DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Nuno Cunha Rodrigues, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 16.04.2019, decide nos termos que seguem:
I. RELATÓRIO
1. A..., contribuinte número..., residente em...–..., ..., Grã-Bretanha, (doravante designada por “Requerente”), apresentou, em 05/02/2019, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com a alínea a) do art. 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida AT).
2. A Requerente pede a declaração de ilegalidade do ato de liquidação n.º 2018... relativo a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do exercício de 2016, no valor de € 3.322,69 (três mil trezentos e vinte e dois euros e sessenta e nove cêntimos).
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 06-02-2019 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.
4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 27-03-2019 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 16-04-2019.
7. Atendendo a que não existia necessidade de produção de prova adicional, para lá da prova documental já incorporada nos autos, nem matéria de excepção sobre as quais as partes carecessem de se pronunciar, e que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º do RJAT, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT bem como a apresentação de alegações escritas pelas partes.
8. Foi fixado o dia 31 de maio de 2019 para a prolação de decisão final.
9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
10. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
11. O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
II. DO PEDIDO DA REQUERENTE:
A Requerente solicita a declaração de ilegalidade do ato de liquidação relativo a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do exercício de 2016 por entender que a Requerida AT, ao considerar na liquidação de IRS a totalidade da mais-valia realizada pela Requerente, aplicou o disposto no artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS o qual, por sua vez, viola os artigos 18.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante TFUE).
III. DA RESPOSTA DA REQUERIDA AT:
Em resposta, a Requerida AT considera que, para efeitos de incidência (no que toca à matéria das mais-valias) relevam os artigos 9.° e 10.° do Código do IRS pelo que o disposto no n.º 2 do artigo 43.° do Código do IRS não pode ser aplicável ao caso sub judice.
Mais entende que, após a decisão proferida no Acórdão C-443/06 do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11 (Hollmann), o legislador nacional procedeu à adaptação da legislação nacional à decisão ali sufragada, aditando ao artigo 72.º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (atual n.º 9) e o n.º 8 (atual n.º 10).
Considera ainda a Requerida AT que a Requerente podia ter optado pela tributação desses rendimentos (mais-valias) à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º do Código do IRS, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, sendo que a determinação da taxa teria em conta todos os rendimentos incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes, o que não fez.
Acrescenta ainda que a Requerente podia ter optado, como o fez, pela taxa autónoma de 28%, conforme previsto no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.
Conclui a Requerida AT que a alteração operada por via da introdução dos atuais n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º do Código do IRS, veio permitir que, tanto residentes como não residentes, beneficiem do regime previsto no artigo 43.º, n.º 2 (consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor), do mesmo Código, desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território.
IV. MATÉRIA DE FACTO:
A. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
-
A Requerente reside ...–..., ..., Grã- Bretanha, nunca tendo residido em Portugal;
-
A mãe da Requerente faleceu em 11-09-2014 e era titular de 50% do valor da fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “I”, correspondente ao terceiro piso do prédio sito na Rua..., nº ..., ... e ..., ..., freguesia de ..., concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo..., com o valor patrimonial de € 70.840,00;
-
Por via de sucessão de sua mãe, coube 33,33% dessa metade a requerente, no valor de € 11.806,66 (33,33% x ½ € 70.840,00), que foi mencionado como valor de aquisição reportado ano de 2014 no Anexo J da Declaração Mod 3 – IRS de 2016.
-
O pai da Requerente faleceu em 05-06-2015 e era titular de 66,66% do valor da fracção autónoma acima referenciada;
-
Por via de sucessão do pai, coube 50% dessa fração de 66,66% à Requerente, com o valor de € 23.613,34 (50,00% x 66,66% de € 70.840,00), que foi mencionado como valor de aquisição reportado ano de 2015 no Anexo J da Declaração Mod 3 – IRS de 2016.
-
Deste modo, no cômputo geral, o valor de aquisição mencionado no Anexo J da Declaração Mod 3 – IRS de 2016, importou em € 35.420,00.
-
Em 10-05-2016, a Requerente alienou a sua parte correspondente a 50% do bem supra descrito por € 49.750,00;
-
Em 9 de Outubro de 2018 a Requerente submeteu, na qualidade de sujeito passivo não residente, a declaração modelo 3 de IRS de 2016, mencionando no anexo G a alienação de 50% do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de ... (...) sob o artigo...
-
Os valores de realização, de aquisição e de despesas e encargos declarados foram, respectivamente, de € 49.750,00, € 35.420,00 e € 3.075.00, a que corresponde uma mais-valia de € 11.255,00.
-
No quadro 8 da declaração de IRS de 2016, a Requerente optou pelo Regime Geral, assinalando o campo 07.
-
A Requerida AT efectuou a correspondente liquidação de IRS, constando da respectiva demonstração o rendimento global de € 11.255,00 e o valor a pagar de € 3.322,69, sendo € 3.151,40 de imposto e € 171,29 de juros compensatórios; a respectiva nota de cobrança foi emitida em 25-10-2018 e o prazo de pagamento terminou em 26 de Novembro de 218.
B. Factos não provados
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.
C. Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada.
V. DO DIREITO:
A. Do pedido de Reenvio Prejudicial formulado pela Requerida AT:
Na resposta, a Requerida AT sugeriu que as questões discutidas no presente processo fossem objeto de reenvio prejudicial para resposta pelo TJUE (cfr. artigo 44.º da resposta).
A este propósito sempre se poderá reafirmar o seguinte.
O instituto do reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.º do TFUE, pode ser utilizado por este Tribunal Arbitral como, aliás, já foi reconhecido pelo TJUE no processo C-377/13, de 12 de junho de 2014.
Nestes termos, e de acordo com o referido artigo 267.º, sempre que uma questão sobre a interpretação dos Tratados ou sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
Dito de outra forma, os tribunais nacionais – onde se inclui, naturalmente, este Tribunal – devem proceder ao reenvio de questões prejudiciais, conforme previsto no artigo 267.º do TFUE - em consequência de questões ou dúvidas relativas à validade ou interpretação de normas de direito da União Europeia.
Tal significa que, não se suscitando quanto às normas em questão quaisquer dúvidas ou tendo as mesmas sido já esclarecidas pelo TJUE – considerando, nomeadamente a chamada “teoria do acto claro” (cfr. acórdão do TJUE CILFIT, de 6 de outubro de 1982, processo C-283/81) –, não devem os tribunais nacionais proceder ao reenvio prejudicial.
Assim, se já existir (i) jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou (ii) quando o modo correto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco, um órgão jurisdicional nacional pode “decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece”.[1]
No caso sub judice, entende-se não ser necessário proceder ao reenvio ao TJUE de supostas dúvidas sobre interpretação de normas de Direito da União Europeia para que este Tribunal profira a decisão.
B. Questão decidenda:
A questão decidenda prende-se, essencialmente, com a compatibilidade com o Direito da União Europeia (em particular, a liberdade de circulação de capitais, estabelecida no artigo 63.º do TFUE) da não aplicação do regime de exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias em 50%, conforme previsto no artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, a residentes fiscais noutro Estado-membro da União Europeia.
Está em causa um eventual conflito de norma interna – o artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS - com o Direito da União Europeia, devendo aquela ser desaplicada pela Requerida AT se contrária a este, de acordo com o Princípio do primado ou da primazia do Direito da União Europeia (cfr., por exemplo, acórdão Fratelli Constanzo, proc. 103/88 do TJUE).
Vejamos.
Em sede de IRS, determina a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS que, «Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (…), sendo o ganho constituído pela diferença entre o valor da realização e o valor de aquisição, líquidos das partes qualificada como rendimento de capitais (…)» (cfr. n.º 4 do artigo 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, doravante Código do IRS).
No que respeita à tributação de não residentes em território português, o artigo 13.º, n.º 1 do Código do IRS dispõe que «Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos», acrescentando o artigo 15.º, n.º 2 do mesmo diploma legal que, quanto aos não residentes, aquele imposto «incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português».
Assim sendo, de acordo com o artigo 18.º, n.º 1, alínea h) do Código do IRS, as mais-valias resultantes da transmissão de imóveis nele situados constituem rendimentos obtidos em território português.
De harmonia com a declaração de rendimentos da Requerente, a Requerida AT liquidou o imposto, à taxa de 28%, prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 72.º do Código do IRS.
Determina este normativo o seguinte: “Taxas especiais” «1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %: a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;».
A taxa de 28% foi aplicada à totalidade do rendimento global o que determinou um imposto a pagar no valor de € 3.322,69 (três mil trezentos e vinte e dois euros e sessenta e nove cêntimos).
C. Da compatibilidade do regime nacional de tributação de mais-valias imobiliárias com o Direito da União Europeia:
O artigo 63.º, n.º 1 do TFUE apresenta a livre circulação de capitais como elemento estruturante do processo de integração europeia, determinando-se que «são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros».
Por outro lado, o artigo 65.º do TFUE estabelece o seguinte:
«1 – O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infracções às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2 – O disposto no presente Capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com o presente Tratado.
3 – As medidas e procedimentos a que se referem os n. os 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º». (nosso sublinhado).
Observe-se ainda que, de harmonia com o disposto no artigo 18.º do TFUE, «No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação.»
É ao abrigo do disposto nestes artigos do TFUE, que a Requerente invoca a desconformidade da legislação fiscal portuguesa com a legislação da União Europeia.
Entende a Requerente que o tratamento conferido pela legislação portuguesa a residentes e não residentes na tributação de mais-valias imobiliárias configura uma discriminação indireta em razão da nacionalidade contrária ao disposto nos artigos 63.º e seguintes do TFUE.
Em face da consideração das mais-valias pela sua totalidade, a tributação só tem regimes diferenciados em função da residência ou não residência do beneficiário, não se vislumbrando qualquer razão justificativa, material ou formal, para a diferenciação dos regimes impositivos.
Com efeito, e na perspetiva material residentes e não residentes encontram-se, no caso de tributação de mais-valias imobiliárias, em situação claramente idêntica.
Por outro lado, é comumente aceite que uma operação de liquidação de um investimento imobiliário está abrangido pela liberdade de circulação de capitais.
Ora no caso de venda de um bem imóvel sito em Portugal, ocorrendo a realização de mais-valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos.
Com efeito, enquanto a um não residente é aplicada uma taxa de 28% sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria coletável correspondente às mais-valias realizadas por um residente permite que este beneficie sistematicamente, a esse título, de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 48%.
Este regime torna a transferência de capitais menos atrativa para os não residentes constituindo uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE.
Esta diferença de tratamento não pode ser justificada em função da verificação de qualquer das exceções previstas no artigo 65.º do TFUE não podendo a discriminação da norma nacional daí decorrente ser justificável pelo objetivo de evitar penalizar os residentes (que se encontram sujeitos a uma tabela de taxas progressivas que podem ser muito superiores e são tributados sobre uma base mundial, ao contrário dos não residentes, que são tributados à taxa proporcional de 28%, não ocorrendo o englobamento), porque, sendo o escalão mais elevado 48%, conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento coletável do residente, não existindo, objetivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos.
Observe-se que a cláusula de salvaguarda contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE deve ser interpretada de forma estrita no sentido de permitir o tratamento diferenciado apenas entre contribuintes que não estejam na mesma posição, referindo-se à residência e à não residência como critério distintivo.
Resultando da leitura do artigo 65º do TJUE que pode, até, ocorrer uma discriminação entre residentes e não residentes, desde que esta não seja arbitrária e não constitua uma restrição dissimulada ao movimento de capitais devendo o âmbito de aplicação ser interpretado em conjugação com o disposto no n.º 3 do artigo 65.º do TFUE, na medida em que as medidas e procedimentos adotados ao abrigo da cláusula de salvaguarda não possam, também eles, constituir uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais.
D. A jurisprudência do TJUE sobre tributação de mais-valias imobiliárias:
Especificamente em relação à matéria sub judice, o TJUE teve já oportunidade de se pronunciar sobre a compatibilidade da norma contida no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS com o princípio da livre circulação de capitais.
No acórdão Hollmann, de 11.10.2007 - Processo C-443/06, proferido pelo TJUE concluiu-se que a norma nacional, contida no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, viola o artigo 63.º do TJUE (antigo artigo 56º do TUE), por revestir carácter discriminatório (menos favorável) para os não residentes e ser, em consequência, restritiva da liberdade de circulação de capitais entre Estados membros.
Esta conclusão assenta nos seguintes argumentos principais, inteiramente aplicáveis ao caso em que se aprecia neste Tribunal arbitral.
-
Uma operação de liquidação de um investimento imobiliário constitui um movimento de capitais, prevendo o Tratado uma norma específica que proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais;
-
No caso de venda de um bem imóvel sito em Portugal, ocorrendo a realização de mais-valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos;
-
Enquanto a um não residente é aplicada uma taxa de 25% [em 2016 – 28%] sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria coletável correspondente às mais-valias realizadas por um residente permite que este beneficie sistematicamente, a esse título, de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 42% [em 2016 – 48%];
-
Este regime torna a transferência de capitais menos atrativa para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado;
-
A discriminação da norma nacional não é justificável pelo objetivo de evitar os residentes (que se encontram sujeitos a uma tabela de taxas progressivas que podem ser muito superiores e são tributados sobre uma base mundial, ao contrário dos não residentes, que são tributados à taxa proporcional de 25% [em 2016 – 28%], não ocorrendo o englobamento), porque, como acima salientado, sendo o escalão mais elevado 42% [em 2016 – 48%] conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento coletável do residente, não existindo, objetivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos.
-
A necessidade de garantir a coerência do regime fiscal nacional não se apresenta como razoável para permitir a restrição propugnada pelo artigo 43.º, n.º 2 do CIRS.
Concluindo o TJUE que o artigo 56.º CE (atual artigo 63.º do TFUE) deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel.
Assim sendo, o disposto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, ao limitar a tributação a 50% do saldo apurado entre mais-valias e menos-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal e não para os não residentes, para efeitos de determinação da matéria coletável em IRS, “constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 56.º CE” (atual artigo 63.º do TFUE).
Nessa sequência, o Supremo Tribunal Administrativo (no processo n.º 439/06) veio, igualmente, a decidir pela incompatibilidade deste normativo nestes termos: «o n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, (…) que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no art. 56.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia.»
Mais recentemente, o STA pronunciou-se, novamente, sobre a questão da divergência de regimes de tributação em função de os sujeitos passivos residirem ou não no território nacional tendo o Tribunal concluído no mesmo sentido (cfr. Acórdão do STA, de 3/02/2016 (Processo n.º 1172/14)).
Lê-se no sumário do acórdão (o qual acompanha na integra a fundamentação do processo n.º 439/06):
«I- As disposições do Tratado CE, que rege a União Europeia, prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
II- É incompatível com o direito comunitário, porquanto limita os movimentos de capitais que o artigo 56 do Tratado CE consagra, o disposto no nº 2 do artigo 43 do CIRS, por não aplicação aos residentes fora do território nacional a limitação de tributação a 50% das mais-valias realizadas que estatui para os residentes no território nacional.»
E. A aplicação da jurisprudência ao caso sub judice:
A Requerente tem o direito a ver anulada a parte da liquidação que se encontra viciada (cfr. Acórdão do STA, de 30/04/2013 (Processo n.º 1374/12) e Acórdão do STA, de 2/12/2015 (Processo n.º 754/15).
A questão de direito que aqui se coloca já foi, inclusivamente, objeto de decisão pelos tribunais arbitrais a funcionar junto do CAAD, indo a jurisprudência uniforme no sentido de considerar a tributação de mais-valias obtidas por não residentes ilegal por incompatibilidade do número 2 do artigo 43.º do CIRS com o artigo 63.º do TFUE, dado que restringe a tributação 50% das mais-valias a cidadãos residentes (cfr. Processos n.-os 45/2012-T (5/07/2012), 127/2012-T (14/05/2013), 748/2015-T (27/07/2016), 89/2017-T (5/07/2017), 520/2017 (4/06/2018), 617/2017.T (22/06/2018) e 644/2017-T (30/05/2018).
Por fim, observa a Requerida AT que, após a prolação do Acórdão Hollmann, foi introduzido no sistema tributário português uma opção de equiparação com a qual se pretendia afastar o juízo de discriminação do TJUE sobre a previsão restritiva do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS aplicável aos sujeitos passivos residentes.
Assim, a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2008), introduziu os n. os 7 e 8 do artigo 72.º do Código do IRS estabelecendo um regime opcional de equiparação dos não residentes (estes devendo ser residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu) aos residentes.
Posteriormente, face à remuneração operada pela Lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro estes dispositivos passaram a n.ºs 9 e 10, dispondo à data, 2017, o seguinte:
«9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.
10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.».
Sucede que a existência deste regime não afasta a invalidade do regime discriminatório ainda em vigor e que foi aplicado à liquidação de IRS em causa.
De facto, atualmente, em matéria de tributação dos rendimentos resultantes das mais-valias provenientes da alienação de direitos reais sobre imóveis situados em Portugal, por não residentes neste território, mas residentes noutro Estado membro da União Europeia ou Espaço Económico Europeu, resulta do disposto nos n.ºs 1 e 8 do artigo 72.º do Código do IRS que, coexistem dois regimes fiscais:
-
O regime que sujeita os rendimentos a uma taxa especial de 28% e
-
O regime equiparado ao que vigora para os sujeitos passivos residentes em território português, segundo o qual, os mesmos rendimentos são sujeitos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, tomando-se em consideração, neste regime, todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora de Portugal, mantendo-se em vigor a disposição constante do nº 2 do citado artigo 43.º do Código do IRS.
Porém, a previsão deste regime facultativo faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não sendo a opção de equiparação suscetível de excluir a discriminação em causa.
Na realidade, o regime de equiparação atualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o caráter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal.
Neste sentido, o TJUE considerou, no Acórdão Gielen, de 18/03/2010 (Processo C-440/08), num caso de evidente paralelismo (ainda que naquele acórdão estivesse em causa a violação do artigo 49.º), o seguinte:
-
«a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (…) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório», frisando que essa escolha não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.».
-
«o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (…) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.° TFUE em razão do seu carácter discriminatório».
-
O Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (…) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes».
Esta orientação tem sido acolhida no CAAD, nomeadamente, nos Processos n. os 45/2012-T, 127/2012-T, 748/2015-T, e 89/2017-T.
Em particular, no Processo 127/2012-T considerou-se que «(…) a opção que é dada a um sujeito passivo residente na União Europeia ou espaço económico europeu entre um regime que continua a ser discriminatório, por violação do disposto art. 63.º da TFUE e um outro alegadamente não discriminatório, equiparando-os com os residentes no território português, para além de terem a obrigação de optar e de declarar os rendimentos auferidos fora daquele território, não exclui nem neutraliza os efeitos discriminatórios do primeiro daqueles dois regimes.”
Concluindo aquele aresto que «ao se reconhecer que os referidos efeitos não são eliminados, estar-se-á a admitir que a referida opção valida um regime fiscal que continua em si mesmo a violar o artigo 63.º do TFUE, pelos motivos acima enunciados, o que não se coaduna com o direito comunitário.»
Repare-se que foi a própria AT que, perante a declaração de rendimentos da Requerente, liquidou o imposto, à taxa de 28%, prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 72.º do Código do IRS, considerando a totalidade da mais-valia realizada por aquele e não apenas sobre 50% daquela, nos termos prescritos do n.º 2 do artigo 43.º do mesmo diploma legal, numa interpretação e aplicação desta disposição legal que não está em conformidade, quer com o Direito da União Europeia, na qual se inclui a jurisprudência comunitária, quer ainda com a jurisprudência portuguesa judicial e arbitral.
Neste sentido, veja-se, ainda, o acórdão proferido pelo STA, de 22/03/2011 (Processo n.º 1013/10), “foi a Administração Fiscal que, perante a declaração dos contribuintes, lhes liquidou o imposto que considerou devido (como aliás sempre sucede no IRS): à taxa prevista para os não residentes (25%, nos termos do artigo 72.º n.º 1 do Código do IRS) e sobre o montante total da mais-valia realizada e não apenas sobre 50% deste valor (artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS), assim ignorando a jurisprudência comunitária e a deste Supremo Tribunal que a acolheu (cfr. o Acórdão de 16 de Janeiro de 2008, rec. n.º 439/06) quanto à incompatibilidade daquela disposição legal, assim aplicada, com o (então) artigo 56.º do TJCE (actual artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), sujeitando deste modo, como veio a acontecer, a ver anulada nessa parte a liquidação impugnada, dado o primado do direito comunitário”.
Consequentemente, a existência deste regime, meramente opcional, para além de criar um ónus adicional nos contribuintes não residentes face aos residentes – o qual consiste na necessidade do exercício dessa opção não afasta a invalidade do regime discriminatório ainda vigor e que foi aplicado à liquidação de IRS ora impugnada.
Adicionalmente sempre se diga que a Requerida AT não está totalmente dependente do que lhe é apresentado pelo contribuinte existindo vários exemplos em que à administração é conferida a possibilidade de corrigir o que lhe é submetido à apreciação (cfr. artigos 19.º, n.º 9; 36.º. n.º 4 e 79.º, n.º 2 todos da Lei Geral Tributária e art.º 48.º, n.º 1 do CPPT).
Nestes termos o ato de liquidação de IRS número 2018... relativo a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do exercício de 2016, no valor de € 3.322,69 (três mil trezentos e vinte e dois euros e sessenta e nove cêntimos) é ilegal, devendo proceder o vício de violação de lei invocado pela Requerente, por manifesta incompatibilidade do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS com os artigos 18.º e 63.º do TFUE, na parte em que restringe a redução das mais-valias sujeitas a IRS a 50% apenas aos sujeitos passivos que são residentes em Portugal devendo, em consequência, a liquidação ser anulada.
F. Dos juros indemnizatórios:
A Requerente procedeu ao pagamento do imposto apurado no montante de € 3.322,69 (três mil trezentos e vinte e dois euros e sessenta e nove cêntimos).
Acontece, como vimos supra, que a liquidação está inquinada por vício de violação de lei, tendo o montante em causa sido pago indevidamente.
Nos termos do disposto no artigo 100.º da LGT a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.
O ato de liquidação é da inteira responsabilidade da Requerida AT tendo conduzido a um pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido estando, pois, inquinado por vício de violação da lei, tendo sido praticado por erro imputável aos serviços, pelo que a Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Com efeito, nos termos do artigo 43.º da LGT são devidos juros indemnizatórios quando exista erro imputável aos serviços de que resulta pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Os juros indemnizatórios são devidos, desde a data do pagamento sendo calculados com base no respetivo valor, até à integral devolução à Requerente, à taxa legal, nos termos dos artigos, artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil, à taxa legal em vigor.
VI. DECISÃO
Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral:
a. Anular parcialmente a liquidação em crise, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total da mais-valia imobiliária.
b. Condenar a Requerida AT na restituição do valor de imposto indevidamente pago.
c. Condenar a Requerida AT no pagamento de juros indemnizatórios, desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento da liquidação até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado.
d. Condenar a Requerida AT no pagamento das custas do processo.
VII. Valor do processo:
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 3.322,69 (três mil trezentos e vinte e dois euros e sessenta e nove cêntimos).
VIII. Custas:
Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida AT.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 22 de maio de 2019
O Árbitro Singular
Nuno Cunha Rodrigues