Decisão Arbitral
I - RELATÓRIO
A - PARTES
A sociedade A..., SA, designada por “Requerente”, com sede na Rua …, Lisboa, com o número de pessoa colectiva ..., impugnante no procedimento tributário acima e à margem referenciado, veio, invocando o disposto nos artigos 2.º, nº 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de tribunal arbitral singular, tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.
B - PEDIDO
1 - O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 14/02/2014 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) na mesma data.
2 - Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 6.º e na alínea a) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, o Conselho Deontológico designou, em 01/04/2014, como árbitro singular António Correia Valente, que comunicou a aceitação do encargo.
3 - Em 01-04-2014 foram as Partes notificadas dessa designação, nos termos conjugados do disposto no art.º 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, não tendo, as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.
4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 16/04/2014.
5 - No dia 18 de Setembro de 2014 realizou-se, com as Partes, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, da qual foi lavrada acta que se encontra junto aos autos, tendo sido estabelecido um prazo sucessivo de 5 dias para a Requerente e a Requerida, por esta ordem, apresentarem alegações escritas. No âmbito da referida reunião, o Tribunal Arbitral admitiu, em atenção ao disposto na al. b) do n.º 1 do mesmo artigo 18.º, a oposição escrita apresentada pela Requerente às excepções suscitadas pela Requerida, excepções que o Tribunal entendeu apreciar no quadro da presente Decisão.
Na mesma reunião, foi requerida pela AT, e admitida a junção aos autos de duas decisões arbitrais proferidas no âmbito dos Processos N.ºs 150/2014 - T e 220/2014 - T.
6 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:
a) - Declare a ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, respeitante aos veículos, em número de trinta, identificados nos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
b) - Condene a AT à restituição da quantia de € 1.491,16, correspondente ao montante total pago a título de IUC, referente aos anos e veículos atrás referenciados;
c) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios pelo pagamento do IUC indevidamente liquidado e pago.
C - CAUSA DE PEDIR
7 - A Requerente apresentou, oportunamente, tal como havia ficado estabelecido na reunião do artigo 18.º do RJAT, as suas alegações por escrito, nas quais, reitera, no essencial, os argumentos inicialmente apresentados no seu pedido de pronúncia arbitral, sublinhando que a AT ao liquidar o imposto, à luz do teor literal do disposto no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, a quem no registo automóvel se encontre inscrito como proprietário do veículo, sem ter em conta quem circula com o veículo, nem quem tem dele a posse e direcção efectiva, nem quem dele é efectivo proprietário gera uma situação de injustiça fiscal, tanto maior quanto é certo que o contribuinte, tendo de responder pelo pagamento do imposto, não tem como contrapartida o proveito originador do facto tributável (a propriedade ou utilização do bem que justifica a respectiva tributação).
Por outro lado, requereu a junção aos autos das Decisões Arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 115/2014-T e 169/2014-T, o que foi admitido pelo tribunal, sendo que, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:
8 - Que é uma Instituição Financeira, cujo objecto social consiste na prática de operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos, celebrando com os seus clientes, nessas circunstâncias e no quadro da sua actividade, contratos de Aluguer de Longa Duração e Contratos de Locação Financeira.
9 - Que, entre 14 de Novembro de 2013 e 20 de Dezembro desse mesmo ano, foi notificada de liquidações oficiosas de IUC, relativamente aos veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral pelo respectivo número de matrícula, tendo procedido ao pagamento voluntário das quantias referentes a tais liquidações.
10 - Que os veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral foram, todos eles, vendidos em data anterior àquela a que o imposto respeita, não sendo, pois, proprietária de tais veículos à data identificada pela Requerida, como sendo aquela em que ocorreu o facto gerador do imposto.
11 - Que a norma de incidência subjectiva, constante no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, na parte em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, constituí uma mera presunção legal de incidência subjectiva;
12 - Que o princípio da equivalência estabelecido no art.º 1.º do CIUC é um princípio estruturante do IUC, o que resulta bem vincado no Anexo II à Proposta de Lei nº 118/X, que deu origem à Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho, que aprovou o CISV e o CIUC.
13 - Que, especificamente a propósito do CIUC, aí vem, com efeito, referido que “ […] como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”. (Cfr. n.º 41 da PI)
14 - Que a transmissão da propriedade automóvel pode efectuar-se por mero efeito do contrato, não ficando dependente de qualquer acto posterior, como a tradição da coisa ou o registo, não estando o referido contrato de compra e venda sujeito a qualquer formalidade específica.
15 - Que o registo não tem valor constitutivo do direito de propriedade dos veículos, mas apenas declarativo, não podendo a ausência de registo afectar a qualidade de proprietário, nem a eficácia plena dos contratos de compra e venda de um veículo automóvel.
16 - Que embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo, conforme dispõe o art.º 5.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, é certo que, nos termos do n.º 4 do art.º 5.º do referido Código, terceiros para feitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
17 - Que, atenta a noção legal de terceiro, a Requerida não preenche os requisitos legais inscritos nessa noção, não podendo, assim, invocar a ausência de registo para justificar a ineficácia dos contratos de compra e venda dos veículos em questão.
18 - Que não se pode deixar de concluir no sentido de que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC consagra uma presunção ilidível, sendo essa a interpretação que melhor salvaguarda a unidade do sistema jurídico.
19 - Que, assim, caso o comprador - novo proprietário do veículo - não providencie o registo do seu direito de propriedade, presume-se que esse direito continua a ser do vendedor, podendo essa presunção ser ilidida mediante prova em contrário.
20 - Que a AT não poderá, alegando a ausência de actualização do registo do direito de propriedade, exigir o pagamento do imposto ao anterior proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado, sempre que, por qualquer meio, lhe for apresentada prova bastante da respectiva venda.
21 - Que as vendas dos veículos em questão estão suportadas em facturas/recibos de vendas, de cujas cópias, junto aos autos, resulta que, à data da exigibilidade do imposto, a Requerente não era proprietária dos veículos identificados nas correspondentes liquidações, por se terem anteriormente operado as respectivas transferências da propriedade, nos termos da lei civil.
D - RESPOSTA DA REQUERIDA
22 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou a sua Resposta em 21-05-2014, e a cópia do Processo Administrativo Tributário em 24-09-2014, tendo, nas condições mencionadas na acta respeitante à reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, requerido a junção aos autos das Decisões Arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 150/2014-T e 220/2014-T, o que foi admitido pelo tribunal, tendo também requerido a junção aos autos da Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 183/2014-T, que foi admitida pelo tribunal.
Por outro lado, igualmente, nas condições mencionadas na referida acta, apresentou as suas alegações, por escrito, nas quais, reitera, no essencial, os argumentos inicialmente apresentados na sua Resposta, sublinhando o entendimento vertido na jurisprudência do CAAD relativamente ao valor probatório das facturas, tendo, a esse propósito, referenciado a Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 63/2014.
23 - Na referida Resposta, a AT, para além de, como questão inicial, aludir à existência de irregularidades na certificação da procuração da mandatária, face ao Parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados n.º 15/PP/2008-G, de 2008.07.30, as quais, note-se, desde já, foram oportunamente supridas, conforme consta dos autos, suscita as excepções peremptória, na medida em que considera não estarmos perante actos de liquidação mas sim perante meras notas de cobrança, e dilatória, na medida em considera que o presente Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto de litígio. Por outro lado,
24 - Entende, ainda, que mesmo na hipótese de se considerar que estamos perante “auto-liquidações geradas pela própria Requerente no portal das Finanças” o pedido de pronúncia arbitral não pode proceder, dado que a reacção contra estes actos depende de prévia e necessária Reclamação Graciosa, em conformidade com o disposto no artigo 131.º/1 do CPPT, o que não se verificou, acrescentando, por fim, à cautela e sem conceder, que, mesmo se assim não se entender, os actos impugnados não enfermam de quaisquer ilegalidades, alegando, em síntese e no essencial, o seguinte:
POR EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
25 - A Requerida entende que o pedido de pronúncia arbitral a que se reporta o presente processo decorre de um erro em que a Requerente laborou ao reagir contra “meras notas de cobrança” como se fossem liquidações oficiosas. (Cfr. art.ºs 6.º, 7.º, 8.º e 9.º da Resposta)
26 - Acrescenta que os actos impugnados para serem liquidações oficiosas teriam de ter sido gerados e enviados pela Requerida à Requerente, o que não se verificou no caso vertente.
27 - Considera, ainda, que as notas de cobrança em causa foram geradas e extraídas pela própria Requerente no Portal das Finanças, através da internet, o que significa que, relativamente aos veículos automóveis identificados nos autos, a Requerida não gerou, nem enviou à Requerente quaisquer liquidações oficiosas com vista ao IUC referente aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012.
28 - Entende que, nestas circunstâncias, não constituindo a nota de cobrança um acto tributário, verifica-se, no caso, uma situação de falta de objecto, o que constitui uma excepçãp peremptória, que dá lugar à absolvição da Requerida do pedido.
POR EXCEPÇÃO DILATÓRIA
29 - Face à tese que vem sustentando, a AT reafirma que as notas de cobrança, não sendo actos tributários, correspondem a meros actos em matéria tributária, considerando que a reacção contra estes actos deve ser a Acção Administrativa Especial e não o pedido de pronúncia arbitral.
30 - Assim, conclui que o Tribunal Arbitral Singular constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo, atendendo à inexistência de actos de liquidação oficiosa de IUC emitidos pela Requerida, o que consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa.
POR IMPUGNAÇÃO
31 - Entende também a AT que, mesmo que as referidas excepções não sejam consideradas, os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, pronunciando-se pela improcedência do requerido e pela manutenção dos actos de liquidação questionados, defendendo, em suma, o seguinte:
32 - As alegações da Requerente não podem de todo proceder, porquanto fazem uma interpretação e aplicação das normas legais, aplicáveis ao caso, notoriamente errada, na medida em que incorre não só “numa enviesada leitura da letra da lei”, como na adopção “de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime” consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, seguindo ainda uma “interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço”. (Cfr. art.ºs 32.º e 33.º da Resposta)
33 - O legislador tributário estabeleceu no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC, expressa e intencionalmente, que os sujeitos passivos do IUC são os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, notando que,
34 - O referido legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. art.º 39.º da Resposta)
35 - A não consagração de uma presunção, no referido artigo 3.º, corresponde a uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos do IUC, fossem considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel, acrescentando ser neste sentido que aponta,
36 - O “entendimento já adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais”, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.OBEPNF. (Cfr. art.ºs 51.º e 52.º da Resposta)
37 - Sobre o elemento sistemático de interpretação, considera que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio legal. (Cfr. nº 61 da Resposta)
38 - Sobre a ignorância da “ratio” do regime, a AT considera que, a interpretação propugnada pela Requerente é manifestamente errada, na medida em que o que se visou consagrar no CIUC foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo, tal como consta do registo automóvel.
39 - Acrescenta que o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública, passando o Imposto Único de Circulação a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos. (Cfr. nºs 87 e 88 da Resposta)
40 - Neste sentido, refere ser este o entendimento inscrito, nomeadamente, na recomendação n.º 6-B/2012, de 22/06/2012, do Senhor Provedor de Justiça dirigida ao Secretário de Estado das Obras Públicas, dos Transportes e das Comunicações.
41 - A interpretação veiculada pela Requerente é, também, para além do que já foi referido, desconforme com a Constituição, designadamente porque entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que traduz um entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português, de que quer a Requerente quer a Requerida fazem parte.
42 - Refere, também, que a Requerente não logrou produzir prova documental que seja susceptível de fundamentar a pretensa transmissão da propriedade dos veículos em causa, dado que as facturas não são documentos idóneos para esse efeito, salientando que sete dessas facturas evidenciam taxas incorrectas de IVA relativamente às datas nelas indicadas, como sendo aquelas em que ocorreram as transmissões dos veículos.
43 - Acrescenta, ainda, a Requerida que, sendo os actos tributários em crise válidos e legais, não estão reunidos os pressupostos legais que conferem à Requerente o direito a juros indemnizatórios, tendo-se a Requerida limitado a dar cumprimento ao art.º 3.º/1, que imputa a qualidade de sujeitos passivos às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
44 - Por fim, face a toda a argumentação que aduziu, considera que o pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo deve ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados, absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida.
E - QUESTÕES DECIDENDAS
45 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.
46 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, é necessário apreciar e decidir as seguintes questões:
a) A excepção peremptória de falta de objecto do pedido de pronúncia Arbitral, suscitada pela Requerida.
b) A excepção dilatória de incompetência do presente Tribunal Arbitral, suscitada pela Requerida.
c) O estabelecimento, ou não, de uma presunção na norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º n.º 1 do CIUC;
d) O valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto;
e) Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, o sujeito passivo do IUC, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, é o anterior proprietário ou o novo proprietário;
f) Se à Requerente assiste o direito a juros indemnizatórios.
F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
47 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
48 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
49 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.
50 - Tendo em conta o processo administrativo tributário, cuja cópia foi remetida pela AT, a prova documental junto aos autos e as alegações produzidas, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa nos seguintes termos.
G - DAS DEDUZIDAS EXCEPÇÕES
51 - Tendo em conta o disposto no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aqui aplicável por força do artigo 29.º, nº 1, alínea c), do RJAT, deverão, as referidas excepções ser conhecidas em primeiro lugar, uma vez que, face ao disposto na aludida norma do CPTA, o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.
DA EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
52 - A Requerida, como já atrás se referiu, fundamenta a mencionada excepção no que considera ser um erro da Requerente ao confundir meras notas de cobrança com liquidações oficiosas, entendendo que,
53 - Os documentos juntos ao processo, como sendo liquidações oficiosas, cujos montantes foram pagos, não tendo sido emitidos pela entidade Requerida, mais não são do que notas de cobrança que a Requerente emitiu e extraiu voluntariamente do Portal das Finanças, sem que, para o efeito, tenha sido notificada.
54 - Assim, considera que o “objecto do presente pedido de pronúncia arbitral não se escora sobre actos de liquidação oficiosa emitidos pela Requerida, mas sim sobre notas de cobrança que a Requerente de forma totalmente voluntária extraiu do Portal das Finanças e sob os quais procedeu ao pagamento”, daqui concluindo que não constituindo a nota de cobrança um acto tributário verifica-se, no caso vertente, uma situação de falta de objecto, que corporiza uma excepção peremptória e dá lugar à absolvição da Requerida do pedido.
55 - Acrescenta ainda que, mesmo que assim não se julgue, e se entenda estarmos perante autoliquidações geradas pela própria Requerente no Portal das Finanças, o “presente pedido de pronúncia arbitral não poderá proceder”, posto que, embora as autoliquidações configurem actos tributários, a reacção contra tais autoliquidações depende de prévia e necessária dedução de Reclamação Graciosa, conforme estatui o artigo 131.º/1 do CPPT, o que não se verificou no caso do presente processo.
56 - A Requerente, notificada da resposta da AT, pronuncia-se sobre a mencionada excepção, referindo que “foi confrontada na sua parte privativa do Portal das Finanças, com uma série de dívidas de IUC, documentadas naquilo a que a AT chama de notas de cobrança (documentos de cobrança)”.
57 - Acrescenta, que considera altamente preocupante que a AT, relativamente a uma pluralidade de situações de dívidas em sede de IUC que a Requerente desconhecia e não inventou, constantes do sistema informático da AT, em estádio que permitia e permitiu o seu pagamento, venha dizer que não tem nada a ver com isso, e que teria sido a Requerente a responsável pela geração das notas de cobrança, o que quer que seja que isso possa exactamente querer dizer.
58 - Dando continuação à sua oposição à excepção em causa, a Requerente refere que “as dívidas de IUC (estas e muitas outras) aparecidas no sistema informático da AT (na área de acesso reservado à requerente), são um facto indesmentível da criação da AT, a possibilidade do seu pagamento é também um facto indesmentível da responsabilidade da AT, e a quantidade dos seus montantes muito concretos, ano e matrícula do imposto, é também da inteira responsabilidade da AT e respectivo sistema informático”.
59 - Trata-se de dívidas de IUC, continua a Requerente, que “pressupõem lógica e necessariamente uma série de liquidações de IUC, sendo irrelevante para o caso o meio pelo qual a requerente tomou delas conhecimento: o facto é que tomou, e na forma mais lesiva possível (imputação pela AT de um dívida de imposto à requerente), e o facto é que contra elas reagiu via pedido de constituição de Tribunal Arbitral”.
60 - A Requerente considera ainda que o comportamento da AT, ao suscitar, nos referidos termos, a excepção peremptória em questão, “[…] parece animado da mais pura má-fé”, acrescentando que “[…] atendendo à presunção legal constante do artigo 59.º, n.º 2 da LGT (presunção de boa fé), será de concluir que os representantes da AT nestes autos se equivocaram quando invocam a ausência de liquidação levada ao conhecimento da requerente (no caso levada ao conhecimento da requerente via inscrição de dívida na área reservada do Portal das Finanças e via documento de cobrança associado à mesma gerado por esse mesmo Portal”.
61 - A Requerente termina as suas considerações referindo que “[…] caso por absurdo se venha a concluir ter havido cobrança de uma importância a título de IUC de determinado ano e com referência a determinada matrícula, num cenário de ausência de liquidação do imposto lógica e legalmente pressuposta nessa cobrança, estar-se-á então perante o tipo penal previsto no artigo 379.º do Código Penal - agravado pelo facto de até à data não haver sinal da mínima intenção por parte da AT de devolver as quantias recebidas da requerente - devendo ser extraída certidão destes autos para remessa ao Ministério Público para que se inicie o competente procedimento criminal”.
Vejamos,
62 - Os documentos juntos ao processo, e nos quais a Requerente se fundou para proceder ao pagamento do IUC referente aos trinta veículos identificados nos autos, para além de estarem devidamente identificados por via de numeração própria da AT e terem a identificação fiscal e a morada da Requerente, mencionam a quantia/valor certo do IUC a pagar e têm, quer a indispensável referência para pagamento, a fim de que o mesmo possa ser concretizado, quer a indicação das várias modalidades possíveis de pagamento, bem como a data limite pare esse efeito.
63 - O referido valor, respeitando, embora, à importância resultante do somatório do IUC devido e dos correspondentes juros compensatórios está, todavia, devidamente ventilado nos mencionados documentos, dado que aí se procede à demonstração das respectivas liquidações, seja, pois, a título de IUC, onde, designadamente, se refere a matrícula do veículo, o ano e mês de matrícula, bem como a sua cilindrada, seja relativamente aos referidos juros.
64 - Aqui chegados, importará lembrar que as liquidações são actos da administração que conjugando um complexo de elementos, que, no caso, correspondem aos que atrás se deixam referidos, determinam o quantum de imposto em dívida. Por outro lado,
65 - Certo é que a Requerente retirou do seu sítio, no Portal das Finanças, os documentos que “preferimos designar” por Notas de Liquidação, que estão junto aos autos, e procedeu ao pagamento dos montantes nelas inscritos, pagamento que foi devidamente comprovado pela entidade cobradora, tal como resulta das estampilhas apostas nas referidas Notas de Liquidação, o que não pode deixar de significar que as correspondentes e subjacentes liquidações tributárias já tinham sido efectuadas.
66 - No caso dos autos, a Requerente refere ter tido conhecimento dos actos tributários, em conformidade com a sua revelação no “seu sítio” no Portal das Finanças, tendo procedido ao pagamento das quantias de imposto liquidado.
67 - Nestas circunstâncias, estamos, inequivocamente, perante liquidações de IUC efectuadas pela AT, levadas à esfera de cognoscibilidade da Requerente por via da sua colocação no “sítio” que “lhe está reservado” no Portal das Finanças, constituindo actos lesivos que, face ao previsto e estatuído no n.º 2 do art.º 9.º e no n.º 1 do art.º 95.º, ambos da LGT, podem ser impugnados pelos interessados.
68 - A liquidação do imposto em causa, tal, como à data dos factos, se estatuía no n.º 1 do art.º 16.º do CIUC, era, de resto, da exclusiva competência da Direcção-Geral dos Impostos, hoje Autoridade Tributária e Aduaneira.
69 - Face ao exposto, o tribunal não pode acompanhar o entendimento da Requerida quanto à falta de objecto do pedido de pronúncia arbitral, concluindo, pois, no sentido de que estamos perante a existência de actos de liquidação de IUC susceptíveis de impugnação, não procedendo, assim, a excepção peremptória invocada pela AT. Note-se, a este propósito, que, quer a Requerente, quer a Requerida, formularam requerimentos tendo em vista a junção aos autos de Decisões onde se aflora tal matéria, tendo a primeira das mencionadas partes requerido a junção das Decisões Arbitrais proferidas no Processo n.º 115/2014-T e no Processo n.º 169/2014-T, e a segunda requerido a junção da Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 183/2014-T.
70 - Assim sendo, afastado fica, também, o entendimento de que estamos perante uma situação de autoliquidação, posto que a autoliquidação é a que, de todo, é feita pelos particulares, por contraposição à liquidação que é feita pela Administração Tributária, só podendo falar-se de autoliquidação quando é o próprio contribuinte a fazer as contas/os cálculos do imposto a pagar, ou seja, quando é o sujeito passivo a aplicar a taxa do imposto à matéria colectável, o que, em absoluto, não acontece no caso dos autos (Cfr. designadamente, José Casalta Nabais, in Direito Fiscal - (Reimpressão) Almedina, Coimbra - Março - 2002, p. 252; Vitor Faveiro, in Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, 1.º vol., Coimbra Editora - 1984, pp 409/410 e Pedro Soares Martinez, in Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 295/296.
71 - A este propósito, cabe notar, à semelhança do que é feito no Acórdão do STA, de 31-05-2006, Proc. JSTA00063227, disponível em www.dgsi.pt., que o “último grito” relativamente ao conceito de autoliquidação está consagrado no art.º 120.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária espanhola, aprovada pela Ley 58/2003, de 17 de Dezembro, quando dispõe que “as autoliquidações são declarações nas quais os obrigados tributários, além de comunicarem à Administração os dados necessários para a liquidação do tributo e outros de conteúdo informativo, fazem por si mesmos as operações de qualificação e quantificação necessárias para determinar e pagar a importância da dívida tributária ou, se for o caso, determinar a quantidade que haja a devolver ou a compensar”.
DA EXCEPÇÃO DILATÓRIA
72 - Estando a questão suscitada na excepção dilatória intimamente ligada ao entendimento da AT sobre a falta de objecto do pedido de pronúncia, afastado que está tal entendimento, resolvida fica, também, a questão relativa à competência do tribunal arbitral. Com efeito,
73 - Na medida em que estamos perante actos de liquidação de IUC e dado que os mesmos se integram no elenco das pretensões sujeitas a apreciação pelo tribunal arbitral, tal como decorre do consagrado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular constituído é materialmente competente para conhecer do pedido de pronúncia arbitral subjacente ao presente processo, pelo que improcede, de igual modo, a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria, deduzida pela Requerida.
74 - Os tribunais arbitrais, com efeito, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 2.º, do RJAT, são competentes para apreciar as pretensões de “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de auto-liquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.
75 - Por outro lado, o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT estatui que a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça.
76 - A vinculação referida no mencionado artigo 4.º, n.º 1, do RJAT foi estabelecida pela Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, cujo artigo 1.º vincula à jurisdição dos tribunais arbitrais os serviços da DGCI e DGAIEC, hoje integrantes da actual AT - Autoridade Tributária e Aduaneira.
77 - O artigo 2.º da referida Portaria determina que os mencionados serviços se vinculam à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.
78 - Fica, desta forma, claro que para apreciar e decidir a excepção de incompetência deste Tribunal é, pois, decisivo o juízo que se fizer relativamente ao problema da administração do IUC, o que implica saber a quem cabe a administração de tal imposto.
79 - Ora, sendo certo que administrar um imposto, no caso IUC, é, nomeadamente, ser titular da competência para liquidar e cobrar o tributo em causa (Cfr. n.º 3, do art.º 1º da LGT), e que o imposto em questão foi liquidado pela Entidade que, para tanto, tinha legalmente competência, não pode deixar de entender-se que o presente Tribunal é materialmente competente para conhecer do pedido da Requerente, pelo que improcede a excepção de incompetência deduzida pela Requerida.
II - FUNDAMENTAÇÃO
H - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
80 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:
81 - A Requerente é uma Instituição Financeira, cuja actividade se inscreve na celebração, com os seus clientes, de contratos de aluguer de longa duração e de locação financeira de veículos automóveis, procedendo, findos tais contratos, à transmissão da propriedade dos veículos aos correspondentes locatários ou a terceiros.
82 - A Requerente procedeu à venda dos trinta veículos identificados no processo, como resulta das correspondentes facturas, onde vem referenciada a data da colocação à disposição de cada um dos veículos aos respectivos adquirentes.
83 - Como prova das mencionadas vendas, a Requerente juntou cópias das facturas/recibo de venda dos trinta veículos, nas quais consta o valor do IVA liquidado.
84 - A venda dos referidos veículos, face às mencionadas facturas e à data da colocação à disposição de cada um dos veículos aos respectivos adquirentes, ocorreu em data anterior ao facto gerador do imposto e ao momento da sua exigibilidade.
85 - A Requerente procedeu ao pagamento do IUC, referente a todos os veículos em questão, logo que na plataforma das finanças, no seu site, surgiram, para cobrança, as correspondentes Notas de Liquidação, pagamento que foi concretizado em 27-11-2013.
FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
86 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados, relativamente a cada um deles, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.
FACTOS NÃO PROVADOS
87 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.
I - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO
88 - A matéria de facto está fixada, importando agora, não havendo mais excepções a conhecer e a decidir, e fixada que está a competência do tribunal arbitral, entrar na questão de fundo em causa nos presentes autos, que se reconduz à apreciação dos actos de liquidação de IUC, referentes aos períodos de tributação dos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, respeitantes aos veículos, em número de trinta, identificados nos autos, que a Requerente considera feridos de ilegalidade, o que vem impugnado pela AT. Cabe, assim, proceder agora à subsunção jurídica dos factos subjacentes e determinar o Direito aplicável, de acordo com as questões decidendas enunciadas no n.º 46.
89 - A primeira questão que, neste quadro, sobra, desde logo, como essencial, relativamente à qual existem, aliás, entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT, traduz-se em saber se a norma de incidência subjectiva constante do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.
90 - As posições das partes são conhecidas. Com efeito, para a Requerente, aquela norma, “na parte em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado”, consagra uma presunção legal ilidível, enquanto para a Requerida a interpretação que a Requerente faz do disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC é notoriamente errada, na medida em que resulta de uma “enviesada leitura da letra da lei”, não atende ao “elemento sistemático” de interpretação, violando a “unidade do regime consagrado em todo o CIUC” e “ignora a ratio do regime” consagrado no referido artigo, traduzindo também uma desconformidade com a Constituição, designadamente porque entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário. (Cfr. art.ºs 33 e 97 da Resposta).
J - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO Nº 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC
91 - Importará notar, antes de mais, ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.
92 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se de diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.
93 - A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos nºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não pode deixar de considerar-se.
94 - A actividade interpretativa é, pois, incontornável na resolução das dúvidas suscitadas pela aplicação das normas jurídicas em causa.
95 - No entender de FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 131, a referida actividade interpretativa “[…] é única [e] complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa”, acrescentando, ibidem, p.130, que “Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
96 - A finalidade da interpretação, diz-nos também o referido autor, ibidem, pp. 134/135, é “[…] determinar o sentido objectivo da lei […]”. A lei, sendo a expressão da vontade do Estado, é uma “[…] vontade que persiste de modo autónomo, destacada do complexo dos pensamentos e das tendências que animaram as pessoas que contribuíram para a sua emanação”. Daí que a actividade do interprete deva ser a de “[…] buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris”.
97 - Para MANUEL DE ANDRADE, citando FERRARA, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 16 (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, “A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris […], e procura a vontade actual da lei, não a sua vontade no momento da aplicação: não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador, ganhando consistência autónoma; e, mais do que isso, torna-se entidade viva, que não apenas corpo inanimado […]”.
DO ELEMENTO LITERAL
98 - É neste enquadramento que importará encontrar resposta para as questões decidendas, particularmente para a que visa saber se o artigo 3.º, nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção, começando, desde logo, pelo elemento literal.
99 - Sendo o elemento literal o primeiro que importa utilizar, em busca do pensamento legislativo, é, necessariamente, por aí que se deverá começar, procurando alcançar o sentido da expressão considerando-se como tais as pessoas inscritas no referido artigo 3.º, nº 1 do CIUC.
100 - Dispõe o n.º 1 do referido artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” (sublinhado nosso)
101 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se”, o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões frequentemente utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.
102 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.
103 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão abundantemente enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73/2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.
104 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que se verifica no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.
Trata-se, assim, de um entendimento que, não se afigurando corresponder a uma enviesada leitura da letra da lei, como considera a AT, se revela em sintonia com o disposto no n.º 2 do art.º 9.º do CC, na medida em que assegura, ao pensamento legislativo, o mínimo de correspondência verbal aí exigido.
105 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no n.º 1 do art.º 3.º tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.
O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).
106 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, atrás citada, p. 28, “[…] a análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.
107 - Assim sendo, vejamos, então o elemento racional (ou teleológico).
DO ELEMENTO HISTÓRICO E RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)
108 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor histórico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007 de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.
109 - Neste quadro, parece claro que a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo sujeito causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência, inscrito do art.º 1.º do CIUC.
110 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual Imposto Único de Circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio que, de algum modo, tem assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 66.º da nossa Constituição, tem também consagração no plano do direito comunitário, seja ao nível do direito originário, o que se verifica desde 07 de Fevereiro de 1992, altura em que foi assinado, em Maastrich, o Tratado da União Europeia, em cujo art.º 130.º-R, n.º 2, o aludido princípio passou a constar como suporte da política Comunitária no domínio ambiental, seja ao nível do direito derivado.
111 - O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus “proprietários - económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.
112 - Neste sentido, cabe, aliás, notar que o imposto único de circulação tem notórias afinidades com os impostos ambientais, na medida em que os mesmos visam, em especial, a prossecução de finalidades extrafiscais, as quais, no caso, se consubstanciam na tributação de externalidades negativas/danos ambientais.
113 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio não pode, pois, deixar de constituir um fim que se pretende legalmente prosseguir, corporizando, nessa medida, uma luz de assinalável fulgor que, constante e continuadamente, não pode deixar de iluminar o caminho do intérprete.
114 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.
115 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.
116 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais e efectivos poluidores corresponde a um importante fim visado pela lei, no caso pelo CIUC, fim que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2.ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
117 - Assim, deve notar-se que, seja face aos referidos elementos históricos, seja à luz dos elementos de carácter racional ou teleológico de interpretação que se deixam referenciados, impõe-se, igualmente, concluir que o n.º 1 do art.º 3.º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.
118 - Caberá, ainda, considerar o elemento sistemático de interpretação.
DO ELEMENTO SISTEMÁTICO
119 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.
120 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema do IUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso do CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.
121 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no 1.º artigo do Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.
122 - O elemento sistemático de interpretação e a interacção entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito do CIUC, apelam também ao entendimento de que o estabelecido no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção.
123 - Dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas.
Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção, o que significa que os sujeitos passivos do IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se, como tais, as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, a final, ser outros.
Dir-se-á, aliás, que o estabelecimento de uma presunção na mencionada norma corresponderá à interpretação mais compaginável, particularmente, com o princípio da equivalência, atrás mencionado, sendo a que melhor assegura a coerência e harmonia dos diversos elementos que integram o sistema jurídico inscrito no CIUC.
124 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.
125 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, e apenas em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados.
126 - Com efeito, se o proprietário em nome do qual o veículo se encontra registado, vier, como ocorre no presente processo, indicar e provar quem era o proprietário ou o locatário dos veículos em causa, nada justifica, em nosso entendimento, que quer o anterior proprietário quer o locador sejam responsabilizados pelo pagamento do IUC que for devido.
127 - Acresce, ser esta interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC a que, a nosso ver, melhor se ajusta aos princípios a que a AT deve subordinar a sua actividade, nomeadamente ao princípio do inquisitório, em ordem à descoberta da verdade material.
128 - A propósito do referido princípio do inquisitório, cabe aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.
O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, op. cit, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.
129 - A verdade material, no presente caso, consubstancia-se na circunstância dos veículos identificados no pedido de pronúncia arbitral terem sido vendidos pela Requerente em momento anterior ao da exigibilidade do imposto, ou seja, à data a partir da qual o credor tributário podia fazer valer, perante o devedor, o seu direito ao pagamento do imposto, era, face ao processo administrativo, do conhecimento da AT.
130 - Não se diga, como faz a AT, que o estabelecimento de uma presunção no art.º 3.º do CIUC e as consequências daí resultantes ofenderiam o princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que conduziriam, nomeadamente, ao “entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida”. (Cfr. art.º 100 da Resposta)
A eficiência da Administração em geral, ou da AT em particular, em sentido corrente, corresponderá à capacidade/metodologia de trabalho orientada para a optimização do trabalho executado ou dos serviços prestados, o que significará produzir o máximo, em quantidade e qualidade, com o mínimo de custos, nada tendo a ver com a observância de princípios legalmente consagrados e com o respeito pelos direitos dos cidadãos, seja na qualidade de contribuintes ou não.
131 - Em sentido técnico, dir-se-á que o princípio da eficiência do sistema tributário, é, comummente tido, no domínio do procedimento tributário, como corolário do princípio da proporcionalidade, o qual como é sabido, impõe uma adequada proporção entre as finalidades legais e os meios escolhidos para alcançar esses fins, ou, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488, nas anotações ao artigo 55.º da LGT, trata-se de um princípio que obriga “[…] a administração tributária a abster-se da imposição aos contribuintes de obrigações que sejam desnecessárias à satisfação dos fins que aquela visa prosseguir”.
Neste quadro, o referido princípio da eficiência do sistema tributário significará a capacidade de alcançar os objectivos legalmente fixados em razão dos meios disponíveis, ou melhor, com o mínimo de meios, o que nada terá também a ver com o respeito pelos direitos dos cidadãos, nem com a necessidade de observância dos princípios a que a administração tributária deve subordinar a sua actividade, designadamente o do inquisitório e o da descoberta da verdade material, não podendo, obviamente, a aplicação do mencionado princípio da eficiência ser feita com prejuízo dos direitos dos cidadãos.
L - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO
132 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.
133 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu n.º 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)
Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.
134 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.
Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.
135 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ n.º 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, nº 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)
136 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.
137 - Estabelece, com efeito, o n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, (diversas vezes alterado, a última das quais por via da Lei n.º 39/2008, de 11/08), que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)
138 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)
139 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, o qual, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho, e alterado pela última vez, por via do Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto, dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)
140 - A conjugação do disposto nos artigos retromencionados, particularmente o estabelecido no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular, em prol de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.
141 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.
142 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.
143 - Note-se, porém, que se é certo que a não existência de registo tem a relevância que atrás se deixa mencionada, não é menos certo que a sua inexistência impede a plena eficácia do contrato de compra e venda. A este propósito, cabe notar o disposto nos nºs 1 e 4 do art.º 5.º do Código do Registo Predial, aplicáveis ao registo da propriedade automóvel por força do estabelecido no art.º 29.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
144 - Dispõe o n.º 1 do art.º 5.º do referido Código do Registo Predial, que “Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, estabelecendo, por seu lado, o n.º 4 do mesmo artigo que “Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.
145 - Nestas circunstâncias, fácil será concluir que a AT, dado que não adquiriu, do mesmo vendedor, direitos sobre o veículo, incompatíveis com os direitos do comprador, não preenche o conceito de terceiros para efeitos do registo, tal como legalmente fixado.
146 - Assim, se os compradores dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do n.º 1 do art.º 3.º do CIUC e nos termos do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que o veículo continua a ser propriedade da pessoa que o vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo, porém, certo que tal presunção é ilidível, seja por força do estabelecido no n.º 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afaste a referida presunção, mediante prova da respectiva venda, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.
M - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS
147 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por qualquer meio, nomeadamente por via testemunhal ou documental, nesta se incluindo, designadamente, as facturas/recibo relativas às vendas dos veículos.
148 - Como meio de prova de que procedeu à venda dos trinta veículos identificados no presente processo, em data anterior à da exigibilidade do imposto, a Requerente juntou cópias das facturas/recibo de venda dos referidos veículos, nas quais consta o valor do IVA liquidado, e vem referenciada a data da colocação à disposição de cada um dos veículos aos respectivos adquirentes.
149 - Sobre as facturas apresentadas pela Requerente, como prova de venda dos veículos em questão, a AT, para além de ter requerido a junção aos autos de 2 Decisões Arbitrais proferidas no Processo n.º 150/2014-T e no Processo n.º 220/2014-T, onde tal matéria é aflorada, considera que as facturas não constituem documentos idóneos para comprovar as vendas dos veículos em causa, referindo que ”As regras do registo automóvel (ainda) não chegaram ao ponto de uma factura unilateralmente emitida pela Requerente poder substituir o requerimento de registo automóvel, aliás documento aprovado por modelo oficial” (Cfr. art.º 110.º da Resposta), mas, salvo o devido respeito, não tem razão.
Vejamos,
150 - Retira-se do Dicionário Jurídico de Ana Prata, Almedina - Coimbra, 1990, 3.ª Edição, que a factura é o “documento escrito em que se discriminam as coisas vendidas e entregues, sua qualidade, quantidade e preço, e cuja entrega o vendedor não pode recusar ao comprador, se a compra e venda for comercial”.
151 - Nas anotações ao art.º 476.º do Código Comercial, Abílio Neto, Ediforum - Lisboa, 1991, 10º Edição, refere-se que a factura é o “documento em que o vendedor faz a discriminação completa das mercadorias que vende ao comprador e em que indica as despesas que efectuou, bem como as vantagens que concede nos preços e as condições de entrega e de pagamento”.
152 - Antes das alterações introduzidas, no Código do IVA, pelo Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto, poderiam, no quadro das transmissões de bens ou das prestações de serviços, ser emitidas facturas ou documentos equivalentes, desde que estes observassem os requisitos legalmente exigidos para as facturas.
153 - Do disposto na alínea b) do nº 1 do art.º 29.º, no nº 5 do art.º 36.º e nos n.ºs 1 e 2 do art.º 40.º, todos do CIVA, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto, retira-se que apenas a factura, a factura-recibo e a factura simplificada corporizam documentos reconhecidos para efeitos da transmissão de bens ou da prestação de serviços.
154 - Dir-se-á, assim, face à doutrina e ao legalmente estabelecido, que a factura é o documento em que, para além da menção aos nomes dos fornecedores e dos adquirentes das coisas ou dos serviços objecto de um dado negócio jurídico, se devem, designadamente, discriminar essas coisas ou serviços, a sua qualidade e quantidade, bem como o respectivo preço e outros elementos incluídos no valor tributável, assim como as taxas do IVA aplicáveis e o montante do imposto devido, elementos esses que, note-se, são observados pelas facturas apresentadas pela Requerente.
155 - As facturas juntas aos autos, como prova da venda dos veículos, tendo em conta o objecto social da Requerente e a sua actividade empresarial, traduzida na celebração de contratos de aluguer de longa duração e contratos de locação financeira de veículos automóveis, com os seus clientes, findos os quais a propriedade dos aludidos veículos é transmitida aos respectivos locatários, mostram-se totalmente ajustadas à mencionada realidade empresarial, sendo absolutamente verosímil a venda dos veículos que as facturas apresentadas visam provar, não se identificando, de todo, elementos que permitam concluir que as facturas não titulam transacções reais.
156 - Dir-se-á, mesmo, que, no caso dos autos, seria de estranhar que assim não fosse, ou seja, que quem, como a Requerente, tem uma actividade económica consubstanciada e centrada na celebração de contratos de locação financeira de veículos automóveis, não transferisse, em regra, a final, a propriedade dos veículos para os correspondentes locatários.
157 - Assim, nada permite considerar que os elementos inscritos nas referidas facturas são desconformes com a realidade que contratualmente ocorreu, o que significa que as facturas em causa não se afiguram como corporizadoras de qualquer contrato simulado, bem pelo contrário, tudo indica que reflectem e provam os factos nelas mencionados, ou seja, a efectiva venda dos veículos às pessoas nelas indicadas como sendo os seus adquirentes. Acresce que,
158 - As facturas, sendo um documento comercial indispensável são, igualmente, um documento contabilístico essencial, com relevantes implicações no domínio fiscal, devendo notar-se que, no caso dos autos, tendo a Requerente, como tem, uma actividade de natureza empresarial, as ditas facturas estão subordinados a rigorosas regras legais, sejam de ordem comercial, sejam de ordem contabilística e fiscal.
159 - As facturas em causa nos autos, inscrevendo-se, naturalmente, no quadro das relações comerciais entre duas entidades, no caso entre a Requerente e os ex - locatários - adquirentes dos veículos, visam, por outro lado, e no caso, demonstrar a existência do negócio em causa junto da Administração Tributária, o que lhes confere uma dimensão e valor qualitativamente diferentes, do que lhe está reservado no estrito domínio comercial, dado que, verificadas certas condições, a legislação tributária entendeu considerá-las como verdadeiras.
160 - Como já se sublinhou, a legislação tributária, designadamente a que atrás se deixa mencionada, reconhece às facturas credibilidade probatória, devendo salientar-se, porque não é questão de somenos, bem pelo contrário, trata-se de questão fundamental, que, tendo tais facturas, sido emitidas de acordo com a legislação comercial e fiscal, o que não é questionado pela Requerida, a lei, no caso, o n.º 1 do art.º 75.º da LGT, atribui-lhe uma presunção de veracidade.
161 - Assim sendo, face à presunção de veracidade conferida, no domínio das relações jurídico-tributárias, aos factos inscritos nas facturas e sendo a transmissão dos veículos aos seus adquirentes tida como verdadeira, caberia à AT, face ao disposto no art.º 75.º, n.º 2 da LGT, no quadro das fundadas e objectivas razões que tivesse, demonstrar que tais vendas, na realidade, não ocorreram, não bastando afirmar, como faz, que os referidos documentos não são idóneos para esse efeito.
162 - A presunção estabelecida no atrás referido art.º 75.º, n.º 1 da LGT, quando estatui que os referidos documentos gozam da presunção de veracidade, implica, com efeito, que se não for demonstrada pela AT, como não foi, a ausência de correspondência entre o teor de tais facturas e a realidade, o seu conteúdo deva considerar-se verdadeiro.
163 - Os documentos apresentados pela Requerente, enquanto meios destinados a fazer prova das transacções dos veículos em causa, gozando, assim, da mencionada presunção de veracidade, afiguram-se com idoneidade bastante, em ordem à demonstração das referidas transacções, constituindo, a nosso ver, um meio de prova adequado e capaz de ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC.
164 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, quer a transferência de propriedade dos veículos em questão, por mero efeito do contrato, antes da data da exigibilidade do imposto, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise, não podem merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.
165 - Nestas circunstâncias, tendo em conta, por um lado, que a presunção consagrada no art.º 3.º, n.º 1 do CIUC foi ilidida e que, por outro, os veículos em questão no presente processo foram vendidos em data anterior à da exigibilidade do imposto, ou seja, ao momento em que a Administração pode exigir a prestação tributária, não se pode deixar de considerar que, aquando da exigibilidade do imposto, face ao disposto no n.º 3 do artigo 6.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 4.º, ambos do CIUC, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.
166 - A AT, quando entende que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontram registados, sem considerar que o art.º 3.º do CIUC consubstancia uma presunção, nem tendo em conta os elementos probatórios que lhe foram apresentados, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do referido art.º 3.º do CIUC, seja ao nível da previsão, seja da estatuição, o que configura a prática de um acto tributário falho de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos tributários, por violação de lei.
N - REEMBOLSO DO MONTANTE PAGO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
167 - Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT, e em conformidade com o que aí se estabelece, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.” (sublinhado nosso)
168 - Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.” (sublinhado nosso)
169 - O caso constante nos presentes autos, suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, referenciados neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, a título do imposto pago, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.
170 - Quanto aos juros indemnizatórios, afigura-se manifesto, que, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de € 1.491,16, que serão contados desde 27-11-2013, até à integral restituição dessa mesma quantia.
O - CUSTAS ARBITRAIS
171 - A este propósito, mais concretamente sobre a responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais, que a AT considera serem devidas pela Requerente, “nos termos do art.º 527.º/1 do Novo Código de Processo Civil ex vi do art.º 29.º/1-e) do RJAT”, cabe apenas notar que, face ao estatuído no n.º 2 do referido art.º 527.º do CPC, dá causa “[…] às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for”, sendo, isso mesmo, que se aplicará no caso dos autos.
CONCLUSÃO
172 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados no entendimento de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.
173 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência dos factos tributários, considerou a Requerente proprietária dos veículos referenciados no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade, relativamente aos trinta veículos em questão, já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.
III - DECISÃO
174 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
- Julgar procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação dos actos de liquidação de IUC, respeitantes a todos os veículos identificados nos autos, referentes aos anos de 2009; 2010; 2011 e 2012;
- Anular, consequentemente, os actos de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2009, 2010; 2011 e 2012, respeitantes aos veículos, tal como atrás se deixam mencionados;
- Condenar a AT à restituição da quantia de € 1.491,16, referente ao IUC liquidado e pago em 2013, respeitante aos anos de 2009; 2010; 2011 e 2012, e ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde 27-11-2013, até ao integral reembolso da referida quantia;
- Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.
VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, nº 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3.º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.491,16.
CUSTAS
De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, no art.º 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e no art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 306,00.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de Outubro de 2014
O Árbitro
António Correia Valente
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)