Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 536/2018-T
Data da decisão: 2019-04-30  Selo  
Valor do pedido: € 494.919,60
Tema: Terrenos para construção - Verba 28.º da TGIS.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

A...– FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO, com domicílio na ... pela sua entidade gestora B... - SOCIEDADE GESTORA DE FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO, S.A., sociedade com sede na ..., n.º..., ...-..., Lisboa, com o número único de matrícula e de pessoa coletiva..., doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e segs. do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, em conjugação com os artigos 99.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

A Requerente deduziu PEDIDO DE CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL com vista à declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto do Selo (IS) n.ºs 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., todas datadas de 25/05/2018, solicitando ao Tribunal Arbitral:

a)            A anulação dos referidos actos tributários e, em consequência,

b)           O reembolso do montante de imposto pago, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios, calculados à taxa legal em vigor.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 30/10/2018 e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do prazo.

 

Em 18/12/2018 as partes foram notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 9 de Janeiro de 2019.

 

Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.

Para fundamentar o seu pedido o Requerente alega, em suma, que:

A)           Em 31/12/2014 e 31/12/2015 era proprietário de dois prédios urbanos afectos à indústria;

B)           Em Junho de 2013 submeteu à apreciação da Câmara Municipal de Lisboa um pedido de informação prévia relativa a uma operação de loteamento para edificações destinadas a comércio, serviços e turismo;

C)           A Câmara Municipal de Lisboa proferiu decisão favorável condicionada do pedido de informação prévia;

D)           No seguimento da resposta emitida pela CML e tendo em vista a correcção das respectivas áreas, procedeu à apresentação de declarações Modelo I de IMI referentes aos citados prédios;

E)            Nas avaliações efectuadas pela AT em consequência da submissão da referida Modelo I de IMI, e para cálculo do Valor Patrimonial Tributário (VPT) dos prédios em causa, foi aplicado o coeficiente 1,00, que corresponde ao coeficiente de habitação e emitidas as liquidações de IMI aqui contestadas;

F)            Considera que as liquidações em apreço padecem de ilegalidade na medida em que as construções a edificar nos prédios urbanos sub judice não serão afetas à habitação, razão pela qual a propriedade dos prédios urbanos em apreço não se encontra abrangida pelo âmbito de incidência objetiva da Verba 28.1 da TGIS;

G)           Adicionalmente, entende que, da ratio da Verba 28.1 da TGIS, resulta inequívoco que o legislador não pretendeu tributar a propriedade de prédios urbanos com afetação habitacional, nem de terrenos para construção, quando afetos ao exercício de uma actividade económica;

H)           Considera, por fim, que o IS sobre a propriedade nos termos definidos na Verba 28.1 da TGIS enferma de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da igualdade e da progressividade previstos nos artigos 13.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 3, todos da CRP.

A Requerida apresentou Resposta e juntou o processo administrativo. Na Resposta apresentada, a Requerida apresentou defesa por excepção e por impugnação nos termos que, a seguir, sucintamente, se descrevem:

A)           Considera que o  Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para a apreciação do pedido de declaração da inconstitucionalidade material da Verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), o que constitui excepção dilatória conducente à absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT;

B)           Sem prescindir, afirma que, consultando a caderneta predial que está na base da presente liquidação, verifica-se que os terrenos para construção estão afectos à habitação;

C)           Os prédios urbanos que sejam terrenos para construção e aos quais tenha sido atribuída a afectação habitacional no âmbito das respectivas avaliações, constando tal afectação das respectivas matrizes, estão sujeitos a Imposto do Selo;

D)           A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro que alterou o artigo 1.º do Código do Imposto do Selo, aditou à Tabela Geral deste imposto a Verba 28.1, passando o imposto a incidir também sobre a propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a €.1.000.000,00;

E)            Não existindo, em sede de IS, definição do que se entende por “prédio urbano”, “terreno para construção” e “afectação habitacional”, é necessário recorrer subsidiariamente ao Código do IMI;

F)            Nos termos deste compêndio legal, a afectação do imóvel (aptidão ou finalidade) é um coeficiente que concorre para a avaliação do imóvel, na determinação do respectivo valor patrimonial tributário, aplicável aos terrenos para construção;

G)           O legislador não se refere a “prédio destinado a habitação”, tendo optado antes pela noção “afectação habitacional”, expressão diferente e mais ampla, cujo sentido se vai encontrar na necessidade de integrar outras realidades para além das identificadas no artigo 6.º, n.º 1, alínea a) do Código do IMI;

H)           Entende ainda que a interpretação por si propugnada decorre do elemento lógico de interpretação;

I)             Defende, por fim, que não se verifica a inconstitucionalidade da referida norma por violação do princípio da igualdade, na medida em que, para além de se aplicar indistintamente a todos os titulares de imóveis com afectação habitacional de valor superior a €.1.000.000,00, a norma em causa constitui um mecanismo de obtenção da receita, o qual apenas seria censurável, face ao princípio da proporcionalidade, se resultasse manifestamente indefensável o que, na sua perspectiva, não sucede no caso em apreço.

Notificada, em 13/02/2019, para, ao abrigo do princípio do contraditório previsto na alínea a) do artigo 16.º do RJAT, se pronunciar sobre a excepção invocada pela Requerida, respondeu a Requerente em 25/02/2019 pugnando pela improcedência da mesma.

Em 02/03/2019, o Tribunal Arbitral proferiu despacho a dispensar da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a conceder às partes o prazo de 15 dias para apresentação de Alegações. Foi ainda fixado o dia 09 de Julho de 2019 como data limite para prolacção da decisão.

Em 22/03/2019 e 04/04/2019, respectivamente, as partes apresentaram as respectivas Alegações onde mantêm, no essencial, as posições vertidas no pedido de constituição de Tribunal Arbitral e na Resposta.

II. SANEAMENTO

1.            Pressupostos Processuais

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cfr. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

A cumulação de pedidos é admissível pois estamos perante as mesmas circunstâncias de facto e a interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito (cfr. artigo 3.º, n.º 1 do RJAT).

O processo não enferma de nulidades.

2.            Da excepção invocada pela Autoridade Tributária

A Requerida suscita a excepção da incompetência material porque o presente Tribunal é, na sua óptica, incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido de declaração da inconstitucionalidade material da Verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

Diga-se, desde já, que não lhe assiste razão.

Em primeiro lugar cumpre esclarecer que a Requerente se limita a arguir a ilegalidade da liquidação impugnada por desconformidade da Verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo por violação de normas Constitucionais, e não propriamente a pedir a declaração de inconstitucionalidade daquela norma.

É verdade que a Requerida se encontra diretamente subordinada à Lei e tem de agir em conformidade com a mesma. Porém, tal não prejudica o direito dos particulares (e da própria Autoridade Tributária) a suscitarem, nos litígios submetidos em concreto a julgamento dos tribunais, a inconstitucionalidade de determinadas normas ou interpretações das mesmas, nem tão pouco pode impedir os tribunais, incluindo os arbitrais, de apreciarem as questões de inconstitucionalidade, que lhes sejam colocadas, aplicando ou desaplicando as normas em causa, no exercício dos poderes constitucionalmente conferidos (cfr. os artigos 204.º, 209.º e 280.º da CRP).

Trata-se, como se referiu no Acórdão do CAAD datado de 07/01/2016 e proferido no âmbito do processo 321/2015-T, “de um controlo difuso, concreto e incidental, nos termos do qual a norma legal que fundamenta o ato de liquidação pode ser julgada inconstitucional e, consequentemente, desaplicada no caso concreto, fundamentando assim a ilegalidade derivada do ato de liquidação – ilegalidade no sentido de ilegitimidade jurídica, por se fundamentar, neste caso, na violação da Constituição, e derivada, por não se tratar de um vício intrínseco ao próprio acto, mas sim de um vício do qual o mesmo acaba por enfermar na sua génese em razão do vício originário de inconstitucionalidade de que padece a norma que é sua condição de validade”.

É, no fundo, o controlo previsto no artigo 204.º da CRP, segundo o qual os tribunais podem desaplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. E é um controlo que o presente Tribunal Arbitral, por constituir uma das categorias de tribunais à luz do regime jurídico-constitucional vigente (ex vi o n.º 2 do artigo 209.º da CRP), pode levar a efeito no âmbito do controlo de legalidade dos actos tributários supra mencionados e que, note-se, tem até repercussão legal expressa no artigo 25.º do RJAT.

Diga-se, de resto, que este entendimento encontra-se perfeitamente sedimentado na Jurisprudência do CAAD – cfr. a título de exemplo, os Acórdãos do CAAD datados de 2016-01-07, 04/05/2018 e 2018-12-13 e proferidos, respectivamente, no âmbito dos Processos n.ºs 312/2015-T, 675/2017-T e 212/2018-T.

Improcede, assim, a alegada excepção.

III.   FUNDAMENTAÇÃO

A. DE FACTO

1. Factos Provados

Com relevância para os presentes autos consideram-se provados os seguintes factos:

A)           A Requerente é um fundo de investimento fechado que investe em ativos imobiliários;

B)           Em 31/12/2014 e 31/12/2015 era proprietária dos seguintes prédios urbanos:

(i)           Prédio urbano constituído por terreno para construção, sito na Rua ..., no concelho de Lisboa, freguesia do ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...; e

 (i)          Prédio urbano constituído por terreno para construção, sito na Rua ..., no concelho de Lisboa, freguesia do ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...; 

C)           Nos anos de 2014 e 2015, os referidos prédios encontravam-se afetos à indústria;

D)           Em 06/06/2013 a Requerente submeteu à apreciação da Câmara Municipal de Lisboa um pedido de informação prévia de uma operação de loteamento para os prédios urbanos supra identificados e que visava a realização de uma operação de loteamento para edificações destinadas a comércio, serviços e turismo.

E)            A Câmara Municipal de Lisboa proferiu decisão favorável condicionada do pedido de informação prévia onde se refere, nomeadamente, o seguinte:

“4 - No total são propostos 68 132 m2 de superfície de pavimento que corresponde a um índice de edificabilidade de 1,5, distribuindo-se por serviços com 39 395 m2, turismo com 6460 m2 e comércio com 22 277 m2;”

F)            Em 09/06/2017, a Requerente apresentou um pedido de Licenciamento de Operação de Loteamento que incluía os prédios acima referidos, a qual foi objeto de deferimento;

G)           Na apreciação da proposta de loteamento e sobre a qual recaiu o despacho de deferimento refere-se: “O lote 1 corresponde a um posto de combustível a manter (L 1A) e a um edifício com 11 pisos + 1 recuado para o uso de terciário e comércio. Os lotes 2 e 3 apresentam dois volumes cujo número máximo de pisos é de 9 + 1 recuado também para o uso terciário e comércio. A superfície de pavimento proposta atribui 3.278m2 ao uso de comércio; 64.855m2 para serviços, perfazendo uma s.p. total de 68.133m2. Ainda desta composição fazem parte duas parcelas para cedência do domínio público, uma destinada a equipamento e utilização colectiva e outra localizada no remate do Lote 1A para espaços verdes”;

H)           Na deliberação que aprovou a decisão favorável condicionada do pedido de informação prévia (Deliberação da Câmara Municipal de Lisboa n.º .../CM/2016) consta, nomeadamente, o seguinte: “A presente proposta de loteamento abrange uma área com 45 422 m2, conforme levantamento topográfico, devendo o mesmo ser corrigido na CRP (…)”;

I)             Na apreciação da proposta de loteamento objecto do despacho de deferimento refere-se: “A área de intervenção descrita na Certidão do registo predial, é igual a 45.834,0 m2, sendo que a área de intervenção da operação urbanística igual a 45.422 m2, valor que necessita de ser rectificado junto da Conservatória. Ainda, o somatório da área dos lotes com a área das cedências é igual a 45,421m2 um lapso a corrigir”;

J)            No seguimento da resposta emitida pela CML, a Requerente apresentou declarações Modelo 1 de IMI referentes aos citados prédios onde corrigiu as respetivas áreas;

K)           Nas avaliações efectuadas pela Autoridade Tributária em consequência da submissão das referidas declarações, e para cálculo do Valor Patrimonial Tributário (VPT) dos prédios em causa, foi aplicado o coeficiente 1,00;

L)            Em consequência destas avaliações foram emitidas as liquidações de Imposto do Selo n.ºs 2018..., 2018..., 2018..., 2018..., todas datadas de 25/05/2018, no valor de €.81.619,50, €.165.840,30, €.81.619,50 e €.165.840,30, respectivamente;

M)          Em 31/07/2018, a Requerente procedeu ao pagamento das referidas liquidações.

2. Factos não provados

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado.

3. Motivação quanto à matéria de facto

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes e documentos juntos, cuja veracidade não foi posta em causa, bem como no processo administrativo.

B. DE DIREITO

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente tribunal consiste em apreciar a legalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo referentes aos anos de 2014 e 2015.

A procedência dos vícios invocados pelo Requerente conduzirá à anulação dos actos tributários.

O Requerente invoca o vício de violação de lei por erro quanto aos pressupostos de facto e de direito. A sua eventual procedência impedirá a renovação do acto.

 

1.            Vício de violação de lei

A questão aqui em causa consiste em determinar se efectivamente se verificou um vício de violação de lei com a aplicação da norma de incidência de Imposto do Selo aos terrenos para construção supra identificados e dos quais o Requerente era, à época das liquidações, proprietário.

Contudo, importa recordar que a Verba 28.1 da TGIS foi objecto de uma alteração substancial com a entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2014 (aprovado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro).

A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, alterou o artigo 1.º do Código do Imposto do Selo (CIS), aditando à Tabela Geral deste imposto a Verba 28, da qual passou a constar que o Imposto do Selo incidia também sobre a:

 

“28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributária constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) seja igual ou superior a € 1 000 000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 – Por prédio com afectação habitacional – 1%;

28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5%”.

 

Com efeito, com a entrada em vigor da verba 28.1 da TGIS, os prédios com afectação habitacional de valor patrimonial tributário (VPT) igual ou superior a €.1.000.000,00 (um milhão de euros) passaram a estar sujeitos a Imposto do Selo, à taxa de 1%.

Dito de outro modo, na redacção inicial da Verba 28.1, os terrenos para construção urbana, quer tivessem ou não VPT igual ou superior a €.1.000.000,00 estavam afastados de tributação.

No entanto, com a entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2014, aprovado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, a Verba 28.1 passou a estabelecer que o Imposto do Selo incide:

“28.1 Por prédio habitacional ou por terreno para construção, cuja edificação autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI – 1%” (sublinhado nosso).

Assim, no que respeita aos “terrenos para construção” aqui em causa, é fundamental ter em conta esta evolução legislativa, na medida em que, insista-se, até à entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2014, o legislador apenas previa na norma de incidência de Imposto do Selo os prédios urbanos com afectação habitacional, deixando de fora os terrenos para construção. Com a nova redacção da Verba 28.1, após a entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2014, o legislador passou a prever expressamente a tributação de terrenos para construção “cuja edificação autorizada ou prevista seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI”.

Posto isto, importa aferir em concreto se os terrenos para construção de valor igual ou superior a €.1.000.000, cuja edificação esteja autorizada para fins habitacionais, estão, ou não, sujeitos a Imposto do Selo, em face da redacção da Verba 28.1, que passou a prever a sujeição a Imposto do Selo dos terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação e cujo VPT, apurado nos termos do CIMI, seja igual ou superior a €.1.000.000 (um milhão de euros).

Comece-se por referir, in casu, que as construções a edificar nos prédios urbanos em questão não se destinariam a habitação, motivo pelo qual é necessário descortinar se a respectiva propriedade se encontra abrangida pelo âmbito de incidência objetiva da Verba 28.1 da TGIS.

Assim, a resposta à questão colocada passará pela concretização do conceito de “prédio habitacional”.

Dos artigos 2.º a 6.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) constam as definições de “prédio” e das várias espécies de prédios previstas. Em nenhum destes artigos se vislumbra o conceito de “prédio com afectação habitacional”. A noção que mais se aproxima do teor literal desta expressão é a de “prédios habitacionais”, que o n.º 2 do artigo 6.º do CIMI define como abrangendo os “edifícios ou construções” licenciados para fins habitacionais ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.

A falta de coincidência entre os termos da expressão utilizada na Verba 28.1 da TGIS e aquela que se extraí do artigo 6.º, n.º 2 do CIMI, aponta no sentido de não se ter desejado utilizar o mesmo conceito.

Ademais, também não se encontra este conceito – com esta terminologia – em qualquer outro diploma.

Vejamos então as disposições relevantes para a solução do caso que ora nos ocupa:

“Artigo 2.º – Conceito de prédio

1 – Para efeitos do presente Código, prédio é toda a fracção de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes com caráter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou colectiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fracção de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial.

2 – Os edifícios ou construções, ainda que móveis por natureza, são havidos como tendo carácter de permanência quando afectos a fins não transitórios.

3 – Presume-se o carácter de permanência quando os edifícios ou construções estiverem assentes no mesmo local por um período superior a um ano.

4 – Para efeitos deste imposto, cada fracção autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havido como constituindo um prédio.

 

Artigo 4.º – Prédios urbanos

Prédios urbanos são todos aqueles que não devam ser classificados como rústicos, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.

 

Artigo 5.º – Prédios mistos

1 – Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal.

2 – Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto.

 

Artigo 6.º - Espécies de prédios urbanos

1 – Os prédios urbanos dividem-se em:

a) Habitacionais;

b) Comerciais, industriais ou para serviços;

c) Terrenos para construção;

d) Outros.

2 – Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.

3 – Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou equipamentos públicos.”

 

Como bem se pode notar, o CIMI não recorre em nenhum momento, quando classifica os prédios urbanos, ao conceito de “prédio habitacional”. Aliás, tal conceito não foi definido pelo legislador, nem no CIMI nem em qualquer outro diploma legislativo.

Como se disse, do confronto entre os n.ºs 2. e 3. do artigo 6.º do CIMI pode concluir-se pela existência de autonomia entre prédios urbanos “habitacionais” e prédios urbanos “terrenos para construção”.

Assim, revela-se necessário interpretar o conceito, seguindo-se as normas, tributárias e gerais sobre a interpretação das leis, desde logo o artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) e o artigo 9.º do Código Civil (CC):

 

“Artigo 11.º - Interpretação (LGT)

1. Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2. Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.

3. Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

4. As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica”.

 

“Artigo 9.º - Interpretação da lei (CC)

 

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

 

Quanto ao conceito de “afectação habitacional”, entende o Requerente que “a detenção e fruição de um prédio urbano com afetação habitacional tem como pressuposto, na verdade, que o seu proprietário desde logo o habite (de forma permanente ou meramente esporádica)” e que “por esta razão, não pode senão considerar-se que os prédios urbanos cuja propriedade se pretende tributar nesta sede, têm necessariamente de estar afetos a fins pessoais” (cfr. artigos 99.º e 100.º do pedido de pronúncia arbitral).

 

Este tribunal acompanha a posição preconizada na decisão arbitral datada de 18/09/2013, proferida no âmbito do processo n.º 49/2013 que ora se transcreve: «A expressão “com afectação habitacional” inculca, numa simples leitura, uma ideia de funcionalidade real e presente. Da norma em causa não é possível extrair-se, por interpretação, que, como se afirma na resposta da requerida, a opção do legislador por aquela expressão tenha em vista integrar “outras realidades” para além das identificadas no artigo 6.º, n.º1, alínea a), do CIMI.» Ora, no entendimento deste tribunal tal interpretação não tem suporte legal diante dos princípios contidos nos artigos 9.º do Código Civil e 11.º da Lei Geral Tributária.

E caso o legislador tivesse pretendido abarcar no âmbito de incidência do imposto outras realidades que não aquelas que resultam da classificação plasmada no artigo 6.º do CIMI, tê-lo ia expressamente indicado. Todavia não o fez.

Por seu turno, defende a Requerida que “o legislador não refere ‘prédio destinado a habitação’, tendo optado pela noção ‘afectação habitacional’, expressão diferente e mais ampla, cujo sentido se vai encontrar na necessidade de integrar outras realidades para além das identificadas no artigo 6.º, n.º 1, alínea a) do CIMI” (cfr. artigo 34.º da Resposta).

 

Para a Requerida, “o n.º 1 do artigo 6º do CIMI dispõe acerca das espécies de prédios urbanos existentes, integrando os ‘terrenos para construção’ neste conceito, «... terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenha sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações... »” (cfr. artigo 22.º da Resposta).

Na concretização do conceito de “prédio com afectação habitacional”, este tribunal acompanha de perto as decisões datadas de 18/10/2013 e 13/11/2016 e proferidas no âmbito dos processos n.ºs 42/2013-T e n.º 215/2016-T.

Assim,

“A expressão «afectação habitacional» não parece poder ter outro sentido que não o de utilização habitacional, ou seja, prédios urbanos que tenham uma efectiva utilização para fins habitacionais, seja porque para tal estão licenciados, seja porque têm esse destino normal.

E não podemos confundir uma «afectação habitacional» que implica uma efectiva afectação de um prédio urbano a esse fim, com a expectativa, ou potencialidade, de um prédio urbano poder vir a ter uma «afectação habitacional».

Os terrenos para construção, não estando edificados, não satisfazem, por si só, qualquer condição para serem considerados como prédios com afectação habitacional, uma vez que, por um lado, não possuem licença de utilização para habitação, e, por outro lado, não são habitáveis (porque pura e simplesmente não estão edificados).

Pelo que não se nos afigura bastante para ser enquadrável na norma de incidência objectiva em apreço que exista a expectativa de um prédio urbano vir a ter uma afectação habitacional, ou de ter a potencialidade de vir a ter uma afectação habitacional” (sublinhado nosso).

 

Com efeito, o conceito de afectação habitacional tem de ser reconduzido a algo que seja passível de ser habitado.

Deste modo, no que em concreto respeita aos terrenos para construção, o que encontramos é uma mera expectativa de os mesmos, após edificação, virem a ter uma afectação habitacional. Por conseguinte, só após a concretização dessa afectação – i.e. só após a edificação do prédio que se destine à habitação – poderemos considerar que aquele prédio urbano está enquadrado no âmbito da verba 28 da TGIS.

Muito embora no futuro daqueles terrenos para construção possam resultar prédios com afectação habitacional – o que, no caso em apreço, não era expectável em virtude das finalidades assinaladas no pedido de Licenciamento de Operação de Loteamento (finalidades de comércio e serviços) efectuado pelo Requerente – enquanto se mantiver a sua qualificação como terrenos para construção, não podem estes ser incluídos no campo de incidência da verba 28 da TGIS, na redacção em vigor à data dos factos.

Por outro lado, a tese da Requerida de que os terrenos para construção deverão ser enquadrados enquanto prédios com afectação habitacional por força do disposto no artigo 45.º CIMI, também não poderá proceder.

Ora, a Requerida alega que: “na avaliação dos terrenos para construção o legislador quis que fosse aplicada a metodologia da avaliação dos prédios urbanos em geral, assim se devendo levar em consideração todos os coeficientes, supra identificados, nomeadamente o coeficiente de afectação previsto no art. 41.º do CIMI, mais resultando tal imposição legal do n.º 2 do art. 45.º do CIMI, ao remeter para o valor das edificações autorizadas ou previstas no mesmo terreno para construção”. 

Dito de outro modo, refere a Requerida que a noção de afectação do imóvel é um coeficiente que concorre para a avaliação do imóvel na determinação do valor patrimonial tributário, sendo igualmente aplicável o coeficiente de afectação em sede de avaliação de terrenos para construção, conforme previsto no artigo 41.º e no n.º 2 do artigo 45.º, ambos do CIMI.

Este tribunal não sufraga, porém, o entendimento da Requerida, de que a noção de afectação do prédio urbano também resulta do disposto naqueles artigos. De facto, uma coisa é o legislador determinar que o VPT dos terrenos para construção é determinado de certo modo, outra é extrair das normas que fixam o cálculo do VPT, uma definição de afectação habitacional.

Pelo contrário, e em rigor, a concretização do conceito de afectação habitacional terá de ser prévia à determinação do VPT, na medida em que aquele conceito integra a própria previsão da norma.

 

Não se poderá, porém, descurar que o artigo 45.º do CIMI prevê a avaliação dos terrenos para construção, considerando como um dos seus elementos o destino autorizado ou possível, em função dos condicionalismos urbanísticos. No entanto, e tal como decidido pelo tribunal arbitral no âmbito do já citado processo n.º 42/2013-T: “Mais uma vez estamos apenas no campo das potencialidades, das expectativas, e isso não é bastante para alterar a natureza do prédio, que continua a ser considerado como terreno para construção, nem para sustentar que o prédio em causa passa a ter uma “afectação habitacional” para efeitos da incidência objectiva da verba 28.1 da TGIS.”

A palavra “afectação”, neste contexto de utilização de um prédio, tem o significado de “acção de destinar alguma coisa a determinado uso”.

Como se poderá ler no acórdão do CAAD datado de 02/10/2013 proferido no processo

n.º 53/2013-T:  “em boa hermenêutica, “prédio com afetação habitacional”, não poderá ser um prédio apenas licenciado para habitação ou destinado a esse fim (isto é, não bastará que seja um “prédio habitacional”, tendo de ser um prédio que tenha já efetiva afetação a esse fim”.

Assim, “é de concluir que os elementos interpretativos disponíveis, inclusivamente as “circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, apontam claramente no sentido de não se ter pretendido abranger no âmbito de incidência da verba n.º 28.1 as situações de prédios que ainda não estão afetos à habitação, nomeadamente os terrenos para construção detidos por empresas”.

Impõe-se, assim, uma interpretação restritiva do preceito, no sentido de se considerar que estão sujeitos a tributação os terrenos para construção, mas apenas e só no caso da construção autorizada ou prevista se destinar a habitações de elevado valor, isto é, a unidades habitacionais de valor superior a €.1.000.000 (um milhão de euros).

Em resumo, este tribunal conclui que a liquidações de Imposto do Selo sub judice são ilegais por vício de violação de lei, o que determina a respectiva anulação nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável nos termos dos artigos 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT e 2.º, alínea c) da LGT.

Procede assim, totalmente, o pedido de pronúncia arbitral. 

 

2.            Quanto ao pedido subsidiário de apreciação das questões de inconstitucionalidade

 

O Requerente levantou, a título subsidiário, questões de inconstitucionalidade da Verba 28.1 da TGIS no caso de se entender que a mesma abrange terrenos para construção. Em virtude da interpretação sufragada nesta decisão, deixa de ter utilidade a apreciação da inconstitucionalidade da norma.

 

3.            Quanto ao pedido de juros indemnizatórios

 

É de facto verdade que, sem culpa do Requerente, foram praticados actos que o tribunal entende serem ilegais.

Para que a Administração Tributária possa ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios é necessário, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária, que “(…) se determine (…) que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Assim, em virtude da incontornável ilegalidade dos actos de liquidação imputáveis à AT, que os praticou sem suporte legal, e face ao comprovado pagamento da prestação tributária pelo Requerente, tem este direito ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do CPPT.

 

***

 

C. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal:

 

a)            Julgar improcedente a excepção deduzida pela Requerida;

b)           Julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, anular os actos de liquidação objecto da presente acção arbitral.

c)            Julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar à Requerente o valor do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data em que tal pagamento foi efetuado até à data do integral reembolso do mesmo;

d)           Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do presente processo.

 

D. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em €.494.919,60, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

E. CUSTAS

Custas no montante de €.7.650,00 em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Lisboa, 30 de Abril de 2019.

 

Notifique-se.

Os Árbitros,

 

Fernanda Maçãs (presidente)

Carla Castelo Trindade (vogal)

Isaque Marcos Ramos (vogal)