DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
A) Constituição do tribunal arbitral e tramitação do processo
A..., S.A., NIPC..., com sede no ..., ...-..., Barreiro, veio, nos termos legais, apresentar pedido de pronúncia arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
A Requerente, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT, designou como Árbitro a Srª Drª Filomena Salgado Oliveira.
O dirigente máximo da Administração Tributária designou como Árbitro o Sr. Dr. José Rodrigo de Castro.
Os Árbitros designados pelas Partes acordaram em designar o Sr. Prof. Rui Duarte Morais como árbitro presidente.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 10/12/2018.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou, atempadamente, resposta, concluindo pela improcedência do pedido.
Por despacho arbitral de 08/03/19, foi dispensada a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT, por falta de objeto, bem como a produção de alegações, ao que as partes, para tal notificadas, não se opuseram.
A) PEDIDOS DE PRONÚNCIA ARBITRAL
O pedido principal é o de anulação parcial da autoliquidação de IRC referente a 2015, no que toca ao montante de € 57.323,00, relativo a tributações autónomas.
A Requerente pede também a condenação da Fazenda Pública no pagamento de juros indemnizatórios.
Na procedência do pedido principal, pede, ainda, a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... .
B) FACTOS PROVADOS
a) A Requerente tem por objeto social a produção e venda de fibras acrílicas e respetiva comercialização, bem como quaisquer outras atividades com ele conexas ou relacionadas.
b) No período de tributação em causa, a Requerente era a sociedade dominante de um grupo fiscal sujeito ao RETGS.
c) A Requerente entregou, oportunamente, a declaração Modelo 22 de IRC relativa a tal grupo de sociedades, na qual autoliquidou o imposto que considerou devido.
d) A Requerente dispunha de um crédito fiscal, decorrente do SIFIDE – Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial, de € 2.427.266,70,
e) A Requerente deduziu à coleta do grupo € 1.027.873,27, respeitante ao SIFIDE, tendo o saldo remanescente transitado para os exercícios seguintes.
f) Após entregar a declaração, a Requerente entendeu ter cometido um erro na autoliquidação por não ter deduzido o crédito de imposto relativo ao SIFIDE à fração da coleta de IRC correspondente às tributações autónomas, do que resultou, no seu entendimento, ter pago mais € 57.323,00 do que seria devido.
g) A Requerente apresentou, oportunamente, reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC, invocando o seu direito a deduzir à coleta da tributação autónoma crédito de imposto relativo ao SIFIDE;
h) Tal reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 13 de junho de 2018.
Os factos dados como provados constam da documentação junta aos autos, não tendo suscitado qualquer divergência
Não existem factos não provados relevantes para a boa decisão da causa.
C) QUESTÃO A DECIDIR
A questão a decidir é se, com referência a 2015, créditos de imposto, decorrentes do SIFIDE, eram dedutíveis à coleta das tributações autónomas, em IRC.
A Requerida AT, na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, entendeu, em suma, o seguinte: “o conceito de coleta de IRC não integra o montante das tributações autónomas, e, como tal o CIRC não prevê a possibilidade de se efetuarem as deduções dos benefícios fiscais previstas nas alíneas c) n.º 2 do art. 90.º, ao valor das tributações autónomas”; ”a tributação autónoma embora regulamentada no art. 88.º do CIRC, tributa despesas e não rendimento contrariamente ao IRC, despesas que pela sua própria natureza potenciam evasão fiscal”; “ao permitir-se a dedução dos benefícios fiscais, ou outras, ao valor das tributações autónomas iria anular-se o efeito pretendido com esta tributação”; “o n.º 21 do art. 88.º do CIRC, aditado pela Lei n.º 7-A/2016 de 30 de Março, ao qual o art. 135.º, da mesma lei, atribui natureza interpretativa, veio estabelecer expressamente que, ao montante apurado das tributações autónomas não são efetuadas quaisquer deduções ”.
O processo é tempestivo, as partes são legítimas e estão devidamente representadas, não há nulidades ou exceções de que cumpra conhecer, pelo que há que apreciar o mérito da causa.
D) DECIDINDO
O art.º 38º, n.º 1, do Código Fiscal de Investimento prevê que os sujeitos passivos podem deduzir ao montante da coleta do IRC, apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, o valor correspondente a determinadas percentagens de despesas com investigação e desenvolvimento.
O que está em causa é saber se a coleta originada pelas tributações autónimas integra a «coleta do IRC» a que se refere tal preceito.
A questão é por demais conhecida, tendo sido objeto de numerosos acórdãos arbitrais, de sentido, no essencial, coincidente.
Citamos do processo n.º 94/2014-T, de 11 de julho de 2013, “Aceitando-se, então, como materialmente distinta (…) a tributação em sede das tributações autónomas que ora nos ocupam, da que ocorre em sede de IRC tout court (sendo uma através de um facto instantâneo e outra através de um facto continuado), entende-se contudo que tais tributações autónomas, incidentes sobre encargos dedutíveis, ocorrem ainda no âmbito e a título de IRC (…) apesar de poderem ter por base factos instantâneos, são liquidadas e pagas a título de IRS, integrando o regime deste imposto. Entende-se, assim e em suma, que uma coisa é o tipo de facto tributário que está na base de determinada imposição. Outra coisa é o título a que tal imposição é devida, no fundo, a causa da obrigação de imposto. E no caso das tributações autónomas em sede de IRC, essa causa, o título a que o imposto é exigido, será, ainda, o IRC”
Relativamente ao argumento aduzido pela Requerida da “proteção da receita”, a impor uma interpretação restritiva do conceito de «coleta do IRC», transcrevemos do acórdão arbitral n.º 474/2017-T, de 5 de março de 2018: “No caso dos benefícios fiscais, prevê-se explicitamente a possibilidade de interpretação extensiva (artigo 10.º do EBF), mas não de interpretação restritiva, pelo que, em regra, o benefício fiscal não deve ser interpretado com menor amplitude do que a que, numa interpretação declarativa, resulta do teor da norma que o prevê”; “Ora, mesmo relativamente às tributações autónomas que visam desincentivar despesas, o desincentivo de comportamentos é justificado apenas pelas preocupações de proteção da receita fiscal e os benefícios fiscais concedidos são, por definição, «medidas de caráter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem» (artigo 2.º, n.º 1, do EBF)”; “Por isso, é seguro que se está perante benefícios fiscais cuja justificação é legislativamente considerada mais relevante que a obtenção de receitas fiscais (…)“; “Pelo exposto, convergindo os elementos literal e racional da interpretação do artigo 4.º do SIFIDE I e do SIFIDE II no sentido de que as despesas de investimento nele previstas são dedutíveis «ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência», é de concluir que não há fundamento para uma interpretação restritiva quanto a estes benefícios fiscais, pelo que aquelas despesas de investimento são dedutíveis à globalidade dessa coleta, que engloba, para além, da derivada da tributação dos lucros em cada período fiscal, a que resulta de outras componentes da coleta, designadamente de tributações autónomas” .
Subscrevemos, fazendo nossa, esta argumentação.
a) Resta apreciar o último fundamento invocado pela Requerente, o de que “o n.º 21 do art. 88.º do CIRC, aditado pela Lei n.º 7-A/2016 de 30 de Março, ao qual o art. 135.º, da mesma lei, atribui natureza interpretativa, veio estabelecer expressamente que, ao montante apurado das tributações autónomas não são efetuadas quaisquer deduções”.
A questão da conformidade constitucional das “interpretações autênticas” determinadas por tal diploma legal foi já objeto de, pelo menos, duas pronúncias do Tribunal Constitucional. No Acórdão n.º 267/2017, foi decidido “Julgar inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2.ª parte, do Código do IRC – número esse aditado pelo artigo 133.º da citada Lei – segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de pagamento especial por conta nesse mesmo ano, se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016”; “a solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC resultante da alteração introduzida pelo artigo 133.º da LOE 2016 é inovadora e diminui as possibilidades de o contribuinte realizar deduções à coleta de IRC, ou seja, agrava desfavoravelmente o modo de calcular o quantum anualmente devido a título de IRC. A determinação da aplicação de tal solução a anos fiscais anteriores ao da entrada em vigor da LOE 2016 prevista no artigo 135.º desta mesma Lei torna-a, por conseguinte, substancialmente retroativa e, nessa mesma medida, incompatível com a proibição da imposição de impostos retroativos do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição”);
“Na verdade, e como bem refere a decisão ora recorrida, aquele que representava um certo entendimento jurisprudencial quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC, incluindo nesta o valor das tributações autónomas – como o sufragado nas decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.ºs 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015 –, deixou de ser admissível à luz do citado n.º 21. Daí ser inequívoco o caráter substancialmente retroativo desse preceito, entendido como lei interpretativa. Dado o conteúdo gravoso para os contribuintes da nova solução legal – visto que tende a agravar o quantum devido a título de IRC –, a pretensão de a mesma se aplicar a anos fiscais anteriores ao do início da sua vigência mostra-se flagrantemente incompatível com a proibição constitucional de impostos retroativos (cfr. o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição)”.
Tal juízo de inconstitucionalidade foi reafirmado no Acórdão do TC n.º 107/2018, no processo n.º 1430/2017, de 22 de fevereiro de 2018.
Subscrevemos, também, este entendimento, totalmente transponível para o caso ora em apreciação.
No tocante ao pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, esta alega que «na situação dos autos, o apuramento do imposto foi efectuado pela Requerente. De acordo com Jorge Lopes de Sousa, em Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por actos ilegais, Áreas Editora, Lisboa, 2010, pág. 52 «Nas situações em que a prática do acto que define a dívida tributária cabe ao contribuinte (como sucede, nomeadamente, nos referidos casos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta), bem como naqueles em que o acto é praticado pela Administração Tributária com base em informações erradas prestadas pelo contribuinte e há lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), o erro passará a ser imputável à Administração Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, isto é, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir um a decisão com pressupostos corretos».
A questão do direito a juros indemnizatórios, quando esteja em causa a constitucionalidade de norma em que se fundamentou a liquidação, está ultrapassada pelo agora disposto na al. d) do artigo 43.º da LGT, na redação dada pela Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro: [São devidos juros indemnizatórios ] em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
Permanece em aberto a questão do momento do início da contagem de tais juros.
Entendemos, como defende a Requerida, que estando em causa uma indemnização devida pela prática de um ato ilícito cometido pela AT (uma ilegalidade na liquidação por ela praticada ou sustentada), os juros só podem ser contados a partir do momento em que esta se tenha pronunciado sobre o enquadramento legal da situação em causa, o que, por estar em causa um imposto autoliquidado, só aconteceu com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, também por esta razão necessária.
E) DECISÃO ARBITRAL
a) Anula-se parcialmente a liquidação impugnada, no tocante à não aceitação, como dedução à coleta de IRC, na parte gerada por tributações autónomas, do montante de € 57.323,00, relativo ao benefício fiscal decorrente do SIFIDE.
b) Consequentemente, anula-se o indeferimento da reclamação graciosa n.º n.º...2018....
c) Condena-se a Requerida a pagar à Requerente juros indemnizatórios, a calcular à taxa legal, desde 13 de junho de 2018, sobre o referido montante de € 57.323,00.
Valor do processo: € 57.323,00.
Lisboa, 20 de maio de 2019
Os Árbitros
Rui Duarte Morais
Filomena Salgado Oliveira
José Rodrigo de Castro