Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 501/2018-T
Data da decisão: 2019-06-17  IRC  
Valor do pedido: € 2.311.554,56
Tema: IRC - Perdas por imparidade.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

                1. A... - SUCURSAL EM PORTUGAL, com o número de identificação de pessoa coletiva..., com sede na ..., n.º ...-..., ...-... Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto tributário de liquidação adicional de IRC resultante da desconsideração de perdas por imparidade e, bem assim, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra esse acto, requerendo ainda o pagamento de indemnização pela prestação de garantia bancária indevida.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade que tem por objeto social a condução de projetos e empreitadas de construção civil.

 

Na sequência do lançamento pela B..., S.A., em representação do Estado Português, do concurso público internacional para a concessão das infraestruturas ferroviárias do troço ...-..., como parte integrante da ligação de alta velocidade entre ... e ..., a Requerente passou a integrar o Agrupamento Complementar de Empresa (ACE) que adoptou a designação de C...- ACE, com uma participação social de 17,25%.

 

Por outro lado, a D..., S.A. (D...) e o Estado Português assinaram, em 8 de maio de 2010, um contrato de concessão que versava sobre a concepção e construção de uma linha de alta velocidade entre ... e ... e a sua concessão por 40 anos, tendo sido, na mesma data, celebrado entre a D..., na qualidade de concessionária, e o C..., na qualidade de ACE, um contrato de empreitada relativo à execução da totalidade dos trabalhos de concepção, projecto, expropriações, construção, fornecimento e montagem de equipamentos previstos no contrato de concessão.

 

Posteriormente, a E... remeteu o contrato de concessão ao Tribunal de Contas para efeitos de fiscalização prévia, tendo ocorrido a recusa do visto prévio, por ausência de condições de viabilidade financeira, pelo acórdão n.º 9/12, de 21 de março de 2012.

 

Em face da recusa do visto, o C.../ACE constituiu, por referência ao período de tributação de 2012, uma perda por imparidade no montante de € 47.203.373,86, sobre os créditos em mora do cliente D... .

 

Na sequência de uma ação inspetiva, a Autoridade Tributária procedeu à correção do lucro tributável apurado pelo C.../ACE, por referência ao período de 2012, no valor de € 39.059.469,00 por desconsideração como gasto fiscal da perda por imparidade constituída sobre os valores a receber da D..., fazendo-a repercutir sobre o resultado fiscal da Requerente, enquanto membro do Agrupamento Complementar de Empresas na proporção da sua participação social (17,50%), o que determinou uma correcção no montante de € 6.737.758,44.

 

A Requerente não procedeu ao pagamento do imposto devido, pelo que foi notificada, em 10 de agosto de 2017, da instauração do processo de execução fiscal, tendo apresentado um pedido de suspensão da instância mediante a constituição de garantia bancária e deduzido subsequentemente uma reclamação graciosa contra o acto de liquidação adicional.

 

A reclamação graciosa foi indeferida pelas seguintes três ordens de considerações: inexistência de mora pelo facto de a Requerente não ter interpelado o devedor e ter sido firmado um acordo escrito que previa o não pagamento das importâncias em dívida até à obtenção do visto do Tribunal de Contas; falta de provas objetivas de imparidade, uma vez que, actuando o Estado como garante na relação empresarial em causa, os créditos não podem ser tidos como de cobrança duvidosa; inexistência de diligências de cobrança.

 

A Requerente entende, contudo, que se encontram preenchidos todos os requisitos de que depende a dedutibilidade fiscal das perdas por imparidade, desde logo porque, ao abrigo do contrato de empreitada celebrado entre o C.../ACE e a D..., foram emitidas e enviadas as faturas à D... e indicado o prazo de vencimento que, na maioria dos casos, se encontrava fixado em 90 dias.

Não obstante, as partes terem efetivamente celebrado um acordo, no âmbito do contrato de empreitada, que previa o não pagamento dos montantes devidos e eventuais juros de mora até à obtenção do visto do Tribunal de Contas, a circunstância de o visto ter sido recusado determinou a reposição das condições inicialmente contratadas, verificando-se a situação de mora por parte do devedor após o vencimento de cada uma das faturas.

Por isso se tendo celebrado um acordo revogatório, em 20 de março de 2013, em que é expressamente reconhecida a existência de dívida de € 47.203.373,86, acrescida de juros de mora pelo atraso no pagamento das respetivas faturas.

Por outro lado, a perda por imparidade não poderia ter sido registada em períodos anteriores porquanto o acontecimento externo e objetivo que originou o reconhecimento da perda por imparidade foi precisamente a recusa de visto prévio pelo Tribunal de Contas.

Para além disso, também subsistem provas objetivas de imparidade, sendo que não é invocável o disposto no artigo 36.º, n.º 3, alínea a), do Código do IRC, visto que a relação contratual existente entre a Requerente e a D..., baseada num contrato de empreitada, não se confunde com a relação existente entre esta última entidade e o Estado, fundada num contrato de concessão, pelo que não pode afirmar-se que o crédito sobre a D... corresponde a um crédito sobre o Estado.

 

As provas de imparidade resultam também da débil situação financeira da devedora, revelada pelo relatório e contas de 2012, que evidenciava um ativo de € 57.123.000 contra um passivo de € 346.094,000, e que foi agravada pela recusa do visto pelo Tribunal de Contas.

 

Havendo de concluir-se que se verificam todos os requisitos para a aceitação como gasto fiscal da perda por imparidade, ao abrigo dos artigos 35.º e 36.º do Código do IRC, incluindo quanto à mora desde a data do vencimento das facturas.

 

A não entender-se assim, a desconsideração do gasto fiscal põe em causa o princípio da tributação segundo o lucro real.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que a possibilidade de constituir imparidades para cobrir o risco de cobrança de créditos depende do cumprimento dos requisitos gerais da alínea a) do n.º 1 do artigo 35.º e dos requisitos específicos do n.º 1 do artigo 36.º do Código do IRC, o que no caso se não verifica.

 

A mora dos créditos, face ao disposto nos artigos  804º e 805º do Código Civil, apenas se conta da data da interpelação judicial ou extrajudicial, sendo que, no caso, foi acordado entre o C... e a D... o não pagamento pela concessionária de montantes devidos até à obtenção do visto do Tribunal de Contas, pelo que a devedora não poderia ter sido considerada em mora até à pronúncia do Tribunal, além de que nunca chegou a ser interpelada para o cumprimento.

 

Acresce que está em causa um contrato de concessão celebrado entre o Estado e a D..., pelo que os créditos existentes sobre a concessionária têm ab initio a garantia do Estado, não podendo ser tidos como créditos de cobrança duvidosa.

 

A Requerente também não demonstrou ter realizado diligências para o recebimento da dívida, sendo que a correspondência trocada entre C... e a D... apenas comprovam o acordo firmado entre as partes quanto à inexistência de mora até à obtenção do visto do Tribunal de Contas, bem como a atualização do valor da dívida com referência a 31 de Maio de 2012.

 

Ainda que dúvidas existissem, o acordo celebrado entre as partes de 20 de Março de 2013, na sequência da recusa do visto do Tribunal de Contas,  assegura que os créditos sobre a D... foram reconhecidos e salvaguardados, mediante a estipulação do montante a pagar, o prazo de pagamento, a forma de contagem e remuneração dos juros, e especialmente pelo que consta do ponto 3.2 em que se refere que a concessionária assegurará ao ACE os mecanismos legais e processualmente admissíveis e necessários para apresentação ao Estado Português dos custos efetivamente incorridos pelo ACE, na parte que não tenha sido reconhecido a título de pagamento de faturas e juros de mora.

 

Concluindo-se que, à luz da alínea c) do nº 1 do artigo 36º do Código do IRC, não há risco de incobrabilidade dos créditos, além de que a devedora não foi constituída em mora, não há provas objetivas de imparidade, nem foram efetuadas diligências para o pagamento.

 

 

2. No seguimento do processo foi agendada para o dia 3 de Abril de 2019 a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à inquirição da testemunha arrolada no pedido arbitral. Tendo sido comunicada a impossibilidade de a testemunha comparecer na data designada e manifestada disponibilidade para comparência nos dias 8, 11 e 12 de abril seguintes, foi agendada a inquirição para o dia 8 de Abril. Tendo sido requerido de novo o adiamento da inquirição, o Tribunal decidiu que a impossibilidade de comparência em diligência designada para uma das datas para a qual a testemunha indicou ter disponibilidade não constitui impedimento legítimo, nos termos do disposto no artigo 508.º, n.º 3, alínea b), do CPC, para novo adiamento da diligência.

 

Nesse sentido, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a produção de prova testemunhal, determinando-se o prosseguimento do processo para alegações escritas facultativas pelo prazo sucessivo de 15 dias.

 

Em alegações as partes mantiveram as suas anteriores posições. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 20 de Dezembro de 2018.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A) A Requerente integra o Agrupamento Complementar de Empresas, sob a designação de C..., A.C.E., constituído em 8 de  fevereiro de 2010, e no qual detém uma participação social de 17,25%;

 

B)  Em 8 de maio de 2010, foi celebrado um contrato de concessão entre a D..., S.A.  e o Estado Português, que tinha por objecto a concepção e construção de  uma linha de alta velocidade entre ... e ... e a sua concessão por 40 anos;

 

C) Nessa mesma data, a D..., na qualidade de concessionária, adjudicou ao C..., mediante contrato de empreitada, a execução da totalidade dos trabalhos de concepção, projeto, expropriações, construção, fornecimento e montagem de equipamentos previstos no contrato de concessão;

 

D) O Tribunal de Contas recusou o visto prévio ao contrato  de concessão pelo acórdão n.º 9/12, de 21 de Março de 2012, notificada pela concessionária ao C... por comunicação de 23 de Março seguinte;

 

E) Em consequência da recusa do visto, o C... e a D... celebraram um acordo, com data de 20 de Março de 2013, tendo em vista regular a extinção do contrato de empreitada, nos termos do qual as partes reconhecem e acordam o seguinte:

a) A concessionária pagará ao ACE os seguintes montantes devidos ao abrigo do contrato de empreitada:

   - € 47.203.373,86 referentes a facturas emitidas e aceites pela Concessionária que se encontram por pagar à data da assinatura do acordo e que se encontram discriminadas no Anexo I;

   - € 2.832.630,62 referentes a juros de mora pelo atraso no pagamento das referidas faturas a que acrescerão juros de mora vincendos até integral pagamento.

b) A concessionária obriga-se a exigir ao concedente por via arbitral (ou nos tribunais judiciais caso a via arbitral não seja possível) os pagamentos dos montantes anteriormente mencionados, os quais serão pagos ao ACE se e quando e na mesma medida em que estes sejam pagos pelo concedente;

(…).

3.2. Caso o pagamento das facturas e respectivos juros de mora não venha a ser reconhecido em sede arbitral ou judicial, a concessionária assegurará ao ACE os mecanismos legal e processualmente admissíveis necessários para apresentação ao Estado Português dos custos efectivamente incorridos pelo ACE na parte em que não tenha sido reconhecida a título de pagamentos de facturas e juros de mora, cujo valor não excederá os montantes anteriormente referidos.

 

G) O Anexo I ao acordo contém a relação de facturas relativas a trabalhos realizados ao abrigo do contrato de empreitada, no montante global de € 47.203.373,86;

H) O Anexo II ao acordo contém o cálculo dos juros de mora referentes às facturas em dívida à data da celebração do acordo no montante global de € 2.832.630,62;

I) O C... /ACE registou, em 31 de Maio de 2012, uma perda por imparidade no valor € 47.203.373,86, através do lançamento na conta D 6511000001-Perdas por Imparidade – Em dívidas a receber – Clientes-D..., S.A.;

 

J) A Autoridade Tributária desencadeou um procedimento inspectivo externo relativamente à C..., credenciado pela Ordem de Serviço OI2016..., tendo em vista analisar a dedutibilidade da perda por imparidade registada no ano de 2012.

 

L) O Relatório de Inspecção Tributária elaborado no âmbito desse procedimento desconsiderou a dedutibilidade como gasto fiscal da perda por imparidade registada pelo C..., determinando a correcção do resultado fiscal declarado em IRC no montante de € 39.059.469,00 por aplicação do critério de mora fiscal;

 

M) A correcção proposta assenta nos seguintes fundamentos: (a) o C... aceitou relativamente às facturas emitidas à D... que o período de mora apenas se iniciaria após a emissão do visto do Tribunal de Contas; (b) a D... não foi interpelada para pagamento das importâncias em dívida; (c) o sujeito passivo não apresentou provas objectivas da imparidade da dívida; (d) não foram realizadas diligências de cobrança;

 

N) A proposta constante do Relatório de Inspecção Tributária foi aprovada por despacho do director de finanças de Lisboa, de 1 de março de 2017;

 

O) A Requerente foi objeto de uma inspeção tributária, de âmbito parcial, ao abrigo da OI2016..., incidente sobre o exercício de 2012, para determinar a imputação ao seu resultado fiscal da correcção efectuada relativamente ao C..., tendo sido apurada uma correcção no montante de € 6.737.758,44, correspondente à percentagem da participação social no Agrupamento Complementar de Empresas.

 

P) A proposta constante do Relatório de Inspecção Tributária foi aprovada por despacho do director de finanças de Lisboa, de 17 de Maio de 2017;

 

Q) A Autoridade Tributária emitiu nota de liquidação adicional de IRC no valor de € 2.147.834,83, acrescido de juros compensatórios no valor de € 334.802 82, titulada pelo documento n.º 2017..., de 22 de Maio de 2017;

 

R) Em 26 de Outubro de 2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra o acto de liquidação adicional de IRC;

 

S) A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do director de finanças adjunto, de 28 de junho de 2017, com base nos seguintes fundamentos:  (a)  inexistência de mora, justificada pelo facto de a Requerente não ter interpelado o devedor e ter havido um acordo escrito que previa o não pagamento por parte da D... até à obtenção do visto do Tribunal de Contas; (b) falta de prova objetiva de imparidade, considerando que o Estado é garante na relação empresarial em causa e os créditos não poderão ser considerados de cobrança duvidosa; (c) inexistência de diligências de cobrança;

 

T) Não tendo procedido ao pagamento do imposto devido, a Requerente foi citada para a instauração de processo de execução fiscal nos termos do disposto no artigo 191.º, n.º 4, do CPPT, por comunicação datada de 9 de Agosto de 2017;

U) A Requerente formulou um pedido de suspensão do processo de execução fiscal, mediante a apresentação de garantia bancária, que foi aceite por despacho do chefe de finanças adjunto, em substituição, de 22 de Setembro de 2017;

V) Através de correspondência trocada entre a D... e o C.../ACE, em 7 e 13 de Dezembro de 2010, as partes acordaram que “até à obtenção do visto do Tribunal de Contas, o pagamento pela concessionária ao C... de quaisquer montantes previstos no contrato de empreitada relativo à concessão RAV  .../... (…) seja efectuado apenas se e na medida em que a concessionária receba os montantes previstos no Modelo Financeiro da Concessão”, e, em conformidade, “o não pagamento pela concessionária de montantes devidos ao C... nos termos do contrato de empreitada não será considerado, até à obtenção do visto prévio do Tribunal de Contas, para nenhum efeito, como incumprimento ou como mora no cumprimento da obrigação de pagamento por parte da D...”.

X) Por carta datada de 25 de Maio de 2012 enviada à D..., o C... remete para “os efeitos tidos como convenientes” um anexo com a actualização dos valores em dívida e o cálculo de juros de mora com referência ao dia 31 desse mês;

Z) Por carta datada de 3 de Fevereiro de 2011, a D... dá conhecimento à Requerente que efectuou uma transferência bancária no montante de € 14.195.582,00 para pagamento de facturas, na base do compromisso que havia sido assumido entre as partes, e em resposta, a Requerente, em 4 de março de 2011, sem pôr em causa o princípio do pagamento diferido, refere que lhe assiste o direito a ser pago pelo valor é de 21.559 M€ e não€ 14.195.582,00.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta. O acordo mencionado na alínea v) da matéria de facto foi reconhecido pela Requerente na petição inicial (artigo 70.º) e não questionado pela Requerida.

 

Matéria de direito

 

5. A Autoridade Tributária procedeu à correção do lucro tributável apurado pela Requerente, por referência ao período de 2012, por ter desconsiderado como gasto fiscal a perda por imparidade constituída pelo C.../ACE sobre os valores em dívida, no âmbito do contrato de empreitada que o ACE havia celebrado com a D..., S.A., concessionária da linha de alta velocidade entre ... e ... .

 

Sustenta a sua posição no não preenchimento dos requisitos do artigo 36.º, 1, alínea c), do Código de IRC, atendendo a que a devedora não foi constituída em mora por não ter sido para interpelada para pagamento e não foram apresentadas provas do risco de incobrabilidade nem realizadas diligências de cobrança.

 

A Requerente contrapõe que as facturas foram emitidas e enviadas à devedora com a indicação do prazo de vencimento e que, embora tivesse sido estabelecido um acordo entre as partes que previa o não pagamento dos montantes devidos e juros de mora até à obtenção do visto do Tribunal de Contas, esse acordo foi revogado na sequência da recusa de visto e substituído por um outro em que é reconhecida a existência de dívida, acrescida de juros de mora, pelo atraso no pagamento das respetivas faturas, havendo de entender-se que a situação de mora opera a partir da data do vencimento das facturas.

Por outro lado, a devedora encontrava-se em situação de debilidade financeira, que foi agravada pela recusa do visto do Tribunal de Contas e é revelada pelo relatório e contas referente a 2012, e existem provas documentais da realização de diligências de cobrança através da correspondência e de diversos contactos telefónicos.

A questão que se coloca é, pois, a de saber se se verificam os requisitos da perda por imparidade.

 

O regime legal aplicável, na redação em vigor à data dos fatos, resultava das disposições conjugadas dos artigos 35.º e 36.º do Código do IRC.

 

Dispunha o artigo 35º, nº 1, alínea a), do Código do IRC, que podem ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidade contabilizadas no mesmo período de tributação ou períodos de tributação anteriores “relacionadas com créditos resultantes da atividade normal que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”.

 

Para efeitos de determinação das perdas de imparidade previstas nesse dispositivo, o subsequente artigo 36.º, na parte que mais interessa considerar, dispunha o seguinte:

 

1 - Para efeitos de IRC são créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

a) Quando o devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial (SIREVE);

b) Quando os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;

c) Quando os créditos estejam em mora há mais de 6 meses desde a data do respectivo vencimento e existam provas objectivas de imparidade e de terem sido efectuadas diligências para o seu recebimento.

(…)

3. Não são considerados créditos de cobrança duvidosa:

a) Créditos sobre o Estado, regiões autónomas, autarquias e entidades públicas em geral ou créditos em que estas tenham prestado aval;

b) Créditos cobertos por seguro;

c) Créditos sobre pessoas singulares ou colectivas que detenham, directa ou indirectamente, mais de 10% do capital;

d) Participadas detidas, directa ou indirectamente, em mais de 10% do capital”

 

No caso vertente, está essencialmente em causa o critério de incobrabilidade estabelecido na alínea c) do n.º 1 do artigo 36.º, pelo qual haverá de comprovar-se que existem créditos em mora há mais de mais de 6 meses e existem provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.

O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, sendo ainda possível, não foi efetuada no tempo devido, traduzindo-se os efeitos da mora debitória na obrigação de reparar os prejuízos causados ao credor (artigo 804.º do Código Civil). Os prejuízos atendíveis para o efeito da indemnização a cargo do devedor são aqueles que advêm para o credor do facto do retardamento da prestação e devem ser calculados de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil. Tratando-se, no entanto, de obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros legais a contar da data da constituição em mora (artigo 806.º).

 

Em todo o caso, a determinação do artigo 806.º quanto aos juros moratórios não afasta os princípios gerais relativos à mora do devedor, quer quanto à culpa no retardamento da prestação, quer quanto à necessidade de interpelação.

 

Em princípio, como decorre do artigo 805.º do Código Civil, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, excetuando-se apenas os casos em que a obrigação tiver prazo certo ou provier de facto ilícito ou ainda se o próprio devedor impedir a interpelação, caso em que se considerará interpelado na data em que normalmente o teria sido.

 

   No caso vertente, a Requerente sustenta que as facturas emitidas tinham um prazo de vencimento estipulado, que, na maioria dos casos, era de 90 dias, pelo que, tratando-se de uma obrigação de prazo certo, de que o devedor tinha necessariamente conhecimento, não havia lugar à interpelação.

 

Não pode ignorar-se, no entanto, que as partes estabeleceram um acordo, ainda no decurso do ano de 2010, pelo qual, até à emissão do visto do Tribunal de Contas, os pagamentos seriam efectuados na medida em que a concessionária dispusesse do financiamento necessário por parte do concedente e, até ao cumprimento dessa formalidade, a devedora não se encontraria constituída em mora por atraso no cumprimento da obrigação de pagamento.

 Em consequência da recusa do visto, as partes firmaram um outro acordo, em 20 de Março de 2013, destinado a regular os termos da extinção do contrato de empreitada, pelo qual a concessionária se compromete a pagar a importância de € 47.203.373,86 referente a facturas emitidas e aceites e ainda em dívida, bem como € 2.832.630,62 referentes a juros de mora pelo atraso no pagamento dessas faturas a que poderiam acrescer juros de mora vincendos até integral pagamento.

 

O ponto é que o ACE registou a perda por imparidade, no indicado valor € 47.203.373,86,  em 31 de Maio de 2012, num momento em que vigorava ainda o acordo que liberava a devedora da responsabilidade moratória, tudo se passando - a essa data -como se as partes, depois de terem fixado um prazo para o cumprimento, tivessem acordado que a obrigação ficaria sem prazo determinado.

 

Por outro lado, o chamado acordo revogatório, essencialmente destinado a regular a relação entre as partes por efeito da extinção do contrato de empreitada, não pode ter como consequência a repristinação da situação de mora com efeitos reportados à data do vencimento inicial da obrigação, sobretudo se se tiver em consideração que os interessados tinham manifestado a vontade expressa de fazer depender a constituição da mora de um acontecimento futuro e incerto, que seria constituído pela emissão do visto do Tribunal de Contas.

 

Assim sendo, quando em 31 de Maio de 2012, o ACE registou a perda por imparidade não se verificava ainda o requisito da mora de devedor a que se refere a alínea c) do nº 1 do artigo 36.º

 

6.  Acresce que, à data da constituição da perda por imparidade, não existia qualquer prova objectiva de risco de incobrabilidade da dívida. No acordo estipulado em Dezembro de 2010, num momento em que o contrato de concessão estava ainda dependente de fiscalização prévia do Tribunal de Contas, o que se encontrava previsto é que os pagamentos de facturas em dívida fossem sendo regularizados através das verbas que fossem colocadas à disposição da concessionária por parte do concedente. Não havendo nenhum indicador de que o contrato de empreitada não viesse a ser executado ou de que a concessionária se encontrasse em situação de significativa dificuldade financeira.

 

Não se põe em dúvida que a situação não pode considerar-se abrangida pela regra do artigo 36.º, n.º 3, alínea a), do Código do IRC, que determina que os créditos do Estado não são considerados de cobrança duvidosa. Os créditos de que a Requerente disponha relativamente à concessionária, no âmbito do contrato de empreitada, não podem ser tidos como créditos incidentes sobre o Estado, visto que estes apenas surgem na esfera jurídica da concessionária por efeito de uma outra relação contratual em que a Requerente não é parte. Em todo o caso, por efeito dessa ligação causal, as partes confiaram que as facturas referentes aos trabalhos realizados pudessem ser liquidadas através dos pagamentos a que o concedente se encontrava vinculado através do contrato de concessão e, aparentemente, essa possibilidade só se frustrou com a recusa do visto do Tribunal de Contas e a consequente extinção da relação contratual.

 

Como é sabido, e resulta contexto literal e sistemático do artigo 36.º, n.º 1, alínea c) do Código do IRC, o requisito fulcral do registo fiscal da imparidade é a existência de “provas objetivas de imparidade” para lá do prazo da mora. Ou seja, não basta a passagem do tempo – exige-se provas objetivas de imparidade que se traduzam na assunção pelo credor que o crédito está em mora e nas consequentes tentativas de cobrança.

 

É ao sujeito passivo que cabe avaliar, ao decidir a constituição de imparidades, se o risco de incobrabilidade é normal, ou se, em determinado momento, se tornou excessivo, e só neste último caso é que torna justificável reconhecer a imparidade por se encontrar verificada a probabilidade de incobrabilidade.

 

No caso vertente, não é possível aceitar o risco de incobrabilidade quando estava ainda em vigor o acordo de pagamento diferido através dos financiamentos do Estado pelo quais se esperava obter o pagamento das dívidas.

 

7. A constituição da imparidade está ainda dependente do requisito de comprovação de diligências de cobrança.

 

A Requerente invoca existirem provas da realização de diligências de cobrança através da correspondência trocada com a devedora e de diversos contactos telefónicos e refere ainda que o próprio acordo revogatório firmado em 20 de março de 2013, onde é expressamente reconhecida a existência dos valores em dívida e dos juros de mora, representa, em si mesmo, uma diligência de cobrança.

 

Importa começar por notar que não existe no processo qualquer prova de terem sido efectuados contactos telefónicos em vista à cobrança das dívidas e a correspondência existente, a que se faz referência nas alíneas V, X e Z da matéria de facto, não pode ser interpretada como tendo visado essa finalidade.

Foi através das cartas de 7 e 13 de Dezembro de 2010 que as partes acordaram que o não pagamento pela concessionária dos montantes devidos nos termos do contrato de empreitada não revelaria, até à obtenção do visto prévio do Tribunal de Contas, como incumprimento ou mora no cumprimento da obrigação. Pela carta de 25 de Maio de 2012, o C... limita-se a remeter uma listagem actualizada dos valores em dívida e do cálculo de juros de mora, com referência ao dia 31 desse mês. Por carta de 3 de Fevereiro de 2011, a D... dá conhecimento à Requerente de que efectuou uma transferência bancária no montante de € 14.195.582,00 para pagamento de valores em dívida - sublinhando que o pagamento é efectuado com base o compromisso que havia sido assumido entre as partes -, e em resposta, em 4 de março de 2011, a Requerente, sem pôr em causa o princípio do pagamento diferido, apenas faz notar que mantém o direito ao pagamento da importância remanescente em dívida.

Do teor de qualquer destas missivas não ressalta qualquer alusão ao vencimento da obrigação ou ao retardamento no pagamento ou qualquer outro tipo de considerações que pudessem ser entendidas como um meio de pressão sobre o devedor em vista à cobrança das importâncias em dívida, e, pelo contrário, toda a correspondência trocada tem como pressuposto o princípio do pagamento diferido que havia sido assumido pelas partes, sem que isso pudesse ser entendido como um incumprimento definitivo ou um retardamento da prestação.

O acordo revogatório, por outro lado, apenas teve em vista regular a posição das partes em face da alteração superveniente das circunstâncias que determinou a extinção do contrato de empreitada, e aí apenas se definem os montantes das facturas e os juros de mora que ficam em dívida. O acordo tem essencialmente o efeito de uma confissão de dívida e não constitui uma qualquer diligência de cobrança, tanto mais que são impostas à concessionária obrigações complementares em vista a obter, ainda que por via judicial, o pagamento desses montantes por parte do concedente, sendo apenas na medida em que esses pagamentos venham a ser efectuados que a concessionária se obriga a saldar a dívida existente.

E importa, por fim, notar que o referido acordo foi formalizado em 20 de Março de 2013 e nunca poderia ser entendido como uma diligência cobrança para efeito de justificar a perda por imparidade quando esta veio a ser constituída em 2012 e, portanto, num momento anterior.

8. A Requerente alega ainda que a não dedutibilidade das perdas por imparidade viola o princípio da tributação segundo o rendimento real.

Deste princípio, que o artigo 104.º, n.º 2, da Constituição consagra, decorre que a determinação do lucro tributável das empresas deva assentar fundamentalmente na respectiva contabilidade, como meio de dar a conhecer a situação económica das empresas, e tem em vista assegurar que o sistema fiscal permita efectuar o controlo dos rendimentos numa medida aproximada à realidade existente.

O lucro tributável para efeitos de IRC assenta, por isso, no resultado contabilístico, ao qual o legislador tributário introduz as correcções extracontabilísticas necessárias para tomar em consideração os objectivos e condicionalismo próprios do direito fiscal, e, como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o rendimento fiscalmente relevante não constitui uma realidade de valor materialmente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável (cfr. acórdão n.º 162/2004 e, na doutrina, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 301). 

Neste contexto, como corolário do princípio da capacidade contributiva, os impostos sobre o rendimento devem contemplar deduções objectivas correspondentes a gastos ou perdas que possam razoavelmente considerar-se necessárias à angariação do rendimento. Essas deduções carecem, em todo o caso, de um enquadramento legal como meio de assegurar o princípio da universalidade e da igualdade no pagamento dos impostos.

Não basta, por conseguinte, que o contribuinte deduza os custos incorridos, mas que os deduza de acordo com os critérios legalmente definidos. E, nesse sentido, a impossibilidade de dedução integral de custos ou perdas, como tal contabilizados pelos contribuintes, para efeitos de determinação da base tributável, quando resulte do incumprimento dos requisitos gerais que regulam a dedução específica que esteja em causa, não contende com o princípio constitucional.

Pedidos cujo conhecimento fica prejudicado

 

Sendo de julgar improcedente o pedido principal de declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação adicional e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, fica necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

a)            Julgar improcedente o pedido arbitral;

 

b)           Julgar prejudicado o conhecimento do pedido de indemnização por prestação indevida de garantia. 

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 2.311.554,56, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 29.988,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 17 de Junho de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

António Martins (junta declaração de voto)

 

O Árbitro vogal

Luís Menezes Leitão

 

 

 

Declaração de voto

 

1- Concordando com a improcedência do pedido arbitral, e pese embora a elevada consideração pelos Senhores Árbitros que as subscreveram, divirjo em vários pontos das razões que se explicitam no Acórdão.

 

 Dependendo a aceitação fiscal da perda por imparidade registada pela requerente de três condições cumulativas, a saber: mora de devedor, provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuados diligências para receber a dívida, considero que não se provaram estas diligências para o recebimento do crédito.  Porém, entendo, pelas razões a seguir expostas, que existe mora e que se verificam provas objetivas de imparidade.

 

2- As partes acordaram, em 2010, que até à obtenção do visto do Tribunal de Contas (TC) não existiria mora do devedor. Tal afigura-se uma condição que suspende a mora; a qual, normalmente, se verificaria ao fim de 90 dias (prazo estipulado nas faturas).

 

A condição acordada foi “a obtenção do visto”, e não, por exemplo, a  “decisão do TC”, que poderia ser de recusa ou de emissão de visto. A lógica económica e jurídica de tal condição é a de que, sendo obtido o visto – e só neste cenário - a condição financeira da concessionária D..., por via da realização da empreitada e dos fluxos financeiros que receberia após o visto, permitiria então pagar globalmente ao C... (ACE) as faturas em débito e reequilibrar a situação financeira da D... .

 

Quer isto dizer que as partes acordaram numa condição (a obtenção do visto do TC e consequente validação jurídico-financeira do projeto de empreitada) que permitiria à D... afastar a frágil situação financeira  que já então enfrentava. Se assim não fosse, agravar-se-iam muito significativamente as dificuldades desta entidade.

 

Em síntese, só a efetiva obtenção do visto (e não uma decisão do TC em qualquer sentido) daria à D... a entrada de meios para solver os compromissos que ia assumindo. Daí que se compreenda a explícita condição de afastamento da mora acordada pelas partes em 2010, mas apenas num cenário de obtenção visto, e já não na circunstância da sua recusa.

Quando, em Março de 2012, o TC recusa o visto, verifica-se que a condição que suspendia a mora se não cumpriu, o que agrava seriamente as condições de funcionamento económico–financeiro da D... . Em meu entender, o efeito dessa recusa é a de colocar em mora as faturas, que passam então a originar uma obrigação de pagamento com prazo certo, por ter claudicado a condição que suspendia a mora.

 

Como sublinha Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por A. Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2012, p. 575, a não verificação de uma condição suspensiva  implica que “não se produzem os efeitos definitivos a que o negócio tendia e desaparecem os próprios efeito provisórios ou preparatórios que tiveram lugar medio tempore”.

 

Se bem interpreto, tal significa que a exclusão de mora entre 2010 - que valia, por acordo das partes, até à obtenção de visto - deixa de valer com a recusa do visto e faz retroagir a mora à data inicial da faturação.  Em meu entender, tal questão deveria merecer outro peso na estrutura do acórdão.

 

Com efeito, sem a dita condição suspensiva haveria responsabilidade moratória normal, numa obrigação de prazo fixo (90 dias). A condição acima referida, acordada pelas partes,  transformou o prazo certo da mora num prazo que (a ser obtido visto) nunca se teria materializado; então a não obtenção de visto, fazendo cair tal condição, implica, em minha opinião, que as condições da mora se reportem à faturação inicial.

A consequência  do não preenchimento de uma condição suspensiva deve ser, salvo melhor juízo, a de  afastar os seus efeitos; ou seja, no caso vertente, deve fazer com as faturas emitidas após 2010 passem estar em mora no prazo (normal) de 90 dias, afastando o prazo de pagamento (excecional)  acordado caso se obtivesse  o visto do TC.

 

Julgo, aliás, que a carta envida pelo C... (ACE) em Maio de 2012, (documento 10 anexo aos autos) sobre faturas em dívida  entre 2010 e a data da recusa do visto, bem como  a aceitação destes montantes de juros de mora pela entidade D..., constituem uma confissão, ou validação,  por parte desta entidade, de que a mora seja  reportada às  condições iniciais da faturação. Isto é, a devedora não contesta, antes aceita, que a recusa de visto implica a mora desde o prazo os 90 dias constante das faturas. Tal admissão parece-me inteiramente consistente com a inexistência efetiva de mora apenas num cenário em que o TC tivesse concedido o visto.

 

Divirjo assim do texto do Projeto de acórdão. Nele se entende que o facto de, em 2012, existir ainda o acordo de 2010 impede que se considere responsabilidade moratória. O acordo vigorava, mas o ponto essencial desse acordo, que afastava a mora – a obtenção do visto do TC - já era sobejamente conhecido como não cumprido. Isso tem consequências nos efeitos do acordo.

 

A meu ver, a existência do acordo em 2012 configura, pois, um menor relevo do que o facto de a condição fulcral desse acordo – a emissão do visto por parte do TC – ser, em 2012, quando se reconheceu contabilisticamente a perda por imparidade, uma condição já comprovadamente não verificada. Havendo, pois, consequências ao nível da contagem temporal do prazo de mora. Além disso, a carta de maio de 2012, na qual a D... aceita a mora desde 2010, indica que a D... assume a mora (após a recusa de visto do TC)  nos moldes em que requerente a refere.

 

3- Quanto às provas objetivas de imparidade, julgo que o documento 13 (certificação legal de contas da D...), anexo aos autos é essencial para que se conclua que elas existem. A certificação legal de contas (CLC) da D... mostra uma entidade em falência técnica, com um elevado capital próprio negativo. Também nessa certificação se chama a atenção para a incerteza quanto à capacidade da sociedade para liquidar passivos, invocando-se até o artigo 35º do CSC, que dispõe sobre as consequências da perda do capital.

 

Para mais, a recusa do visto do TC, como também se expressa na certificação legal de contas, constituiu facto negativo adicional de vasto alcance na impossibilidade de reequilíbrio financeiro da D..., e consolida o cenário de grande fragilidade desta entidade enquanto devedora.

 

O texto do Acórdão do TC (documento 11 anexo aos autos) faz várias observações muito críticas, reprovando a gestão financeira do projeto que envolvia a E... e a D..., referindo, a p. 15 e seguintes, uma série de irregularidades que determinaram a não concessão de visto.

 

Ora a Norma Contabilística e Relato financeiro nº 27 estabelece as condições para que um crédito sobre clientes se considere com imparidade. São elas:

 

“Evidência objetiva de que um ativo financeiro ou um grupo de ativos está em imparidade inclui dados observáveis que chamem a atenção ao detentor do ativo sobre os seguintes eventos de perda:

 

a) Significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor;

 

b) Quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida;

 

c) O credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor de outro modo não consideraria;

 

d) Torne -se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira;

 

e) O desaparecimento de um mercado ativo para o ativo financeiro devido a dificuldades financeiras do devedor;

 

ou f) Informação observável indicando que existe uma diminuição na mensuração da estimativa dos fluxos de caixa futuros de um grupo de ativos financeiros desde o seu reconhecimento inicial, embora a diminuição não possa ser ainda identificada para um dado ativo financeiro individual do grupo, tal como sejam condições económicas nacionais, locais ou sectoriais adversas.

 

Outros fatores poderão igualmente evidenciar imparidade, incluindo alterações significativas com efeitos adversos que tenham ocorrido no ambiente tecnológico, de mercado, económico ou legal em que o emitente opere.”

 

A condição a) verifica-se em face da CLC e ainda do que no acórdão do TC se refere sobre as causas e consequências da recusa do visto.  A recusa de visto também indicia claramente  alterações significativas com efeitos adversos que tenham ocorrido no ambiente legal em que a D... operava. É que a gestão financeira da D..., e a sua capacidade de pagar dívidas, dependia da observância de normas legais, validáveis pelo TC, que se provou terem conhecido um desfecho desfavorável.

 

Sendo que a perda por imparidade envolve um juízo de probabilidade sobre dificuldades de cumprimento do devedor, julgo que as provas trazidas aos autos são bastantes para concluir que tal probabilidade existia. Em suma, a já débil situação financeira do devedor, acrescida da recusa de visto do TC que a torna ainda mais óbvia, conjugam-se para fundamentar uma prognose de dificuldades de cumprimento da D... face ao C... (ACE).

 

Divirjo assim do projeto de acórdão quando nele se considera que não existia nenhum indicador de dificuldade financeira da D... . Essa dificuldade já existia, evidenciada nas contas e na CLC, e a recusa de visto do TC constitui o evento adicional que a agrava de forma muito clara.

 

Eis, em síntese, as razões da minha divergência quanto a estes dois pontos da decisão.

 

António Martins