DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I. RELATÓRIO
Em 27 de setembro de 2018, A..., SA, com o NIPC ... e sede na Rua ..., n.º..., ..., (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (Portaria de vinculação), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
A. Objeto do pedido:
A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e a consequente anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) com o n.º 2018..., no montante de € 923,03, emitida pela AT com referência ao ano de 2014, na sequência de procedimento de inspeção tributária, bem como a restituição daquela quantia, acrescida de juros indemnizatórios.
Síntese da posição das Partes
a. Da Requerente:
Entende a Requerente que a liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2014, bem como a correção à matéria coletável decorrente da não-aceitação fiscal de uma perda por imparidade relativa a um crédito incobrável que lhe está subjacente, são ilegais por falta de fundamentação e por vício de violação de lei.
Reporta-se o invocado crédito à venda de um terreno para construção, em 2009, em cuja escritura de compra e venda consta ter o mesmo sido vendido pelo “preço de € 93 000,00, já recebido”, mas cujo recebimento efetivo não terá chegado a ocorrer, por vicissitudes com o respetivo meio de pagamento.
Segundo a Requerente, não obstante a empresa adquirente do referido terreno tivesse sido declarada insolvente em 2013, o crédito não foi reclamado no processo de insolvência que correu termos pelo Tribunal Judicial de São João da Madeira nem reconhecida a perda imparidade em anos anteriores, dado o convencimento de não ser incobrável, por estar garantido por hipoteca voluntária registada a seu favor.
Considera a Requerente “grave e caluniosa” a afirmação de fundadas dúvidas sobre a existência do crédito constante do Relatório da Inspeção Tributária, pois a AT não logrou provar a sua inexistência, “não tendo exibido qualquer outro documento que prove o seu efetivo pagamento/recebimento”.
Mais imputa a Requerente o vício de falta de fundamentação ao Relatório da Inspeção Tributária, ao remeter em bloco para o artigo 23.º, do Código do IRC, assim “não deixando evidenciado qual a norma específica (número, alínea) que a empresa violou para a não consideração na sua matéria coletável, do montante de € 93 000,00, referente ao crédito considerado incobrável, no exercício de 2014.”.
Termina a Requerente pugnando pela anulação da liquidação adicional de IRC do exercício de 2014, bem como pela restituição da quantia paga, acrescida de juros indemnizatórios.
b. Da Requerida:
Na sequência do despacho de notificação nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), sustentando a legalidade da liquidação em causa e defendendo a improcedência do pedido.
Alega, em síntese, que por indicação da gerência a Requerente procedeu, em 31-12-2014, ao lançamento contabilístico em simultâneo: 1) do reconhecimento de perdas por imparidade de dívida a receber em 100% do valor – 93.000,00€; 2) da reversão da perda por imparidade lançada em 1); 3) do reconhecimento de gasto do exercício na conta ‘68885 Outros gastos e perdas – outros não especificados’, anulando esse crédito em conta-corrente, por incobrabilidade.
Que, no entanto, embora a alegada dívida se reportasse a 6-5-2009, a Requerente nunca reconheceu o risco de incobrabilidade, nem sequer considerou esse alegado crédito de cobrança duvidosa, não reconhecendo qualquer perda por imparidade ao longo dos anos 2010 e 2013, no termos do n.º 1 do art.º 28º-A e al. c) do n.º 1 e n.º 2 do art.º 28º-B, ambos do Código do IRC.
Que, respeitando a dívida à venda de um terreno, por escritura pública de que consta expressamente que o preço de 93.000,00 já havia sido recebido, é sobre a Requerente que impende o ónus de provar que aquela importância nunca foi recebida e que à data dos factos constituía um crédito por cobrar.
E que, tendo a empresa adquirente do terreno sido declarada insolvente em 21-10-2013, por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de São João Madeira, ... Juízo, Proc.º .../13...TBSJM, a Requerente não reclamou o referido crédito, sabendo que o facto de ser detentora de uma garantia real sobre esse imóvel não a desobriga de reclamar o seu crédito no processo de insolvência.
Que o gasto contabilisticamente reconhecido relativo à incobrabilidade do alegado crédito não poderá influenciar negativamente o resultado fiscal do exercício de 2014, nos termos do artigo 23.º do CIRC, pelo que o valor de € 93.000,00 deverá ser acrescido para efeitos de determinação daquele resultado tributável.
Que o Relatório da Inspeção Tributária não se encontra ferido de qualquer vício de fundamentação, resultando do seu teor, de uma forma clara, congruente e suficiente, quais foram as razões de facto e de direito que justificaram as respetivas conclusões.
Termina a Requerida por requerer a dispensa da prova testemunhal oferecida pela Requerente e que, caso o tribunal assim não entenda, seja inquirido como testemunha o inspetor que procedeu à fiscalização e redigiu o Relatório da Inspeção Tributária.
Pelo despacho arbitral datado de 01.02.2019, foi a Requerente notificada para concretizar os artigos da P.I. relativos aos factos não suscetíveis de prova documental, relativamente aos quais pretendia a produção de prova testemunhal.
Por requerimento de 26.02.2019, veio a Requerente informar da pretensão de que as testemunhas arroladas fossem inquiridas sobre os factos descritos nos artigos 8.º, 11.º, 12.º, 14.º, 15.º e 23.º, da P.I., relativos à existência do crédito cuja imparidade não foi aceite pela AT.
Em 12.03.2019 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, tendo sido determinado que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas, pelo prazo de 10 dias, com início na Requerente, notificando-se esta para no prazo das alegações oferecer prova documental da invalidade do meio de pagamento a que se refere a petição inicial. Mais foi a Requerente advertida de que deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente antes do dia 6 de maio de 2019, data fixada para prolação da decisão arbitral.
Em 25.03.2019, a Requerente requereu a prorrogação do prazo para oferecimento da prova documental solicitada, tendo, na mesma data, apresentado as suas alegações escritas.
Pelo despacho arbitral de 27.03.2019, foi mantida a tramitação processual anteriormente definida, por não se justificar a prorrogação do prazo para apresentação do meio de prova complementar e tal prorrogação importar o alargamento do prazo para alegações da Requerida, em violação do princípio da igualdade das partes.
Ambas as Partes apresentaram as suas alegações escritas.
A Requerente, em sede de alegações, veio invocar, nomeadamente, que (i) A AT não logrou provar a inexistência da dívida; (ii) o pagamento não se chegou a regularizar por vicissitudes ocorridas no meio de pagamento utilizado, o que era do conhecimento dos contratantes; (iii) a simulação por “divergência entre a vontade negocial da declaração constante da escritura, e a vontade real do declarante, nos termos do artº 240 do Código Civil”; e v) a sua legitimidade para arguir a nulidade da declaração.
Por seu turno, a AT veio reiterar o teor da Resposta, remetendo para a Requerente o ónus da prova do não recebimento do rédito objeto da correção ao lucro tributável do exercício de 2014, pois a escritura pública que serve de suporte ao registo contabilístico da importância controvertida é um documento autêntico.
II. SANEAMENTO
1. O Tribunal Arbitral é competente e foi regularmente constituído em 6 de dezembro de 2018, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
4. Não foram invocadas exceções que ao Tribunal Arbitral cumpra apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário [CPPT], subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), sob pena de nulidade, cominada pelo n.º 1 do artigo 125.º, do mesmo CPPT.
A. Factos Provados:
a. A Requerente, com o ... e com sede na Rua..., n.º ..., em ..., desenvolve a título principal a atividade de compra e venda de bens imobiliários (CAE 68100) e, a título secundário, a de arrendamento de bens imobiliários (CAE 68200), enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável (Cfr. pág. 2 do Relatório de Inspeção Tributária (adiante RIT), junto ao PA);
b. Pelo Despacho n.º DI2017..., da Divisão de Inspeção Tributária I da Direção de Finanças de ..., datado de 25-09-2017, posteriormente convertido na ordem de serviço n.º OI2018..., foi aberto um procedimento inspetivo interno, de âmbito parcial, tendo em vista, nomeadamente, o “Controlo inerente ao reconhecimento no exercício de 2014 de «outros gastos e perdas»” (cfr. pág. 1 do RIT);
c. Após análise dos elementos contabilísticos solicitados à Requerente, designadamente os “extratos contabilísticos e respetivos documentos de suporte relativos ao lançamento de gastos «correções relativas a exercícios anteriores» - Campo A8103 da IES de 2014” (pág. 3 do RIT), foram propostas, entre outras, a correção aqui impugnada, das quais decorreu o resultado tributável corrigido de € 66 259,19 para € 69 655,97 (pág. 10, do RIT);
d. O lançamento ocorrido na conta “68885 – Outros gastos e perdas não especificadas”, referente à dívida da B..., pela quantia de € 93 000,00, em causa nos presentes autos, respeitou a uma regularização de saldo de clientes/outros devedores, por indicação da gerência (pág. 5 e anexo 4 do RIT);
e. Concluiu a Inspeção tributária que a dívida da B..., de € 93 000,00, respeitava ao contrato de compra e venda ocorrido em 6 de maio de 2009, no qual a Requerente vendeu à empresa “B...” “o terreno para construção inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de ..., sob o artigo n.º...” e que “Alegadamente o valor escriturado não teria sido recebido” (pág. 7 e anexo 6 do RIT);
f. Fundamenta-se a referida conclusão nos factos descritos no extrato que se transcreve (págs. 7 e 8 do RIT):
g. Em 6 de maio de 2009 foi celebrada no Cartório Notarial de ..., a escritura pública de compra e venda lavrada a fls. 57-59 do livro de notas para escrituras diversas n.º..., nos termos da qual a Requerente vendeu à sociedade B..., SA, com sede na Rua..., n.º..., ..., o terreno para construção sito no lugar de..., inscrito sob o artigo ... da freguesia de..., concelho de ..., “pelo preço de noventa e três mil euros, já recebido”. (cópia junta ao RIT);
h. Em 15.11.2013, a Requerente remeteu ao administrador da insolvência da sociedade B..., SA, Dr. C... (processo de insolvência n.º .../13...TBSJM –... Juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira, em que a B... foi declarada insolvente por sentença de 08-10-2013) um requerimento de reclamação de créditos sobre a insolvente, referente a rendas em atraso, no valor de € 94 094,01, parcialmente garantido por hipoteca sobre o “prédio urbano sito no Lugar de ..., à Rua..., freguesia de ... e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo...”, conforme o contrato de hipoteca de janeiro de 2013 (cópias juntas ao PA);
i. A hipoteca sobre o referido prédio urbano, para garantia do valor de € 92 710,11, foi registada em 30-01-2013, pela AP. ...(cópia da certidão do Registo Predial de ... junta ao PA);
j. O projeto de Relatório de Inspeção Tributária foi notificado à Requerente pelo ofício n.º..., da Direção de Finanças de ..., de 29-03-2018 (registo dos CTT n.º RH...PT), para exercício do direito de audição no prazo de 15 dias;
k. A versão definitiva do Relatório de Inspeção Tributária foi notificada à Requerente através do ofício n.º..., da Direção de Finanças de ..., de 18-05-2018 (Registo dos CTT n.º RH...PT);
l. Foi elaborado o DC Único com correções para o exercício de 2014, de que resultou a liquidação adicional de IRC n.º 2018..., de 23-05- 2018, no valor de € 923,03, objeto dos presentes autos.
B. Factos não provados:
Não se provou que a Requerente não tivesse recebido o valor de € 93 000,00, referente à venda do terreno para construção sito no Lugar ..., inscrito sob o artigo ... da freguesia de ..., concelho de ..., à sociedade B..., SA.
C. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração os documentos indicados em cada uma das alíneas do probatório supra, consideram-se como provados e como não provados, respetivamente, os factos acima enunciados.
III.2 DO DIREITO
1. Ordem de apreciação dos vícios
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 124.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, não existindo vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado, deverá o tribunal apreciar os vícios arguidos que determinem a sua anulabilidade, devendo conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência assegure a mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
A Requerente invoca o vício de falta de fundamentação do Relatório da Inspeção Tributária em que foram determinadas as correções ao lucro tributável declarado para o exercício de 2014 que sustentam a liquidação impugnada, vício que inquinaria de ilegalidade a própria liquidação do imposto.
Argui ainda a Requerente a ilegalidade da liquidação em si, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, quer quanto à existência do crédito, quer quanto ao momento em que foi reconhecida a sua incobrabilidade.
Decorrido já o prazo de caducidade do direito à liquidação a que alude o artigo 45.º, da Lei Geral Tributária (LGT), afigura-se que o reconhecimento de qualquer um dos apontados vícios seja suscetível de garantir a eficaz tutela do interesse da Requerente.
1.1. Da falta de fundamentação
O artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) impõe a fundamentação expressa e acessível dos atos administrativos lesivos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Sendo o ato tributário um ato administrativo potencialmente lesivo dos direitos dos contribuintes, o n.º 1 do artigo 77.º, da LGT, obriga a que a decisão do procedimento tributário deva ser “sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram”.
Um dos procedimentos tributários, enquanto sucessão de atos dirigida à declaração de direitos tributários (artigo 54.º, da LGT), é o procedimento de inspeção tributária, regulado pelo Regime Complementar d Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 413/98, estatuindo o seu artigo 63.º, que as conclusões do relatório da inspeção tributária poderão servir de fundamentação aos atos de liquidação delas resultantes.
A AT tem, pois, o dever de fundamentar as conclusões do relatório da inspeção tributária, não podendo a fundamentação “deixar de ser clara, congruente e de contemplar os aspectos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do ato” de liquidação subsequente.
Defende a Requerente que a AT deixou de cumprir os requisitos de fundamentação legalmente exigíveis, posto que o Relatório da Inspeção Tributária se limitaria a justificar as correções efetuadas por remissão para o extenso artigo 23.º, do Código do IRC, sem indicação de número ou alínea, ao afirmar que “… não poderá influenciar negativamente o resultado fiscal do exercício de 2014, nos termos do artigo 23.º do CIRC, pelo que o valor de € 93 000,00 deveria ter sido acrescido …”.
Crê-se, no entanto, que lhe não assiste razão.
De facto, descontextualizada, a afirmação transcrita poderia indiciar falta de clareza na fundamentação da correção efetuada pela AT; porém, no seu contexto, precedida das circunstâncias de facto e de direito que a motivaram, designadamente a afirmação, na pág. 8 do RIT, de que “Reportando-se a alegada dívida a 6-5-2009, o SP desde essa data nunca reconheceu o risco de incobrabilidade, nem sequer considerou esse alegado crédito de cobrança duvidosa, não reconhecendo qualquer perda por imparidade ao longo dos anos de 2010 a 2013, nos termos do n.º 1 do art. 28.º-A e al. c) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 28.º-B, ambos do Código do IRC”, permite conhecer claramente o itinerário cognoscitivo percorrido pela AT para a não-aceitação da referida perda.
Efetivamente, é nas normas indicadas que reside a possibilidade de dedução para efeitos fiscais das perdas por imparidade em dívidas a receber, “quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores”, nomeadamente “As relacionadas com créditos resultantes da atividade normal (…) que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade” (artigo 28.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC), desde que nas condições a que alude o artigo 28.º-B, do mesmo Código (perdas por imparidade em créditos), limitando-se o n.º 2 do artigo 23.º, do Código do IRC a uma enumeração taxativa dos gastos e perdas dedutíveis para a determinação do lucro tributável, entre as quais as perdas por imparidade (alínea h).
Pelos motivos expostos, julga-se improcedente o invocado vício de falta de fundamentação do Relatório da Inspeção Tributária e, consequentemente, da liquidação impugnada, pois afigura-se, sem margem para dúvidas, que a fundamentação ali expendida terá permitido à Requerente “o conhecimento das razões que levaram a autoridade tributária a agir, por forma a possibilitar-lhe[s] uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa” .
1.2. Da não-aceitação da perda por imparidade em créditos. Da (in)existência do crédito.
Alega a Requerente que a correção traduzida no acréscimo à matéria tributável por si apurada na declaração modelo 22 referente ao exercício de 2014 da quantia de € 93 000,00 é ilegal, porquanto a mesma se refere a uma perda por imparidade relativa a um crédito reconhecido na sua contabilidade como incobrável em 100%, no exercício de 2014, por dívida decorrente da invalidade no meio de pagamento da venda de um lote de terreno em 6 de maio de 2009, só então reconhecido como incobrável, por insolvência do devedor declarada no final de 2013.
Todavia, tanto a Requerida como a Requerente colocam como questão prévia e prejudicial à do reconhecimento da perda por imparidade, a da existência do próprio crédito.
A AT, considerando que a referida venda é um negócio formal (artigo 875.º, do Código Civil), titulado por escritura pública, na qual se afirma que o preço já foi recebido, remete para a Requerente o ónus da prova do não recebimento do preço; a Requerente argumenta que a correção efetuada pela AT não pode ser baseada em meras dúvidas, mas apenas em provas concretas que possam ilidir a presunção de veracidade dos elementos declarados pelos contribuintes.
Alega ainda a Requerente que a AT não logrou provar a inexistência do crédito, pois nunca existiu documento que titulasse o seu recebimento, “uma vez que o pagamento não se chegou a regularizar por vicissitudes ocorridas no meio de pagamento utilizado”.
Já em sede de alegações, vem a Requerente invocar a simulação e nulidade do negócio, pois “O recebimento do preço nunca aconteceu, e disso bem sabiam as partes quando outorgaram a escrita e ali declararam que o preço já estava pago”.
Vejamos:
Os elementos de prova destinam-se a demonstrar a realidade dos factos; porém se, produzida a prova possível, subsistirem dúvidas insanáveis sobre a matéria de facto, funcionarão as regras sobre o ónus da prova , recaindo o respetivo ónus sobre quem invoque o direito a que os factos conduzam (artigo 74.º, n.º 1, da LGT).
As declarações apresentadas pelos contribuintes nos termos da lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade, organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, gozam da presunção de veracidade, cessando tal presunção sempre que as declarações ou a contabilidade revelem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo (artigo 75.º, da LGT).
Os sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território nacional, que aqui exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, como é o caso da Requerente, estão obrigadas a possuir contabilidade organizada de acordo com a normalização contabilística, devendo todos os lançamentos “estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário”, a fim de possibilitar a correta determinação do lucro tributável (artigos 17.º, n.º 3 e 123.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código do IRC).
Na redação do n.º 4 do artigo 115.º, do Código do IRC em vigor para o exercício de 2009, os livros, registos contabilísticos e respetivos documentos de suporte deviam ser conservados em boa ordem durante o prazo de 10 anos, tendo o n.º 4 do artigo 123.º, do referido Código, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que o republicou, alargado aquele prazo para 12 anos, novamente encurtado para 10 anos pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março.
A escritura pública através da qual a Requerente procedeu à venda de um lote de terreno para construção, em maio de 2009, da qual consta que o respetivo preço, de € 93 000,00, já foi recebido, tem a natureza de documento autêntico (artigo 363.º, n.º 2, do Código Civil), dotado de força probatória plena, que só poderá ser ilidida com base na sua falsidade (artigo 372.º, do Código Civil), contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o recebimento do preço da venda.
Dada a obrigatoriedade de suporte documental para os lançamentos contabilísticos, o mencionado meio de prova não poderia senão ser de natureza documental, a conservar pelo prazo de 10 anos (e não de 10 exercícios) que, contados nos termos da alínea c) do artigo 279.º, do Código Civil, apenas terminariam às 24 horas do dia 6 de maio de 2019.
Não basta, pois, à Requerente alegar, sem provar, pela forma adequada, a invalidade do meio de pagamento que não chega a identificar ou invocar a nulidade do negócio, por simulação, pois esta não é oponível a terceiros de boa-fé (artigo 243.º, do Código Civil), entre os quais a AT, que dela não teve conhecimento.
Não tendo a Requerente logrado provar a existência do crédito da quantia de € 93 000,00, fastidioso seria sequer abordar a questão relativa à sua aceitação para efeitos fiscais, que assim fica prejudicada.
Falecendo a pretensão principal da Requerente, fica igualmente prejudicado o conhecimento do direito aos peticionados juros indemnizatórios, pois mantendo-se a correção efetuada ao lucro tributável do exercício de 2014, de igual modo se mantém na ordem jurídica a liquidação impugnada.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, manter na ordem jurídica a liquidação de IRC n.º 2018..., no montante de € 923,03, referente ao exercício de 2014 e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 923,03 (novecentos e vinte e três euros e três cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 306,00 (três trezentos e seis euros), a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 6 de maio de 2019.
O Árbitro,
Mariana Vargas
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.