DECISÃO ARBITRAL
Acordam em Tribunal Arbitral
I - Relatório
1. A..., S.A., contribuinte n.º..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, sociedade dominante do Grupo Fiscal B..., sujeito em 2016 ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa e o ato subjacente de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do Grupo Fiscal B... relativo ao exercício de 2016, no que concerne a tributação autónoma no montante de € 397.575,04, sobre despesas e encargos com veículos afetos à atividade de empresas do Grupo Fiscal B... e sobre compensação pela deslocação em viaturas próprias do trabalhador. Requer ainda o reembolso dessa importância acrescida de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
O Grupo Fiscal B... dispõe de uma extensa e diversificada frota de veículos, que incluem motociclos e carros de serviço, e se encontra justificada pela natureza e dispersão territorial da sua atividade de distribuição postal em todo o território nacional.
Relativamente aos motociclos, a sua utilização obedece a um racional económico, sendo utilizada a tipologia de viaturas que mais se adaptam aos giros de distribuição postal, constituindo, no âmbito da atividade de distribuição fiscal, o principal meio de transporte.
Obedecendo a escolha de um certo meio de transporte a critérios de gestão empresarial, não se justificaria penalizar a Requerente pela utilização de motociclos em detrimento de outras viaturas de produção, que, ainda que se não encontrassem sujeitas a tributação autónoma, implicariam custos mais elevados para a empresa.
Além de motociclos, a Requerente utiliza ainda Viaturas de Serviços Gerais, necessárias para manter permanentemente o contacto entre todas as estruturas organizativas do Grupo Fiscal que se encontram dispersas pelo território nacional, sendo que a existência desta frota específica de veículos nada tem a ver com interesses particulares dos colaboradores do A..., mas com a natureza da atividade social desenvolvida.
Por outro lado, existe um conjunto de regras e procedimentos implantados que visam assegurar a disponibilidade permanente dos veículos para a utilização exclusiva no âmbito da atividade empresarial, designadamente, o preenchimento do boletim da viatura, a sua entrega nas instalações da Requerente, após utilização, a utilização da viatura de 2.ª a 6.ª feira, preferencialmente para distâncias longas e a proibição de utilização por mais de cinco dias seguidos.
A tributação autónoma não é igualmente aplicável no que respeita aos abonos quilométricos pela utilização de motociclos dos próprios carteiros na atividade de distribuição postal, pois há um controlo dos quilómetros efetivamente percorridos ao serviço e abonados, além de que o abono se destina a cobrir apenas os custos com combustível e o desgaste do motociclo na distância percorrida ao serviço da distribuição postal, incorrendo o carteiro, em média, no custo de € 0,154 por quilómetro que é superior ao valor de € 0,144 por quilómetro sujeito a tributação autónoma.
Não se verificam, por conseguinte, os pressupostos da tributação autónoma relativamente aos motociclos e carros de serviço da frota do Grupo Fiscal B..., bem como no que se refere aos abonos quilométricos devidos pela utilização de motociclos pertencentes aos carteiros, nem há lugar ao uso promíscuo e/ou pagamento de quilómetros que excedem o uso efetivo em serviço.
A Requerente alega ainda que a interpretação do artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do Código do IRC no sentido de que a presunção implícita de empresarialidade apenas parcial das despesas e encargos com veículos não é ilidível é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e do princípio da capacidade contributiva, bem como dos princípios da tributação segundo o rendimento real e da proporcionalidade, em violação dos artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.º 2 e 3, 103.º, n.º 1, e 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que o Tribunal Arbitral não pode decidir com recurso à equidade e que, segundo as regras de interpretação da lei, as taxas de tributação autónoma a que se refere o artigo 88.º do Código do IRC apenas se encontram excluídas relativamente aos tipos de veículos identificados nos n.ºs 3 e 6 desse preceito, não havendo nenhuma razão para afastar a incidência da tributação autónoma com base numa presunção de empresarialidade.
Ao contrário do que defende alguma jurisprudência arbitral a tributação prevista no artigo 88.º do Código do IRC não se enquadra nas cláusulas especiais anti-abuso, nem integra uma presunção que seja susceptível de ser ilidida por prova em contrário, correspondendo antes a uma norma de incidência objetiva que não pode ser evitada mediante a demonstração da afectação integral dos veículos à actividade empresarial.
Em qualquer caso, não foi produzida prova material da empresarialidade das despesas, que teria de ser realizada relativamente a cada veículo, nem a ordem de serviço sobre a utilização das Viaturas de Serviços Gerais tem a aptidão para demonstrar a absoluta impossibilidade de utilizar os veículos ligeiros de passageiros para fins pessoais.
Havendo de julgar-se inconstitucional a norma do artigo 88.º, n.ºs 3 e 5, do Código do IRC, por violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da proteção jurídica e da confiança, quando interpretada no sentido de instituir uma presunção ilidível.
Conclui no sentido da improcedência do pedido.
2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinado, nos termos do artigo 421.º, n.º 1, do CPC, o aproveitamento extraprocessual da prova produzida com audiência contraditória no Processo n.º 448/2018, com as mesmas partes e sobre as mesmas questões de facto, e em que se encontravam arroladas as mesmas testemunhas.
Tendo o processo prosseguido para alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 27 de Dezembro de 2018.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.
A) A Requerente é a sociedade dominante do Grupo Fiscal B... sujeito em 2016 ao RETGS e que integra as seguintes sociedades: i) A..., S.A., contribuinte n.º...; ii) C..., S.A., contribuinte n.º...; iii) D..., S.A., contribuinte n.º...; iv) E..., S.A., contribuinte n.º...; v) F..., S.A., contribuinte n.º...; e vi) G..., S.A., contribuinte n.º ... .
B) No dia 29 de Maio de 2017 foi apresentada a declaração de IRC, Modelo 22, do Grupo Fiscal B... referente ao exercício de 2016, e em 31 de Maio seguinte, uma declaração de substituição, tendo sido apurado um valor de tributação autónoma de € 1 360 849,55.
C) A totalidade das despesas e encargos com veículos do Grupo Fiscal B... (ou cuja utilização foi contratualmente assegurada pelo Grupo Fiscal B...) e com abonos quilométricos pelo uso de viatura própria do trabalhador, sujeitas a tributação autónoma em 2016, ascendeu a um total de € 6 838 778,10.
D) A tributação autónoma liquidada com respeito a estas despesas e encargos é de € 519 986,30.
E) A impugnação objeto destes autos circunscreve-se à tributação autónoma do exercício de 2016 que diz respeito a despesas e encargos com motociclos de distribuição postal e determinadas viaturas ligeiras de passageiros (denominadas Viaturas de Serviços Gerais) e aos encargos com abonos quilométricos concernentes a motociclos dos carteiros utilizados na atividade de distribuição postal do Grupo Fiscal B... .
F) A tributação autónoma aqui impugnada incidiu no exercício de 2016 sobre despesas e encargos no montante de € 4 925 033,72.
G) Essa tributação autónoma ascendeu ao montante de € 397 575,04 dos quais 144 801,62 euros são referentes a encargos com motociclos para distribuição postal, 146 016,82 euros referentes a encargos com Viaturas de Serviços Gerais (VSG) e 106 756,60 euros respeitantes a abonos quilométricos a carteiros pela utilização dos seus motociclos ao serviço da distribuição postal do A... .
H) A Requerente, no dia 21 de junho de 2018, apresentou reclamação graciosa relativamente à referida autoliquidação, sustentando que os encargos com motociclos próprios e viaturas de serviços gerais, bem como com abonos quilométricos, são dotados de total empresarialidade, devendo considerar-se ilidida a presunção que determina a tributação autónoma nos termos do artigo 88.º do Código de IRC.
I) As empresas do Grupo B... definem diferentes giros de distribuição do correio, com a ponderação de uma multiplicidade de fatores, como sejam o tipo de correio a ser transportado (incluindo volumetria e peso), o número e frequência de paragens, o tipo de zona geográfica (urbana ou rural), o tipo de construção predominante (prédios ou moradias).
J) A atividade social de distribuição postal abrange um milhão e quatrocentos mil domicílios.
L) Para assegurar essa finalidade existem cerca de 4700 giros, sendo que a cada giro corresponde uma certa distância a ser percorrida pelo carteiro, o que exige a opção por um meio de locomoção adequado.
M) A opção é, por via de regra, realizada em função da distância a percorrer, para os giros mais curtos os carteiros deslocam-se a pé ou de bicicleta, para giros de 10 a 40 quilómetros utilizam veículos de baixa cilindrada, até 50 centímetros cúbicos e, para giros a partir de 40 quilómetros até 80 quilómetros, utilizam motociclos de cilindrada superior, até 125 centímetros cúbicos.
N) Cerca de 2000 giros são assegurados por motociclos, com a cilindrada de 50 ou 125 centímetros cúbicos.
O) A realização dos giros com recurso aos motociclos tem como justificação constituírem o meio de locomoção que, pelas suas características, a isso mais se adapta, nomeadamente, pela sua agilidade no trânsito, facilidade de estacionamento, custo de aquisição reduzido, manutenção simples e não dispendiosa e consumos reduzidos.
P) Naqueles giros em que as empresas do Grupo B... identificaram que o motociclo constitui o tipo de viatura mais adequado é dada a possibilidade ao carteiro de utilizar motociclo próprio em contrapartida de um “abono quilométrico”, determinado com base nos quilómetros estimados para os giros alocados àquele carteiro.
Q) Os “abonos quilométricos”, no exercício de 2016, foram sujeitos a tributação na esfera dos carteiros em sede de IRS.
R) O cálculo dos pagamentos aos carteiros pela utilização de motociclos próprios é feito com base numa tabela entre cerca de 0,14 euros e cerca de 0,26/0,27 euros por quilómetro, dependendo de vários fatores, como por exemplo, a distância a percorrer.
S) Os motociclos da frota da Requerente são afetos, por via de regra, a um giro e não a um carteiro, sendo a alocação dos motociclos efetuada em função dos Centros de Distribuição Postal (CDP), havendo rotação entre vários carteiros afetos ao mesmo giro.
T) Existem mecanismos de controlo da utilização dos motociclos da aludida frota, como os constantes do Manual de Procedimentos da Gestão de Frota de Ligeiros de Produção, Motociclos e Ciclomotores, destinados a dissuadirem os carteiros de os utilizarem para fins pessoais, designadamente a sua utilização está limitada ao horário de atividade social da Requerente e a obrigatoriedade de preenchimento diário do documento de controlo de utilização dos motociclos, no qual são identificados o giro e respetivos quilómetros percorridos, ficando arquivado por diversos anos.
U) A Requerente tem serviços de fiscalização sobre a utilização dos motociclos para fins pessoais, sendo certo que, verificando-se uma utilização indevida dos motociclos, existem consequências de índole disciplinar para aqueles que o façam, como já sucedeu no passado.
V) Os motociclos são dotados de uma caixa de carga, inamovível e apresentam os sinais identitários da Requerente.
X) O abastecimento dos motociclos deve ser realizado, em exclusivo, com recurso ao programa de combustível de frota, o qual identifica expressamente a viatura associada.
Z) É obrigatório o parqueamento dos motociclos em instalações da Requerente nos CDP, onde ficam imobilizados entre o final de cada dia de trabalho e o início do dia seguinte, sendo as chaves dos motociclos entregues aos seguranças.
AA) A estrutura diretiva da Requerente localiza-se em Lisboa, mas existe descentralização não só no território continental, como nas ilhas.
BB) Por isso, a Requerente dispõe ainda de uma frota de Viaturas de Serviço Geral (VSG), necessárias a manter o contacto entre as suas várias estruturas organizativas existentes em todo o território nacional.
CC) Essa frota destina-se à manutenção do contacto entre os vários pontos da organização e com clientes.
DD) Qualquer colaborador da Requerente pode requisitar uma Viatura de Serviço Geral, justificando o seu uso.
EE) As Viaturas de Serviço Geral são veículos ligeiros de passageiros, por se destinarem ao transporte de pessoas e quando se deslocam a uma reunião são transportadas 3 a 4 pessoas.
FF) Em regra, as Viaturas de Serviço Geral estão identificadas com o logótipo da Requerente, tal só não acontece em relação a uma das funções realizadas com as aludidas viaturas, a fiscalização, em relação às quais é aconselhável que não exista essa caraterização.
GG) Para cada uma das direções do Grupo B... é atribuída uma dotação de Viaturas de Serviço Geral, de acordo com uma organização em pool.
HH) A atribuição de Viaturas de Serviço Geral a uma direção tem de ser fundamentada e autorizada havendo uma pessoa em cada direção encarregada de autorizar ou não.
II) Nas normas sobre a utilização das Viaturas de Serviço Geral constam a obrigatoriedade de parqueamento do veículo, a devolução da chave e boletim da viatura, sendo neste identificados o dia, o local de partida, o destino, os quilómetros à partida e à chegada e a hora de partida e de chegada.
JJ) No final de cada mês, o boletim de viatura é enviado a um diretor de primeira linha, tendo em vista assegurar que há uma utilização prudente e regulamentar das Viaturas de Serviço Geral.
LL) As Viaturas de Serviço Geral não estão alocadas ao uso de nenhum funcionário, mas ao pool de cada direção, a quem os funcionários requisitam as viaturas, sendo aleatória a atribuição de uma viatura a um funcionário.
MM) Com periodicidade mensal, a área de Recursos Físicos e Segurança da Requerente ou do Grupo B... analisa a informação recolhida e outra informação pertinente (como extratos de “via verde”), por forma a identificar desvios, tais como a utilização das viaturas fora do horário normal de trabalho (identificado, por exemplo, com base no detalhe da via verde), consumos médios de combustíveis superiores aos expectáveis em face dos destinos das deslocações e distâncias percorridas não justificadas face aos destinos das deslocações, sendo que, caso algum desvio não seja devidamente justificado e, consequentemente, fique indiciado um uso indevido da VSG, é instaurado processo interno de inquérito, o qual pode culminar em processos disciplinares.
NN) Naquelas hipóteses em que a Requerente pretende conferir aos seus trabalhadores a possibilidade de utilização pessoal das viaturas - Viaturas de Utilização Pessoal (VUP) - faz constar tal utilização de acordo escrito, sendo a utilização tributada na esfera dos trabalhadores.
OO) A Requerente no dia 3 de Agosto de 2018 foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa.
PP) O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 17 de Outubro de 2018.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, bem como a prova testemunhal produzida no Processo n.º 448/2018, em aplicação do disposto no artigo 421.º, n.º 1, do CPC.
Matéria de direito
5. A questão em análise reporta-se à sujeição a taxas de tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º do Código de IRC, dos encargos suportados pela Requerente e seu Grupo Fiscal com motociclos para distribuição postal, com viaturas ligeiras de passageiros caracterizadas como Viaturas de Serviços Geral e com compensações pelas deslocações em motociclos próprios (abonos quilométricos) aos carteiros pela distribuição de correio.
Sustenta a Requerente, em primeira linha, que todos esses encargos são integralmente imputáveis à exploração do serviço da distribuição postal no território nacional e se encontram justificados pelo seu carácter empresarial, havendo de entender-se que se encontra ilidida a presunção implícita de tributação autónoma que decorre do disposto nos n.ºs 3, 6 e 9 do artigo 88.º do Código relativamente a encargos com motociclos e viaturas ligeiras e despesas de compensação pela deslocação do trabalhador em viatura própria.
A Autoridade Tributária defende, em contraposição, que o artigo 88.º do Código do IRC constitui uma norma de incidência objectiva de tributação autónoma e não contempla qualquer presunção susceptível de ser ilidida por prova em contrário, com base no carácter empresarial dos gastos que se encontrem cobertos por essa disposição.
Sobre essa mesma questão, com os mesmos contornos de facto, pronunciou-se em sentido negativo o recente acórdão proferido no Processo n.º 448/2018-T, em que se analisava um pedido idêntico, formulado pela aqui Requerente, e que se referia à liquidação de tributação autónoma em IRC referente ao exercício de 2015.
E não há motivo para alterar agora o entendimento que foi aí sufragado.
O referido artigo 88.º do Código do IRC, na redacção aplicável ao período de tributação em referência, e na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:
“3 — São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:
a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a € 25 000;
b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a € 25 000 e inferior a € 35 000;
c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a € 35 000.
5 — Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.
6— Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com:
a) Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e
b) Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.
9 — São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não facturados a clientes, escriturados a qualquer título, excepto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário, bem como os encargos não dedutíveis nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 45.º suportados pelos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que os mesmos respeitam.
14 — As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.
17 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros híbridas plug-in, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 5 %, 10 % e 17,5 %.
18 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros movidas a GPL ou GNV, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 7,5 %, 15 % e 27,5 %.”
Resulta especialmente dos transcritos n.ºs 3 e 6 que são tributados autonomamente os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, com exclusão dos veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, bem como as viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes ou destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo, e as viaturas automóveis afectas à utilização pessoal do trabalhador. Decorre também do n.º 9 que são sujeitos a tributação os encargos relativos à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário.
Na perspectiva da Requerente, os mencionados preceitos, ao delimitarem as situações em que há lugar a tributação autónoma, limitam-se a consagrar presunções implícitas iuris tantum suscetíveis de ser ilididas por prova em contrário em conformidade com o artigo 73.º da LGT.
Cabe começar por recordar, a este propósito, que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil). Tratando-se de uma presunção legal ela corresponde é uma inferência realizada pela lei de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido (artigo 350.º), distinguindo-se das presunções judiciais que assentam no simples raciocínio de quem julga com base em máximas da experiência ou em juízos de probabilidade.
Assim, as regras legais de presunção apresentam necessariamente na sua estrutura uma implicação entre dois factos, ou seja, estabelecem que um determinado facto conhecido implica um outro facto desconhecido (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Coimbra, 2012, pág. 234).
As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante a prova do contrário, ou seja, mediante a prova de que o facto presumido não é verdadeiro (presunções tantum juris), excepto nos casos em que a lei o proibir (presunções juris et de jure).
Não está, em todo o caso, excluída a possibilidade de presunções legais implícitas. Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 753/2014, “As presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, quando são reveladas pelo uso da expressão «presume-se» ou de expressão de idêntico significado, mas podem também resultar implicitamente do enunciado linguístico da norma, o que sucede quando se considera como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis no pressuposto de que são esses valores que correspondem à realidade, prescindindo-se do apuramento do valor real ou do valor que tiver sido declarado pelo sujeito passivo”.
Por outro lado, e em vista a detectar uma possível presunção legal nos citados dispositivos do artigo 88.º, importa ter presente a configuração própria das tributações autónomas.
Como se esclareceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, “a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal”. Nesse sentido, como aí se acrescenta, “[a] despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa”.
No caso vertente, o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas. A sujeição a imposto é a consequência jurídica da verificação de um certo facto tributário - a realização da despesa legalmente prevista -, não se descortinando aí uma qualquer condição de aplicação da norma que se prenda com a demonstração, por inferência, de outro facto que não seja a própria realização da despesa.
A inexistência de uma qualquer presunção legal relacionada com o carácter empresarial das despesas surge também evidenciada pelo contexto verbal das disposições em causa. Excluem-se da tributação autónoma certo tipo de veículos de acordo com critérios de política fiscal e estabelecem-se taxas diferenciadas com base em características atinentes ao custo de aquisição dos bens (artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC) e à tipologia dos veículos (artigo 88.º, n.ºs 17 e 18). Também no que concerne aos encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, a que se reporta o n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, a incidência da tributação autónoma determina-se em função de certos aspectos relacionados com a específica situação tributária que está em causa.
Acresce ainda o facto de as taxas de tributação autónoma serem elevadas em 10 pontos percentuais relativamente aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem os factos tributários competentes relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC (artigo 88.º, n.º 14, do Código do IRC).
Em suma, as normas de incidência em apreço não assentam na demonstração, por inferência de certos factos presumidos, que possam ser afastados na base de prova em contrário, mas operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa.
E basta notar que a razão de ser das tributações autónomas é complexa e múltipla, podendo ter em vista prevenir, por razões de cobrança de receita fiscal, que seja afetada a receita respeitante à tributação do lucro tributável, desincentivar, por razões de política extra-fiscal, certas despesas que são reputadas socialmente como inconvenientes e desincentivar despesas normalmente associadas a comportamentos evasivos ou mesmo fraudulentos. (n.º 14 do artigo 88.º).
6. Não pode ignorar-se que diversa jurisprudência arbitral tem acolhido o entendimento de que as tributações autónomas têm subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, partindo da ideia de que essas despesas revestirão, em regra, uma dupla natureza, correspondendo a gastos que em parte se enquadram na actividade produtiva da empresa e noutra parte se reportam a despesas de consumo de carácter particular.
Quanto a esta jurisprudência, começa por se perceber mal o que se entende por presunção parcial. Parece querer dizer-se que as normas que preveem a tributação autónoma estabelecem uma presunção quanto ao carácter não empresarial das despesas, mas que o contribuinte não poderá ilidir na sua globalidade na medida em que há sempre despesas que se presume que são do foro privado e, como tal, são inilidíveis.
Esta abordagem coloca, desde logo, uma dificuldade. É que a jurisprudência constitucional tem afastado a instituição de presunções inilidíveis em matéria tributária por se considerar que impossibilitam o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva que a lei tem como presumida com base num certo pressuposto económico (acórdãos n.ºs 348/97, 452/2003 e 211/2003). E, por isso mesmo, existindo uma presunção de que as despesas não se justificam por razões empresariais, o interessado deveria ser chamado a fazer a prova de que não ocorre o facto que constitui a base da presunção, que lhe permitiria excluir da tributação não apenas uma parte das despesas mas a sua totalidade.
A pretendida presunção implícita de não empresarialidade das despesas está, por sua vez, associada ao próprio objectivo fiscal que se pretende com a tributação autónoma.
Como explica SALDANHA SANCHES, a introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).
E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal. O legislador tem em vista desincentivar a realização de certas despesas, admitindo a dedutibilidade do custo, mas reduzindo a vantagem fiscal por via da tributação autónoma, assim se compreendendo que a tributação incida não sobre a percepção de um rendimento mas sobre a realização de despesas.
Assim sendo, a presunção que se pretende ilidir por prova em contrário não é a natureza não empresarial das despesas mas a própria razão de política fiscal que levou o legislador a tributar essas despesas, levando a discussão para o plano da conformação legislativa que se encontra vedado ao julgador.
Certo é que o autor há pouco citado refere, a propósito da tributação autónoma, que se cria aqui “uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial” (ob. e loc. cit.). Mas como se depreende de todas as considerações que antecedem esse excerto, o autor não está a referir-se a um presunção em sentido técnico jurídico, mas a fazer notar justamente o objectivo fiscal que se teve em vista ao tributar esses custos.
Nestes termos, em face da apontada jurisprudência, não há motivo para alterar o entendimento anteriormente exposto, havendo de concluir-se que as disposições legais que estabelecem tributações autónomas objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.
Questões de inconstitucionalidade
7. A Requerente suscita ainda a questão da inconstitucionalidade das normas dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, quando interpretadas no sentido de não ser ilidível a presunção implícita de empresarialidade apenas parcial das despesas e encargos, por violação do princípio da igualdade, do princípio da capacidade contributiva e ainda dos princípios da tributação segundo do rendimento real e da proporcionalidade.
Tendo-se entretanto concluído que as normas em causa não contemplam qualquer presunção legal, ainda que implícita, do carácter empresarial das despesas ou encargos, não se coloca a questão da sua não ilisão. A solução do caso tem como fundamento, não a impossibilidade de ilidir a presunção, mas a própria inexistência de presunção que se torne susceptível de ser ilidida, e, desse modo, ficam prejudicadas as questões de constitucionalidade que são suscitadas.
Ainda que se entenda que se pretende pôr em causa a constitucionalidade das tributações autónomas em si consideradas, cabe recordar que o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre essa matéria no referido acórdão n.º 197/2016, concluindo no sentido da sua conformidade constitucional.
Aí se concluiu, no tocante ao princípio da tributação segundo o rendimento real, que “a tributação autónoma, embora prevista no Código do IRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa”. E, nesse contexto, a “tributação autónoma não interfere no método destinado a determinar os resultados empresariais, nem implica que a matéria coletável que servirá base à tributação em IRC passe a incluir lucros ou rendimentos que a empresa não tenha efetivamente auferido”.
Por identidade de razão, o Tribunal considerou que as disposições impugnadas não põem em causa o princípio da capacidade contributiva enquanto corolário, no domínio dos impostos, dos princípios da igualdade e da justiça fiscal. A esse propósito, o acórdão salienta que “a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico”, e, nesse sentido, “a despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação”. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa.
No que respeita à adequação do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei, sublinha-se que o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido ou contribuir para o alcançar. No entanto, “o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado” (ainda neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009).
Termos em que se entende que os actos impugnados respeitantes à tributação autónoma não padecem dos vícios de violação de lei e de inconstitucionalidade que lhe são assacados, pelo que o pedido arbitral se mostra ser improcedente.
Direito ao reembolso e a juros indemnizatórios
9. Tendo-se julgado improcedente o pedido principal de declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC e da decisão de indeferimento da reclamação garciosa, ficam necessariamente prejudicados os restantes pedidos de devolução das quantias pagas e do pagamento de juros indemnizatórios.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar improcedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC, relativa ao exercício de 2016, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra o ato de autoliquidação;
b) Julgar prejudicados os pedidos de reembolso das quantias pagas e do pagamento de juros indemnizatórios.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 397.575,04, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 6.426,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 23 de Maio de 2019
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O árbitro vogal
Jorge Carita
O árbitro vogal
Ricardo Rodrigues Pereira