenção da venda em causa.

2.40.      A comissão foi integralmente faturada, na proporção de 50%, pela casa-mãe na Suécia e os outros 50% pela empresa parceira da China, mais concretamente de Hong Kong, a F... .

2.41.      A AT só corrigiu esta última parcela debitada pelo parceiro local em Hong Kong. Por esse motivo, o montante correspondente a 5% do preço de venda do imóvel em causa – apartamento 30 do “...” – foi faturado pela F... e pago pela Requerente a esta empresa.

2.42.      Não obstante a diferença da comissão cobrada neste caso face às que foram acordadas pela C... e a D..., também neste caso o serviço e responsabilidades de cada parte foram exatamente iguais.

2.43.      A Requerente não incorre em nenhum custo adicional pelo facto de o comprador vir da China, por oposição, por exemplo, a um comprador português, espanhol, alemão, inglês ou francês.

2.44.      Não é fácil encontrar no “...” apartamentos que sejam exatamente comparáveis entre si, já que a opção arquitetónica de reabilitação deste complexo histórico consistiu na recuperação do edifício que comportava o antigo Palácio (que foi denominado de Edifício 1) e na construção de mais 4 edifícios (Edifício 2, Edifício 3, Edifício 4 e Edifício 5), todos diferentes entre si.

2.45.      Em todo o caso, é possível determinar que a Requerente ganha mais (líquido já de encargos de angariação suportados), sempre que tem a sorte de angariar um cliente proveniente da China, trazido pela mão da C.../D... /F... (via E...) ou similares, este se interessar por um dos seus apartamentos ou loja e o comprar.

2.46.      A Inspeção Tributária pretendeu comparar a comissão cobrada pela D... com a venda conjunta das frações S, X e U do ... (a clientes chineses) com a comissão cobrada pela venda, também a cliente chinês, da fração AS (erroneamente identificada pela Inspeção Tributária como apartamento 30, mas que corresponde ao apartamento 38), na qual a Inspeção Tributária identificou uma comissão de 4% sobre o preço de venda deste imóvel, concluindo que a comissão cobrada pela entidade residente em Hong Kong é muito superior à comissão paga a uma entidade residente em território nacional.

2.47.      Contudo, para fazer uma comparação, é preciso considerar o total de encargos suportados pela Requerente com a venda da referida fração AS também a cidadão chinês e que inclui, não apenas a comissão de mediação imobiliária referida pela Inspeção Tributária e paga a entidade portuguesa, mas também a remuneração de um outro interveniente na operação que se dedica àquela atividade, no total de € 126.590,40 (IVA incluído), o que resultou em encargos no montante total de € 162.900, correspondente a cerca de 23% do preço de venda.

2.48.      O exercício comparativo da Inspeção Tributária não atendeu, pois, a todos os custos relevantes.

2.49.      Sempre que empresas com elevada necessidade de financiamento investem num projeto imobiliário, como sucede com a Requerente, por absoluto imperativo de sobrevivência põem todo o seu foco nas vendas, mal se aproxima o final da construção, de modo a poderem proceder ao reembolso dos financiamentos e travarem a contagem dos juros. Quanto menos tempo demorarem as vendas, melhor, já que estas são o fator crítico do qual depende o êxito ou fracasso do vultuoso investimento que se foi realizando e acumulando sem qualquer retorno ao longo dos anos anteriores. Se a Requerente (ou outras empresas da área) apenas tivessem tido acesso a vendas a clientes da China com resultados líquidos de encargos de angariação semelhantes aos resultados nas vendas para outras paragens geográficas, já se dariam por muito satisfeitas: tinham conseguido clientes novos para os seus produtos, a preços semelhantes aos praticados com outros clientes, novos clientes estes que reduzem o espectro das vendas, absolutamente necessárias para amortizar os financiamentos contraídos, se arrastarem demasiado no tempo e com isso porem em causa a solvabilidade da empresa.

2.50.      Contudo, foi possível estabelecer uma posição negocial em que, não só ganhou novos clientes de uma nova área geográfica (distante de Portugal), como conseguiu que as vendas para essa nova clientela lhe gerassem resultados, líquidos já de encargos de angariação, bastante superiores aos que habitualmente consegue nas vendas para geografias mais próximas (espacial e culturalmente).

2.51.      O único serviço que interessa à Requerente com respeito à C..., D... e similares como a F..., é o serviço de concretização de vendas de frações, pelo que a remuneração que estas recebem está totalmente dependente da consumação de vendas de frações. Não há qualquer remuneração a prospetores de clientes sem que tenha havido uma venda.

2.52.      As vendas são objetivas e relatadas no Relatório de Inspeção Tributária (doravante, “RIT”), foram feitas a cidadãos da República Popular da China, e nenhuma estrutura própria na China nem nenhum investimento numa estrutura própria na China para prospeção e captação de prospetivos compradores chineses, a AT encontrou na A... e menos ainda relatou na sua inspeção tributária.

2.53.      Não se pode afirmar que não há provas concretas da realização de serviços prestados pela C..., pela D... e pela F... e similares, na venda de frações a cidadãos chineses.

2.54.      Acresce que as trocas de e-mails com as entidades em causa, e respetivos prestadores de serviços jurídicos em Portugal mostram à saciedade a realidade do serviço prestado por essas empresas na venda de frações pela A... a clientes originários da China.

2.55.      A atividade daquelas empresas, que é necessária para trazer o prospetivo cliente chinês a Portugal com o objetivo de fechar uma ou mais compras de frações em Portugal, implica a realização de um conjunto de tarefas em benefício ou auxílio do prospetivo comprador chinês. Em todo o caso, realizem ou não estas empresas essas tarefas, ou outras mais ainda, isso é contratual e operacionalmente irrelevante para a Requerente, já que a remuneração destas empresas só emerge se se finalizar uma venda com o prospetivo cliente chinês.

2.56.      O pagamento efetuado depende de um resultado final (i.e., a consumação da venda de frações, sem as quais nada tem a pagar), e não por uma atividade.

2.57.      É absurda e contrária a todos os factos e respetiva documentação a que a AT teve acesso e refletiu no seu RIT, a afirmação de que não estaria provado que o serviço tivesse sido realizado.

2.58.      Quanto ao argumento relativo à “justeza da remuneração dos serviços”, “relação custo benefício” ou “carácter normal”, não tem também a AT qualquer razão, já que, através das inspeções tributárias com que varre todo o sector do imobiliário, a AT sabe melhor que ninguém que este tipo de remuneração, este montante de remuneração, pelo agenciamento de clientes chineses que proporcionam negócios com os preços e resultados líquidos de comissões é o normal neste mercado.

2.59.      É facílimo perceber o racional económico: resulta dos factos que a Requerente não corre nenhum risco ou suporta algum encargo com a prospeção do mercado chinês em busca de clientes para os seus imóveis, nem com tudo o que se segue a essa prospeção, incluindo todo o acompanhamento que é necessário fazer dos mesmos. E além desta ausência de custo, tem o bónus de: (i) alargar o seu mercado e com isso aumentar a concorrência na procura pelos seus imóveis; e (ii) o bónus suplementar de conseguir sempre preços, já líquidos de encargos de angariação, bastante melhores quando o cliente vem da China, graças às C.../D... /F... .

2.60.      A haver exagero ou desequilíbrio económico (a C..., a D..., a F... e similares recebem de mais ou de menos pelos seus resultados nas vendas?) não é certamente em desfavor da A... . A Requerente só ganha com isto, e mesmo que o preço dos encargos de angariação que paga às empresas na China fosse maior do que o que é, e com isso o preço de venda dos apartamentos líquido de encargos de angariação, ficasse ao nível dos preços de venda aos clientes tradicionais, ainda assim teria valido a pena esse custo com a C.../D... /F... e similares: teria realizado a um preço de venda líquido de encargos de angariação igual ao que pratica com a generalidade dos outros clientes, dinheiro com vendas absolutamente essencial para reembolsar financiamentos que assistiram o empreendimento imobiliário e para travar a contagem dos respetivos juros.

2.61.      Economicamente, a Requerente não viu diminuído, em substância, o seu património pelo pagamento às empresas angariadoras de clientes da China. Com efeito, os preços de venda são construídos ao contrário: são acrescidos de montante suficiente para acomodar o pagamento dos encargos de angariação à C..., à D..., à F... e similares, de modo a garantir que o montante líquido recebido pela A... não seja beliscado comparativamente com o preço líquido que recebe em vendas a clientes tradicionais.

2.62.      O Estado português fica a ganhar com o atual (e tradicional) modelo contratual: ao aumentar o preço de venda, os encargos de angariação da C.../D... /F... e similares vão ser sujeitos a Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis e Imposto do Selo, aumentando estes impostos a favor do Estado, o que não aconteceria se estas duas empresas se remunerassem diretamente junto do comprador, em vez de, como ocorre, se fazerem pagar junto do vendedor (para este efeito intermediário económico). E bem assim fica a ganhar receita adicional em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante, “IVA”), tanto maior quanto maior for a remuneração de angariação paga, porquanto o IVA dessas faturas não é dedutível pela Requerente, dada a natureza da sua atividade (venda de imóveis com isenção de IVA sem direito à dedução), conforme a AT constatou no RIT.

2.63.      Não faz sentido comparar os serviços de angariação no mercado chinês, com o serviço clássico da mediação imobiliária. Como facilmente se compreende face à descrição das atividades envolvidas nos serviços prestados pelas entidades de Hong Kong, eles vão muito além da “tradicional” mediação imobiliária, pelo que a remuneração dos mesmos não pode ser idêntica.

2.64.      Após a análise da documentação disponibilizada pela A..., a Equipa da Inspeção Tributária entendeu pacificamente que, para efeitos de IVA, os serviços em análise foram efetivamente prestados por aquelas entidades e concordou com o enquadramento conferido em sede desse imposto.

2.65.      Se não foi colocado em causa o enquadramento em IVA aplicado in casu aos serviços de cooperação imobiliária internacional prestados pelas entidades de Hong Kong não entende a A... a razão pela qual a Equipa da Inspeção Tributária vem questionar a efetivação desses serviços em sede de IRC.

2.66.      A situação em apreço configura, no mínimo, venire contra factum proprium, já que a Equipa da Inspeção Tributária efetuou uma correção em sede de IRC, e em sede de IVA abstém-se de fazer a correção favorável que então e coerentemente se impunha neste imposto.

2.67.      Quer o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r), do Código do IRC, quer o artigo 88.º, n.º 8 do Código do IRC, são inconstitucionais na interpretação de que a sua previsão normativa, designadamente os conceitos de “carácter anormal” ou “montante exagerado” aí empregues, abrangeriam despesas que são economicamente mais do que anuladas/compensadas por um aumento no preço de venda da entidade que suporta a despesa, comparativamente com o preço de venda praticado pela mesma em operações comparáveis com contrapartes localizadas em zonas de tributação normal, por violação injustificada do princípio da tributação, fundamentalmente, do rendimento real das empresas (artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa doravante, “CRP”), por violação injustificada do princípio da capacidade contributiva, por violação do princípio da igualdade e da proibição de discriminações arbitrárias, e por violação do princípio da proporcionalidade (artigos 2.º, 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP).

2.68.      Não faz qualquer sentido (é injustificável) desconfiar que uma despesa cujo beneficiário é uma empresa localizada em zona de baixa tributação poderá servir o propósito de erodir abusivamente a base tributável em Portugal, quando essa mesma despesa é integralmente compensada (e até superada) por um aumento do preço de venda nesse mesmo valor (e que no caso até o supera).

2.69.      Como se constata, está objetivamente ausente neste caso este efeito e intenção, pelo que nos termos da própria finalidade das normas em causa não deve a dedutibilidade do custo em causa ser afastada e sobre ele não deve incidir a tributação autónoma altamente penalizadora à taxa de 35%.

2.70.      Não tendo efetuado o pagamento do imposto liquidado pela AT no prazo definido para o efeito foi notificada da instauração dos respetivos processos executivos n.ºs ...2017... e ...2017..., relativamente aos quais apresentou garantia, em 03-05-2017, através da constituição de hipoteca.

2.71.      Com a prestação de garantia para suspensão dos referidos processos executivos, incorreu em determinadas despesas que presentemente ascendem a um total de € 4.172,09.

2.72.      Os prejuízos que resultem ou resultarem da prestação desta garantia deverão ser ressarcidos à Requerente.

2.73.      Com efeito, o montante de imposto em causa e correspondentes juros compensatórios não se mostra devido, pelos motivos e com os fundamentos acima explanados. Acresce que o erro de que padece a liquidação em causa cuja legalidade se discute resulta de erro dos serviços na apreciação dos factos e aplicação do direito aos factos relevantes.

2.74.      Assim, tratando-se de erro imputável aos serviços deverá ser reconhecido à Requerente o direito a indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia.

2.75.      Anulada a liquidação de IRC e correspondentes juros compensatórios, deverá também ter-se por verificado erro imputável aos serviços para efeitos de indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia.

2.76.      O total dos prejuízos resultantes da prestação de garantia só poderá, evidentemente, ser apurado no momento em que venha a ser possível levantar a garantia, uma vez que só então se poderá fazer o seu cômputo final, mas para já há custos num total de € 4.172,09. Assim, a procedência do PPA deverá determinar a indemnização da Requerente pela totalidade dos custos incorridos com a garantia prestada, sem dependência do prazo pelo qual a garantia venha a ser mantida, nos termos do artigo 53.º da Lei Geral Tributária (doravante, “LGT”).

 

3. A Requerida defende, em suma, que:

3.1.        As liquidações em causa na presente ação arbitral resultaram das conclusões alcançadas no procedimento de inspeção tributária credenciado pelas Ordens de Serviço n.ºs OI2016... e OI2016... dos serviços de inspeção tributária da Direção de Finanças de Lisboa, no âmbito do qual foram analisadas as áreas de compras, stocks/inventários e vendas, a fim de aferir da credibilidade dos rendimentos/do volume de negócios declarado, bem como as margens praticadas e os respetivos gastos.

3.2.        Da escritura de compra e venda, consta que o B... concedeu à Requerente, para efeitos de aquisição e obras de conservação do imóvel, um empréstimo no montante de € 16.000.000, sendo € 7.900.000 para aquisição e € 8.100.000 para obras de conservação, por crédito na conta da mesma sociedade com o n.º..., aberto em nome da Requerente, junto do B... .

3.3.        Nos anos seguintes, a Requerente centrou a sua atividade na reconstrução do referido imóvel, para posterior alienação, iniciando em 2012 a comercialização das primeiras frações, continuando pelos anos de 2013 e 2014.

3.4.        Relativamente aos períodos de tributação 2013 e 2014, os serviços de inspeção recolheram toda a informação disponível no sistema informático da AT, bem como elementos relevantes junto da Requerente designadamente balancetes gerais, extratos das contas, escrituras de compra e venda e inventários reportados a 31-12-2012, 2013 e 2014, conforme resulta do RIT.

3.5.        A Requerente não apresentou documentos emitidos pelo Banco referentes ao débito de juros, taxa aplicada, período correspondente, ou, outra prova igualmente válida para justificar a contabilização do gasto, nem foi demostrada a sua ligação com vista a obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, não são aceites como gasto fiscal do período de 2014 nos termos do artigo 23.º do Código do IRC, os montantes referentes a juros e Imposto do Selo no total de € 2.020.149,06, pelo que deve este valor ser acrescido ao resultado fiscal.

3.6.        Como consta do RIT: os documentos apresentados pelo sujeito passivo não correspondem aos documentos legalmente exigidos para justificar a contabilização do gasto nem garantem em simultâneo a contabilização do rendimento por parte da entidade emitente; uma simples declaração não é documento válido de prova de que foi suportado um gasto não sendo suficiente para contabilizar e justificar o mesmo; um gasto desta natureza deve ser justificado com fatura ou nota de débito emitida pelo Banco em conformidade com o n.º 4 do artigo 23.º do Código do IRC.

3.7.        A ora Requerente também não fez prova da congruência entre o gasto supostamente suportado no âmbito da atividade da empresa e o rendimento conexo, com vista a potenciar o seu desenvolvimento e a alcançar o lucro, uma vez que, os juros anuais de € 2.198.958,40 (€ 1.939.343,10 + € 259.615,39) contabilizados como gasto do período, referentes a um saldo médio de empréstimo de € 7.740.329 [(saldo inicial de € 8.961.029 + saldo final de € 6.519.629) / 2] corresponde a uma taxa de juro anual de 28,41% (€ 2.198.958,40 / € 7.740.329) totalmente distante das taxas de juro praticadas no mercado de capitais nos últimos anos.

3.8.        Nos termos do n.º 1 do artigo 65.º e do artigo 23.º, ambos do Código do IRC, não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo poder provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado. Ainda, nos termos do n.º 8 do artigo 88.º do Código do IRC são sujeitas ao regime da tributação autónoma, à taxa de 35%, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, tal como definido nos termos do Código, salvo se o sujeito passivo puder provar que correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado.

3.9.        As referidas normas legais visam disciplinar os pagamentos a entidades residentes em territórios com regime fiscal claramente mais favorável, surgindo inseridas num contexto de combate a práticas de evasão e fraude fiscais, que assumem cada vez mais uma dimensão internacional, acolhendo medidas designadas de antiabuso ou defensivas, com vista a restringir a deslocalização de rendimentos para territórios que lhes assegurem um regime fiscal privilegiado.

3.10.      Estamos perante um regime especial antiabuso dirigido a contrariar esquemas de segregação artificial de rendimentos tributáveis das atividades que os geraram e de erosão das bases tributáveis, não oferecendo a sua ratio legis dúvidas: trata-se de contrariar uma espécie particular de operações evasivas, ou mesmo fraudulentas, que assenta na realização de “pagamentos" a favor de entidades estabelecidas em territórios de fiscalidade privilegiada de modo a "localizar" rendimentos produzidos e tributáveis em Portugal em jurisdições de regime fiscal mais favorável, com tributação reduzida ou nula, tirando igualmente proveito da limitada ou ausente colaboração das autoridades fiscais destas jurisdições para a prestação de informações fiscais.

3.11.      A lei impõe ao sujeito passivo a obrigação de demonstração da ocorrência das operações e da razoabilidade dos pagamentos efetuados, estabelecendo uma clara inversão do ónus da prova, ou seja, o legislador, bem sabendo das dificuldades na averiguação (disclosing) das operações tituladas por sociedades offshore, acolheu a solução da inversão do ónus da prova, sendo assim indispensável nos termos das normas legais em causa, que o sujeito passivo devedor forneça a prova de que tais gastos correspondem a operações reais e que não possuem um caráter anormal ou um montante exagerado.

3.12.      Determinada a situação de localização em jurisdição de baixa tributação do beneficiário dos pagamentos, no caso Hong Kong, cabe ao contribuinte devedor (a Requerente), para afastar esta presunção, demonstrar a materialidade da relação contratual fazendo prova de que os gastos incorridos correspondem a operações reais e não apresentam um carácter anormal ou exagerado.

3.13.      Esta dupla prova implica o seguinte: em primeiro lugar, o contribuinte tem de demonstrar que os gastos em questão correspondem a operações reais, dotadas de existência jurídica e material; em segundo lugar, o contribuinte tem de provar que esses gastos não possuem carácter anormal ou excessivo, para o que se lhe impõe, via de regra, referir-se a situações comparáveis no mercado, definindo o padrão normal do mercado.

3.14.      No caso dos autos, os serviços de inspeção verificaram que nos anos de 2013 e 2014, estão contabilizadas faturas emitidas por entidades residentes em Hong Kong, designadamente pela D..., pela F... e pela I... Co., Ltd..

3.15.      Os serviços de inspeção tributária verificaram ainda que, em 2013, na conta 62256 - Outros Mercados, existe emissão de ordens de pagamentos sobre o estrangeiro através do B... (conta n.º ... pertencente ao contribuinte ...), cujo beneficiário é a D... .

3.16.      Os pagamentos realizados perfazem um montante total de € 319.550,00:

 

3.17.      Relativamente, ao período de tributação de 2014, constataram os serviços de inspeção tributária que nas diversas contas de trabalhos especializados (621) e comissões (625), 62215 - Mercado Intracomunitário, 62255 - Mercado Intracomunitário e 62216 – Outros mercados, as faturas foram emitidas pela F... (pagamento dos € 31.000,00, por transferência internacional, através do B...– conta n.º... pertencente ao contribuinte ..., cujo beneficiário foi F...), e o Banco beneficiário é de Hong Kong; I...Co., Ltd. (pagamento dos € 40.200,00, por transferência bancária, através do J... à A...).

3.18.      No sentido de aferir da verificação dos pressupostos para aceitar a dedutibilidade fiscal dos gastos, à luz da regra geral constante do artigo 23.º do Código do IRC, bem como da norma antiabuso específica prevista no artigo 65.º do mesmo diploma, procedeu a Inspeção Tributária à notificação da Requerente para apresentar documentos de prova sobre o cumprimento dos requisitos exigidos neste último preceito legal, quanto à materialidade das operações e inexistência do seu caráter anormal e montante exagerado.

3.19.      A Requerente enviou a resposta ao pedido de esclarecimentos e à notificação, porém, da análise à resposta da Requerente e aos elementos anexados, relativamente aos gastos do período de 2013, verificou-se que estão contabilizadas faturas emitidas pelas entidades que se encontram sedeadas em Hong Kong, país constante da lista indicada na Portaria n.º 292/2011, de 8 de novembro (à data aplicável), como sendo um país com um regime fiscal claramente mais favorável.

3.20.      Quanto aos gastos do período de 2014, verificou-se, igualmente, que estão contabilizadas faturas emitidas pelas entidades que se encontram sedeadas em Hong Kong, país constante da lista indicada na Portaria n.º 292/2011, de 8 de novembro (à data aplicável), como sendo um país com regime fiscal claramente mais favorável.

3.21.      Da fundamentação que subjaz ao RIT, bem como da impugnação da matéria de facto acima aduzida, resulta que a Requerente não provou e continua a não provar que os pagamentos efetuados correspondem a operações efetivamente realizadas ou que, tendo acontecido, são normais e não de valor excessivo.

3.22.      A Requerente pretende que, provando-se a efetividade do pagamento, automaticamente se assuma a efetividade da operação que lhe subjaz, o que, conforme decorre do explicitado, não corresponde ao exigido nas normas legais supra mencionadas. Mas, talvez assim o pretenda fazer crer a Requerente, por relativamente às operações em causa não ter prova para demonstrar a sua efetividade e, menos ainda, o carácter normal da mesma.

3.23.      Resulta do RIT que a comissão paga a uma entidade não residente sujeita a um regime fiscal privilegiado (Hong Kong) é muito superior à comissão paga a uma entidade situada em território português. Estabelecendo uma comparação entre a percentagem da comissão contratada e aceite com as entidades sediadas em Hong Kong e o nível das comissões praticadas por entidades residentes, o desvio verificado é de tal amplitude que permite concluir que o montante é exagerado.

3.24.      Da justificação e dos elementos apresentados pela Requerente conclui-se que não foi cumprido o ónus que a lei fiscal exige (artigo 23.º- A do Código do IRC).

3.25.      A Requerente limitou-se a apresentar um contrato de cooperação imobiliária celebrado com uma das empresas sedeadas em Hong Kong, que apenas emitiu faturas no exercício de 2013. Relativamente ao exercício de 2014, não apresentou nenhum contrato relacionado com as empresas também sedeadas em Hong Kong. Nem apresentou outros meios de prova, conforme solicitado na notificação, que permitissem concluir pela realização efetiva dos serviços prestados pelas entidades de Hong Kong.

3.26.      A Inspeção Tributária apurou, a partir dos elementos contabilísticos da Requerente, nomeadamente as escrituras de venda, balancetes gerais e os extratos de conta corrente, que as comissões pagas às sociedades sediadas em Hong Kong atingiram valores superiores a 21%, sendo que também relativamente a esta questão a Requerente não logrou efetuar qualquer prova de que não existe exagero no montante da intermediação. Donde se conclui que não tendo sido demonstrado que o montante cobrado não é excessivo em face do padrão normal de mercado seguido em Portugal, tem-se por não preenchido este requisito.

3.27.      A circunstância de as vendas de imóveis aos cidadãos chineses terem originado um retorno positivo para a Requerente não serve de justificativo para concluir que o valor das comissões pagas, às sociedades sediadas em Hong Kong, é adequado aos serviços alegadamente prestados.

3.28.      O afastamento da exclusão da dedução exige a verificação cumulativa dos dois requisitos, como resulta da utilização da conjunção coordenativa aditiva “e” no artigo 65.º, n.º 1 do Código do IRC, bastando assim o incumprimento deste último para que a exclusão dos gastos opere.

3.29.      Logo, não tendo a Requerente conseguido, como lhe incumbia, fazer a prova exigida no n.º 4 do artigo 65.º os gastos relativos aos pagamentos efetuados a entidades sediadas em país com um regime fiscal claramente mais favorável não podem ser considerados como dedutíveis para o cálculo do lucro tributável desses períodos de tributação.

3.30.      Assim, face ao exposto não são aceites fiscalmente como gastos dos períodos, os montantes de 2013 – € 319.550,00, e de 2014 – € 120.000,00 nos termos dos artigos 23º, 65.º e 23.º-A, todos do Código do IRC, relativamente às operações comerciais entre a Requerente e as entidades sedeadas em Hong Kong, porque não devidamente comprovadas.

3.31.      Resulta óbvio do RIT que o fundamento legal da correção é a norma ínsita nos artigos 65.º/23.º-A do Código do IRC (2013 e 2014, respetivamente), e no facto de a AT considerar que os pressupostos ali mencionados se não verificam, pelo que, efetivamente, o motivo pelo qual a correção proposta foi efetuada prende-se com a localização da entidade beneficiária do pagamento num país que integra a lista referida na Portaria n.º 292/2011, de 8 de novembro.

3.32.      Resulta do depoimento das testemunhas, K... e L..., que os cidadãos chineses eram apresentados por tradutor, desconhecendo como chegaram a território nacional ou tinham conhecimento dos imóveis, sendo que os serviços jurídicos prestados eram diretamente faturados aos clientes. Ressalta deste modo uma clara contradição entre os depoimentos prestados e as alegações da Requerente designadamente nos artigos 57.º e 58.º do PPA, a qual deverá ser devidamente valorada.

3.33.      De igual modo, não logrou a Requerente explicar porque é que a percentagem oscilava entre os 15% e os 25%, independentemente do valor do imóvel, do mês da sua venda ou de qualquer outro fator.

3.34.      Também, não logrou demonstrar que efetivamente não havia contrato, nem que a troca de correspondência (e-mails) era o suficiente para a assunção de obrigações entre as partes. Designadamente, porque a Requerente não tinha garantia de que efetivamente as promotoras imobiliárias promoviam os seus imóveis e não outros atento “o excesso de oferta” referido pelas várias testemunhas.

3.35.      Como referiu a testemunha M..., na sua atividade profissional, de longa data neste sector de atividade “havia contrato” como “forma de se proteger”. Portanto, contrariamente às alegações da Requerente, o contrato era a forma de os promotores imobiliários se garantirem.

3.36.      O que cabia à Requerente explicar claramente, atenta a inversão do ónus da prova que sobre si impende, era que não tinha hipótese de escolha da empresa intermediária, porque, nos casos em que a empresa intermediária não era a C..., o valor da comissão paga era consideravelmente inferior. Ou seja, ao contrário do que pretende fazer crer, havia hipótese de escolha, tendo a Requerente escolhido pagar mais.

3.37.      O facto de a Requerente afirmar que o poder negociável era praticamente inexistente quando, efetivamente, não era isso que se passava e, bem assim, o facto de a Requerente não ter demonstrado, clara e inequivocamente, como lhe competia, quais os serviços concretos, documentados, que as entidades não residentes efetuaram, de modo a justificar as quantias anormais e aleatórias que contabilizou como gasto, forçoso se torna concluir como se fez em sede de Resposta, pugnando pela improcedência do PPA e consequente manutenção das liquidações sindicadas na ordem jurídica.

3.38.      A legitimação para efetuar correções ao lucro tributável declarado pelo contribuinte quando não se mostram cumpridos os pressupostos definidos no Código do IRC para efeitos de dedutibilidade dos custos incorridos resulta da lei, como lhe impõe, aliás, o princípio da legalidade. A opção de política legislativa de incluir ou não determinados territórios na Portaria que prevê as zonas de tributação privilegiada não encerra nenhuma questão de constitucionalidade.

3.39.      A violação do artigo 13.º da CRP ocorre quando uma norma sem o mínimo fundamento material assenta em fundamentos irrazoáveis e irracionais.

3.40.      No que respeita ao princípio constitucional da igualdade, deve referir-se que este, quando entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções, proíbe-lhe, antes, a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias. O princípio da igualdade fiscal apresenta uma tríplice dimensão, surgindo as duas primeiras dimensões como uma emanação do princípio geral da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 13.º da CRP. Em primeiro lugar, aquele princípio significa que todos os cidadãos são iguais perante a lei fiscal, de tal modo que todos os contribuintes que se encontrem na mesma situação definida pela lei fiscal devem estar sujeitos a um mesmo regime fiscal. Em segundo lugar, o princípio da igualdade fiscal tem também um sentido material ou substancial, cujo significado é o de que a lei deve garantir que todos os cidadãos com igual nível de rendimentos devem suportar idêntica carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos.

3.41.      O princípio da igualdade fiscal em sentido material não apenas veda ao legislador a adoção de desigualdades de tratamento, no âmbito fiscal, que não sejam autorizadas pela CRP ou que sejam materialmente infundadas, desprovidas de fundamento razoável ou arbitrárias, como impõe que a lei garanta que todos os cidadãos com igual capacidade contributiva estejam sujeitos à mesma carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos. Para além do princípio da igualdade fiscal, no sentido da igualdade dos cidadãos perante a lei fiscal e de igualdade da própria lei fiscal, consagra a CRP aquilo que se poderá designar por princípio da igualdade através do sistema fiscal, determinando que este visa, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, “uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (artigo 103.º, n.º 1 da CRP) e, bem assim, que o imposto sobre o rendimento pessoal tem como objetivo “a diminuição das desigualdades” entre os cidadãos (artigo 104.º n.º 1 da CRP).

3.42.      O princípio da igualdade é firmado no texto constitucional português através do artigo 13.º da CRP, onde se estabelece um princípio de igualdade perante a lei, também na tributação, comportando quer a generalidade quer a uniformidade dos impostos, pelo que, pelas razões já expostas é manifesta a improcedência da argumentação expendida pela Requerente.

3.43.      A normas dos n.ºs 13 e 14 do artigo 88.º do Código do IRC não violam o princípio da tributação das empresas segundo o rendimento real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da CRP. Este princípio reflete o direito do contribuinte de ser tributado sobre os lucros efetivamente verificados, e que são variáveis de ano para ano, e não sobre os lucros normais, isto é, sobre os lucros que a empresa poderia obter operando em condições normais e que poderiam exceder ou ficar aquém dos efetivamente obtidos. Acresce que este princípio pressupõe que a determinação do lucro tributável seja efetuada de acordo com a contabilidade da empresa, com base na documentação e comprovação das receitas e dos custos do sujeito passivo.

3.44.      Como se viu, a tributação autónoma não interfere no método destinado a determinar os resultados empresariais, nem implica que a matéria coletável que servirá de base à tributação em IRC passe a incluir lucros ou rendimentos que a empresa não tenha efetivamente auferido.

3.45.      Por identidade de razão, as disposições impugnadas não põem em causa o princípio da capacidade contributiva.

3.46.      Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu - é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa.

3.47.      De igual forma, quanto ao argumento de que há violação do princípio da proporcionalidade regulado no artigo 18.º n.ºs 1 e 2 da CRP não assiste qualquer razão à Requerente.

3.48.      O Código do IRC prevê que um conjunto de gastos refletidos na contabilidade deva ser sujeito a tributação autónoma que se encontra prevista no artigo 88.º daquele normativo legal. Incluem-se nesse conjunto de gastos as importâncias pagas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável por força do artigo 23.º-A do Código do IRC, estando tais pagamentos sujeitos a uma taxa de 35% (artigo 88.º, n.º 8 do Código do IRC). Sendo que a aplicação das taxas de tributação autónoma a determinados gastos ocorre na Modelo 22 após o cálculo do apuramento do imposto. Querendo isto dizer que sujeitos passivos com prejuízo podem ter IRC a pagar dado haver lugar ao pagamento de tributações autónomas.

3.49.      A taxa aplicável às despesas abrangidas pelo disposto no artigo 88.º, n.º 13 do Código do IRC, não se adiciona à taxa prevista para a tributação em IRC, pela linear razão, já antes explicitada, de que estamos aí perante factos tributários distintos e que são objeto de um tratamento fiscal diferenciado.

3.50.      A tributação autónoma não tem um qualquer efeito cumulativo em relação ao IRC e só incide sobre as despesas concretamente efetuadas e não sobre os rendimentos empresariais sujeitos a imposto, e, por conseguinte, ela não tem a consequência que a recorrente lhe atribui de ampliar a taxa sobre a tributação global relativa aos rendimentos da empresa.

3.51.      A tributação autónoma não pode ser entendida como um adicional ao imposto que o contribuinte deva pagar a título de IRC. E, por outro lado, o índice percentual mais elevado que é aplicável à realização de despesas (e que é suscetível de ser agravado no caso de empresas com prejuízo fiscal) é justificado justamente por se tratar de uma medida fiscal penalizadora do contribuinte e destinada a evitar a realização de despesas excessivas e desnecessárias do ponto de vista do interesse empresarial.

3.52.      A promoção do investimento estrangeiro não se encontra consagrada constitucionalmente como um direito, liberdade e garantia, não constituindo, por isso, um princípio absoluto (artigo 18.º, n.º 1 da CRP). E caso fosse, ainda assim tal princípio podia sofrer restrições para salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2 da CRP), designadamente quando o objetivo do legislador se prende com o combate à fraude e evasão fiscais e com a sustentabilidade do sistema financeiro e fiscal. Assim, de acordo com o exposto, a interpretação conferida ao artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r) e ao artigo 88.º, n.º 8 do Código do IRC não padece de qualquer inconstitucionalidade.

3.53.      Caso o Tribunal arbitral venha a acolher a pretensão da Requerente e recuse a aplicação do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r) e do artigo 88.º, n.º 8 do Código do IRC com fundamento em inconstitucionalidade, requer-se, por apelo ao disposto no artigo 280.º, n.º 3 da CRP e no artigo 72.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, seja determinado a notificação ao Ministério Público da douta decisão arbitral, a fim de que este dê cumprimento às suas prerrogativas legais.

3.54.      As liquidações controvertidas são perfeitamente legais, devendo, como tal, manter-se na ordem jurídica.

3.55.      As correções efetuadas pela AT estão em absoluta conformidade com a lei, não ocorrendo qualquer vício que deva ditar a anulação das liquidações. Decorre do relatório de inspeção que as conclusões alcançadas resultam da análise dos registos contabilísticos, das declarações fiscais e dos esclarecimentos / elementos apresentados pela Requerente.

3.56.      O direito à indemnização por prestação de garantia indevida encontra-se previsto no artigo 53.º da LGT e regulado no artigo 171.º do CPPT. O artigo 53.º da LGT regula o direito à indemnização por prestação de garantia indevida, contemplando duas situações distintas: o sujeito passivo tem direito a indemnização por prestação de garantia indevida nos casos em que a garantia prestada se tenha mantido por período superior a três anos ou, independentemente do período durante o qual esta se manteve, nos casos em que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3.57.      Está demonstrada a legalidade das liquidações controvertidas, inexistindo nessa medida qualquer erro imputável aos serviços, que justifique a sua anulação e a atribuição da indemnização requerida.

3.58.      Caso assim não se entenda, tal indemnização sempre teria de ser atribuída com a condição de ser liquidada em sede de execução de sentença e sempre com o limite máximo legalmente estabelecido no n.º 3 do artigo 53.º da LGT.

 

IV. FACTOS PROVADOS

 

4.1. Na audiência prevista no artigo 18.º do RJAT, que teve lugar no dia 27-02-2019, a prova testemunhal produzida não versou sobre a matéria dos encargos financeiros ora em análise.

4.2. Assim, a matéria de facto dada como assente pelo Tribunal a este respeito tem por base o alegado pela Requerente e não impugnado pela Requerida, bem como a documentação instrutora do PA (Anexo V), aliás também junta pela Requerente (Docs. n.ºs 5 a 17 do PPA).

4.3. No demais, os factos dados por provados resultam da convicção do Tribunal, assente no exame crítico dos documentos do processo, não impugnados, e no depoimento das testemunhas apresentadas na audiência de julgamento, tendo estas deposto com isenção e mostrado ser conhecedoras dos factos.

 

Neste contexto, o Tribunal considera provada, com relevância para a decisão, a seguinte factualidade:

4.4. A Requerente é uma entidade com a natureza jurídica de sociedade por quotas, com o objeto social de compra, venda e revenda de propriedades, construção civil e urbanizações.

4.5. A Requerente iniciou a atividade de “Compra e venda de bens imobiliários”, a que respeita o CAE2 068100, em 28-12-2005.

4.6. Por escritura pública outorgada no dia 14-02-2007, a Requerente adquiriu por € 8.421.875,00, o prédio urbano sito no ... com o valor patrimonial tributário total de € 101.460,58, e identificado no património da empresa como “...”.

4.7. Na escritura ficou declarado que o B... concedeu à Requerente (Mutuária), para efeitos da aquisição e obras de conservação no referido prédio urbano, um empréstimo no montante de € 16.000.000, do qual € 7.900.000 se destinavam à aquisição do imóvel e € 8.100.000 para realização de obras.

4.8. O empréstimo e hipoteca ficaram regulados por documento complementar à escritura.

4.9. No referido documento complementar ficou convencionado (cláusula 8) que o empréstimo vence juros sobre o capital em dívida, contados dia a dia e cobrados postecipadamente ao trimestre, sendo suscetíveis de atualização trimestral, ficando assim a taxa contratual indexada a uma taxa de referência, que foi a EURIBOR a 90 dias acrescida de 1,25%.

4.10. O empréstimo foi concedido para o prazo de 36 meses a contar da data da escritura, para ser amortizado à medida que a Mutuária/ora Requerente fosse realizando as vendas das futuras frações do edifício, sem prejuízo da obrigação de liquidar o remanescente, se o houvesse, até ao termo do referido prazo de 36 meses (cláusula 10). Todos os pagamentos feitos pela Mutuária/ora Requerente deveriam ser feitos mediante débito da sua conta junto do Banco (cláusula 16-1) (cfr. Doc. n.º 5 junto ao PPA).

4.11. Por documento particular datado de 30-03-2011, o Banco e a Requerente celebraram “Aditamento ao Contrato de Mútuo celebrado em 14 de fevereiro de 2007 (CPI n.º...)”, nos termos do qual, com relevo para a questão decidenda, retificaram o teor da cláusula décima, no sentido de o prazo ali indicado ser de 48 meses, e prorrogaram em mais de 24 meses o prazo de vigência, portanto, 72 meses no total, fixando o seu termo em 14-02-2013, e alteraram o diferencial (vulgo, spread) sobre a EURIBOR a 90 dias, de 1,25% para 5%, com efeitos a 14-02-2011 (cfr. Doc. n.º 6 junto ao PPA).

4.12. Por documento particular datado de 30-12-2011, o Banco e a Requerente celebraram “Aditamento ao Contrato de Mútuo celebrado em 14 de fevereiro de 2007 (CPI n.º...)”, nos termos do qual diferiram para 14-02-2012 a exigibilidade da prestação de juros remuneratórios que se venceu em 14-08-2011, acordaram que a prestação de juros remuneratórios que se venceria em 14-11-2011 não seria paga nessa data de vencimento, sendo-o no dia 14-02-2012, e alteraram o diferencial (spread) sobre a EURIBOR a 90 dias, de 5% para 5,5%, com efeitos a 14-08-2011 (cfr. Doc. n.º 7 junto ao PPA).

4.13. Por documento particular datado de 14-08-2012, o Banco e a Requerente celebraram “Aditamento ao Contrato de Mútuo celebrado em 14 de fevereiro de 2007 (CPI n.º...)”, nos termos do qual diferiram para 14-02-2013 a exigibilidade das prestações de juros remuneratórios que se venceram em 14-08-2011, 14-11-2011, 14-02-2012 e 14-05-2012, acordaram que a prestação de juros remuneratórios que se venceria em 14-11-2012 não seria paga nessa data de vencimento, sendo-o no dia 14-02-2013, e alteraram o diferencial (spread) sobre a EURIBOR a 90 dias, de 5,5% para 6%, com efeitos a 14-08-2012 (cfr. Doc. n.º 8 junto ao PPA).

4.14. Por documento particular datado de 20-06-2013, o Banco e a Requerente celebraram “Aditamento ao Contrato de Mútuo celebrado em 14 de fevereiro de 2007 (CPI n.º...)”, nos termos do qual modificaram o prazo de vigência, de 72 para 75 meses, com termo em 14-05-2013, diferiram para 14-05-2013 a exigibilidade das prestações de juros remuneratórios que se venceram em 14-02-2013, e alteraram o diferencial (spread) sobre a EURIBOR a 90 dias, de 6% para 4%, com efeitos a 14-02-2013 (cfr. Doc. n.º 9 junto ao PPA).

4.15. Por documento particular datado de 21-06-2013, o Banco e a Requerente celebraram “Aditamento ao Contrato de Mútuo celebrado em 14 de fevereiro de 2007 (CPI n.º...)”, nos termos do qual modificaram o prazo de vigência, de 75 para 99 meses, com termo em 14-05-2015, diferiram para 14-11-2013 a exigibilidade das prestações de juros remuneratórios que se venceram em 14-05-2013, e alteraram o diferencial (spread) sobre a EURIBOR a 90 dias, de 4% para 5,5%, com efeitos a 14-05-2013 (cfr. Doc. n.º 11 junto ao PPA).

4.16. Por documento particular datado de 28-03-2014, o Banco e a Requerente celebraram “Aditamento ao Contrato de Mútuo celebrado em 14 de fevereiro de 2007 (CPI n.º...)”, nos termos do qual diferiram para 14-11-2014 a exigibilidade das prestações de juros remuneratórios que se venceram em 14-11-2013 e acordaram que a prestação de juros remuneratórios que se venceria em 14-15-2014 não seria paga nessa data de vencimento, sendo-o no dia 14-11-2014 (cfr. Doc. n.º 12 junto ao PPA).

4.17. Por documento particular datado de 01-04-2015, o Banco e a Requerente celebraram “Aditamento ao Contrato de Mútuo celebrado em 14-02-2007 (CPI n.º...)”, nos termos do qual diferiram para 14-05-2015 a exigibilidade das prestações de juros remuneratórios que se venceram em 14-11-2014, afirmaram manter a taxa de juro com o diferencial de 4% sobre a EURIBOR a 180 dias (sic) (cfr. Doc. n.º 13 junto ao PPA).

4.18. Em documento (carta) datado de 26-02-2015, o B... refere: “Para os devidos efeitos, declaramos que as contas abaixo indicadas em nome da A...[…] apresentavam em 2014/12/31 o saldo:” 

 

(cfr. Doc. n.º 15 junto ao PPA).

4.19. Em documento (correio eletrónico assinado por N..., B...) com data de envio de 20-01-2015, consta:

“Seguem abaixo valores em dívida à data de hoje:

Capital: 6.519.629,00 €

Juros: 2.034.545,85 €” (cfr. Doc. n.º 16 junto ao PPA).

4.20. Em documento (“Declaração”) datado de 09-11-2016, o B... declara que:

“[…] os valores indicados na carta datada de 26 de fevereiro de 2015, relativa à posição da A... […] reportada à data de 31 de dezembro de 2014, se referem a:

Saldo da conta à ordem n.º ... no valor de 1.403,67

Capital em dívida do empréstimo n.º... no valor de 6.519.629,00 €

Juros diferidos do empréstimo n.º ... no valor de 1.939.343.10 € e respetivo imposto do Selo no valor de 80.805,96 €.”

(cfr. Doc. n.º 17 junto ao PPA).

4.21. Inexiste outra documentação, constante do RIT ou junta aos Autos, relativa ao suporte do gasto de € 2.020.149,06 (referente a juros de € 1.939.343,10 e Imposto do Selo de € 80.805,96, seja fatura ou nota de débito emitida pelo B... .

4.22. A Requerente reconstruiu o referido imóvel, para posterior venda, iniciando em 2012 a comercialização das primeiras frações, continuando pelos anos de 2013 e 2014.

4.23. A Requerente realizou vendas de frações do edifício “...” no montante total de € 25.548.184,36.

4.24. Nos anos de 2013 e 2014, estão contabilizadas faturas emitidas por entidades residentes em Hong Kong, designadamente pela:

(1)          D..., no valor global de € 319.550,00;

(2)          F..., no valor global de € 31.000,00; e

(3)          I..., Ltd., no valor global de € 40.200,00.

4.25. Em junho de 2014, foi celebrado um contrato de Cooperação Imobiliária Internacional entre a A... e a D..., do qual resulta, nomeadamente que (cfr. Doc. n.º 21 junto ao PPA):

(1)          A comissão cobrada pela D... é de 25% (tendo, contudo, sofrido uma redução para 21,3% (cfr. Doc. n.º 4 junto ao PPA);

(2)          A D... assegura o contacto com clientes internacionais;

(3)          A D... apenas é remunerada se forem realizadas vendas pela requerente.

4.26. Os serviços prestados pela D... não eram simples serviços de mediação mobiliária (cfr. depoimento da testemunha M...).   

4.27. A D..., bem como as restantes empresas que trabalham o mercado chinês, suportam diversos custos relativamente aos prospetivos compradores chineses que não são suportados por mediadoras nacionais “tradicionais” (e.g., os encargos com a deslocação e alojamento para visitas a imóvel objeto de potencial investimento, incluindo hotéis, carro, tradutor, refeições e demais custos em Portugal)., tradutores, deslocações, etc.) (cfr. e-mail de M... dirigido a O... datado de 24-03-1014 – Doc. n.º 24 junto ao PPA e depoimento das testemunhas O... e M...).

4.28. A D... e a Requerente são entidades independentes (cfr. depoimento da testemunha M...).

4.29. A F... prestou serviços à Requerente (cfr. Doc. n.º 22 junto ao PPA – e-mail de O..., de 30-03-2014, e e-mail de P... dirigido a Q..., de 20-04-2014).

4.30. A comissão da F... é de 5% (cfr. e-mail de P..., de 20-04-2014).

4.31. Por cada fatura emitida à Requerente há uma ligação direta com a venda de um apartamento em concreto:

(1)          No caso da D..., a fatura no montante de € 31.000 corresponde à comissão pela venda do apartamento 30, sobre o qual foi efetuada uma reserva por R... (cfr. e-mail de O..., de 31-03-2014, e fatura n.º 14002, de 21/04/2014, Doc. n.º 22 junto ao PPA);

(2)          No caso da D... a fatura de € 64.680,00, corresponde ao montante pago no momento da celebração do contrato promessa dos apartamentos n.ºs 14 e 18, relativo à venda  a S..., T...; a fatura no montante de €254.870,00, corresponde à comissão pela venda dos apartamentos n.ºs 14, 18 e 16, a S..., T..., e U..., respetivamente (cfr. fatura n.º 2013/013, de 01-08-2013, e fatura n.º 2013/014, de 09-10-2013, Doc. n.º 22 junto ao PPA).

4.32. A comissão da C... foi fixada entre 20% e 25%, sendo devida apenas após a outorga de escritura de venda (cfr. Doc. n.º 20 junto ao PPA – email de O... dirigido a V..., “... Project Manager”, de 01-04-2014).

 

4.33. Relativamente à entidade I... Co., Ltd., não se provou o âmbito dos serviços prestados e a comissão cobrada, uma vez que não foi junto qualquer contrato celebrado com a A... ou-mails trocados, nem foi produzida prova testemunhal.

 

4.34. Nada mais se provou com interesse para a decisão da causa.

 

V. DO DIREITO

 

5.1.        Nos presentes autos importa decidir, essencialmente, quatro questões:

(1)          A possibilidade de serem, ou não, deduzidos pela Requerente os juros decorrentes de um empréstimo contratado com o B... para o efeito da aquisição e realização de obras de reabilitação do “...”;

(2)          A possibilidade de serem, ou não, desconsiderados, os pagamentos a não residentes que a Requerente realizou nos exercícios em causa a favor de entidades com sede em Hong Kong;

(3)          A legalidade da tributação autónoma dos pagamentos efetuados a entidades com sede em Hong Kong por estes poderem ter um caráter anormal ou um montante exagerado;

(4)          O direito a uma indemnização pelos prejuízos resultantes da garantia prestada.

 

(1)          Da dedutibilidade dos juros

 

5.2.        Nos termos do estatuído na alínea a) do n.º 2 do artigo 123.º do Código do IRC, “2 – Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte: a) Todos os lançamentos contabilísticos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário;”.

5.3.        A alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC estatui que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação, “os encargos cuja documentação não cumpra o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º (…)”.

5.4.        Por sua vez, o n.º 3 do artigo 23.º do Código do IRC estatui que “[o]s gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para o efeito”.

5.5.        O n.º 4 do mesmo artigo 23.º define os elementos que o documento deve conter no caso de o gasto ter sido contraído na aquisição de bens ou prestação de serviços.

5.6.        É precisamente este último preceito que a Requerida entendeu aplicável e com base no qual desconsidera fiscalmente o gasto com os “juros diferidos”.

5.7.        Na determinação do Direito aplicável, sua interpretação e aplicação, o Tribunal não está circunscrito ao alegado pela Requerente e pela Requerida (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, aplicável nos termos da remissão operada no artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

5.8.        E na verdade a questão de Direito extravasa os termos em que a Requerida e até a Requerente a formulam.

5.9.        É certo que se trata de discutir e decidir se o conjunto de documentação emitida pelo B... (e patente nos Autos) preenche o disposto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IRC, mas trata-se também de equacionar e resolver questão logicamente prévia a essa subsunção, qual seja a da natureza do gasto em causa, mais precisamente sob a ótica de se tratar de um gasto financeiro ou económico.

5.10.      A carta e a “Declaração” emitidas pelo B... e datadas de 26-02-2015 e 09-11-2016, respetivamente, conjugadas com o teor dos Aditamentos ao Contrato de Mútuo, mais especificamente com o teor do último Aditamento, datado de 01-04-2015, nos termos do qual diferiram para 14-05-2015 a exigibilidade das prestações de juros remuneratórios que se venceram em 14-11-2014, isto é, de todas as prestações de juros que entretanto se tinham vencido e tinham sido diferidas para essa data pelos sucessivos aditamentos anteriores, traçam um quadro claro quanto à situação dos juros: a 31-12-2014 havia juros efetivamente corridos, mas ainda não devidos, por não exigíveis.

5.11.      Isto é, os juros vêm a ser devidos, no sentido de se vencer a obrigação de os pagar, em data ulterior ao final do exercício de 2014 (em 14-05-2015), o que só por si demonstra que, por natureza, não poderia existir “fatura ou nota de débito” emitida pelo B... durante o exercício de 2014.

5.12.      Em todo o caso, isso não significa que a Requerente não poderia ter contabilizado os juros. Pelo contrário. Por força do princípio da especialização dos exercícios, conjugado com a regra (legal) de a contabilidade dever refletir a realidade económica, não a financeira, a Requerente não só podia fazer essa contabilização como devia fazê-la, sob pena de as suas demonstrações financeiras de 2014 serem falsas, por não representarem a realidade económica da empresa.

5.13.      Dispõe o Sistema de Normalização Contabilística / SNC, em Anexo ao Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, que: “2.3 - Regime de acréscimo (periodização económica): 2.3.1 - Uma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica). 2.3.2 - Ao ser usado o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica), os itens são reconhecidos como ativos, passivos, capital próprio ou fundos patrimoniais, rendimentos e gastos quando satisfaçam as definições e os critérios de reconhecimento para esses elementos contidos na estrutura conceptual”.

5.14.      Ora, o Código do IRC transpõe para a tributação do rendimento – sem a modificar – esta disciplina normativa da contabilidade: “[o]s rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.” (artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRC).

5.15.      Mais: se a Requerida não tivesse contabilizado e inserido na Declaração Modelo 22 do exercício de 2014 os juros decorridos até 31-12-2014, apenas o fazendo no exercício em que os paga (2015), o gasto não seria fiscalmente aceite: “[a]s componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.” (artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC). Não seria fiscalmente aceite porquanto seria falso que o juro decorrido a 31-12-2014 fosse imprevisível ou manifestamente desconhecido, embora pudesse haver eventual dificuldade na sua quantificação.

5.16.      Chegados a este ponto, há naturalmente que resolver o aparente dilema: se o B... não poderia emitir “fatura ou nota de débito” durante o exercício de 2014, por não operar nesse exercício o vencimento da obrigação de juros, e se a Requerente está vinculada a reconhecer e contabilizar o custo, por aplicação do regime contabilístico de acréscimo, como se dá cumprimento ao disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 123.º e no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IRC? Por outras palavras, que documento – pois que algum tem que existir – seria idóneo a suportar a contabilização e a dedutibilidade fiscal?

5.17.      Concluímos já, em razão de tudo o que antecede, pela inaplicabilidade do disposto no n.º 4 do artigo 23.º. Este preceito aplica-se a situações em que há uma despesa efetiva, com aquisições de bens ou prestações serviços, e, portanto, deve existir fatura ou nota de débito em conta, consoante as situações, mas não tem aplicação a situações em que existe um gasto económico que, nos termos do SNC e do n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC, deve ser contabilizado e deve ser levado aos custos do exercício em que é suportado, independentemente do seu pagamento.

5.18.      Existe ampla jurisprudência – sobre situações em que até existe despesa efetiva, portanto gasto financeiro, e não apenas gasto reconhecido por aplicação do regime contabilístico de acréscimo – no sentido de que não se exige uma fatura como documento insubstituível. Certa jurisprudência admite mesmo, quer implícita, quer explicitamente, que seja bastante um documento interno.

5.19.      Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante, “STA”) de 05-07-2012, proferido no processo n.º 0658/11, do qual decorre que “em sede de IRC, o documento comprovativo e justificativo dos custos para efeitos do disposto nos arts. 23.º, n.º 1, e 42.º, n.º 1, alínea g), do CIRC, não tem de assumir as formalidades essenciais exigidas para as faturas em sede de IVA, uma vez que a exigência de prova documental não se confunde nem se esgota na exigência de fatura, bastando tão-só um documento escrito, em princípio externo e com menção das características fundamentais da operação, uma vez que ao contrário do que se passa com o IVA, em sede de IRC, a justificação do custo consubstancia uma formalidade probatória e, por isso, substituível por qualquer outro género de prova.” (disponível em www.dgsi.pt) (negritos e sublinhados nossos).

5.20.      Também o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (doravante, “TCA-S”) de 23-04-2015, proferido no processo n.º 06468/13 determina que: “I. Em sede de IRC, o documento comprovativo e justificativo dos custos para efeitos do disposto nos arts. 23.º, n.º 1, e 41.º, n.º 1, alínea h), do CIRC (na redação aplicável aos autos), não tem de assumir as formalidades essenciais exigidas para as faturas em sede de IVA, bastando documento, que até poderá ser interno, desde que descreva suficientemente todos os elementos da operação que titulam;

II. Os documentos internos terão de conter os elementos essenciais da operação que titulam por forma a possibilitar à AT quer ao controle da legalidade da dedução para efeitos fiscais do gasto, quer da respetiva tributação dos montantes auferidos pelos prestadores de serviços, o que não ocorre se os documentos internos não identificam de forma adequada as pessoas singulares que prestaram os serviços, nem se encontram assinados quaisquer recibos que atestem quem e quanto recebeu.” (disponível em www.dgsi.pt) (negritos e sublinhados nossos).

5.21.      Em substância, o que esta jurisprudência evidencia é que o conceito do que se deva ter por documento bastante, fora das situações a que se aplique o n.º 4 do artigo 23.º do Código do IRC – nas quais se não subsume a situação decidenda – tem que se escorar no disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IRC, isto é o gasto dedutível deve estar comprovado documentalmente, “independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito”.

5.22.      O conjunto dos documentos (i) celebrados entre a Requerente e o B..., concretamente o Contrato de Mútuo e respetivos Aditamentos (Docs. n.ºs 5 a 13 juntos ao Pedido de Pronúncia Arbitral), e (ii) emitidos pelo B..., concretamente o documento (carta) datado de 26-02-2015 (cfr. Doc. n.º 15 junto ao PPA) e o documento (“Declaração”) datado de 09-11-2016 (cfr. Doc. n.º 17 junto ao PPA), todos constantes do Anexo V ao RIT, patenteia o apuramento dos juros contados pelo B..., a 31-12-2014, na operação de financiamento da aquisição e das obras no imóvel, plenamente integrada na atividade económica da Requerente e, portanto, estruturalmente orientada à produção de lucro. Pela mesma razão não subiste como válida a asserção da Requerida, vertida no RIT, de que “nem foi demostrada a sua ligação com vista a obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.

5.23.      Resta analisar a segunda razão encontrada pela Requerida para desconsiderar a aceitação fiscal do gasto: a de que a ora Requerente também não fez prova da congruência entre o gasto supostamente suportado no âmbito da atividade da empresa e o rendimento conexo, com vista a potenciar o seu desenvolvimento e a alcançar o lucro, uma vez que os juros anuais de € 2.198.958,40 (€ 1.939.343,10 + € 259.615,39) contabilizados como gasto do período, referentes a um saldo médio de empréstimo de € 7.740.329 [(saldo inicial de € 8.961.029 + saldo final de € 6.519.629) / 2] corresponde a uma taxa de juro anual de 28,41% (€ 2.198.958,40 / € 7.740.329) totalmente distante das taxas de juro praticadas no mercado de capitais nos últimos anos.

5.24.      Salvo o devido respeito, a Requerida fez tábua rasa do conjunto dos documentos juntos ao RIT. O valor dos juros reflete as capitalizações sucessivas, clausuladas no Contrato de Mútuo e permitidas pelo , n.º 4 do artigo 7.ºdo Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8 de maio (como antes o eram pelo artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 344/78, de 17 de novembro), em derrogação da proibição do anatocismo por convenção anterior ao vencimento, constante do artigo 560.º do Código Civil, bem como incorpora juros de exercícios anteriores a 2014 (o que está explicitado em todos os Aditamentos ao Contrato de Mútuo atrás referidos), o que invalida a operação aritmética apresentada.

5.25.      Claro que esta última asserção suscita questão diversa, qual seja a de saber se parte do valor de juros contabilizado em 2014 não se refere efetivamente a anos anteriores, pelo que a sua aceitação como encargo dedutível em 2014 estaria subordinada ao condicionalismo constante do n.º 2 do artigo 18.º do Código do IRC. Porém, esta questão não foi formulada pela Requerida no RIT ou na decisão de desconsideração do gasto em 2014, pelo que não cabe a este Tribunal apreciá-la.

5.26.      Decide-se, pois, pela ilegalidade da correção feita pela Requerida na parte em que desconsidera integralmente o valor de € 2.020.149,06 (referente a juros de € 1.939.343,10, e imposto do selo de € 80.805,96) registado no período de tributação da Requerente de 2014, quando apenas poderia ter desconsiderado o excesso sobre os limites fixados no n.º 1 do artigo 67.º do Código do IRC.

 

(2)          Pagamentos a não residentes, que a Requerente realizou nos exercícios em causa a favor de entidades com sede em Hong Kong

 

5.27.      A segunda questão a decidir, está em admitir ou não a dedução ao lucro tributável de 2013 e 2014 das despesas faturadas pelas sociedades D..., F... e I..., Ltd, todas com sede em Hong Kong.

5.28.      A este respeito, seguiremos de perto o Acórdão n.º 382/2018-T do CAAD, de 22-02-2019. (disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/)

5.29.      A AT não aceitou a dedutibilidade dos gastos da Requerente relativos a pagamentos às referidas sociedades com sede em Hong Kong, com fundamento nos artigos 65.º do Código do IRC, na redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (vigente em 2013) e 23.º-A, n.º 1, alínea r) do mesmo Código, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro (vigente em 2014). As citadas normas legais, à data dos factos, estatuíam o seguinte:

Artigo 65.º

Pagamentos a entidades não residentes sujeitas a um regime fiscal privilegiado

1 - Não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado.

2 - Considera-se que uma pessoa singular ou coletiva está submetida a um regime fiscal claramente mais favorável quando o território de residência da mesma constar da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças ou quando aquela aí não for tributada em imposto sobre o rendimento idêntico ou análogo ao IRS ou ao IRC, ou quando, relativamente às importâncias pagas ou devidas mencionadas no número anterior, o montante de imposto pago for igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a referida entidade fosse considerada residente em território português.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, os sujeitos passivos devem possuir e, quando solicitado pela Direcção-Geral dos Impostos, fornecer os elementos comprovativos do imposto pago pela entidade não residente e dos cálculos efetuados para o apuramento do imposto que seria devido se a entidade fosse residente em território português, nos casos em que o território de residência da mesma não conste da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças.

4 - A prova a que se refere o n.º 1 deve ter lugar após notificação do sujeito passivo, efetuada com a antecedência mínima de 30 dias.

5 - O disposto nos números anteriores é ainda aplicável às importâncias pagas ou devidas indiretamente, a qualquer título, às mesmas pessoas singulares ou coletivas, quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento do destino de tais importâncias, presumindo-se esse conhecimento quando existam relações especiais nos termos do n.º 4 do artigo 63.º entre:

a) O sujeito passivo e as pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável; ou

b) O sujeito passivo e o mandatário, fiduciário ou interposta pessoa que procede ao pagamento às pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea anterior.

Artigo 23.º-A

Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais

1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

(...)

r) As importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português, e aí submetidas a um regime fiscal identificado por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças como um regime de tributação claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado.”. 

5.30.      Em 2014, o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r) do Código do IRC sofreu uma renumeração e reorganização sistemática, mudando do artigo 65.º (que foi revogado) para o artigo 23.º-A relativo aos encargos não dedutíveis.

5.31.      A norma prevista primeiro no artigo 65.º e depois no artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r) do Código do IRC, criada com o intuito de combater a fraude e a evasão fiscais, prevê que os pagamentos efetuados a entidades residentes fora de Portugal e sediadas num “paraíso fiscal” não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável, ainda que contabilizados como gastos no período de tributação.

5.32.      O n.º 2 do artigo 65.º do Código do IRC consagra índices ou pressupostos que à AT cumpre demonstrar querendo acionar a norma (cfr. artigo 74.º, n.º 1, da LGT): quando o território de residência da pessoa singular ou coletiva constar da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças ou quando aquela aí não for tributada em imposto sobre o rendimento idêntico ou análogo ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante, “IRS”) ou ao IRC, ou quando, relativamente às importâncias pagas ou devidas mencionadas no número anterior, o montante de imposto pago for igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a referida entidade fosse considerada residente em território português.

5.33.      Para que haja segurança na aferição de quais são os países ou territórios abrangidos pelas normas, a Portaria n.º 292/2011, de 8 de novembro, contém a chamada “lista negra” portuguesa.

5.34.      Com a prova da inserção do território de Hong Kong na citada portaria, fica a Requerida dispensada de provar que a sociedade aí sediada não foi tributada em imposto sobre o rendimento idêntico ou análogo ao IRS ou ao IRC, ou que o montante de imposto pago foi igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a referida entidade fosse considerada residente em território português dada a alternatividade dos elementos.

5.35.      A este respeito, o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r) do Código do IRC aplicável ao exercício de 2014 não trouxe alterações significativas: não são dedutíveis “[a]s importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português, e aí submetidas a um regime fiscal identificado por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças como um regime de tributação claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado.”.

5.36.      O território de Hong Kong estava e continuou a estar incluído na “lista dos países, territórios e regiões com regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis” (sob o n.º 31), que constava da Portaria n.º 292/2011, de 8 de novembro, que alterou a Portaria n.º 150/2004, de 13 de fevereiro.

5.37.      Revertendo ao caso em análise, fez a AT prova dos pressupostos para acionar a norma em análise, visto que o pagamento em causa foi efetuado pela Requerente a uma entidade com sede em país com um regime de tributação privilegiado conforme a Portaria n.º 1272/2001, de 9 de novembro.

5.38.      Nos termos dos artigos 65.º (aplicável para o exercício de 2013) e 23.º-A do Código do IRC (aplicável para o exercício de 2014) a regra da não dedutibilidade dos gastos relativos a pagamentos efetuados a entidades residentes em países com regimes de tributação privilegiada poderá, porém, ser afastada no caso de o contribuinte provar, por qualquer modo, que tais encargos correspondem a: (1) operações efetivamente realizadas; e (2) operações que não têm um caráter anormal ou um montante exagerado.

5.39.      Ocorre assim uma inversão do ónus da prova que passa a caber ao sujeito passivo.

5.40.      Conforme consta do Acórdão do TCA-S, de 04-11-2003, proferido no processo n.º 7464/02: “Em suma, o legislador desconfiou das operações realizadas com estas entidades, em que são contabilizados custos, e presumiu que estes não têm as contrapartidas invocadas, ressalvando em todo o caso, a possibilidade da efectiva demonstração pela contribuinte dessas contrapartidas, que melhor que ninguém saberá, concretamente, quais foram.” (disponível em www.dgsi.pt).

5.41.      Conforme refere SALDANHA SANCHES “a lei, quando inverte o ónus da prova em relação a pagamentos feitos a zonas de baixa fiscalidade que destroem a conexão natural entre custo dedutível de A e proveito sujeito a imposto de B, está a retirar àquele custo a presunção de veracidade, até prova em contrário, que acompanha qualquer custo devidamente documentado, devendo por isso mostrar-se que o serviço existiu e que o montante do pagamento não é exagerado”. (J.L. SALDANHA SANCHES, Os Limites do planeamento fiscal: substância e forma no Direito Fiscal Português, Comunitário e Internacional, Coimbra Editora, 2006, 202).

5.42.      Mais se deverá referir que a lei não exige qualquer formalismo nesta prova, assim vigorando quanto à mesma o sistema da prova livre e podendo socorrer-se o sujeito passivo de todos os meios de prova permitidos por lei (artigos 352.º e ss. do Código Civil e artigo 115.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”) ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).

5.43.      Quanto à prova do primeiro requisito, i.e., da realização das operações resultou da prova produzida que foi realizada quer pela D..., quer pela F... uma atividade global de angariação de potenciais investidores chineses para compra de imóveis da Requerente, nos anos de 2013 e 2014.

5.44.      Essa atividade de angariação incluiu a identificação de compradores, preparação de material promocional, organização de visitas a Portugal (alojamento, transporte e tradutor), etc.

5.45.      Não se justificam dúvidas sobre a realização desta atividade, não só porque foi junta documentação comercial e correspondência trocada entre a Requerente e as referidas empresas, mas também, no caso da D..., porque foi nesse sentido a prova produzida em audiência, por quem teve em Portugal contacto direto com essas atividades.

5.46.      Aliás, o facto (que não é controvertido) de a Requerente ter vendido grande quantidade de imóveis a cidadãos chineses é uma prova indireta, mas convincente, de que houve uma eficiente atividade de angariação, pois sem esta não se vislumbra como poderiam ter tido conhecimento de que a Requerente dispunha de imóveis para venda.

5.47.      Por outro lado, o facto de que as remunerações só serem pagas quando os contratos eram celebrados assegura que não houve pagamentos que não tivessem subjacente atividade de angariação.

5.48.      Por isso, não se justifica que não se considere provado que os gastos suportados pela Requerente com pagamentos à D... e à F... correspondem a operações efetivamente realizadas.

5.49.      Assim, é de considerar provado que os pagamentos correspondem a operações efetivamente realizadas.

5.50.      Por outro lado, no que respeita à prova do segundo requisito, i.e., da não anormalidade e não exagero, teremos de verificar se o pagamento do serviço de mediação imobiliária é normal e não é exagerado.

5.51.      É indispensável que ambos os requisitos (normalidade e não exagero) estejam preenchidos, de modo a que as empresas possam efetivamente deduzir os pagamentos efetuados a entidades sediadas em paraísos fiscais.

5.52.      No que diz respeito à “normalidade”, o pagamento de uma remuneração pelos serviços de angariação de clientes para a venda de imóveis é normal, estando regulada pela Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro (regime jurídico a que fica sujeita a atividade de mediação imobiliária).

5.53.      O citado diploma, no seu artigo 19.º - “Remuneração da empresa”, regula a remuneração do prestador destes serviços. Deste modo, não podemos deixar de concluir que o pagamento de uma remuneração com a conclusão e perfeição do negócio visado pela mediação é normal (artigo 19.º, n.º 1).

5.54.      Quanto ao requisito do “não exagero” teremos de analisar o montante das comissões.

5.55.      O carácter exagerado, ou não, das comissões deve ser aferido, contudo, através de um juízo empírico.

5.56.      Neste caso, entendemos ser de analisar se o contrato é equilibrado. Para o efeito temos de atender, em primeiro lugar, às circunstâncias concretas da Requerente aquando da celebração do contrato com a D... e com a F..., tendo este, ou não, sido reduzido a escrito (elemento sobre o qual nos pronunciaremos mais abaixo).

5.57.      Neste prisma, afigura-se-nos relevante ter em conta que a Requerente estava a sentir dificuldades em vender os seus imóveis. A crise no sector imobiliário iniciada em 2008/2009 é um facto público e notório que afetou todo o sector imobiliário e implicou uma redução drástica da atividade imobiliária.

5.58.      Outra circunstância de facto relevante refere-se ao endividamento bancário da Requerente. Uma vez que a Requerente não conseguia vender os seus ativos (imóveis) e não conseguia liquidar as dívidas bancárias.

5.59.      Este era o contexto da Requerente aquando da celebração dos contratos com a D... e F... e que não é despiciendo para a análise dos termos contratuais.

5.60.      Quanto aos termos do contrato em si, o equilíbrio do contrato é demonstrado através da demonstração da importância real das suas vantagens e dos encargos como justa remuneração dos serviços prestados, comparativamente aos custos de serviços iguais ou semelhantes praticados no mercado.

5.61.      Não é adequado comparar as percentagens cobradas pela D... e F... com as comissões habitualmente pagas na medição imobiliária (4% ou 5%) porque aquelas prestaram diversos serviços que não estão incluídos nos normais serviços de mediação imobiliária como, por exemplo, a divulgação dos imóveis na China, o pagamento das deslocações da China para Portugal, incluindo hotéis, refeições, os transportes em Portugal, os intérpretes, as incursões à China para realização de seminários junto dos clientes das agências parceiras, entre outros da mesma natureza (cfr. Doc. n.º 24 junto ao PPA, nomeadamente o e-mail de 24-03-2014).

5.62.      O termo de comparação efetuado pela Requerida é, assim, na opinião deste Tribunal, manifestamente desajustado.

5.63.      Face ao exposto, tendo em conta as circunstâncias da Requerente e os serviços prestados pela D... e F... não se pode considerar que os montantes das comissões eram exagerados.

5.64.      A razoabilidade dos pagamentos efetuados à D... e à F... é ainda reforçada pelo facto de a Requerente não ser afetada pelos pagamentos que lhe fazia, pois apenas lhe pagava quando concretizasse a venda dos imóveis.

5.65.      Pelo exposto, conclui-se que a Requerente provou que os pagamentos efetuados à D... e à F... não foram anormais nem exagerados.

5.66.      Acresce que, sem prejuízo de, nos termos do artigo 16.º, n.º 1 da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, o contrato de mediação imobiliária ser “obrigatoriamente reduzido a escrito”, a falta de um contrato escrito, no caso da F... não nos parece ser um argumento muito impressivo já que, por um lado, a prova da existência das operações, nos termos acima referidos, pode ser feita através de todos os meios permitidos por lei.

5.67.      Por outro lado, a prova exigida pelos artigos 65.º, n.º 1 e 23.º-A, n.º 1, alínea r) do Código do IRC refere-se à realização das operações e ao facto de os encargos não terem um caráter anormal ou um montante exagerado, o que não se demonstra com a celebração, ou não de um contrato.

5.68.      Porque, conforme resultou do depoimento da testemunha M..., os serviços prestados iam muito além da mediação imobiliária.

5.69.      E ainda, porque ao Direito Fiscal interessa a relação material subjacente e a produção de efeitos económicos nos termos pretendidos pelas partes (artigos 36.º e 38.º da LGT).

5.70.      Assim, tendo existido um acordo entre as partes, tendo sido produzidos, ao abrigo desse acordo, efeitos económicos, o enquadramento fiscal deve ser efetuado de acordo com a realidade material.

5.71.      Desta forma, conclui-se que o ato de liquidação relativo ao exercício de 2013 enferma de vício de violação do artigo 65.º, n.º 1, do Código do IRC e o ato de liquidação relativo ao exercício de 2014 enferma de vício de violação do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r), do Código do IRC nas respetivas redações que nesses anos vigoravam, exceto no que respeita à dedutibilidade dos pagamentos à I..., Ltd.

5.72.      No que respeita à inconstitucionalidade do artigo 23.º-A, n.º 1, al. r) do Código do IRC, por violação dos artigos 2.º, 13.º, 18.º e 104.º, n.º 2 da CRP, sempre será de referir que o combate à fraude e evasão fiscal justificam a inversão do ónus da prova estabelecida pelo referido preceito do Código do IRC, não tendo, contudo, a Requerente, conseguido produzir, no que respeita à I..., Ltd., prova de que foram efetivamente realizadas operações com esta entidade.

5.73.      Desta feita, não se considera existir qualquer inconstitucionalidade a este respeito.

 

(3)          A tributação autónoma dos pagamentos efetuados a não residentes por estes poderem ser desproporcionais face às comissões pagas a agências imobiliárias portuguesas, mas também por considerar que a Requerente não provou a efetiva realização dos serviços em causa.

5.74.      Dispunha o artigo 88.º, n.º 8 do Código do IRC, na redação em vigor em 2013 e 2014, “[s]ão sujeitas ao regime dos n.ºs 1 ou 2, consoante os casos, sendo as taxas aplicáveis, respectivamente, 35% ou 55%, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, tal como definido nos termos do Código, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efectivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado.” (sublinhados nossos).

5.75.      Encontrando-se demonstrado, nos termos acima referidos, que as operações foram efetivamente realizadas e que não têm um caráter anormal ou um montante exagerado, considera-se que a liquidação é igualmente ilegal na parte relativa a tributações autónomas, excepto no que respeita aos pagamentos à I..., Ltd.

5.76.      No que respeita à inconstitucionalidade do artigo 88.º-A, n.º 1 do Código do IRC, por violação dos artigos 2.º, 13.º, 18.º e 104.º, n.º 2 da CRP, sempre será de referir que o combate à fraude e evasão fiscal justificam a inversão do ónus da prova estabelecida pelos referido preceito do Código do IRC, não tendo, contudo, a Requerente, conseguido produzir, no que respeita à I... Co., Ltd., prova de que foram efetivamente realizadas operações com esta entidade.

5.77.      Desta feita, não se considera existir qualquer inconstitucionalidade a este respeito.

 

(4)          Direito a uma indemnização pelos prejuízos resultantes da garantia prestada

 

5.78.      A Requerente formula ainda um pedido de indemnização por garantia indevida, por ter prestado uma garantia (constituição de hipoteca) para suspensão da execução fiscal instaurada para cobrança da quantia liquidada.

5.79.      O artigo 171.º do CPPT aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT estabelece que “[a] indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda” e que “[a] indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência”.

5.80.      Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de indemnização por garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do ato de liquidação.

5.81.      O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a “legalidade da dívida exequenda”, pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

5.82.      O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

“Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.

2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”.

5.83.      No caso em apreço, o erro que justifica a anulação parcial das liquidações de IRC e juros compensatórios é imputável à AT na medida em que esta se considerou ilegal.

5.84.      Contudo, como se decidiu no Acórdão do STA proferido no processo n.º 0528/12, de 24-10-2012:

“I - No caso concreto dos autos, em que a garantia prestada para suspender a execução, foi uma hipoteca, esta garantia real não pode ser entendida como uma garantia equivalente à garantia bancária para efeitos dos artºs 53º nº 1 da LGT e 171º do CPPT.

II - Com efeito, esta hipoteca voluntária, em princípio só terá custos emolumentares, de constituição e registo. Assim, não pode dizer-se que estejamos perante uma garantia equivalente à garantia bancária.

III - É no entanto certo que o recorrido pode ter outros danos para além dos prejuízos decorrentes do pagamento de emolumentos. Assim é de admitir a possibilidade de o pedido indemnizatório ser efectuado em processo autónomo onde se possam averiguar com mais acuidade os danos que o interessado possa ter sofrido (este deve especificar os concretos prejuízos) à semelhança do que estipula o artº 53º nº 3 da LGT para a garantia bancária e seguro caução.”

5.85.      Neste sentido, também se pronunciou o STA no processo n.º 0469/14.6BELRS 033/18, de 10-10-2018, bem como os tribunais arbitrais em funcionamento no CAAD nos processos n.ºs 360/2018-T, de 03-04-2019, e 219/2018-T, de 15-02-2019.

  Não há assim lugar, nestes autos, a indemnização ainda que parcial pela prestação de garantia.

 

VI. DECISÃO

 

Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:

a.            Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral sobre a ilegalidade das liquidações adicionais de IRC, e juros correspondentes, n.º 2017 ... e n.º 2017 ..., relativas, aos exercícios de 2013 e 2014 e, em consequência, proceder à anulação das referidas liquidações, bem como do ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2017..., exceto na parte referente às correções efetuadas relativamente à I... Co., Ltd.;

b.            Julgar improcedente o pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

 VII. VALOR DO PROCESSO E TAXA DE ARBITRAGEM

 

Fixa-se o valor do processo em € 393.847,64 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 6.426,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida na proporção de 93,7% e pela Requerente na proporção de 6,3%, uma vez que o pedido foi apenas parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 31 de maio de 2019

 

Os Árbitros,

 

 (José Baeta de Queiroz – com declaração de voto anexa)

 (Luís M. S. Oliveira)

(João Taborda da Gama)

 

 

 

 

 

Declaração de voto

Subscrevo sem nenhuma reserva a decisão e seus fundamentos, quanto ao mérito da causa, mas não a acompanho no que toca à questão incidental respeitante ao pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.

Considero que não há nenhum motivo válido que aconselhe a que, quando a garantia prestada não seja “bancária ou equivalente”, o pedido de indemnização não possa ser atendido num processo de impugnação. Ao invés, há um claro inconveniente, que é a oneração da parte na propositura de uma acção autónoma, e o encargo adicional para o aparelho judicial resultante da tramitação e decisão de mais um processo.

Ora, estas razões, em súmula, a economia processual, terão sido as determinantes para que o legislador tenha consagrado expressamente a possibilidade de o pedido de indemnização pela prestação de garantia indevida ser formulado e atendido no processo em que se reconheça a ilegalidade da liquidação e, consequentemente, da necessidade em que o sujeito passivo foi indevidamente colocado, de prestar garantia ou ver executado o seu património para satisfação de uma dívida ferida de ilegalidade.

A razão para esta diversidade de tratamento, conforme se trate de garantia bancária ou equivalente, ou de hipoteca voluntária, radica, para o entendimento que obteve maioria, na letra do artigo 171º nº 1 do CPPT, que se refere a “garantia bancária ou equivalente”, omitindo qualquer referência a outras modalidades de garantia.

A expressão “garantia bancária ou equivalente” usada pelo CPPT foi importada do artigo 53º da LGT, cujo rigor terminológico não é, reconhecidamente, exemplar.

Abalizada doutrina entende interpretar extensivamente este artigo da LGT, no que respeita às expressões “reclamação graciosa” e impugnação judicial”.

O mesmo é de fazer quanto à expressão “garantia bancária ou equivalente”, que deve ser interpretada como abrangendo, também, as demais modalidades de prestação de garantia, mesmo aquelas cujos encargos não crescem com o decorrer do tempo. Até por maioria de razão, pois sempre os encargos desta natureza são de apuramento mais difícil, a exigirem, porventura, um processo autónomo para a sua quantificação. Dependendo a suspensão da execução da prestação de “garantia idónea nos termos das leis tributárias (nº 2 do artigo 52º da LGT, e podendo esta consistir em “garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer meio susceptível de assegurar os créditos do exequente”, incluindo “penhor ou hipoteca voluntária”, embora estas dependentes de concordância da AT (artigo 199º nºs 1 e 2 do CPPT), cremos que os elementos interpretativos histórico, sistemático e teleológico, nos conduzem a que o pensamento de legislador não foi o de restringir a possibilidade de obter no processo de impugnação judicial indemnização pela prestação de garantia indevida aos casos em que tal prestação ocorreu mediante garantia bancária ou equivalente. Tanto mais quando, como é o caso da hipoteca voluntária, o montante indemnizatório não depende de complexas indagações e meios de prova, correspondendo às despesas emolumentares e registrais atinentes à constituição de hipoteca e seu distrate, facilmente documentáveis.

Eis por que não julgaria improcedente o pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

 

(José Baeta de Queiroz)