REFORMA DE DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. Pedido
A..., Unipessoal Lda., pessoa colectiva n.º...– anteriormente designada por B..., Lda., pessoa colectiva n.º..., e também por C..., Unipessoal Lda., pessoa colectiva n.º...– doravante designada por Requerente, requereu, em 18-02-2014, ao abrigo do disposto no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), dos art.ºs 132º e 99º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e dos n.ºs 1 e 2, al. d) do art.º 95º da Lei Geral Tributária, a constituição de tribunal arbitral, tendo apresentado na mesma data um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista:
À anulação dos atos de liquidação do Imposto Único de Circulação identificados a páginas 5 e 6 da petição inicial que aqui se dá por inteiramente reproduzida;
À condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do montante do imposto relativo a tais liquidações, no valor de 7 266,84 euros;
À condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios sobre os mesmos montantes.
A Requerente alega, no essencial, o seguinte:
As viaturas sobre as quais incidiu o IUC liquidado não eram, à data dos factos tributários que deram origem às liquidações impugnadas, propriedade da Requerente;
Não eram tais viaturas propriedade da Requerente por terem sido por ela alienadas;
Não sendo proprietária das viaturas à data dos factos tributários, a Requerente não pode ficar sujeita ao imposto nas datas respectivas;
Nos termos do artigo 6.º, n.º 1 do CIUC, o facto gerador do imposto é “(…) constituído pela propriedade do veículo”;
De acordo com o artigo 3.º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC): “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas (…) em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. Embora nesta disposição se utilize o termo “considerando-se”, enquanto no anterior regime de tributação automóvel (Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de Dezembro), se utilizava a expressão “presumindo-se”, as duas expressões são equivalentes, do que deve concluir-se que o n.º 1 do art.º 3º, ao dizer que se consideram como proprietários dos veículos as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, contém uma presunção legal em matéria de incidência tributária;
Existem inúmeros exemplos de normas que, utilizando os termos “considera-se” ou “consideram-se”, consagram inequivocamente presunções, como o art.º 45º, n.º 6 e o art.º 89º-A, n.º 4 da LGT, o art.º 243º, n.º 3 do Código Civil ou o art.º 59º, n.º 5 do Código da Propriedade Industrial, pelo que o termo em causa no art.º 3º, n.º 1 do CIUC não implica que não se trate de uma presunção;
Nesse sentido se pronunciaram já diversas decisões de tribunais arbitrais, como a proferida no processo n.º 27/2013-T;
No sentido de que o art.º 3º do CIUC consagra uma presunção milita também o espírito da lei, que se identifica, neste caso, especialmente, com o princípio da equivalência que preside ao IUC, o qual por sua vez decorre da finalidade do imposto, que é a de tributar os utilizadores de veículos automóveis pelo custo ambiental que tal utilização provoca;
O artigo 73.º da LGT proíbe a existência de presunções inilidíveis no domínio das normas de incidência tributária, pelo que, sendo o art.º 3º, n.º1 do CIUC uma norma de incidência, não poderá a presunção aí estabelecida não se considerar ilidível;
Ora, os veículos sobre os quais a Autoridade Tributária efectuou as liquidações de IUC impugnadas foram alienados anteriormente aos períodos a que dizem respeito as liquidações de imposto, pelo que a Requerente já não preenchia os pressupostos da incidência subjectiva a essas datas, por não ser já a proprietária dos veículos;
O facto de o registo não se encontrar actualizado não releva para se considerar a Requerente como proprietária e, consequentemente, como sujeito passivo do IUC em relação aos veículos em questão;
Nos termos do art.º 408º do Código Civil (CC) a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato. E nos casos de venda no âmbito de um contrato de aluguer de longa duração, com o pagamento das prestações de aluguer e do preço do valor residual, ocorre a transmissão da propriedade;
O registo da aquisição junto da competente Conservatória do Registo Automóvel não é condição para a transmissão da propriedade, nem afecta a sua validade;
A Requerente considera que a alienação dos veículos se encontra provada através das facturas relativas à venda e dos extractos dos saldos de conta, através dos quais se verifica que foram efectuados os respectivos pagamentos pelos adquirentes;
Efectuada prova da alienação dos veículos, há que considerar ilidida a presunção do art.º3º, n.º 1 do CIUC quanto à titularidade da propriedade dos veículos;
Embora o artigo 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao Registo Automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipule que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”, a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira não pode ser considerada terceiro para efeitos de registo.
A Requerente invoca ainda, em favor de um juízo de ilegalidade das liquidações por erro nos pressupostos de direito, o princípio da uniformidade na aplicação do direito, invocando a jurisprudência arbitral coincidente com a tese defendida por si;
As liquidações padecem ainda do vício de violação do dever de fundamentação, pois, tendo a Requerente exercido o direito de audição prévia, nos termos do art.º 60º, n.º1, al. a) do Lei Geral Tributária (LGT), a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira não incluiu na fundamentação do acto definitivo de liquidação fundamentação relativa aos elementos novos suscitados pela Requerente nessa pronúncia, conforme estava obrigada nos termos do n.º 7 daquele mesmo preceito.
2. Resposta
Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:
Os actos tributários impugnados encontram-se devidamente fundamentados.
O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados;
O legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter usado;
Por outro lado, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência, de localização, entre muitos outros;
A título exemplificativo, a Requerida aponta os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;
No caso do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, por exemplo, o legislador tributário, não presume que “há lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, na outorga do contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual” a terceiro, o legislador fiscal expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT;
Do mesmo modo, no caso do artigo 17.º do CIRC, o legislador também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período, mas sim que estes se consideram como tal;
Aliás, grande parte das normas de incidência em sede de IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado como rendimento, para efeitos deste imposto, por contraposição com o que de acordo com as normas contabilísticas é rendimento do período, pelo que, caso se entendesse que ao usar a expressão “considera-se”, o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas, precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exactamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas. A ser assim, frustrar-se-ia todo o efeito útil das referidas normas;
Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados] as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;
Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem;
Em face desta redacção, não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel;
O referido entendimento corresponde ao adoptado na jurisprudência dos nossos tribunais, tendo sido sufragado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no Processo n.º 210/13.0BEPNF;
O referido entendimento é o único que, atendendo ao elemento sistemático da interpretação, é compatível com a unidade do regime do IUC;
A interpretação que a Requerente faz do art.º 3º é violadora do princípio da confiança e da segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
A Requerente não consegue fazer prova de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros, porque os documentos apresentados como prova não têm força probatória suficiente para ilidir a presunção registal.
3. Tramitação subsequente
3.1. No dia 15 de Julho de 2014 realizou-se, nas instalações do Centro de Arbitragem Administrativa, a reunião prevista no artigo 18º do RJAT.
Nesta reunião, as partes prescindiram de apresentar alegações.
3.2. O Tribunal, atenta a parte da petição inicial em que se dizia:
“6º
Importa ressalvar que, em sede de Direito de Audição, a ora Requerente havia já alegado e comprovado que não era a proprietária das referidas viaturas.
No entanto,
7º
Tais factos não foram atendidos pela Autoridade Tributária que procedeu à emissão das supra referidas liquidações de IUC.
Adicionalmente
8º
Refira-se que, apenas a emissão das liquidações não precedida de resposta aos direitos de audição apresentados, facto que, desde logo, comporta uma coartação ao efetivo direito de audição.
Mas ainda,
(...)”
Notificou a Requerente, por despacho de 29-07-2014, nos seguintes termos:
“Nos parágrafos 6º e 26º a 31º da Petição Inicial, a Requerente refere-se ao facto de ter exercido o direito de audição prévia, referindo-se ainda a um "indeferimento" da sua pretensão.
Uma vez que nada consta no processo administrativo sobre estes factos – nem quanto a um pedido efetuado pela Requerente nem quanto a um indeferimento da AT - Administração Tributária e Aduaneira, solicita-se à Requerente o envio ao Tribunal, no prazo de cinco dias, de cópia dos documentos relativos a estes dois factos:
- Pretensão dirigida pela Requerente à AT – Administração Tributária e Aduaneira, com comprovativo de entrada nos serviços da mesma;
- Resposta, se existente, da Requerida.
Notifique-se.”
Em resposta a tal despacho, a Requerente apresentou requerimento, em 03-09-2014, em que alegou não ter sido notificada para exercer o direito de audição prévia em relação a mais nenhum dos impugnados atos de liquidação
“3. Do mesmo modo, e relativamente às restantes viaturas em crise nos presentes autos, a Requerente não foi notificada para efetuar o exercício do direito de audição prévio à emissão de liquidação, situação que consubstancia preterição de formalidades legais essenciais”.
4. Decisão (primeira decisão sobre o processo 15-09-2014)
Foi proferida decisão arbitral em 15-09-2014, em que:
1) Se considerou procedente o vício de preterição de formalidade essencial (por incumprimento do disposto no nº 7 do art. 60º da LGT) em relação à liquidação de IUC n.º 2009..., sobre o veículo com a matrícula ... e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros;
2) Se julgou improcedente o pedido de declaração de ilegalidade de todos os restantes atos de liquidação, por não ter sido produzida prova bastante para ilidir a presunção, constante do art. 3º, nº 1 do CIUC, de que o titular do registo automóvel é o proprietário do veículo.
Na decisão, o Tribunal não considerou a questão da preterição do direito de audição prévia.
5. Recurso para o Tribunal Central Administrativo-Sul (da primeira decisão de 15-09-2014)
A Requerente interpôs recurso da decisão arbitral para o Tribunal Central Administrativo Sul.
Em 05-03-2015, o TCAS proferiu acórdão em que anulou a decisão arbitral, por omissão de pronúncia quanto à questão da preterição do direito de audição prévia, por considerar que a questão havia sido suscitada pela Requerente.
6. Reabertura do processo e reforma da decisão (primeira reforma)
6.1. Reabertura
O processo arbitral foi reaberto em 12-05-2016.
6.2. Despacho para exercício do contraditório
Considerando:
1º: Que o Tribunal de recurso julgou no sentido de que a Requerente suscitara a questão da falta de notificação para audição prévia, contrariamente ao julgado pelo Tribunal Arbitral;
2º: Considerando que a Requerida não havia tido oportunidade de exercer o direito de contraditório em relação à questão da preterição do direito de audição prévia – que o Tribunal Arbitral não considerou suscitada,
O Tribunal, em obediência ao princípio do contraditório, notificou a Requerida, em 20-06-2016, para se pronunciar sobre tal questão, concedendo para tal um prazo de 30 dias.
6.3. Reforma da decisão (primeira reforma)
Não recebendo no prazo designado qualquer pronúncia da Requerida, o Tribunal proferiu nova decisão arbitral, em 02-11-2016, em que reformava a sua decisão anterior.
No Relatório dessa decisão, o Tribunal disse:
“Considerando que a invocação do vício de violação do direito de audição prévia não se encontrava alegado na petição inicial e que, por essa razão, a Requerida não tinha podido exercer em relação à mesmo o direito de contraditório, o Tribunal convidou a Requerida a pronunciar-se sobre a questão, através de despacho proferido em 20-06-2016.
A Requerida não se pronunciou.”
Na parte referente à matéria de facto considerada provada e não provada, o Tribunal considerou como facto provado que a Requerente não foi notificada para exercer o direito de audição prévia em relação a nenhuma das 87 liquidações impugnadas.
Na parte decisória desta decisão, o Tribunal decidiu:
1) Manter, com os mesmos fundamentos, a anulação da liquidação de IUC n.º 2009..., sobre o veículo com a matrícula ... e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros;
2) Declarar ilegal e anular, por violação do direito de audição prévia, os restantes atos de liquidação impugnados.
3) Condenar a Requerida a efetuar à Requerente o reembolso do total das quantias de imposto pagas referentes às liquidações anuladas.
No dia 03-11-2016 a decisão arbitral foi arquivada.
6.4. Reclamação da decisão reformada
No dia 08-11-2016, a Requerida apresentou reclamação da decisão arbitral reformada com o fundamento de que, contrariamente ao que aí foi dito pelo Tribunal, se havia efetivamente pronunciado quanto à falta de notificação do sujeito passivo para exercício do direito de audição prévia.
E que tal pronúncia não fora recepcionada pelo Tribunal por um erro da secretaria do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa.
Na sequência desta Reclamação da decisão, o Senhor Presidente do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa juntou aos autos um despacho em que informava que
“No seguimento da reclamação apresentada pela Requerida (...) o Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD vem, pela presente, informar que em 27-06-2016 não foi rececionado qualquer email da Requerida referente ao Processo nº 150/2014-T.
Mais se informa que na cópia do referido email, entretanto junta aos autos com a Reclamação, consta o envio de documentos para o endereço geral@caad.pt, o qual não corresponde ao endereço de e-mail institucional do CAAD.
O email institucional do CAAD, no qual recebe, desde 2009, todas as comunicações é o geral@caad.org.com, como se encontra previamente publicitado no respetivo site”.
Na sequência deste despacho, a Requerida veio ainda dirigir exposição ao Tribunal em que dizia:
“Pese embora o endereço geral@caad.org não seja actualmente o endereço institucional do CAAD, certo é que a signatária sempre enviou os emails utilizando esse endereço electrónico, nunca tendo qualquer um sido devolvido e tendo sempre as peças processuais/requerimentos, sido devidamente inseridas na plataforma, excepto a da situação em apreço.”
6.5. Decisão sobre a reclamação da decisão reformada
No dia 05-12-2016, o Tribunal arbitral proferiu despacho sobre a Reclamação da Decisão Arbitral, em que ficou dito:
“(...) A ser assim, ou seja, a provar-se que em resposta remetida atempadamente e por meios válidos ao Tribunal a Requerida demonstra que efetivamente deu à Requerente a possibilidade de exercer o direito de audição prévia, então há que concluir que a decisão arbitral não apreciou questões que deveria ter apreciado, tal como previsto na alínea d) do art. 615º do CPC, e que essa omissão, na ótica da Requerida, motivou um erro na qualificação jurídica dos factos.
Em suma:
Uma vez que o erro invocado pela Requerida é um erro cuja correção é suscetível de implicar uma alteração do sentido da decisão, e portanto não é suscetível de correção nos termos do artigo 45º nº 1 da Lei da Arbitragem Voluntária;
Na medida em que a decisão arbitral reclamada é suscetível de impugnação nos termos do artigo 27º do RJAT, por força dos artigos 615º, nº 1 al d) e nº 4, e 616.º, nº 2 al. a) do CPC;
Uma vez que com a prolação da decisão arbitral se esgotou o poder jurisdicional do Tribunal Arbitral,
O Tribunal Arbitral não pode proceder à reforma da sua decisão por sua iniciativa no sentido pretendido e expresso pela Requerida na sua reclamação,
Pelo que se indefere a pretensão da Requerida.
Notifique-se este despacho arbitral às Partes.”
7. Recurso da decisão reformada
7.1. Interposição de recurso da decisão reformada
Na sequência deste despacho arbitral, a Requerida interpôs recurso da decisão arbitral (reformada) para o Tribunal Central Administrativo-Sul, tendo do mesmo notificado o Centro de Arbitragem Administrativa em 19 de junho 2017.
O recurso foi admitido a tramitação com o nº de processo 20020/16 BCLSB.
7.2. Sentença rescisória
Em 11 de abril de 2019, o Tribunal Central Administrativo - Sul proferiu sentença sobre o recurso, em que declarou a nulidade da decisão arbitral e ordenou a devolução do processo para que o Tribunal Arbitral a reformasse em consonância com o julgado rescisório do Tribunal de recurso e proferisse nova decisão.
A sentença do TCAS anulou a decisão arbitral na parte em que esta não teve em conta, porque o Tribunal não teve dela conhecimento em tempo útil, a prova documental apresentada pela Requerida através da qual esta intentou provar que havia dado cumprimento ao dever de notificação do sujeito passivo para audiência prévia em todos os atos de liquidação impugnados.
8. Reabertura (segunda reabertura) do processo arbitral - tramitação
Em 17-06-2019, foi reaberto o processo arbitral.
8.1. Notificação da Requerente sobre o conteúdo da sentença do Tribunal Central Administrativo-Sul
Em 26-06-2019, o Tribunal notificou a Requerente da sentença do Tribunal Central Administrativo – Sul, para, querendo, se pronunciar sobre o respetivo conteúdo.
8.2. Pronúncia da Requerente
Em 09-07-2019, a Requerente remeteu aos autos a competente pronúncia, nos seguintes termos:
“1º Analisada atentamente a decisão prolatada pelo TCA Sul, somos a concluir que sindicada a violação do princípio do Contraditório, este Venerando Tribunal determina, apenas, que seja dado cumprimento a tão basilar princípio de qualquer ordenamento Jurídico hodierno.
2º A REQUERENTE concorda com o entendimento do TCA Sul – verificada –, como o considerou este Tribunal, a violação do principio do contraditório importa, desde logo, esclarecer que, sem conceder, em bom rigor, a imputada omissão apenas, poderá́ levar, em sede de apreciação do mérito do pedido, à conclusão que para a boa decisão da validade da pretensão da REQUERENTE importa admitir a pronuncia da AT.
3º Todavia, a inclusão da pronúncia da AT nos autos em nada impacta o sentido da decisão arbitral quanto ao seu mérito e sentido da procedência do peticionado.
8.3. Despacho do Tribunal, convidando a Requerente a exercer o direito de contraditório
No dia 4 de junho de 2020, o Tribunal notificou a Requerente para se pronunciar sobre os documentos juntos ao processo pela Requerida, desatendidos pelo Tribunal tanto na decisão arbitral inicial como na primeira reforma da decisão, através dos quais a Requerida visou provar haver notificado a Requerente para audiência prévia em todos os atos de liquidação impugnados, uma vez que a Requerente ainda não se havia pronunciado sobre estes documentos.
No dia 17 de junho de 2020, a Requerente apresentou requerimento, em resposta ao despacho do tribunal de 4 de junho de 2020, em que omitiu qualquer pronúncia acerca da aptidão dos documentos apresentados pela Requerida para provarem que a mesma Requerida deu cumprimento ao dever de notificação do sujeito passivo para audiência prévia em todos os atos de liquidação impugnados.
8.4. Resposta da Requerente
Em resposta ao Despacho do Tribunal, a Requerente apenas juntou e requereu a junção aos autos de uma listagem de comunicações eletrónicas dizendo:
“MPB, m.i. nos autos à margem epigrafados, notificada para em dez dias se pronunciar sobre os documentos juntos ao processo pela AT, como prova da existência de notificação para audiência prévia, vem, em cumprimento do mesmo, apresentar lista em Excel e PDF de acordo com a informação recolhida junto dos seus serviços administrativos e cuja junção aos presentes autos se requer a V. Exa.
Ora, não só a junção de um documento, seja qual for o seu teor, não constitui só por si uma pronúncia sobre nenhuma matéria, como a junção de prova documental ou outra por parte da Requerente nesta fase do processo se afigura claramente extemporânea e portanto legalmente inadmissível.
Nos termos do art. 10º, nº 2 al. d) do RJAT, o pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento (...) do qual deve constar (...) os elementos de prova dos factos indicados e a indicação dos meios de prova a produzir.
A formulação da norma, nomeadamente o uso do artigo definido “os [elementos]” e “dos [meios]” obriga a concluir que a prova, no processo arbitral tributário, deve ser apresentada ou requerida com o pedido, quando se trate de prova a apresentar pelo Requerente.
É certo que esta norma, em harmonia com a jurisprudência dominante, não deve entender-se com excessiva rigidez. Assim, por exemplo, no acórdão do STA 27.05-2015 sobre o proc. nº 570/14, diz-se que resulta desde logo que devem encarar-se com as maiores cautelas todas as decisões que assentem numa interpretação das regras legais que conduza à restrição da produção da prova requerida pelo particular interessado, a menos que as diligências requeridas possam, num juízo seguro, ser tidas como inúteis ou desnecessárias, caso em que se impõe ao juiz obstar à sua realização.
Contudo, o direito de apresentar prova, no processo arbitral tributário como em qualquer outro, tem, obviamente, que se ver limitado por algumas balizas, sob pena de o processo se ver indefinidamente prolongado.
Sendo a primeira de tais balizas o princípio de que a prova é, em regra, apresentada com o pedido, de acordo com o já citado art. 10º, nº 2, al. d) do RJAT.
Sendo este o princípio geral, dele resulta que a junção de prova, por parte do Requerente, em momento ulterior ao da apresentação do pedido tem que ter uma justificação de ordem processual. Ou seja, a flexibilidade na interpretação da norma legal quanto à possibilidade de apresentação de prova posteriormente ao articulado em que os factos são alegados não pode significar que a Parte tem uma liberdade de escolher arbitrariamente o momento em que apresenta a prova dos factos por si alegados.
Ora, o Tribunal arbitral considerou, é certo, no seu primeiro laudo, que a Requerente não invocou falta de notificação para audiência prévia na sua petição inicial. Mas a Requerente sustentou tese diversa junto do TCA-Sul, tese que viria a ganhar provimento.
E sendo assim, haverá que concluir que nenhuma razão se verifica para que a Requerente não devesse juntar a prova que pretende agora carrear ao processo com a sua petição inicial.
De resto, a Requerente não invoca qualquer motivo ou justificação para a sua pretensão de junção tardia de prova documental.
Razão por que entendeu o Tribunal dever indeferir a pretensão da Requerente no que diz respeito à junção da prova documental junta com o seu requerimento de 17-06-2020.
9. Reforma (segunda reforma) da decisão arbitral
9.1. Objeto e limites da reforma da decisão
Como é sabido, quando, em sede de recurso, é proferida sentença que parcialmente anula o julgado recorrido, a reforma de decisão recorrida está limitada, no seu âmbito, pelo exato perímetro da parte rescisória da sentença anulatória, em obediência ao princípio do caso julgado formal.
No caso vertente, a sentença anulatória do TCAS-Sul julgou a decisão arbitral nula na parte em que não considerou atendível a prova documental enviada pela Requerida através da qual esta intentou provar que havia dado cumprimento ao dever de notificação do sujeito passivo para audiência prévia em todos os atos de liquidação impugnados.
Pois essa documentação não chegou ao conhecimento do Tribunal por um erro de secretaria, que não pode prejudicar a posição da Requerida.
Sendo assim, a reforma que agora se irá fazer da decisão arbitral (reforma da segunda decisão arbitral, por sua vez já uma reforma da primeira decisão arbitral) irá limitar-se, porque de outra forma não poderá ser, à apreciação da questão da preterição ou não preterição, por parte da Requerida, do dever de notificação do sujeito passivo para exercício do direito de audiência prévia.
9.2. Saneamento
Este Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 24.04.2014, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.
A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n. 1 do RJAT.
Não foram identificadas nulidades no processo, excetuando aquela que foi julgada verificada pelo Tribunal de recurso, e que agora se vai sanar.
Não existem exceções nem questões prévias de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.
9.3. Questões a decidir
São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:
A existência de vício de preterição de formalidade essencial, concretamente a preterição de notificação da Requerente para audiência prévia.
A existência de vício de falta de fundamentação das liquidações.
A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;
A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efetiva ilisão no caso dos autos.
9.4. Matéria factual
9.4.1. Factos provados
Foram dados como provados os seguintes atos considerados relevantes para a decisão da causa:
1º: A Requerente foi notificada, ao longo do ano de 2013, para proceder ao pagamento de 87 liquidações de IUC respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, e referentes a 34 veículos, cujo registo de propriedade constava em seu nome;
3º: A Requerente emitiu faturas relativas à venda dos 34 veículos a que dizem respeitos as liquidações de IUC impugnadas;
4º: A Requerente registou na sua contabilidade o recebimento do preço relativo às faturas emitidas;
5º: A Requerente exerceu o direito de audição prévia em relação à liquidação de IUC n.º 2009..., sobre o veículo com a matrícula ... e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros.
Estes factos foram considerados provados com base na prova documental apresentada pelas Partes.
9.4.2. Prova do cumprimento do dever de notificação do sujeito passivo para audição prévia
A questão da prova do cumprimento do dever de notificação do sujeito passivo para audição prévia, por é a matéria fundamental a apreciar no âmbito da presente reforma da decisão arbitral.
Quanto a esta matéria, pela análise dos documentos juntos pela Requerida, verifica-se provado que a Requerente foi notificada para exercer o direito de audiência prévia quanto às seguintes liquidações:
Liquidação sobre o veículo ..., referente ao ano 2009;
Liquidação sobre o veículo ..., referente ao ano 2009
Liquidação sobre o veículo ..., referente ao ano 2009;
Liquidação sobre o veículo ..., referente ao ano 2009;
Liquidação sobre o veículo ..., referente ao ano 2009;
Liquidação sobre o veículo ..., referente ao ano 2009.
Não se considera provado que a Requerente tenha sido notificada para audiência prévia em relação a mais nenhuma das liquidações impugnadas.
Com efeito, em relação a todas as restantes liquidações, os documentos juntos pela Requerida que visam provar que a Requerente foi notificada para exercer o direito de audiência prévia não contêm os elementos necessários a essa prova. Em alguns casos, os documentos contêm a indicação de se tratar de notificação para audição prévia, mas não indicam o ato de liquidação a que se referem. Noutros casos, os documentos indicam vagamente o ato de liquidação a que se referem, mas não indicam a natureza ou função da notificação. Em todos os casos considerados não provados, os documentos não exibem o teor da notificação.
9.4.3. Factos não provados
Não há outros factos não provados com relevo para a decisão da causa.
9.5. Fundamentação de direito
9.5.1. A existência de vício de preterição de formalidade essencial, concretamente a preterição de notificação da Requerente para audiência prévia.
Invoca a Requerente no seu pedido o vício de falta de notificação para audiência prévia, nos termos do art.º 60º, nº 1, al. a) da Lei Geral Tributária.
Já acima se deixou assente que a Requerida não provou, efetivamente, ter facultado à Requerente o exercício do direito de audiência prévia, à exceção das liquidações sobre o veículo ..., referente ao ano 2009, sobre o veículo ..., referente ao ano 2009, sobre o veículo ..., referente ao ano 2009, sobre o veículo ..., referente ao ano 2009 e sobre o veículo..., referente ao ano 2009.
Quanto às restantes, há que concluir que a Requerente não foi notificada para exercer o direito de audiência prévia.
Estabelece o art.º 60º, n.º 1 al. a) da LGT que “A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido contrário, por (…) (al. a) direito de audição antes da liquidação”.
O direito de audiência prévia dos contribuintes consagrado no art. 60º, nº 1 da LGT destina-se a permitir a participação daqueles nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão.
Por sua vez, o n.º 2 da mesma disposição legal enumera os casos em que a audição prévia é dispensada, inferindo-se que, fora dos casos excecionados, a audição prévia antes da liquidação é obrigatória.
No caso vertente, não se verificam as situações de exceção enumeradas no n.º 2 do art.º 60º, pelo que se conclui que a audição prévia era obrigatória.
A falta de notificação do contribuinte para audição prévia, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário suscetível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada, nos termos do n.º 1 do art. 163.º do atual CPA (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido a 26 de Setembro de 2018 no Processo n.º 01506/17.8BALSB).
Sendo assim, há que considerar ilegais as liquidações impugnadas em relação às quais não se provou ter sido concedido à Requerente o direito de audição prévia nos termos do art. 6ºº, nº 1 al. a) da LGT.
9.5.2. Questão da violação do dever de fundamentação
Segundo ficou provado pela documentação junta ao processo, a Requerente exerceu o direito de audição prévia, apenas, em relação à liquidação de IUC n.º 2009..., sobre o veículo com a matrícula ... e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros.
Na pronúncia então por si apresentada, a Requerente alegou, tal como nos presentes autos, que não tinha a propriedade do veículo em causa, por o mesmo ter sido alienado. Nessa pronúncia, a Requerente identificava o alegado adquirente e juntava, como prova, a fatura relativa à venda.
A Requerente alega na petição inicial que não recebeu qualquer resposta a esta pronúncia por si efectuada em sede de audição prévia e que a liquidação definitiva não continha qualquer referência aos elementos por si aduzidos, o que se prova também pela análise do processo administrativo.
Estabelece o art.º 60º, n.º 1 al. a) da LGT que “A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido contrário, por (…) (al. a) direito de audição antes da liquidação”. Por sua vez, o n.º 2 da mesma disposição legal enumera os casos em que a audição prévia é dispensada, inferindo-se que, fora dos casos excecionados, a audição prévia antes da liquidação é obrigatória.
No caso vertente, não se verificam as situações de exceção enumeradas no n.º 2 do art.º 60º, pelo que se conclui que a audição prévia era obrigatória.
No caso da liquidação em apreço, foi concedido à Requerente prazo para o exercício do direito de audição prévia, tendo a Requerente exercido tal direito.
Quando assim acontece, determina o n.º 7 do mesmo artigo 60º, que “os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos necessariamente em conta na fundamentação da decisão”. Tal significa que, na decisão definitiva, a administração fiscal tem de se pronunciar, por sua vez, sobre os elementos levados ao seu conhecimento pelo contribuinte.
Tal pronúncia, da administração fiscal, é de extrema importância para o sujeito passivo, por várias razões. A primeira delas é que obriga a administração fiscal a analisar os argumentos do sujeito passivo, à luz do direito e dos factos, constituindo uma oportunidade para a administração alterar a sua posição.
Outra razão da importância desta resposta, não menos relevante, é que através dela o sujeito passivo fica a conhecer a posição da administração fiscal sobre os argumentos por si apresentados. Mediante esse conhecimento, o sujeito passivo, por seu turno, avalia a viabilidade da sua posição numa eventual impugnação judicial.
Essa reavaliação pode ser determinante para a sua decisão de impugnar contenciosamente o acto, mas será também determinante para a estratégia a adotar numa eventual impugnação contenciosa.
Desta forma, a não observância do disposto no n.º 7 do art.º 60º da LGT é altamente lesiva dos direitos e interesses dos contribuintes.
Mas ainda que assim não fosse, a violação do disposto no n.º 7 do art.º 60º da LGT constituiria, sempre, uma violação de uma formalidade essencial, causadora de invalidade do ato.
Procede, assim, a alegada ilegalidade da liquidação em apreço, por preterição de formalidade essencial.
9.5.3. A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;
Sobre esta questão e nos exatos termos em que é aqui colocada se pronunciou o Tribunal arbitral, que integrámos como vogal, constituído no processo n.º 63/2014-T. Por considerarmos aplicar-se no caso vertente tudo o que se diz na referida pronúncia a respeito desta questão, reproduzimos aqui o seu teor, aderindo à doutrina aí defendida:
“Dispõe o artigo 3º do CIUC:
Artigo 3.º
Incidência subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.
Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”
A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).
A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito activo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)
Mas o Regulamento do Registo Automóvel contém um regime especial para entidades que se dediquem à actividade comercial de venda de veículos automóveis, em vigor desde 2008. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.
Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).
O registo deve ser efectuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).
O actual IUC está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.
Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.
A AT-Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respectivos proprietários para efeitos de liquidação do imposto.
Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.
Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data das liquidações, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.
Mas uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária, responsável pela administração dos impostos, não tinha como saber nem da existência das alegadas transmissões de propriedade nem da identidade dos alegados adquirentes.
A Administração Tributária adoptou o único procedimento que podia adoptar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.
Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efectiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.
A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?
Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?
A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.
A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do registo automóvel.
Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.
Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).
Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.
A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.
Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas
O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.
Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.
Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?
E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exactamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atractiva, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?
A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjectiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.
Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva.
É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.
Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).
E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto”.
Tem, pois, razão a Requerente no que diz respeito à interpretação do art.º 3º do CIUC, no sentido de que aí se consagra uma presunção sobre quem é proprietário do veículo, mas nada mais.
Como todas as presunções em matéria de incidência tributária, tal presunção é ilidível, por força do art.º 73º da LGT.
9.5.4. Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente
A fim de ilidir a presunção do art.º 3º do IUC, a Requerente tem de provar “o contrário”, i.e, que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários.
Vejamos então:
A Requerente propõe-se provar, segundo resulta da petição inicial, que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.
Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Requerente apresenta:
Cópias de contratos de aluguer de longa duração dos veículos;
Facturas relativas à venda dos veículos;
Extractos contabilísticos dos lançamentos relativos ao recebimento do preço da venda dos mesmos veículos.
Os contratos de aluguer de longa duração, têm uma função probatória secundária. Servem apenas para mostrar que a alienação se segue ao um contrato de aluguer de longa duração, com as consequências que essa circunstância terá ao nível do preço a pagar pelo adquirente.
Quanto à transmissão da propriedade, a prova que interessa considerar é a formada pelas facturas de venda e pelos extractos de conta de cliente. Tratando-se de documentos unilaterais e internos, com os quais se pretende negar a veracidade de factos provados por uma prova legal - a presunção decorrente do registo - levanta-se aqui uma questão de direito probatório material, que cumpre analisar.
Esta questão foi igualmente resolvida na decisão arbitral acima citada, cuja doutrina subscrevemos inteiramente e que passamos a transcrever:
“O Código Civil (CC) trata as presunções a propósito das “provas”. As presunções constituem, portanto, meio de prova.
São definidas no art.º 349º do CC como as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
O CC distingue entre presunções legais, às quais se refere o art.º 350º, e presunções judiciais, tratadas por sua vez no art.º 351º.
A presunção judicial (comum ou de homem) consiste no raciocínio, originado por uma regra de experiência, através do qual, com base num facto conhecido, o julgador deduz um facto desconhecido.
As duas espécies de presunções mencionadas têm força probatória distinta. E por terem força probatória distinta, a sua ilisão obedece também a regras diferentes, sendo a ilisão da presunção legal mais exigente.
Com efeito, estipula o art.º 342º, n.º 1 do CC que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. É a regra geral sobre o ónus da prova.
O art.º 346º do CC, sob a epígrafe “contraprova”, determina que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”
Ou seja, recaindo sobre uma das partes ónus probatório, à parte contrária basta opor “contraprova”, sendo esta uma prova destinada a tornar duvidosos os factos alegados pela primeira. E basta a formação desta dúvida, para que a questão seja decida contra a parte onerada com a prova. Como afirma Anselmo de Castro, A., “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 163, a consequência do ónus probatório é que a parte sobre quem o mesmo recai deve suportar as desvantagens da incerteza que permaneça sobre os factos que tenta provar.
Ora, de acordo com o art.º 350 do CC, a parte a favor da qual exista uma presunção legal, a qual constitui prova plena, não tem de provar o facto a que ela conduz. Não tem, portanto, quanto a esse facto, qualquer ónus probatório.
Nesta situação, a ilisão da presunção obedecerá já não à regra do art. 346º, mas à regra do art.º 347º do CC: “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto”.
O que significa que não basta à parte contrária opor “contraprova” – a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos – que torne os factos presumidos duvidosos. Ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são verdadeiros .
Voltando à contraposição entre presunção judicial e presunção legal, enquanto a primeira é uma prova simples, não definitiva, baseada nos dados da experiência e cuja apreciação se deixa à prudência do julgador, as presunções legais são provas legais ou vinculadas, que não dependem da livre apreciação do tribunal. Pelo contrário, a sua força probatória, legalmente tabelada, proporciona ao juiz uma verdade formal (cf. Domingos de Andrade, M, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1976, p. 280).
Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.
O que a impugnante se propõe provar, segundo resulta dos autos, é que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.
Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Impugnante apresenta:
- Facturas relativas à venda dos veículos em causa;
- Extractos contabilísticos dos lançamentos relativos ao recebimento do preço da venda dos mesmos veículos.
Torna-se, assim, necessário analisar que valor deve ser reconhecido a estes elementos para provar a transmissão da propriedade dos veículos por parte da Requerente.
Para isso deverá começar por se aflorar a questão da força probatória do registo automóvel.
O registo automóvel é um registo público, que tem a finalidade de “dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico” (art.º 1º do Cód. do Registo Automóvel (CRA)). Na noção de segurança do comércio jurídico cabe, evidentemente, o exercício de direitos por parte de terceiros com base nos factos registados.
Como se afirma no acórdão do TRL de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da actualização do registo face ao facto publicitado”.
Ora, o que a Requerente pretende nestes autos não é meramente ilidir uma presunção fiscal. É ilidir a presunção de veracidade dos factos que se encontram registados publicamente, e que se encontram registados para finalidades de interesse público, presunção esta da qual qualquer pessoa deve poder valer-se, sob pena de inutilidade do registo.
Em condições de cumprimento da lei, a ilisão da presunção de veracidade do registo é muito simples. Quando ocorre a compra e venda de um veículo, é preenchido um documento destinado ao registo automóvel – preenchimento que não constitui formalidade essencial do negócio – e que contém uma declaração de ambas as partes quanto à celebração do contrato (conforme o artigo 25º, n.º 1, alíneas a) e b) do DL n.º 55/75).
Este documento é um instrumento particular bilateral, porque assinado por ambas as partes do contrato. E precisamente porque a compra e venda de uma coisa móvel é um negócio não formal, aos serviços do Registo Automóvel basta este instrumento particular como prova para se proceder à alteração do registo. O vendedor pode então promover o registo em nome do adquirente, munido de uma simples cópia dessa declaração.
Mas já referimos também que, se o vendedor é uma entidade que se dedica ao comércio de veículos automóveis, este pode promover o registo, em nome do adquirente, através de um simples requerimento, conforme previsto no art.º 25, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel.
O que a Requerente apresenta como prova, porém – facturas não assinadas pelo comprador e cópias de extractos contabilísticos de conta de cliente – são unicamente documentos particulares, de carácter comercial, e unilaterais, i.e., para emissão dos quais não se verificou qualquer intervenção do comprador. O que significa que o comprador pode negar que a factura corresponda a qualquer negócio efectivamente celebrado, invalidando com isso qualquer valor probatório da factura e não lhe sendo exigido, sequer, produzir qualquer contraprova nesse sentido (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8).
A estes documentos particulares, por serem unilaterais, não pode reconhecer-se senão um valor probatório muito limitado.
Mesmo no âmbito das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio – campo que é, como se sabe, aquele em que os documentos comerciais e a escrita comercial têm maior valor probatório – a facturação comercial e a escrita comercial não fazem prova plena, podendo até mesmo o comerciante proprietário dos livros produzir prova em contrário dos seus próprios lançamentos (STJ, Acórdão de 18-10-2007, Proc. n.º 06B3818).
Se um comerciante A – continuando a colocar-nos no âmbito das relações comerciais – pretendendo fazer prova de que vendeu a B, apesenta facturas por si emitidas, B, que sustenta a inexistência do negócio jurídico, apenas precisa de negar a materialidade dos factos vertidos nessas facturas, para que reverta sobre o vendedor o ónus de provar por outros meios a existência do contrato (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8, no qual se afirma: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas facturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega (alegação da apelante); dos documentos não resulta que a apelada tenha encomendado à apelante a mercadoria constante das facturas juntas (…)”)
Se é assim no plano das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio, que valor pode ser atribuído a este tipo de documentos no âmbito de relações com terceiros não comerciantes?
Sobre esta matéria, também se têm pronunciado os tribunais superiores. Assim, num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-11-2009 (TRL, Acórdão de 26-11-2009, Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respectivo subscritor”.
E num outro acórdão do mesmo Tribunal, com maior acuidade para a questão decidenda, pois que se refere exactamente ao valor da factura comercial como prova da existência de um contrato com determinada pessoa, diz-se que “a exigência de um pagamento por factura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade facturada” (TRL, Acórdão de 5-6 -2008, Proc. 1586/2008-8).
Tudo o que foi dito para a factura vale, por sua vez, para os extractos contabilísticos. Um extracto contabilístico é, também ele, um documento particular (não autêntico) e unilateral, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado contrato.
Resumindo, a Requerente apresenta, apenas, documentos unilaterais e internos, aos quais a jurisprudência tem reconhecido um muito reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático.
Em face do exposto, é forçoso concluir que Requerente não logrou provar a transmissão da propriedade dos veículos sobre cuja propriedade recaíram as liquidações de IUC impugnadas”.
Prossegue a decisão citada:
“Mas entende este Tribunal que, neste caso, como já ficou dito acima, o que a Requerente teria de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, pois é este o facto que resulta da presunção registal.
Para isso não bastaria provar que, um dia, há vários anos, havia celebrado um contrato de compra e venda de um veículo, pois ainda que esse contrato tivesse sido celebrado, a propriedade de algum veículo poderia ter retornado à titularidade da Requerente. Ou seja, provar que A, no ano 2001, alienou o bem X, não implica deixar provado que A, no ano 2011, não é proprietário do bem X.
Assim, a Requerente teria de provar que não era proprietária dos veículos à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o actual proprietário.
Não se diga que se trata, neste caso, de uma diabolica probatio. Esta prova seria fácil de fazer, bastando à Requerente actualizar o registo, para o que tem a legitimidade como vendedor – e não só a legitimidade como a obrigação, desde 2001, à luz do Código da Estrada – promovendo o registo dos veículos em nome do comprador, através de um simples requerimento, nos termos do artigo 25º, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel (preceitos que estabelecem um regime especial de promoção do registo para entidades que comercializam veículos automóveis).
Diabolica probatio seria, neste caso, em nosso entender e discordando neste ponto de anteriores pronúncias arbitrais, a exigida à Administração Fiscal, se esta, para se valer da presunção que decorre quer do art.º 7º do Código do Registo Predial, quer do art.º 3º, n.º 1 do CIUC, tivesse de apresentar contraprova que pusesse em causa a verdade material das facturas apresentadas, quando a administração não tem qualquer meio para o fazer.
A tese da Requerente, no que diz respeito à parte probatória, pretendendo neutralizar a prova legal que constitui o registo mediante a apresentação de documentos unilaterais, que têm valor probatório diminuto no âmbito do direito probatório material, implicaria tornar impossível à administração fiscal administrar o Imposto Único de Circulação.
E o certo é que, da valência em contencioso tributário dos princípios do inquisitório ou da investigação e da livre apreciação das provas, e ainda do princípio da aquisição processual, decorre que, inexistindo embora um ónus da prova formal, a cargo, especial ou exclusivamente, de algum dos participantes processuais, releva sobremodo neste campo um ónus da prova substancial, objectivo, ou material, no sentido de que a decisão tem de desfavorecer naturalmente quem não consiga ver materialmente provados os factos em que assenta a sua posição (cf. a este respeito Vieira de Andrade, J. C., “Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do Curso de 1995/96”, Coimbra, 1996, p. 186; e Saldanha Sanches, J. L., “O Ónus da Prova no Processo Fiscal”, Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal n.º 151, pp. 122 e ss.).
Resumindo, a prova apresentada pela Requerente é constituída, exclusivamente, por documentos particulares, unilaterais e internos, com um valor insuficiente para, à luz do direito probatório material, negar a validade de factos – a propriedade de veículos – sobre os quais existe uma prova legal – uma presunção legal – que isenta a Requerida de qualquer ónus probatório, e que não é contrariável através de mera contraprova, que lance dúvida sobre os factos provados pela presunção”.
Atenta a argumentação expendida, e que aqui se acolhe inteiramente, impõe-se concluir que a Requerente não logra ilidir a presunção que sobre ela impende sobre a titularidade da propriedade dos veículos objeto das liquidações, resultante do facto de a propriedade se encontrar registada em seu nome.
Não procede, portanto, a alegada ilegalidade das liquidações impugnadas por erro nos pressupostos de direito.
9.6. Do direito a juros indemnizatórios
A declaração da ilegalidade e consequente anulação de um ato administrativo confere ao destinatário do ato o direito à reintegração da situação em que o mesmo se encontraria não fora a pática e a execução do ato anulado.
No caso de uma liquidação de imposto, a sua anulação confere ao sujeito passivo o direito à restituição do imposto pago e, em regra, o direito a juros indemnizatório, nos termos do art.º 43º.
Porém, tem sido entendimento sancionado pelos tribunais superiores que o direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT, derivado de anulação judicial de um acto de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à administração tributária (Acórdão do STA de 22.5.2014, Processo n.º 245/13).
De acordo com o mesmo entendimento, a anulação de um acto de liquidação baseada na violação do princípio da participação, por a administração fiscal não ter levado em conta os elementos novos fornecidos pela contribuinte em sede do exercício do direito de audição, não implica a existência de qualquer erro sobre os pressupostos de facto ou de direito do acto de liquidação, pelo que não existe o direito de juros indemnizatórios a favor do contribuinte, previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT.
Sendo assim, não tem a Requerente direito a juros indemnizatórios sobre o montante de imposto pago referente à liquidação anulada.
V. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, o presente Tribunal decide:
1. Declarar ilegais e anular, por preterição de formalidade essencial, nomeadamente por preterição do dever de audição prévia, as liquidações de Imposto Único de Circulação
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo ..., referente ao ano 2010;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo..., referente ao ano 2010;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo..., referente ao ano 2010;
- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo..., referente ao ano 2010;
- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
- 2012..., sobre o veículo..., referente ao ano 2012;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo..., referente ao ano 2010;
- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
- 2012..., sobre o veículo..., referente ao ano 2012;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo..., referente ao ano 2010;
- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
- 2012..., sobre o veículo..., referente ao ano 2012;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo..., referente ao ano 2010;
- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
- 2012..., sobre o veículo..., referente ao ano 2012;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo..., referente ao ano 2010;
- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
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- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
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- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
- 2010..., sobre o veículo..., referente ao ano 2010;
- 2011..., sobre o veículo..., referente ao ano 2011;
- 2012..., sobre o veículo..., referente ao ano 2012;
- 2009..., sobre o veículo..., referente ao ano 2009;
2. Declarar ilegal e anular, por preterição de formalidade essencial, nomeadamente por insuficiência de fundamentação, a liquidação sobre o veículo ..., referente ao ano 2009;
3. Julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade de todos os restantes atos de liquidação impugnados.
Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 7.266,84 euros.
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo:
Da Requerida: 463,04 euros
Da Requerente: 148,96 euros
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 23 de junho de 2020
O Árbitro
(Nina Aguiar)
Decisão Arbitral,
através da qual, em cumprimento da sentença anulatória do Tribunal Central Administrativo-Sul de 5 de março de 2015, se reforma a decisão arbitral proferida em 14 de setembro de 2014 sobre o processo arbitral nº 150/2014-T
I – RELATÓRIO
1. Pedido
A…, ... Lda., pessoa coletiva n.º … – anteriormente designada por B…, Lda., pessoa coletiva n.º…, e também por C…, ... Lda., pessoa coletiva n.º…– doravante designada por Requerente, requereu, em 18-02-2014, ao abrigo do disposto no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), dos art.ºs 132º e 99º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e dos n.ºs 1 e 2, al. d) do art.º 95º da Lei Geral Tributária, a constituição de tribunal arbitral, tendo apresentado na mesma data um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista a:
Anulação dos atos de liquidação do Imposto Único de Circulação identificados a páginas 5 e 6 da petição inicial cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;
Condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do montante do imposto relativo a tais liquidações, no valor de 7 266,84 euros;
Condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios sobre os mesmos montantes.
A Requerente alega, no essencial, o seguinte:
As viaturas sobre as quais incidiu o IUC liquidado não eram, à data dos factos tributários que deram origem às liquidações impugnadas, propriedade da Requerente;
Não eram tais viaturas propriedade da Requerente por terem sido por ela alienadas;
Não sendo proprietária das viaturas à data dos factos tributários, a Requerente não pode ficar sujeita ao imposto nas datas respetivas;
Nos termos do artigo 6.º, n.º 1 do CIUC, o facto gerador do imposto é “(…) constituído pela propriedade do veículo”;
De acordo com o artigo 3.º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC): “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas (…) em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. Embora nesta disposição se utilize o termo “considerando-se”, enquanto no anterior regime de tributação automóvel (Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de Dezembro), se utilizava a expressão “presumindo-se”, as duas expressões são equivalentes, do que deve concluir-se que o n.º 1 do art.º 3º, ao dizer que se consideram como proprietários dos veículos as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, contém uma presunção legal em matéria de incidência tributária;
Existem inúmeros exemplos de normas que, utilizando os termos “considera-se” ou “consideram-se”, consagram inequivocamente presunções, como o art.º 45º, n.º 6 e o art.º 89º-A, n.º 4 da LGT, o art.º 243º, n.º 3 do Código Civil ou o art.º 59º, n.º 5 do Código da Propriedade Industrial, pelo que o termo em causa no art.º 3º, n.º 1 do CIUC não implica que não se trate de uma presunção;
No sentido de que o art.º 3º do CIUC consagra uma presunção milita também o espírito da lei, que se identifica, neste caso, especialmente, com o princípio da equivalência que preside ao IUC, o qual por sua vez decorre da finalidade do imposto, que é a de tributar os utilizadores de veículos automóveis pelo custo ambiental que tal utilização provoca;
O artigo 73.º da LGT proíbe a existência de presunções inilidíveis no domínio das normas de incidência tributária, pelo que, sendo o art.º 3º, n.º1 do CIUC uma norma de incidência, não poderá a presunção aí estabelecida não se considerar ilidível;
Ora, os veículos sobre os quais a Autoridade Tributária efetuou as liquidações de IUC impugnadas foram alienados anteriormente aos períodos a que dizem respeito as liquidações de imposto, pelo que a Requerente já não preenchia os pressupostos da incidência subjetiva a essas datas, por não ser já a proprietária dos veículos;
O facto de o registo não se encontrar atualizado não releva para se considerar a Requerente como proprietária e, consequentemente, como sujeito passivo do IUC em relação aos veículos em questão;
Nos termos do art.º 408º do Código Civil (CC) a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato. E nos casos de venda no âmbito de um contrato de aluguer de longa duração, com o pagamento das prestações de aluguer e do preço do valor residual, ocorre a transmissão da propriedade;
O registo da aquisição junto da competente Conservatória do Registo Automóvel não é condição para a transmissão da propriedade, nem afeta a sua validade;
A Requerente considera que a alienação dos veículos se encontra provada através das faturas relativas à venda e dos extratos dos saldos de conta, através dos quais se verifica que foram efetuados os respetivos pagamentos pelos adquirentes;
Efetuada prova da alienação dos veículos, há que considerar ilidida a presunção do art.º3º, n.º 1 do CIUC quanto à titularidade da propriedade dos veículos;
Embora o artigo 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao Registo Automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipule que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira não pode ser considerada terceiro para efeitos de registo.
A Requerente invoca ainda, em favor de um juízo de ilegalidade das liquidações por erro nos pressupostos de direito, o princípio da uniformidade na aplicação do direito, invocando a jurisprudência arbitral coincidente com a tese defendida por si;
As liquidações padecem ainda do vício de violação do dever de fundamentação, pois, tendo a Requerente exercido o direito de audição prévia, nos termos do art.º 60º, n.º1, al. a) da Lei Geral Tributária (LGT), a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira não incluiu na fundamentação do ato definitivo de liquidação fundamentação relativa aos elementos novos suscitados pela Requerente nessa pronúncia, conforme estava obrigada nos termos do n.º 7 daquele mesmo preceito.
2. Resposta
Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:
Os atos tributários impugnados encontram-se devidamente fundamentados;
O legislador tributário, ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados;
O legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter usado;
Por outro lado, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência, de localização, entre muitos outros;
A título exemplificativo, a Requerida aponta os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;
No caso do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, por exemplo, o legislador tributário não presume que “há lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, na outorga do contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual” a terceiro, o legislador fiscal expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT;
Do mesmo modo, no caso do artigo 17.º do CIRC, o legislador também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período, mas sim que estes se consideram como tal;
Aliás, grande parte das normas de incidência em sede de IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado como rendimento, para efeitos deste imposto, por contraposição com o que de acordo com as normas contabilísticas é rendimento do período, pelo que, caso se entendesse que ao usar a expressão “considera-se”, o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas, precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exatamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas. A ser assim, frustrar-se-ia todo o efeito útil das referidas normas;
Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados] as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;
Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem;
Em face desta redação, não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel;
O referido entendimento corresponde ao adotado na jurisprudência dos nossos tribunais, tendo sido sufragado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no Processo n.º 210/13.0BEPNF;
O referido entendimento é o único que, atendendo ao elemento sistemático da interpretação, é compatível com a unidade do regime do IUC;
A interpretação que a Requerente faz do art.º 3º é violadora do princípio da confiança e da segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
A Requerente não consegue fazer prova de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros, porque os documentos apresentados como prova não têm força probatória suficiente para ilidir a presunção registal.
3. Tramitação subsequente
No dia 15 de Julho de 2014 realizou-se, nas instalações do Centro de Arbitragem Administrativa, a reunião prevista no artigo 18º do RJAT.
Nesta reunião, as partes prescindiram de apresentar alegações.
Por despacho de 29-07-2014, o Tribunal convidou a Requerente a remeter aos autos prova documental relativa ao exercício do direito de audição prévia.
Em requerimento dirigido ao Tribunal em 03-09-2014, a Requerente remeteu ao tribunal cópia da pronúncia comunicada à Autoridade Tributária no exercício do direito de audição prévia quanto à liquidação n.º 2009…, sobre o veículo com a matrícula …-…-… e respeitante ao ano de 2009.
No mesmo requerimento, a Requerente veio alegar que não foi notificada para exercer o direito de audição prévia em relação a nenhuma das restantes liquidações.
Em 15-09-2014, foi proferida decisão arbitral.
Esta decisão julgou procedente a alegação de invalidade por violação do dever de fundamentação em relação à liquidação n.º 2009…; julgou improcedente a pretensão de anulação das restantes liquidações.
Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo – Sul, ao abrigo 27º, nº 1 do RJAT.
Na sequência do recurso, o Tribunal Central Administrativo-Sul, proferiu, em 05-03-2015, sentença pela qual anulou a decisão arbitral, por omissão de pronúncia respeitante a violação do direito de audição prévia em relação às liquidações não anuladas.
O processo arbitral foi reaberto em 12-05-2016.
Considerando que a invocação do vício de violação do direito de audição prévia não se encontrava alegado na petição inicia e que, por essa razão, a Requerida não tinha podido exercer em relação à mesmo o direito de contraditório, o Tribunal convidou a Requerida a pronunciar-se sobre a questão, através de despacho proferido em 20-06-2016.
A Requerida não se pronunciou.
II – SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 24.04.2014, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.
A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n. 1 do RJAT.
Não foram identificadas nulidades no processo.
Não existem exceções nem questões prévias de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.
III – QUESTÕES A DECIDIR
São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:
A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;
A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efetiva ilisão no caso dos autos;
A existência de vício de falta de fundamentação das liquidações;
A preterição da formalidade essencial consistente em notificar a Requerente sujeito passivo para o exercício do direito de audição prévia, nos termos do artigo 60º, nº 1 da Lei Geral Tributária.
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A. FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES
1º: A Requerente foi notificada, ao longo do ano de 2013, para proceder ao pagamento de 87 liquidações de IUC respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, e referentes a 34 veículos, cujo registo de propriedade constava em seu nome;
3º: A Requerente emitiu faturas relativas à venda dos 34 veículos a que dizem respeito as liquidações de IUC impugnadas;
4º: A Requerente registou na sua contabilidade o recebimento do preço relativo às faturas emitidas;
5º: A Requerente exerceu o direito de audição prévia em relação à liquidação de IUC n.º 2009…, sobre o veículo com a matrícula …-…-… e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros.
6º A Requerente não exerceu o direito de audição prévia em relação a nenhuma das restantes 86 liquidações oficiosas de IUC;
7º A Requerente não foi notificada para exercer o direito de audição prévia em relação a nenhuma das 87 liquidações impugnadas.
Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.
B. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Quanto à interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo
Sobre esta questão e nos exatos termos em que é aqui colocada se pronunciou o Tribunal arbitral, que integrámos como vogal, constituído no processo n.º 63/2014-T. Por considerarmos aplicar-se no caso vertente tudo o que se diz na referida pronúncia a respeito desta questão, reproduzimos aqui o seu teor, aderindo à doutrina aí defendida:
“Dispõe o artigo 3º do CIUC:
Artigo 3.º
Incidência subjetiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.
Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”
A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).
A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito ativo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)
Mas o Regulamento do Registo Automóvel contém um regime especial para entidades que se dediquem à atividade comercial de venda de veículos automóveis, em vigor desde 2008. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.
Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).
O registo deve ser efetuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).
O atual IUC está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.
Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.
A AT-Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respetivos proprietários para efeitos de liquidação do imposto.
Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.
Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data das liquidações, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.
Mas, uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária, responsável pela administração dos impostos, não tinha como saber nem da existência das alegadas transmissões de propriedade nem da identidade dos alegados adquirentes.
A Administração Tributária adotou o único procedimento que podia adotar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.
Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efectiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.
A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?
Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?
A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.
A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do registo automóvel.
Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.
Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).
Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.
A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.
Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas
O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos do direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei”.
Há, pois, que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.
Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?
E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exatamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atrativa, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?
A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjetiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.
Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjetiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjetiva.
É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.
Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjetiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte direto (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).
E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto”.
Tem, pois, razão a Requerente no que diz respeito à interpretação do art.º 3º do CIUC, no sentido de que aí se consagra uma presunção sobre quem é proprietário do veículo, mas nada mais.
Como todas as presunções em matéria de incidência tributária, tal presunção é ilidível, por força do art.º 73º da LGT.
2. Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente
A fim de ilidir a presunção do art.º 3º do IUC, a Requerente tem de provar “o contrário”, i.e, que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários.
Vejamos então:
A Requerente propõe-se provar, segundo resulta da petição inicial, que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.
Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Requerente apresenta:
Cópias de contratos de aluguer de longa duração dos veículos;
Faturas relativas à venda dos veículos;
Extractos contabilísticos dos lançamentos relativos ao recebimento do preço da venda dos mesmos veículos.
Os contratos de aluguer de longa duração têm uma função probatória secundária. Servem apenas para mostrar que a alienação se segue a um contrato de aluguer de longa duração, com as consequências que essa circunstância terá ao nível do preço a pagar pelo adquirente.
Quanto à transmissão da propriedade, a prova que interessa considerar é a formada pelas faturas de venda e pelos extratos de conta de cliente. Tratando-se de documentos unilaterais e internos, com os quais se pretende negar a veracidade de factos provados por uma prova legal - a presunção decorrente do registo - levanta-se aqui uma questão de direito probatório material, que cumpre analisar.
Esta questão foi igualmente resolvida na decisão arbitral acima citada, cuja doutrina subscrevemos inteiramente e que passamos a transcrever:
“O Código Civil (CC) trata as presunções a propósito das “provas”. As presunções constituem, portanto, meio de prova.
São definidas no art.º 349º do CC como as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
O CC distingue entre presunções legais, às quais se refere o art.º 350º, e presunções judiciais, tratadas por sua vez no art.º 351º.
A presunção judicial (comum ou de homem) consiste no raciocínio, originado por uma regra de experiência, através do qual, com base num facto conhecido, o julgador deduz um facto desconhecido.
As duas espécies de presunções mencionadas têm força probatória distinta. E por terem força probatória distinta, a sua ilisão obedece também a regras diferentes, sendo a ilisão da presunção legal mais exigente.
Com efeito, estipula o art.º 342º, n.º 1 do CC que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. É a regra geral sobre o ónus da prova.
O art.º 346º do CC, sob a epígrafe “contraprova”, determina que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”
Ou seja, recaindo sobre uma das partes ónus probatório, à parte contrária basta opor “contraprova”, sendo esta uma prova destinada a tornar duvidosos os factos alegados pela primeira. E basta a formação desta dúvida, para que a questão seja decida contra a parte onerada com a prova. Como afirma Anselmo de Castro, A., “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 163, a consequência do ónus probatório é que a parte sobre quem o mesmo recai deve suportar as desvantagens da incerteza que permaneça sobre os factos que tenta provar.
Ora, de acordo com o art.º 350 do CC, a parte a favor da qual exista uma presunção legal, a qual constitui prova plena, não tem de provar o facto a que ela conduz. Não tem, portanto, quanto a esse facto, qualquer ónus probatório.
Nesta situação, a ilisão da presunção obedecerá já não à regra do art. 346º, mas à regra do art.º 347º do CC: “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto”.
O que significa que não basta à parte contrária opor “contraprova” – a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos – que torne os factos presumidos duvidosos. Ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são verdadeiros.
Voltando à contraposição entre presunção judicial e presunção legal, enquanto a primeira é uma prova simples, não definitiva, baseada nos dados da experiência e cuja apreciação se deixa à prudência do julgador, as presunções legais são provas legais ou vinculadas, que não dependem da livre apreciação do tribunal. Pelo contrário, a sua força probatória, legalmente tabelada, proporciona ao juiz uma verdade formal (cf. Domingos de Andrade, M, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1976, p. 280).
Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.
O que a impugnante se propõe provar, segundo resulta dos autos, é que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.
Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Impugnante apresenta:
- Faturas relativas à venda dos veículos em causa;
- Extratos contabilísticos dos lançamentos relativos ao recebimento do preço da venda dos mesmos veículos.
Torna-se, assim, necessário analisar que valor deve ser reconhecido a estes elementos para provar a transmissão da propriedade dos veículos por parte da Requerente.
Para isso deverá começar por se aflorar a questão da força probatória do registo automóvel.
O registo automóvel é um registo público, que tem a finalidade de “dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico” (art.º 1º do Cód. do Registo Automóvel (CRA)). Na noção de segurança do comércio jurídico cabe, evidentemente, o exercício de direitos por parte de terceiros com base nos factos registados.
Como se afirma no acórdão do TRL de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da atualização do registo face ao facto publicitado”.
Ora, o que a Requerente pretende nestes autos não é meramente ilidir uma presunção fiscal. É ilidir a presunção de veracidade dos factos que se encontram registados publicamente, e que se encontram registados para finalidades de interesse público, presunção esta da qual qualquer pessoa deve poder valer-se, sob pena de inutilidade do registo.
Em condições de cumprimento da lei, a ilisão da presunção de veracidade do registo é muito simples. Quando ocorre a compra e venda de um veículo, é preenchido um documento destinado ao registo automóvel – preenchimento que não constitui formalidade essencial do negócio – e que contém uma declaração de ambas as partes quanto à celebração do contrato (conforme o artigo 25º, n.º 1, alíneas a) e b) do DL n.º 55/75).
Este documento é um instrumento particular bilateral, porque assinado por ambas as partes do contrato. E precisamente porque a compra e venda de uma coisa móvel é um negócio não formal, aos serviços do Registo Automóvel basta este instrumento particular como prova para se proceder à alteração do registo. O vendedor pode então promover o registo em nome do adquirente, munido de uma simples cópia dessa declaração.
Mas já referimos também que, se o vendedor é uma entidade que se dedica ao comércio de veículos automóveis, este pode promover o registo, em nome do adquirente, através de um simples requerimento, conforme previsto no art.º 25, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel.
O que a Requerente apresenta como prova, porém – faturas não assinadas pelo comprador e cópias de extratos contabilísticos de conta de cliente – são unicamente documentos particulares, de carácter comercial, e unilaterais, i.e., para emissão dos quais não se verificou qualquer intervenção do comprador. O que significa que o comprador pode negar que a fatura corresponda a qualquer negócio efetivamente celebrado, invalidando com isso qualquer valor probatório da fatura e não lhe sendo exigido, sequer, produzir qualquer contraprova nesse sentido (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8).
A estes documentos particulares, por serem unilaterais, não pode reconhecer-se senão um valor probatório muito limitado.
Mesmo no âmbito das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio – campo que é, como se sabe, aquele em que os documentos comerciais e a escrita comercial têm maior valor probatório – a faturação comercial e a escrita comercial não fazem prova plena, podendo até mesmo o comerciante proprietário dos livros produzir prova em contrário dos seus próprios lançamentos (STJ, Acórdão de 18-10-2007, Proc. n.º 06B3818).
Se um comerciante A – continuando a colocar-nos no âmbito das relações comerciais – pretendendo fazer prova de que vendeu a B, apesenta faturas por si emitidas, B, que sustenta a inexistência do negócio jurídico, apenas precisa de negar a materialidade dos factos vertidos nessas faturas, para que reverta sobre o vendedor o ónus de provar por outros meios a existência do contrato (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8, no qual se afirma: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas faturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega (alegação da apelante); dos documentos não resulta que a apelada tenha encomendado à apelante a mercadoria constante das faturas juntas (…)”)
Se é assim no plano das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio, que valor pode ser atribuído a este tipo de documentos no âmbito de relações com terceiros não comerciantes?
Sobre esta matéria, também se têm pronunciado os tribunais superiores. Assim, num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-11-2009 (TRL, Acórdão de 26-11-2009, Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respetivo subscritor”.
E num outro acórdão do mesmo Tribunal, com maior acuidade para a questão decidenda, pois que se refere exatamente ao valor da fatura comercial como prova da existência de um contrato com determinada pessoa, diz-se que “a exigência de um pagamento por fatura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade faturada” (TRL, Acórdão de 5-6 -2008, Proc. 1586/2008-8).
Tudo o que foi dito para a fatura vale, por sua vez, para os extratos contabilísticos. Um extrato contabilístico é, também ele, um documento particular (não autêntico) e unilateral, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado contrato.
Resumindo, a Requerente apresenta, apenas, documentos unilaterais e internos, aos quais a jurisprudência tem reconhecido um muito reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático.
Em face do exposto, é forçoso concluir que a Requerente não logrou provar a transmissão da propriedade dos veículos sobre cuja propriedade recaíram as liquidações de IUC impugnadas”.
Prossegue a decisão citada:
“Mas entende este Tribunal que, neste caso, como já ficou dito acima, o que a Requerente teria de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, pois é este o facto que resulta da presunção registal.
Para isso não bastaria provar que, um dia, há vários anos, havia celebrado um contrato de compra e venda de um veículo, pois ainda que esse contrato tivesse sido celebrado, a propriedade de algum veículo poderia ter retornado à titularidade da Requerente. Ou seja, provar que A, no ano 2001, alienou o bem X, não implica deixar provado que A, no ano 2011, não é proprietário do bem X.
Assim, a Requerente teria de provar que não era proprietária dos veículos à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o atual proprietário.
Não se diga que se trata, neste caso, de uma diabolica probatio. Esta prova seria fácil de fazer, bastando à Requerente atualizar o registo, para o que tem a legitimidade como vendedor – e não só a legitimidade como a obrigação, desde 2001, à luz do Código da Estrada – promovendo o registo dos veículos em nome do comprador, através de um simples requerimento, nos termos do artigo 25º, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel (preceitos que estabelecem um regime especial de promoção do registo para entidades que comercializam veículos automóveis).
Diabolica probatio seria, neste caso, em nosso entender e discordando neste ponto de anteriores pronúncias arbitrais, a exigida à Administração Fiscal, se esta, para se valer da presunção que decorre quer do art.º 7º do Código do Registo Predial, quer do art.º 3º, n.º 1 do CIUC, tivesse de apresentar contraprova que pusesse em causa a verdade material das faturas apresentadas, quando a administração não tem qualquer meio para o fazer.
A tese da Requerente, no que diz respeito à parte probatória, pretendendo neutralizar a prova legal que constitui o registo mediante a apresentação de documentos unilaterais, que têm valor probatório diminuto no âmbito do direito probatório material, implicaria tornar impossível à administração fiscal administrar o Imposto Único de Circulação.
E o certo é que, da valência em contencioso tributário dos princípios do inquisitório ou da investigação e da livre apreciação das provas, e ainda do princípio da aquisição processual, decorre que, inexistindo embora um ónus da prova formal, a cargo, especial ou exclusivamente, de algum dos participantes processuais, releva sobremodo neste campo um ónus da prova substancial, objetivo, ou material, no sentido de que a decisão tem de desfavorecer naturalmente quem não consiga ver materialmente provados os factos em que assenta a sua posição (cf. a este respeito Vieira de Andrade, J. C., “Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do Curso de 1995/96”, Coimbra, 1996, p. 186; e Saldanha Sanches, J. L., “O Ónus da Prova no Processo Fiscal”, Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal n.º 151, pp. 122 e ss.).
Resumindo, a prova apresentada pela Requerente é constituída, exclusivamente, por documentos particulares, unilaterais e internos, com um valor insuficiente para, à luz do direito probatório material, negar a validade de factos – a propriedade de veículos – sobre os quais existe uma prova legal – uma presunção legal – que isenta a Requerida de qualquer ónus probatório, e que não é contrariável através de mera contraprova, que lance dúvida sobre os factos provados pela presunção”.
Atenta a argumentação expendida, e que aqui se acolhe inteiramente, impõe-se concluir que a Requerente não logra ilidir a presunção que sobre ela impende sobre a titularidade da propriedade dos veículos objeto das liquidações impugnadas, resultante do facto de a propriedade se encontrar registada em seu nome.
Não procede, portanto, a alegada ilegalidade das liquidações impugnadas por erro nos pressupostos de direito.
3. Questão da violação do dever de fundamentação
Segundo ficou provado pela documentação junta ao processo, a Requerente exerceu o direito de audição prévia, apenas, em relação à liquidação de IUC n.º 2009…, sobre o veículo com a matrícula …-…-… e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros.
Na pronúncia então por si apresentada, a Requerente alegou, tal como nos presentes autos, que não tinha a propriedade do veículo em causa, por o mesmo ter sido alienado. Nessa pronúncia, a Requerente identificava o alegado adquirente e juntava, como prova, a fatura relativa à venda.
A Requerente alega na petição inicial que não recebeu qualquer resposta a esta pronúncia por si efetuada em sede de audição prévia e que a liquidação definitiva não continha qualquer referência aos elementos por si aduzidos, o que se prova também pela análise do processo administrativo.
Estabelece o art.º 60º, n.º 1 al. a) da LGT que “A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido contrário, por (…) (al. a) direito de audição antes da liquidação”. Por sua vez, o n.º 2 da mesma disposição legal enumera os casos em que a audição prévia é dispensada, inferindo-se que, fora dos casos excecionados, a audição prévia antes da liquidação é obrigatória.
No caso vertente, não se verificam as situações de exceção enumeradas no n.º 2 do art.º 60º, pelo que se conclui que a audição prévia era obrigatória.
No caso da liquidação em apreço, a Requerente exerceu o direito de audição prévia, apresentado à Autoridade Tributária uma pronúncia escrita.
Quando assim acontece, determina o n.º 7 do mesmo artigo 60º, que “os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos necessariamente em conta na fundamentação da decisão”. Tal significa que, na decisão definitiva, a administração fiscal tem de se pronunciar, por sua vez, sobre os elementos levados ao seu conhecimento pelo contribuinte.
Tal pronúncia, da administração fiscal, é de extrema importância para o sujeito passivo, por várias razões. A primeira delas é que obriga a administração fiscal a analisar os argumentos do sujeito passivo, à luz do direito e dos factos, constituindo uma oportunidade para a administração alterar a sua posição (STA, acordão de 14-05-2003, proc. nº 0317/03).
Outra razão da importância desta resposta, não menos relevante, é que através dela o sujeito passivo fica a conhecer a posição da administração fiscal sobre os argumentos por si apresentados. Mediante esse conhecimento, o sujeito passivo, por seu turno, avalia a viabilidade da sua posição numa eventual impugnação judicial.
Essa reavaliação pode ser determinante para a sua decisão de impugnar contenciosamente o ato, mas será também determinante para a estratégia a adotar numa eventual impugnação contenciosa.
Desta forma, a não observância do disposto no n.º 7 do art.º 60º da LGT é altamente lesiva dos direitos e interesses dos contribuintes.
Mas ainda que assim não fosse, a violação do disposto no n.º 7 do art.º 60º da LGT constituiria, sempre, uma violação de uma formalidade essencial, causadora de invalidade do ato.
Procede, assim, a alegada ilegalidade da liquidação em apreço, por preterição de formalidade essencial.
4. Preterição da formalidade de notificação para exercício do direito de audição prévia
O art. 267º, nº. 5 da Constituição da República Portuguesa, após a revisão introduzida pela lei constitucional nº1/2001, consagra o direito de todos os cidadãos participarem na formação das decisões ou deliberações da Administração que lhes disserem respeito.
A Lei Geral Tributária, dando expressão ao preceito constitucional, enumera, no seu art. 60º, um conjunto de situações em que a participação dos contribuintes na formação da decisão do procedimento de liquidação se concretiza através da audição prévia.
Desde que ocorra qualquer das hipóteses previstas no preceito legal, é obrigatória a audição do contribuinte, sob pena de ser preterida formalidade essencial do procedimento tributário, que afetará a decisão que nele for tomada (acórdão do STA de 14-05-2003, proc. nº 317/2013).
Para que esse direito seja exercido, dispõe o nº 4 do art. 60º que o contribuinte deve ser notificado através de carta registada enviada para o seu domicílio. E nessa carta deve ser-lhe comunicado um projeto de decisão (nº 5 do mesmo art. 60º) e não uma decisão já definitiva.
Por sua vez, o n.º 2 da mesma disposição legal enumera os casos em que a audição prévia é dispensada. No caso vertente, não se verificam as situações de exceção enumeradas no n.º 2 do art.º 60º, pelo que se conclui que a audição prévia era obrigatória.
A falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário suscetível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada (art.163º, nº 1 do C.P. Administrativo).
Ora, nos casos em apreço, não foi efetivamente efetuada comunicação à Requerente para exercício do direito de audição prévia. O que foi comunicado à Requerente, em todas as 87 liquidações impugnadas, foi uma decisão definitiva. A consequência desta omissão é a invalidade das liquidações nos termos do artigo art.163º, nº 1 do C.P. Administrativo, já citado.
5. Direito da Requerente à restituição do imposto pago e a juros indemnizatório
Uma vez anulado o ato de liquidação, a Requerente tem direito ao reembolso de todas as importâncias pagas em conformidade com o ato de liquidação inválido e anulado (art. 100º da LGT).
Quanto ao direito a juros indemnizatórios, a matéria encontra-se regulada no artigo 43º da LGT, onde se determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine (…) que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento de dívida tributária em montante superior ao devido”.
O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que a expressão “erro imputável aos serviços” se refere a “erro” e não a “vício,” e que daqui há que concluir que a norma abrange apenas os erros sobre os pressupostos de facto ou de direito “que levaram a Administração a uma ilegal definição da relação jurídica tributária do contribuinte, não abrangendo os vícios formais ou procedimentais que, ferindo, embora, de ilegalidade o ato, não implicam, necessariamente, uma errónea definição daquela relação” (acórdão STA de 27-06-07, proc. nº 80/07).
O vício de violação do direito de audição prévia e de falta de fundamentação, na medida em que integram os invocados vícios formais ou procedimentais, não são abrangidos pelo “erro imputável aos serviços”.
Logo, a anulação dos atos de liquidação com base nestes vícios não confere à Requerente o direito a receber juros indemnizatórios.
V. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, o presente Tribunal decide:
1. Declarar ilegal e anular, por vício de falta de fundamentação, a liquidação de Imposto Único de Circulação n.º 2009…, sobre o veículo com a matrícula …-…-… e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros.
2. Declarar ilegal e anular, por violação do direito de audição prévia, os restantes atos de liquidação impugnados.
3. Condenar a Requerida AT – Autoridade Tributária e Aduaneira a efetuar à Requerente o reembolso do total das quantias de imposto pagas referentes às liquidações impugnadas, no valor de 7.266,84 euros.
Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 7.266,84 euros.
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 2 de novembro de 2016
O Árbitro
(Nina Aguiar)
Decisão arbitral
I - RELATÓRIO
A… – Lda., pessoa colectiva n.º … – anteriormente designada por B… , Lda., pessoa colectiva n.º …, e também por C…, Unipessoal Lda., pessoa colectiva n.º … – doravante designada por Requerente, requereu, em 18-02-2014, ao abrigo do disposto no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), dos art.ºs 132º e 99º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e dos n.ºs 1 e 2, al. d) do art.º 95º da Lei Geral Tributária, a constituição de tribunal arbitral, tendo apresentado na mesma data um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista a:
Anulação dos actos de liquidação do Imposto Único de Circulação identificados a páginas 5 e 6 da petição inicial;
Condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do montante do imposto relativo a tais liquidações, no valor de 7 266,84 euros;
Condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios sobre os mesmos montantes.
A Requerente alega, no essencial, o seguinte:
As viaturas sobre as quais incidiu o IUC liquidado não eram, à data dos factos tributários que deram origem às liquidações impugnadas, propriedade da Requerente;
Não eram tais viaturas propriedade da Requerente por terem sido por ela alienadas;
Não sendo proprietária das viaturas à data dos factos tributários, a Requerente não pode ficar sujeita ao imposto nas datas respectivas;
Nos termos do artigo 6.º, n.º 1 do CIUC, o facto gerador do imposto é “(…) constituído pela propriedade do veículo”;
De acordo com o artigo 3.º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC): “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas (…) em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. Embora nesta disposição se utilize o termo “considerando-se”, enquanto no anterior regime de tributação automóvel (Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de Dezembro), se utilizava a expressão “presumindo-se”, as duas expressões são equivalentes, do que deve concluir-se que o n.º 1 do art.º 3º, ao dizer que se consideram como proprietários dos veículos as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, contém uma presunção legal em matéria de incidência tributária;
Existem inúmeros exemplos de normas que, utilizando os termos “considera-se” ou “consideram-se”, consagram inequivocamente presunções, como o art.º 45º, n.º 6 e o art.º 89º-A, n.º 4 da LGT, o art.º 243º, n.º 3 do Código Civil ou o art.º 59º, n.º 5 do Código da Propriedade Industrial, pelo que o termo em causa no art.º 3º, n.º 1 do CIUC não implica que não se trate de uma presunção;
Nesse sentido se pronunciaram já diversas decisões de tribunais arbitrais, como a proferida no processo n.º 27/2013-T;
No sentido de que o art.º 3º do CIUC consagra uma presunção milita também o espírito da lei, que se identifica, neste caso, especialmente, com o princípio da equivalência que preside ao IUC, o qual por sua vez decorre da finalidade do imposto, que é a de tributar os utilizadores de veículos automóveis pelo custo ambiental que tal utilização provoca;
O artigo 73.º da LGT proíbe a existência de presunções inilidíveis no domínio das normas de incidência tributária, pelo que, sendo o art.º 3º, n.º1 do CIUC uma norma de incidência, não poderá a presunção aí estabelecida não se considerar ilidível;
Ora, os veículos sobre os quais a Autoridade Tributária efectuou as liquidações de IUC impugnadas foram alienados anteriormente aos períodos a que dizem respeito as liquidações de imposto, pelo que a Requerente já não preenchia os pressupostos da incidência subjectiva a essas datas, por não ser já a proprietária dos veículos;
O facto de o registo não se encontrar actualizado não releva para se considerar a Requerente como proprietária e, consequentemente, como sujeito passivo do IUC em relação aos veículos em questão;
Nos termos do art.º 408º do Código Civil (CC) a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato. E nos casos de venda no âmbito de um contrato de aluguer de longa duração, com o pagamento das prestações de aluguer e do preço do valor residual, ocorre a transmissão da propriedade;
O registo da aquisição junto da competente Conservatória do Registo Automóvel não é condição para a transmissão da propriedade, nem afecta a sua validade;
A Requerente considera que a alienação dos veículos se encontra provada através das facturas relativas à venda e dos extractos dos saldos de conta, através dos quais se verifica que foram efectuados os respectivos pagamentos pelos adquirentes;
Efectuada prova da alienação dos veículos, há que considerar ilidida a presunção do art.º3º, n.º 1 do CIUC quanto à titularidade da propriedade dos veículos;
Embora o artigo 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao Registo Automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipule que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”, a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira não pode ser considerada terceiro para efeitos de registo.
A Requerente invoca ainda, em favor de um juízo de ilegalidade das liquidações por erro nos pressupostos de direito, o princípio da uniformidade na aplicação do direito, invocando a jurisprudência arbitral coincidente com a tese defendida por si;
As liquidações padecem ainda do vício de violação do dever de fundamentação, pois, tendo a Requerente exercido o direito de audição prévia, nos termos do art.º 60º, n.º1, al. a) do Lei Geral Tributária (LGT), a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira não incluiu na fundamentação do acto definitivo de liquidação fundamentação relativa aos elementos novos suscitados pela Requerente nessa pronúncia, conforme estava obrigada nos termos do n.º 7 daquele mesmo preceito.
Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:
Os actos tributários impugnados encontram-se devidamente fundamentados.
O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados;
O legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter usado;
Por outro lado, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência, de localização, entre muitos outros;
A título exemplificativo, a Requerida aponta os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;
No caso do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, por exemplo, o legislador tributário, não presume que “há lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, na outorga do contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual” a terceiro, o legislador fiscal expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT;
Do mesmo modo, no caso do artigo 17.º do CIRC, o legislador também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período, mas sim que estes se consideram como tal;
Aliás, grande parte das normas de incidência em sede de IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado como rendimento, para efeitos deste imposto, por contraposição com o que de acordo com as normas contabilísticas é rendimento do período, pelo que, caso se entendesse que ao usar a expressão “considera-se”, o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas, precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exactamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas. A ser assim, frustrar-se-ia todo o efeito útil das referidas normas;
Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados] as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;
Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem;
Em face desta redacção, não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel;
O referido entendimento corresponde ao adoptado na jurisprudência dos nossos tribunais, tendo sido sufragado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no Processo n.º …/13.0BEPNF;
O referido entendimento é o único que, atendendo ao elemento sistemático da interpretação, é compatível com a unidade do regime do IUC;
A interpretação que a Requerente faz do art.º 3º é violadora do princípio da confiança e da segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
A Requerente não consegue fazer prova de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros, porque os documentos apresentados como prova não têm força probatória suficiente para ilidir a presunção registal.
No dia 15 de Julho de 2014 realizou-se, nas instalações do Centro de Arbitragem Administrativa, a reunião prevista no artigo 18º do RJAT.
Nesta reunião, as partes prescindiram de apresentar alegações.
II – SANEAMENTO
Este Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 24.04.2014, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as respectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.
A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n. 1 do RJAT.
Não foram identificadas nulidades no processo.
Não existem excepções nem questões prévias de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.
III – QUESTÕES A DECIDIR
São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:
A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;
A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efetiva ilisão no caso dos autos;
A existência de vício de falta de fundamentação das liquidações.
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A. FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES
1º: A Requerente foi notificada, ao longo do ano de 2013, para proceder ao pagamento de 87 liquidações de IUC respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, e referentes a 34 veículos, cujo registo de propriedade constava em seu nome;
3º: A Requerente emitiu facturas relativas à venda dos 34 veículos a que dizem respeitos as liquidações de IUC impugnadas;
4º: A Requerente registou na sua contabilidade o recebimento do preço relativo às faturas emitidas;
5º: A Requerente exerceu o direito de audição prévia em relação à liquidação de IUC n.º 2009…, sobre o veículo com a matrícula … e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros.
Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.
B. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Quanto à interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo
Sobre esta questão e nos exactos termos em que é aqui colocada se pronunciou o Tribunal arbitral, que integrámos como vogal, constituído no processo n.º 63/2014-T. Por considerarmos aplicar-se no caso vertente tudo o que se diz na referida pronúncia a respeito desta questão, reproduzimos aqui o seu teor, aderindo à doutrina aí defendida:
“Dispõe o artigo 3º do CIUC:
Artigo 3.º
Incidência subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.
Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”
A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).
A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito activo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)
Mas o Regulamento do Registo Automóvel contém um regime especial para entidades que se dediquem à actividade comercial de venda de veículos automóveis, em vigor desde 2008. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.
Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).
O registo deve ser efectuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).
O actual IUC está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.
Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.
A AT-Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respectivos proprietários para efeitos de liquidação do imposto.
Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.
Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data das liquidações, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.
Mas uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária, responsável pela administração dos impostos, não tinha como saber nem da existência das alegadas transmissões de propriedade nem da identidade dos alegados adquirentes.
A Administração Tributária adoptou o único procedimento que podia adoptar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.
Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efectiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.
A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?
Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?
A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.
A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do registo automóvel.
Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.
Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).
Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.
A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.
Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas
O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.
Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.
Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?
E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exactamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atractiva, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?
A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjectiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.
Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva.
É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.
Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).
E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto”.
Tem, pois, razão a Requerente no que diz respeito à interpretação do art.º 3º do CIUC, no sentido de que aí se consagra uma presunção sobre quem é proprietário do veículo, mas nada mais.
Como todas as presunções em matéria de incidência tributária, tal presunção é ilidível, por força do art.º 73º da LGT.
2. Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente
A fim de ilidir a presunção do art.º 3º do IUC, a Requerente tem de provar “o contrário”, i.e, que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários. Também no que diz respeito à questão da ilisão da presunção do art.º 3º do CIUC
Vejamos então:
A Requerente propõe-se provar, segundo resulta da petição inicial, que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.
Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Requerente apresenta:
Cópias de contratos de aluguer de longa duração dos veículos;
Facturas relativas à venda dos veículos;
Extractos contabilísticos dos lançamentos relativos ao recebimento do preço da venda dos mesmos veículos.
Os contratos de aluguer de longa duração, têm uma função probatória secundária. Servem apenas para mostrar que a alienação se segue ao um contrato de aluguer de longa duração, com as consequências que essa circunstância terá ao nível do preço a pagar pelo adquirente.
Quanto à transmissão da propriedade, a prova que interessa considerar é a formada pelas facturas de venda e pelos extractos de conta de cliente. Tratando-se de documentos unilaterais e internos, com os quais se pretende negar a veracidade de factos provados por uma prova legal - a presunção decorrente do registo - levanta-se aqui uma questão de direito probatório material, que cumpre analisar.
Esta questão foi igualmente resolvida na decisão arbitral acima citada, cuja doutrina subscrevemos inteiramente e que passamos a transcrever:
“O Código Civil (CC) trata as presunções a propósito das “provas”. As presunções constituem, portanto, meio de prova.
São definidas no art.º 349º do CC como as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
O CC distingue entre presunções legais, às quais se refere o art.º 350º, e presunções judiciais, tratadas por sua vez no art.º 351º.
A presunção judicial (comum ou de homem) consiste no raciocínio, originado por uma regra de experiência, através do qual, com base num facto conhecido, o julgador deduz um facto desconhecido.
As duas espécies de presunções mencionadas têm força probatória distinta. E por terem força probatória distinta, a sua ilisão obedece também a regras diferentes, sendo a ilisão da presunção legal mais exigente.
Com efeito, estipula o art.º 342º, n.º 1 do CC que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. É a regra geral sobre o ónus da prova.
O art.º 346º do CC, sob a epígrafe “contraprova”, determina que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”
Ou seja, recaindo sobre uma das partes ónus probatório, à parte contrária basta opor “contraprova”, sendo esta uma prova destinada a tornar duvidosos os factos alegados pela primeira. E basta a formação desta dúvida, para que a questão seja decida contra a parte onerada com a prova. Como afirma Anselmo de Castro, A., “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 163, a consequência do ónus probatório é que a parte sobre quem o mesmo recai deve suportar as desvantagens da incerteza que permaneça sobre os factos que tenta provar.
Ora, de acordo com o art.º 350 do CC, a parte a favor da qual exista uma presunção legal, a qual constitui prova plena, não tem de provar o facto a que ela conduz. Não tem, portanto, quanto a esse facto, qualquer ónus probatório.
Nesta situação, a ilisão da presunção obedecerá já não à regra do art. 346º, mas à regra do art.º 347º do CC: “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto”.
O que significa que não basta à parte contrária opor “contraprova” – a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos – que torne os factos presumidos duvidosos. Ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são verdadeiros.
Voltando à contraposição entre presunção judicial e presunção legal, enquanto a primeira é uma prova simples, não definitiva, baseada nos dados da experiência e cuja apreciação se deixa à prudência do julgador, as presunções legais são provas legais ou vinculadas, que não dependem da livre apreciação do tribunal. Pelo contrário, a sua força probatória, legalmente tabelada, proporciona ao juiz uma verdade formal (cf. Domingos de Andrade, M, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1976, p. 280).
Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.
O que a impugnante se propõe provar, segundo resulta dos autos, é que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.
Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Impugnante apresenta:
- Facturas relativas à venda dos veículos em causa;
- Extractos contabilísticos dos lançamentos relativos ao recebimento do preço da venda dos mesmos veículos.
Torna-se, assim, necessário analisar que valor deve ser reconhecido a estes elementos para provar a transmissão da propriedade dos veículos por parte da Requerente.
Para isso deverá começar por se aflorar a questão da força probatória do registo automóvel.
O registo automóvel é um registo público, que tem a finalidade de “dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico” (art.º 1º do Cód. do Registo Automóvel (CRA)). Na noção de segurança do comércio jurídico cabe, evidentemente, o exercício de direitos por parte de terceiros com base nos factos registados.
Como se afirma no acórdão do TRL de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da actualização do registo face ao facto publicitado”.
Ora, o que a Requerente pretende nestes autos não é meramente ilidir uma presunção fiscal. É ilidir a presunção de veracidade dos factos que se encontram registados publicamente, e que se encontram registados para finalidades de interesse público, presunção esta da qual qualquer pessoa deve poder valer-se, sob pena de inutilidade do registo.
Em condições de cumprimento da lei, a ilisão da presunção de veracidade do registo é muito simples. Quando ocorre a compra e venda de um veículo, é preenchido um documento destinado ao registo automóvel – preenchimento que não constitui formalidade essencial do negócio – e que contém uma declaração de ambas as partes quanto à celebração do contrato (conforme o artigo 25º, n.º 1, alíneas a) e b) do DL n.º 55/75).
Este documento é um instrumento particular bilateral, porque assinado por ambas as partes do contrato. E precisamente porque a compra e venda de uma coisa móvel é um negócio não formal, aos serviços do Registo Automóvel basta este instrumento particular como prova para se proceder à alteração do registo. O vendedor pode então promover o registo em nome do adquirente, munido de uma simples cópia dessa declaração.
Mas já referimos também que, se o vendedor é uma entidade que se dedica ao comércio de veículos automóveis, este pode promover o registo, em nome do adquirente, através de um simples requerimento, conforme previsto no art.º 25, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel.
O que a Requerente apresenta como prova, porém – facturas não assinadas pelo comprador e cópias de extractos contabilísticos de conta de cliente – são unicamente documentos particulares, de carácter comercial, e unilaterais, i.e., para emissão dos quais não se verificou qualquer intervenção do comprador. O que significa que o comprador pode negar que a factura corresponda a qualquer negócio efectivamente celebrado, invalidando com isso qualquer valor probatório da factura e não lhe sendo exigido, sequer, produzir qualquer contraprova nesse sentido (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8).
A estes documentos particulares, por serem unilaterais, não pode reconhecer-se senão um valor probatório muito limitado .
Mesmo no âmbito das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio – campo que é, como se sabe, aquele em que os documentos comerciais e a escrita comercial têm maior valor probatório – a facturação comercial e a escrita comercial não fazem prova plena, podendo até mesmo o comerciante proprietário dos livros produzir prova em contrário dos seus próprios lançamentos (STJ, Acórdão de 18-10-2007, Proc. n.º 06B3818).
Se um comerciante A – continuando a colocar-nos no âmbito das relações comerciais – pretendendo fazer prova de que vendeu a B, apesenta facturas por si emitidas, B, que sustenta a inexistência do negócio jurídico, apenas precisa de negar a materialidade dos factos vertidos nessas facturas, para que reverta sobre o vendedor o ónus de provar por outros meios a existência do contrato (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8, no qual se afirma: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas facturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega (alegação da apelante); dos documentos não resulta que a apelada tenha encomendado à apelante a mercadoria constante das facturas juntas (…)”)
Se é assim no plano das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio, que valor pode ser atribuído a este tipo de documentos no âmbito de relações com terceiros não comerciantes?
Sobre esta matéria, também se têm pronunciado os tribunais superiores. Assim, num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-11-2009 (TRL, Acórdão de 26-11-2009, Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respectivo subscritor”.
E num outro acórdão do mesmo Tribunal, com maior acuidade para a questão decidenda, pois que se refere exactamente ao valor da factura comercial como prova da existência de um contrato com determinada pessoa, diz-se que “a exigência de um pagamento por factura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade facturada” (TRL, Acórdão de 5-6 -2008, Proc. 1586/2008-8).
Tudo o que foi dito para a factura vale, por sua vez, para os extractos contabilísticos. Um extracto contabilístico é, também ele, um documento particular (não autêntico) e unilateral, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado contrato.
Resumindo, a Requerente apresenta, apenas, documentos unilaterais e internos, aos quais a jurisprudência tem reconhecido um muito reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático.
Em face do exposto, é forçoso concluir que Requerente não logrou provar a transmissão da propriedade dos veículos sobre cuja propriedade recaíram as liquidações de IUC impugnadas”.
Prossegue a decisão citada:
“Mas entende este Tribunal que, neste caso, como já ficou dito acima, o que a Requerente teria de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, pois é este o facto que resulta da presunção registal.
Para isso não bastaria provar que, um dia, há vários anos, havia celebrado um contrato de compra e venda de um veículo, pois ainda que esse contrato tivesse sido celebrado, a propriedade de algum veículo poderia ter retornado à titularidade da Requerente. Ou seja, provar que A, no ano 2001, alienou o bem X, não implica deixar provado que A, no ano 2011, não é proprietário do bem X.
Assim, a Requerente teria de provar que não era proprietária dos veículos à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o actual proprietário.
Não se diga que se trata, neste caso, de uma diabolica probatio. Esta prova seria fácil de fazer, bastando à Requerente actualizar o registo, para o que tem a legitimidade como vendedor – e não só a legitimidade como a obrigação, desde 2001, à luz do Código da Estrada – promovendo o registo dos veículos em nome do comprador, através de um simples requerimento, nos termos do artigo 25º, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel (preceitos que estabelecem um regime especial de promoção do registo para entidades que comercializam veículos automóveis).
Diabolica probatio seria, neste caso, em nosso entender e discordando neste ponto de anteriores pronúncias arbitrais, a exigida à Administração Fiscal, se esta, para se valer da presunção que decorre quer do art.º 7º do Código do Registo Predial, quer do art.º 3º, n.º 1 do CIUC, tivesse de apresentar contraprova que pusesse em causa a verdade material das facturas apresentadas, quando a administração não tem qualquer meio para o fazer.
A tese da Requerente, no que diz respeito à parte probatória, pretendendo neutralizar a prova legal que constitui o registo mediante a apresentação de documentos unilaterais, que têm valor probatório diminuto no âmbito do direito probatório material, implicaria tornar impossível à administração fiscal administrar o Imposto Único de Circulação.
E o certo é que, da valência em contencioso tributário dos princípios do inquisitório ou da investigação e da livre apreciação das provas, e ainda do princípio da aquisição processual, decorre que, inexistindo embora um ónus da prova formal, a cargo, especial ou exclusivamente, de algum dos participantes processuais, releva sobremodo neste campo um ónus da prova substancial, objectivo, ou material, no sentido de que a decisão tem de desfavorecer naturalmente quem não consiga ver materialmente provados os factos em que assenta a sua posição (cf. a este respeito Vieira de Andrade, J. C., “Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do Curso de 1995/96”, Coimbra, 1996, p. 186; e Saldanha Sanches, J. L., “O Ónus da Prova no Processo Fiscal”, Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal n.º 151, pp. 122 e ss.).
Resumindo, a prova apresentada pela Requerente é constituída, exclusivamente, por documentos particulares, unilaterais e internos, com um valor insuficiente para, à luz do direito probatório material, negar a validade de factos – a propriedade de veículos – sobre os quais existe uma prova legal – uma presunção legal – que isenta a Requerida de qualquer ónus probatório, e que não é contrariável através de mera contraprova, que lance dúvida sobre os factos provados pela presunção”.
Atenta a argumentação expendida, e que aqui se acolhe inteiramente, impõe-se concluir que a Requerente não logra ilidir a presunção que sobre ela impende sobre a titularidade da propriedade dos veículos objecto das liquidações, resultante do facto de a propriedade se encontrar registada em seu nome.
Não procede, portanto, a alegada ilegalidade das liquidações impugnadas por erro nos pressupostos de direito.
3. Questão da violação do dever de fundamentação
Segundo ficou provado pela documentação junta ao processo, a Requerente exerceu o direito de audição prévia, apenas, em relação à liquidação de IUC n.º 2009…, sobre o veículo com a matrícula … e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros.
Na pronúncia então por si apresentada, a Requerente alegou, tal como nos presentes autos, que não tinha a propriedade do veículo em causa, por o mesmo ter sido alienado. Nessa pronúncia, a Requerente identificava o alegado adquirente e juntava, como prova, a factura relativa à venda.
A Requerente alega na petição inicial que não recebeu qualquer resposta a esta pronúncia por si efectuada em sede de audição prévia e que a liquidação definitiva não continha qualquer referência aos elementos por si aduzidos, o que se prova também pela análise do processo administrativo.
Estabelece o art.º 60º, n.º 1 al. a) da LGT que “A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido contrário, por (…) (al. a) direito de audição antes da liquidação”. Por sua vez, o n.º 2 da mesma disposição legal enumera os casos em que a audição prévia é dispensada, inferindo-se que, fora dos casos excepcionados, a audição prévia antes da liquidação é obrigatória.
No caso vertente, não se verificam as situações de excepção enumeradas no n.º 2 do art.º 60º, pelo que se conclui que a audição prévia era obrigatória.
No caso da liquidação em apreço, foi concedido à Requerente prazo para o exercício do direito de audição prévia, tendo a Requerente exercido tal direito.
Quando assim acontece, determina o n.º 7 do mesmo artigo 60º, que “os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos necessariamente em conta na fundamentação da decisão”. Tal significa que, na decisão definitiva, a administração fiscal tem de se pronunciar, por sua vez, sobre os elementos levados ao seu conhecimento pelo contribuinte.
Tal pronúncia, da administração fiscal, é de extrema importância para o sujeito passivo, por várias razões. A primeira delas é que obriga a administração fiscal a analisar os argumentos do sujeito passivo, à luz do direito e dos factos, constituindo uma oportunidade para a administração alterar a sua posição.
Outra razão da importância desta resposta, não menos relevante, é que através dela o sujeito passivo fica a conhecer a posição da administração fiscal sobre os argumentos por si apresentados. Mediante esse conhecimento, o sujeito passivo, por seu turno, avalia a viabilidade da sua posição numa eventual impugnação judicial.
Essa reavaliação pode ser determinante para a sua decisão de impugnar contenciosamente o acto, mas será também determinante para a estratégia a adoptar numa eventual impugnação contenciosa.
Desta forma, a não observância do disposto no n.º 7 do art.º 60º da LGT é altamente lesiva dos direitos e interesses dos contribuintes.
Mas ainda que assim não fosse, a violação do disposto no n.º 7 do art.º 60º da LGT constituiria, sempre, uma violação de uma formalidade essencial, causadora de invalidade do ato.
Procede, assim, a alegada ilegalidade da liquidação em apreço, por preterição de formalidade essencial.
4. Do direito a juros indemnizatórios
A declaração da ilegalidade e consequente anulação de um acto administrativo confere ao destinatário do acto o direito à reintegração da situação em que o mesmo se encontraria não fora a prática e a execução do acto anulado.
No caso de uma liquidação de imposto, a sua anulação confere ao sujeito passivo o direito à restituição do imposto pago e, em regra, o direito a juros indemnizatório, nos termos do art.º 43º.
Porém, tem sido entendimento sancionado pelos tribunais superiores que o direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT, derivado de anulação judicial de um acto de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à administração tributária (Acórdão do STA de 22.5.2014, Processo n.º 245/13).
De acordo com o mesmo entendimento, a anulação de um acto de liquidação baseada na violação do princípio da participação, por a administração fiscal não ter levado em conta os elementos novos fornecidos pela contribuinte em sede do exercício do direito de audição, não implica a existência de qualquer erro sobre os pressupostos de facto ou de direito do acto de liquidação, pelo que não existe o direito de juros indemnizatórios a favor do contribuinte, previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT.
Sendo assim, não tem a Requerente direito a juros indemnizatórios sobre o montante de imposto pago referente à liquidação anulada.
V. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, o presente Tribunal decide:
4. Declarar ilegal e anular, por preterição de formalidade essencial, a liquidação de Imposto Único de Circulação n.º 2009…, sobre o veículo com a matrícula … e respeitante ao ano de 2009, no valor de 51,30 euros.
5. Julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade de todos os restantes actos de liquidação impugnados.
Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 7.266,84 euros.
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo:
Da Requerente: 607,70 euros
Da Requerida: 4, 30 euros
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 15 de Setembro de 2014
O Árbitro
(Nina Aguiar)