DECISÃO ARBITRAL
A – RELATÓRIO
1. A..., SA., pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa, apresentou, em 03-10-2018, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida, ou ATA).
2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade de noventa e oito actos de liquidação de Imposto Único de Circulação, relativos aos anos de 2014, 2017 e 2018, no valor global de 9.557,44 €, acrescido de juros compensatórios, bem como dos actos de indeferimento de reclamações graciosas apresentadas, e do respectivo reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 04-10-2018.
3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
3.2. Em 22-11-2018 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 12-12-2019.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
4. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:
É uma instituição de crédito em que, de entre as suas áreas de actividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel, parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração de – entre outros – contratos de locação financeira (“LSG”) destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
Os veículos automóveis a que se referem as liquidações objecto do pedido arbitral foram dados em locação financeira e ALD.
Quase todos os clientes naqueles contratos adquiriram, no termo do respectivo contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA.
No que se refere aos veículos com as matrículas ... e ..., por indicação expressa do locatário ou por ter existido cedência da posição contratual, não foram os originários titulares dos contratos de locação financeira que vieram a adquirir as viaturas.
E, por outro lado, no que respeita às viaturas com as matrículas ... e ..., por ter ocorrido perda total, na sequência de sinistro ocorrido antes do término do respectivo contrato, as viaturas foram transmitidas para Seguradora.
Nos meses relevantes dos anos a que reportam os actos tributários em análise a Requerente não pode ser responsável pelo pagamento do IUC, pois já não era proprietária dos veículos a que se reportam as liquidações de imposto.
Se a jurisprudência arbitral tem maioritariamente realçado que nem mesmo durante a vigência de um LSG ou de um ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo de IUC, por maioria de razão menos ainda deve ser atribuída a incidência subjectiva desse imposto quando, após o término do contrato, o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA.
O registo não é condição de validade do contrato de compra e venda nem tampouco condição de produção do efeito translativo do mesmo, pelo que a ausência daquele não afecta a qualidade de proprietário nem afecta a eficácia plena de tal contrato perante a AT, por não ter a qualidade de terceiro para efeitos de registo.
A presunção derivada de registo derivada do registo automóvel não pode deixar de ser entendida como uma presunção ilidível, em especial por força do disposto no artigo 73º da LGT, por admitir sempre prova em contrário.
Prova bastante para tal ilisão consubstancia-se nas facturas de vendas dos veículos automóveis, a qual é suficiente para atestar a venda de todas as viaturas constantes das liquidações de imposto aos respectivos adquirentes.
Conclui, por isso, a Requerente pela ilegalidade das liquidações objecto do pedido arbitral, bem como dos aludidos despachos de indeferimento, reclamando ainda o direito a juros indemnizatórios a à responsabilização da Requerida pelas custas do processo.
5. Por seu turno a Requerida veio em resposta alegar, em síntese:
O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no nº 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados.
Realça que o legislador não usou a expressão “presume-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados.”.
O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº1 do artigo 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros.
Em face da redacção do preceito não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.
A pretensão da requerente assenta em equívoco e resulta de interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e, por último, decorre de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.
Esclarece que a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não do Estado Português, enquanto sujeito activo deste imposto.
À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário ou o locatário financeiro (mesmo que não figure no registo automóvel o registo dessa qualidade) é manifestamente errada, na medida em que é própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel.
Os documentos que a Requerente junta para ilisão de pretensa presunção não provam de forma clara e inequívoca que ocorreu a transmissão do veículo e consequentemente da propriedade do mesmo, não sendo junto um único extracto financeiro ou cheque que prove que as facturas foram pagas ou que os contratos foram cumpridos a que acresce o facto de as facturas não serem aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático.
Sustenta que os actos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços, mais defendendo não estarem, em qualquer circunstância, reunidos os pressupostos legais que conferem o direito peticionado a juros indemnizatórios.
6. Em 20-03-2019 teve lugar a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT, tendo-se procedido à inquirição da testemunha arrolada pela Requerente, mediante a declaração dos ilustres juristas representantes da Requerida que prescindiam da inquirição da mesma por entenderem que “… a prova produzida não é admissível à luz as razões expostas nos requerimentos antecedentes..”, em suma, por entenderem não ser admissível a produção de prova testemunhal para os factos em causa.
7. Tendo sido concedido prazo para apresentação de alegações escritas, ambas as partes o vieram a fazer, sustentando as posições já anteriormente manifestadas, tendo a Requerente apresentado resposta às apresentadas pela Requerida, tendo sido ordenado o seu desentranhamento.
* * *
SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
A cumulação de pedidos é legal (artigo 3º, n.º1 do RJAT).
B. DECISÃO
1. MATÉRIA DE FACTO
1.1. FACTOS PROVADOS
Atendendo às posições assumidas pelas partes, à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida – tendo presente que o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado [cfr.artºs. 596.º, nº.1 e 607º, nºs.2 a 4, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, e consignar se a considera provada ou não provada (cfr.artº.123.º, nº.2, do CPPT)] - consideram-se, com relevo para apreciação e decisão das questões suscitadas, provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma instituição de crédito, assumindo especial relevância, na sua actividade comercial, o financiamento ao sector automóvel, designadamente através da celebração de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração.
b) A Requerente foi notificada de noventa e oito liquidações de IUC, sendo uma relativa ao ano de 2014, cinquenta e nove relativas ao ano de 2017 e trinta e oito relativas ao ano de 2018, conforme Anexo A junto ao pedido inicial.
c) A Requerente apresentou reclamações graciosas relativamente ao IUC incidente sobre as matrículas ..., referente ao ano de 2017 e ..., referente ao mesmo ano de 2017.
d) Nos dois procedimentos de reclamação graciosa foram proferidos despachos de indeferimento, ambos com data de 30-08-2018.
e) A Requerente emitiu facturas de venda relativamente a todas as viaturas automóveis a que respeitam as liquidações objecto do presente processo, antes da data a que as mesmas respeitam.
d) A Requerente procedeu ao pagamento do imposto a que respeitam os presentes autos.
1.2 Os factos foram dados como provados com base na análise crítica dos documentos juntos ao processo pela Requerente e pelo depoimento da testemunha B... que reputamos de consistente e credível.
1.3 FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos dados como não provados com relevância para a apreciação do pedido.
1.4 O DIREITO
A questão de fundo a apreciar no presente processo reside, por um lado, na interpretação a dar ao n.º 1 do art. 3º do CIUC no sentido de apurar se a norma de incidência subjectiva, nele contida, estabelece uma presunção legal juris tantum – e, como tal, susceptível de ilisão ou se, pelo contrário, contém uma definição expressa e intencional da incidência pessoal, no sentido de que é necessariamente sujeito passivo do imposto aquele em nome de quem o veículo automóvel está registado como proprietário.
Devendo ter-se presente, atendendo a que as liquidações respeitam a anos diferentes, que, no período temporal em causa – 2014 a 2018 – aquela norma legal foi objecto de alteração legislativa através do DL 41/2016, de 1 de Agosto que entrou em vigor em 02-08-2016.
Dispunha o n.º 1 do art. 3º do CIUC, antes daquela alteração legislativa, que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados”.
Com base na redacção deste preceito, sustenta a Requerida - AT - que a base de incidência pessoal, que este define, não comporta qualquer presunção legal, uma vez que aquele transmite de forma expressa e intencional o pensamento do legislador tributário, no sentido de se considerar, de modo irrefutável, como sujeitos passivos do IUC as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados.
Aduz em abono da sua tese, razões hermenêuticas de interpretação da lei, com apelo não só à sua literalidade, como aos elementos sistemático e teleológico.
Invocação plena de sentido, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 11º da LGT, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. É que, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação a tal artigo, “… sem afastar a letra da lei, que tem de ser a principal referência e ponto de partida do intérprete, se exclui a sua aplicação automática, supondo que nas leis há uma racionalidade operante que o intérprete se deve esforçar por reconstruir”.
É, pois, dentro deste quadro de interpretação da lei fiscal, no caso o art. 3º, n.º 1 do CIUC, que teremos de encontrar a resposta ao antagonismo de posições entre a Requerente e a AT.
Para a Requerida é decisivo para a determinação do sujeito passivo do IUC o registo de propriedade do veículo automóvel, de modo a que será considerado como tal, de modo irreversível, aquele em nome de quem este está registado.
O registo de propriedade de veículos é, face ao disposto no art. 5º, n.º 1, a) e n.º 2 do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, obrigatório, pelo que, qualquer direito de propriedade que incida sobre a viatura está sujeito a registo, com o que se pretende a segurança do comércio jurídico, bem como a publicidade da situação jurídica dos mesmos.
Tal registo goza, nos termos do disposto no art. 7º do Código do Registo Predial (aplicável ao registo automóvel por força do art. 29º do referido DL 54/75), da “… presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Temos, por isso, que a inscrição de registo de propriedade do veículo é, também ela, uma presunção de que o direito de propriedade sobre o mesmo existe nos termos constantes do registo.
Quer dizer, o registo de propriedade automóvel não constitui qualquer condição de validade dos contratos a ele sujeitos, à semelhança do que ocorre com o registo predial (cujo regime, como já apontamos, é extensivo ao registo automóvel); pelo contrário, o registo tem uma função meramente declarativa.
Acontece que o art. 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial, impõe que “os factos sujeitos a registos só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo”. Do que parece resultar que tal bastaria para que a AT invocasse a ausência de registo para fazer funcionar de imediato o art. 3º, n.º 1 do CIUC, exigindo o pagamento do imposto àquele em nome de quem o veículo está registado, por ser o sujeito passivo do imposto.
Sucede que o n.º 4 do art. 5º do Código do Registo Predial restringe tal entendimento, ao determinar que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Donde resulta que, por essa via, nunca a AT estaria habilitada a invocar a falta de registo, na medida em que não preenche o conceito de terceiro.
Posto isto em termos gerais, há que apurar se, pese embora o que vem de referir-se, o n.º 1 do art. 3º do CIUC continha ou não, na sua versão originária, uma presunção legal.
Tudo está, em suma, em determinar se a expressão “considerando-se”, ali utilizada, tinha a natureza de presunção legal.
Diga-se, desde já, que nos parece ofensivo da unidade do sistema jurídico-legal – e até, com as devidas adaptações, em oposição aos n.º 2 e 3 do art. 11º da LGT - que um indivíduo venha a considerar-se como não proprietário de um bem para efeitos civis e tenha de o ser necessariamente para efeitos tributários.
Ao que acresce o facto de a AT dever nortear a sua actividade pela observância dos princípios da legalidade, do inquisitório e descoberta da verdade material, insíto ao ditame constitucional da capacidade contributiva.
Seja como for, parece evidente que, quer do ponto de vista sistemático, quer teleológico, a expressão “considerando-se”, adoptada no n.º 1 do art. 3º do CIUC contempla inequivocamente uma verdadeira presunção, a isso não se opondo a aparente literalidade da expressão, nem o ordenamento tributário.
A este propósito, referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação ao art. 73º, pag. 651: “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão “presume-se” ou semelhante, como sucede, por exemplo, nos n.º 1 a 5 do art. 6º, na alínea a) do n.º 3 do art. 10º, no art. 19º e 40º, n.º 1, do CIRS. No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real …”, enumerando-se depois um conjunto de exemplos.
Entendemos que é precisamente esse o caso que o art. 3º, n.º 1 do CIUC contempla – ou melhor, contemplava - uma presunção implícita.
É, pois, para nós incontroverso que o art. 3º, n.º 1 do CIUC consagrava uma presunção de incidência subjectiva. Era, aliás, pacífico o entendimento jurisprudencial arbitral nesse sentido (vejam-se a título meramente exemplificativo as decisões proferidas nos processos do CAAD nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013 e 154/2014 539/2016-T, 580/2016-T, 623/2016-T, 109/2017-T, 145/2017-T ou 185/2017-T (omitindo-se aqui a referência às decisões proferidas pelo signatário no mesmo sentido), bem como dos tribunais estaduais, como os Ac. STA de 23-05-2018 – Proc. 1341/17, Ac. TCA Sul de 14-03-2019 – Proc. 201/14.4BEALM ou Ac. TCA Sul de 19-03-2015 – Proc. 08300/14 (como nota de rodapé acrescente-se que não se percebe como a Requerida insiste em trazer à colação como sustentação da sua tese a sentença proferida pelo TAF de Penafiel no proc. 210/13-0BEPNF, quando bem sabe que tal decisão foi revogada pelo Acórdão do STA atrás citado).
Ora, o n.º 2 do art. 350º do Código Civil estabelece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos expressamente previstos na lei.
E, no que respeita à ilisão das presunções, temos por boa a doutrina a que o STJ recorreu na fundamentação do Assento n.º 1/91 de 03-04-1991 (DR n.º 114, de 18 de Maio) - para classificar como juris tantum uma presunção estabelecida num diploma laboral - defendida por Vaz Serra [Provas (direito probatório material), BMJ 110-112, pag. 35], bem como por Mário de Brito (Código Civil Anotado, pag. 466) e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, pag. 429): “… as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções jure er de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado”.
Por seu turno, no âmbito do direito tributário, o art. 73º da LGT dispõe que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. O que significa que todas as presunções em matéria de incidência tributária, como a que o n.º 1 do art. 3º do CIUC consagra, são juris tantum e, como tal, ilidíveis.
Diga-se, aliás, que também a Requerida, pese embora as longas considerações tecidas no seu articulado, propende a aceitar o mesmo entendimento.
Mas, se assim era antes da aludida alteração legislativa, há que apurar se o legislador pretendeu que fosse outro o sentido e alcance do art. 3º do CIUC com a sua nova redacção.
Ora, com efeito, após a entrada em vigor do referido DL 41/2016 de 1 de Agosto, o n.º 1 do art. 3º do CIUC passou a ter a seguinte redacção:
- “São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”.
Não desconhecendo o já decido em anteriores decisões arbitrais (designadamente no Proc. 333/2018-T), que concluem que a nova redacção daquele preceito em nada altera o sentido de o mesmo conter uma mera presunção ilidível, reiteramos aqui o que já sustentamos na decisão proferida no âmbito do processo n.º 522/2018-T.
Começando por realçar que a conclusão a que chegamos não contende com o entendimento acima sufragado de que o registo de propriedade de veículo tem um efeito meramente declarativo e não constitutivo de qualquer direito.
É que a nova redacção do n.º 1 do art. 3º do CIUC não remete, como regra de incidência subjectiva, para o conceito de propriedade (como até então fazia ao dizer que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados) mas antes para uma delimitação fáctica: a mera existência do registo (são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos) circunstância que entendemos passou a ser o elemento definidor da incidência subjectiva do imposto.
E diga-se que precisamente em virtude de se ter agora “empurrado a tónica do imposto determinante da incidência do imposto para o registo” – “são sujeitos passivos as pessoas em nome das quais se encontre registada a propriedade” - e não para o instituto da propriedade em si, como então – “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” -, a incidência do imposto nos moldes actuais é diferente da que tínhamos antes da alteração legislativa. Dizemos mais. Como até aí o elemento delimitador da incidência era a propriedade e como o registo dessa mesma propriedade não tem efeitos constitutivos mas meramente declarativos, obviamente que feita prova da não propriedade, estaria afastada a presunção contemplada no art- 3º do CIUC, o que, bem ou mal, actualmente não existe.
O intérprete deve aplicar a lei partindo do seu elemento literal não descurando os demais como o contexto histórico, teleológico ou a unidade do sistema (art. 9º, n.º 1 do C. Civil), mas deve assumir que o legislador se soube exprimir correctamente (n.º 2).
Ora, o próprio preâmbulo do DL 41/2016 justifica a alteração introduzida com a “necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto”.
Aliás, não tendo o legislador pretendido que assim não fosse, não se vislumbra que necessidade de alteração ou esclarecimento careceria o art. 3º do CIUC.
É certo que o IUC tem como pressuposto o custo ambiental e viário da utilização efetiva do automóvel, pretendendo onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária. O que faz acolhendo os princípios, com consagração no nosso ordenamento comunitário e até constitucional, do poluidor-pagador e da equivalência. Face a tais preocupações de ordem ambiental e energética, pretender-se-á que os custos decorrentes dos danos ambientais provocados pela utilização dos veículos automóveis sejam suportados pelos reais proprietários (e não pelos presumidos proprietários).
Todavia – face à reconhecida dificuldade em tributar os efectivos proprietários, decorrentes do incumprimento de obrigações registrais - num equilíbrio e ponderação de interesses terá o legislador fiscal pretendido fazer prevalecer a existência do registo, à da efectiva propriedade, como elemento delimitador da incidência do imposto.
Somos, por isso, forçados a concluir que o art. 3º do CIUC, na redacção dada pelo DL 41/2016 não contempla qualquer presunção, cuja ilisão a afaste da incidência do imposto.
Donde nenhuma censura merecem as liquidações de IUC contestadas nos autos com referência aos anos de 2017 e de 2018.
E o que dizer da liquidação referente ao ano de 2014 relativa à matrícula ...?
Face ao que se deixou dito, há que apurar se os elementos probatórios trazidos aos autos pela Requerente, têm a virtualidade de afastar a presunção estabelecida, por se ter por provado que não era a proprietária daquele veículo automóvel na data limite do pagamento da respectiva liquidação.
A Requerente juntou ao processo factura que titula a venda da viatura ..., tendo a testemunha inquirida esclarecido o contexto em que tais facturas são emitidas e a forma como é controlado o seu pagamento. Mais do que isso, referiu existir promessa de compra por parte dos locatários e autorização de débito directo para o seu pagamento.
A Requerida põe em causa que facturas titulando contratos de compra e venda sejam aptas a comprovar a efectiva transmissão de propriedade dos veículos. Mas não impugna a genuidade das que foram juntas ao processo, mas apenas os efeitos que das mesmas se pretendem retirar.
Antes de mais, há que realçar que os contratos de compra e venda de automóveis têm uma base consensual e sem sujeição a formalismos especiais (cfr artigos 219º e 408º, n.º 1, do Código Civil) e que, como tal, podem ser provados por qualquer meio, incluindo a prova testemunhal (daí que não se perceba a postura processual assumida pela Requerida invocando a sua inadmissibilidade. Só assim seria se o que se pretendesse demonstrar fosse a celebração de contratos de locação financeira – para os quais, esses sim, se exige forma escrita – o que não é o caso).
Ora, a factura constitui documento contabilístico elaborado no seio da empresa e que se destina ao exterior. A factura deve visualizar-se como o documento contabilístico através do qual o vendedor envia ao comprador as condições gerais da transacção realizada. Acresce que a emissão da factura não tem de coincidir com o pagamento efectivo da importância a pagar pelo comprador (pelo que, ainda que não se fizesse prova do pagamento efetivo do preço pelo mesmo comprador – o que não foi o caso – a factura constitui prova dessa mesma transação, ou seja, da compra e venda efetuada).
Factura que goza da presunção de veracidade que lhe é conferida pelo art.º 75º, nº 1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas com base exclusivamente na existência do registo.
Face aos aos elementos carreados para o processo pela Requerente e aos factos provados, extrai-se a conclusão que aquela não era realmente proprietária do veículo em causa, por ter transferido antes da data em que era devido o respetivo IUC, a propriedade do mesmo, nos termos da lei civil.
Do que resulta ter a Requerente logrado, com total êxito, ilidir a presunção e demonstrar que a realidade do registo era uma mera aparência dessa mesma realidade, ou seja, o proprietário inscrito não era o real proprietário.
Provada tal circunstância e uma vez que a AT não tem legitimidade para opôr a ausência de registo, por não ser para tais efeitos tida como terceiro, impõe-se a anulação da liquidação de IUC em causa.
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende a Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Tal direito vem consagrado no art. 43º da LGT o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
Seguimos a este propósito o que já subscrevemos no Acórdão Arbitral proferido no proc. 185/2017: “ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela Requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a Requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.”, sendo certo que a Requerente nem sequer recorreu aos meios administrativos para afastar a presunção que sobre si impendia
Pelo que não assiste à Requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios relativamente ao imposto pago.
3. DECISÃO
Face ao exposto, decide-se:
a) julgar parcialmente procedente, por vício de violação de lei, o pedido de anulação dos actos tributários no que respeita à liquidação de IUC relativa ao ano de 2014. com referência ao veículo com a matrícula ...;
b) julgar improcedente o demais peticionado dele absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira;
c) condenar as partes nas custas do processo na proporção do respectivo decaimento, sendo 914,10 € a cargo da Requerente e 3,90 € a cargo da Requerida.
VALOR DO PROCESSO: De acordo com o disposto nos art. 306º, n.º 2 do Código de Processo Civil, art. 97º-A, n.º 1, a) do Código do Processo e de Procedimento Tributário e art. 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 9.827,65 € (cinquenta e um euros e quarenta e um cêntimos).
CUSTAS: Nos termos do disposto no art. 22.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 918,00 € (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 12 de Junho de 2019
O árbitro
António Alberto Franco