Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 216/2018-T
Data da decisão: 2019-03-22  IRC  
Valor do pedido: € 182.248,27
Tema: Preços de transferência – Princípio de Plena Concorrência – Art. 63.º CIRC – rutura de contrato de distribuição vs transferência de atividade.
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DECISÃO ARBITRAL  (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 23 de julho de 2018, Dra. Alexandra Coelho Martins (presidente), Prof. Doutor António Martins (designado pela A... SGPS, S.A.) e Prof. Doutor Henrique Fiúza (designado pela Autoridade Tributária e Aduaneira), acordam no seguinte:

 

 

I.             RELATÓRIO

 

A... SGPS, S.A., doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva e contribuinte fiscal número ..., com sede na ..., ..., ..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e de pronúncia arbitral, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e dos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, tendo por objeto os atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) – n.º 2017..., de 14 de dezembro de 2017 – e de juros compensatórios – n.º 2017... –, referentes ao exercício de 2014, que, de acordo com a respetiva Demonstração de Acerto de Contas, resultaram no valor global a pagar de € 182.248,27.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

 

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários impugnados, bem como a restituição das importâncias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.º 4 da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

A Requerente optou por designar Árbitro e indicou, para esse efeito, o Prof. Doutor António Martins, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, alínea b) e 11.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.

               

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação automática à AT, em 27 de abril de 2018.

 

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea b), 6.º, n.º 2, alínea b) e 11.º, n.º 3, todos do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou como Árbitro o Prof. Doutor Henrique Fiúza.

 

Por despacho do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, de 2 de julho de 2018, na sequência de requerimento apresentado para o efeito pelos árbitros designados pelas partes, foi designada a Dra. Alexandra Martins como Árbitro Presidente. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, o Presidente do CAAD informou as partes dessa designação, em 3 de julho de 2018.

 

                As partes não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alínea c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

                O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 23 de julho de 2018, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

Como fundamento do seu pedido, a Requerente alega vícios de ordem substantiva e de ordem formal. Relativamente aos primeiros, começa por invocar erro nos pressupostos de facto e de direito, em concreto, a inexistência do facto tributário e a inadmissibilidade de aplicação do regime de preços de transferência, cuja disciplina consta do artigo 63.º do Código do IRC e da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

Considera, para este efeito, que não existe uma operação vinculada, pois não ocorreu qualquer trespasse ou transferência de negócio centrada na transmissão de ativos intangíveis (como a “carteira de clientes” e o know-how) da B..., LDA. (“B...”) para a C..., LDA. (“C...”). O que sucedeu foi a mera rutura dos contratos de distribuição e comercialização que as unidades fabris haviam celebrado com a B... e a mudança de prestador de serviços de comercialização, que passou a ser a C... (parcialmente detida por uma das sociedades do Grupo), no âmbito de uma decisão de gestão, na opinião da Requerente não sindicável pela AT, que visou reduzir custos e estruturas.

 

Para a Requerente, o know-how e a clientela utilizados, quer pela B..., quer posteriormente pela C..., eram já anteriormente da exclusiva propriedade do Grupo, não podendo sequer ser objeto de transmissão, pois a B... não poderia transmitir o que não lhe pertencia. Por outro lado, os contratos de distribuição celebrados pelas unidades fabris com a B... previam a renúncia das partes ao pagamento de uma indemnização decorrente da sua eventual cessação, ao abrigo da liberdade contratual.

 

Em qualquer caso, nunca seria devida à B... uma indemnização por rutura contratual, pois esta não trouxe valor acrescentado – angariação de clientela – às unidades fabris.

 

Acrescenta a Requerente que a emissão de juízos de valor pela AT sobre a justificação da alteração da entidade comercializadora constitui uma intromissão legalmente inadmissível nas decisões de gestão do Grupo, atento o princípio da liberdade da iniciativa privada previsto no artigo 61.º da Constituição (“CRP”). Não tendo a AT, sobre quem recai o ónus da prova de acordo com o artigo 74.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), alegado e provado factos que demonstrem a inadequação ou falta de justificação da alteração da comercializadora, a correção é ilegal por violação do disposto nos artigos 61.º e 104.º, n.º 2 da CRP e 74.º da LGT.

 

Suscita, também, a Requerente o vício formal de falta de fundamentação relativamente à metodologia utilizada para quantificação do facto tributário e apuramento do imposto. Afirma que o Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) se reporta ao Método do Preço Comparável de Mercado (“MPCM”), porém, os Serviços acabaram por não utilizar tal método e não identificaram uma operação comparável. Os elementos do Relatório não permitem apreender as fórmulas, os cálculos e, sobretudo, a lógica e o percurso cognoscitivo do método empregue pela AT: qual a operação comparável e o preço comparável que serviu de base à correção. Deste modo, os atos tributários impugnados violam o dever de fundamentação previsto no artigo 268.º, n.º 3 da CRP, o artigo 153.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), o artigo 77.º da LGT e o artigo 36.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

Por fim, a Requerente invoca erro nos pressupostos relativamente à quantificação do facto tributário e do imposto e conclui pela ilegalidade dos atos tributários vertentes, peticionando a sua anulação com as legais consequências. Juntou 6 (seis) documentos e requereu prova testemunhal.

 

                POSIÇÃO DA REQUERIDA

               

                Em 1 de outubro de 2018, a Requerida apresentou a sua resposta, na qual suscitou o incidente de verificação do valor da causa, em virtude de o ato tributário implicar duas correções, uma de preços de transferência e outra de dedução (indevida) de benefícios fiscais (“CFEI”), e apenas uma delas, a relativa aos preços de transferência, ter sido impugnada nesta ação arbitral. Considera, assim, que o valor da causa deve ser deduzido da parcela de € 89.715,76, referente à correção de benefícios fiscais, e que o pedido é de anulação (somente) parcial da liquidação. 

 

                Sobre o mérito, a Requerida impugnou especificadamente os argumentos da Requerente, concluindo pela improcedência da ação e consequente absolvição de todos os pedidos. Em seu entender, a B... transferiu progressivamente para a C..., ao longo de dois anos, a atividade de comercialização de produtos siderúrgicos, tendo sido esvaziada do seu conteúdo funcional, sem que tenha auferido qualquer compensação. Neste âmbito, a B... deixou de realizar vendas e, reversamente, as vendas realizadas pela C... no ano 2014 e nos anos seguintes resultaram de encomendas dos clientes que integravam a carteira da B... e da utilização do know-how detido pelos funcionários que tinham transitado desta última para a C... .

 

                As entidades envolvidas são todas afiliadas da Requerente, pelo que se verifica a existência de relações especiais nos termos do artigo 63.º, n.º 4, alínea b) do Código do IRC, devendo as operações em causa pautar-se pelo princípio de plena concorrência.  

 

                Sustenta a AT que, tomando por paradigma a realização da mesma operação entre entidades independentes, mesmo atuando como um distribuidor de riscos limitados, a B... devia ter obtido uma compensação, quer pelos investimentos feitos, quer pelos lucros cessantes, quer pela cedência de know-how e carteira de clientes.

 

                Assinala, ainda, que a Requerente incumpriu as obrigações previstas no artigo 63.º, n.º 6 do Código do IRC e nos artigos 13.º e 14.º da Portaria n.º 1446-C/2001, ao não ter qualificado a operação como operação vinculada, nem a ter integrado no Dossier de Preços de Transferência. Uma vez que a Requerente não enquadrou as operações na disciplina do artigo 63.º do Código do IRC, os serviços de inspeção procederam à seleção do método que melhor estima a compensação que, em condições normais de mercado, seria devida à B..., tendo em conta a análise das atividades exercidas pela B... e pela C... e os contratos celebrados.

 

                Neste âmbito, a Requerida considera que o Método Preço Comparável de Mercado se revela o mais apropriado, atento o disposto no artigo 4.º, n.ºs 1 e 2 da referida Portaria, por ser aquele que assegura o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e as realizadas entre partes independentes.

 

                Adicionalmente, sustenta que não ocorreu ingerência da AT nas decisões de gestão do Grupo, pois o que está em causa não é a prática societária, mas apenas o exercício da competência legal de verificação do correto enquadramento das operações que influenciam a matéria tributável do Grupo que, sem prejuízo da aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades (“RETGS”), atende à individualização dos resultados que respeitam a cada entidade.

 

                Entende, por outro lado, que é inaplicável a jurisprudência respeitante à desconsideração de custos ao abrigo do artigo 23.º do Código do IRC, pois os ajustamentos vertentes foram efetuados ao abrigo de outra norma, o artigo 63.º.

 

                Quanto ao princípio da liberdade da iniciativa privada consagrado no artigo 61.º da CRP, o mesmo, segundo a Requerida, não se insere nos direitos, liberdades e garantias, pelo que não constitui um princípio absoluto e, caso o fosse, ainda assim podia sofrer restrições para salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da CRP e do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, de 23 de maio.

 

                Rejeita, de igual modo, o vício de falta de fundamentação, salientando que a argumentação da Requerente revela que esta não teve dificuldade em apreender os motivos que levaram à prática do ato.

 

               

                Sobre a quantificação do facto tributário, a Requerida defende que a mesma foi feita de acordo com as Guidelines da OCDE, segundo as quais “devem apurar-se os lucros que teriam sido realizados pela empresa, que devido às condições aplicadas ou impostas não ocorreram e, como tal, incluí-los nos seus resultados fiscais sujeitos ao pagamento de imposto”, e corresponde à remuneração anual das vendas que a B... deixou de obter junto da sua base de clientes fidelizados. Refere que, para este efeito, os serviços de inspeção:

(a)          Quantificaram as vendas realizadas em 2014, pela C..., junto dos clientes da B..., que representam 99,519% do volume de vendas;

(b)          Determinaram os lucros operacionais que a B... teria obtido se não tivesse cedido a sua carteira de clientes à C..., que correspondem à margem de 0,75% acordada com as empresas produtoras, reduzida dos custos; e

(c)          Calcularam a margem operacional potencial da B... .

               

                A Requerida pronuncia-se ainda quanto ao estudo encomendado pela Requerente, relativamente ao qual destaca que partiu de uma qualificação distinta dos factos e de diferentes pressupostos, pelo que não são comparáveis os resultados obtidos. Conclui pela validade do ato de liquidação, entendendo que não são devidos juros indemnizatórios, por não se ter constatado erro imputável aos serviços. Não requereu a produção de prova e procedeu à ulterior junção do processo administrativo (“PA”), em 9 de outubro de 2018.

 

                O Tribunal determinou, por despacho de 11 de outubro de 2018, a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com inquirição das testemunhas indicadas pela Requerente, que teve lugar em 5 de dezembro de 2018. Foram ouvidas 4 testemunhas. Sobre a questão prévia suscitada pela Requerida, a Requerente declarou pronunciar-se em fase de alegações.

 

                As partes foram notificadas para alegações escritas sucessivas e foi prorrogado, por dois meses, o prazo limite para prolação da decisão, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT. Por fim, advertiu-se a Requerente para, até ao termo do prazo, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do disposto no artigo 4º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar esse pagamento ao CAAD.

               

                Requerente e Requerida apresentaram alegações mantendo, na essência, os argumentos que constam do pedido de pronúncia arbitral e da resposta, respetivamente.

                Sobre a questão prévia suscitada pela AT relativa ao valor do pedido, a Requerente afirma que se tratou de lapso seu, correspondendo o valor económico da causa a € 92.532,51, em resultado da dedução do montante de € 89.715,76 (referente ao benefício fiscal CFEI, que impugnou autonomamente e que não faz parte do objeto da ação arbitral) ao valor (erradamente) indicado no pedido de pronúncia arbitral, de € 182.248,27.

 

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas questões prévias, para além do incidente de verificação do valor da causa, suscitado pela Requerida, que será apreciado e decidido logo após a fixação da matéria de facto.

 

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.           A A... SGPS, S.A., aqui Requerente, é uma sociedade que tem por objeto a gestão de participações sociais e encabeça, como sociedade dominante, o Grupo A... que, no ano 2014, nomeadamente para efeitos tributação em IRC, ao abrigo do RETGS, era constituído, para além da própria Requerente, pelas seguintes sociedades, todas detidas a 100%:

 

i.             D..., S.A. (“D...”);

ii.            E..., S.A. (“E...”);

iii.           F..., S.A. (“F...”);

iv.           G..., S.A. (“G...”);

v.            H..., S.A. (“H...”);

vi.           I..., S.A. (“I...”);

vii.          B..., LDA. (“B...”);

viii.         J..., UNIPESSOAL, LDA. (“J...”),

– cf. organograma (figura 1) constante do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) que consta do PA e do Documento 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral (ppa).

B.            O Grupo A... resultou de uma reestruturação societária ocorrida no ano 2005. Nesse ano, a D..., sociedade detentora de duas unidades industriais (uma situada no ... e outra na ...) e proveniente da privatização da Siderurgia, procedeu ao destaque e à transferência de todo o património afeto a essas unidades industriais para a esfera jurídica de duas outras sociedades, então constituídas, cujo capital é integralmente detido pela D...: a G... e a H...– cf. Documento 4 junto com o ppa e depoimento das testemunhas.

C.            A G..., a H... e I... são as empresas produtoras de produtos siderúrgicos do Grupo A..., em Portugal – cf. RIT e depoimento das testemunhas.

D.           Em 2008 e 2009, coexistiam dois grupos, para efeitos do regime fiscal de tributação dos grupos de sociedades. Um, composto pela D..., G..., H... e I..., outro, composto pela Requerente (A... SGPS, S.A.), pela B... e pela J... – cf. Documento 3 junto com o ppa e depoimento das testemunhas.

E.            Em 2014, a Requerente detinha, ainda, participações sociais na sociedade K..., S.A. (“K...”) e na sociedade C..., LDA. (“C...”), esta última detida diretamente em 38,98% – cf. quadro 1 constante do RIT.

F.            A Requerente desenvolve a sua atividade no seio do Grupo espanhol L... (denominação atual), referido como o principal Grupo de dimensão ibérica a atuar no sector siderúrgico, do qual fazem parte sociedades residentes em Portugal e em Espanha – cf. RIT e depoimento das testemunhas.

G.           Do Grupo L.../A..., no qual a Requerente se insere, fazem parte entidades com natureza e função distintas, que contribuem e participam nas várias fases do processo produtivo, seja em termos de fabrico e transformação de matéria-prima, ou da sua posterior comercialização a clientes fora e dentro do próprio Grupo – cf. RIT e depoimento das testemunhas.

H.           No que se refere à comercialização dos produtos fabricados no seio do Grupo (fio, varão e malha), a mesma começou por ser feita, sensivelmente até ao ano 2005, pela própria D..., que, ao longo do tempo, angariou um número significativo de clientes, fidelizados com o tipo e qualidade do produto fabricado pelo Grupo – cf. depoimento das testemunhas.

I.             Em 2005, com a transferência da atividade das duas unidades industriais para a esfera da G... e da H..., a comercialização dos produtos fabricados passou a ser desenvolvida pela B..., tendo por base o know-how e os clientes já anteriormente angariados pelo Grupo – cf. depoimento das testemunhas.

J.             A atividade a partir daí desenvolvida pela B... contemplou essencialmente a celebração de contratos de distribuição com as entidades produtivas do Grupo, a G..., a H... e a I..., às quais adquiria produtos para posterior revenda junto de entidades externas ao Grupo – cf. RIT depoimento das testemunhas.

K.            De acordo com esses contratos, que eram idênticos independentemente da entidade produtiva com quem eram celebrados, a B... assegurava a distribuição, em território português, dos produtos fabricados pela G..., H... e I... a clientes externos ao Grupo L... /A...– cf. RIT (cujo anexo 1 contém cópia dos contratos de distribuição).

L.            Adicionalmente, no âmbito dos referidos contratos de distribuição, a B... obrigava-se a aumentar o volume de vendas dos produtos em causa, a organizar a logística de transporte e de gestão aduaneira, a resolver questões de desconformidade na comercialização dos bens (quando tal lhe fosse imputável) e assumia o risco de não pagamento por parte dos clientes finais – cf. RIT (cujo anexo 1 contém cópia dos contratos de distribuição).

M.          Como contrapartida / remuneração da sua atividade de comercialização, a B... recebia das fábricas (G..., H... e I...) uma comissão de 0,75% sobre o montante das vendas realizadas, percentagem contratualizada que se manteve estável no período compreendido entre 2010 e 2015 – cf. RIT e depoimento das testemunhas.

N.           Os contratos de distribuição celebrados previam a renúncia das partes ao recebimento de qualquer indemnização decorrente da eventual cessação dos mesmos – cf. RIT (cujo anexo 1 contém cópia dos contratos de distribuição).

O.           Esses contratos previam ainda, na sua cláusula décima, que: “[e]m caso de mudança de controlo em qualquer das Partes por fusão, oferta pública de aquisição lançada sobre o respetivo capital social, cisão, transformação, venda substancial de ativos ou qualquer outra forma de reorganização societária em termos tais que esse controlo passe a ser exercido por entidade não pertencente ao Grupo B... o contrato cessará efeitos imediatamente”– cf. RIT (cujos anexos 1 e 3 contêm cópia dos contratos de distribuição com a B... e com a C...).

P.            No desenvolvimento desta atividade, a B... seguia as orientações que lhe eram fornecidas pelo Grupo L... /A..., uma vez que os clientes externos já se encontravam fidelizados aos produtos do Grupo – cf. depoimento das testemunhas.

Q.           A política de definição do "preço" de venda era da exclusiva responsabilidade do Grupo L... /A... – cf. depoimento das testemunhas.

R.            Uma parte substancial da faturação obtida pela B... até ao ano 2013 respeitava a entidades a quem anteriormente o Grupo L.../A... já faturava, nomeadamente através da D... até ao ano 2005 – cf. depoimento das testemunhas.

S.            Em agosto de 2013, a atividade de comercialização dos produtos siderúrgicos (em barra) do Grupo L.../A... em Portugal passou a ser exercida por uma outra sociedade, a C..., na sequência da rescisão, por parte das G..., da H... e da I..., dos contratos de distribuição celebrados com a B...– cf. RIT e depoimento das testemunhas.

T.            Não se tratou de uma rutura total imediata, pois a B... ainda ficou durante algum tempo com a comercialização dos produtos de "Fio Laminado" (até maio de 2014) e responsável pela gestão e venda do produto a clientes com garantias bancárias prestadas a seu favor [B...], até à emissão gradual de novas garantias em benefício da C...– cf. depoimento das testemunhas.

U.           Até maio de 2013, a C... foi parcialmente detida pelo Grupo M..., no âmbito de uma parceria estabelecida relativamente à comercialização de um produto que não era fabricado pelo Grupo L.../A... . Na sequência da crise económica e do desinvestimento do parceiro, em 2013 o Grupo L.../A... logrou adquirir a participação remanescente da C... que passou a ser totalmente detida por este – cf. depoimento das testemunhas e organograma (figura 1) constante do RIT.

V.           A razão para a mudança de entidade comercializadora prendeu-se com a intenção do Grupo L.../A... de restruturar a sua atividade comercializadora em Portugal, ficando viabilizada a utilização da C... para esse efeito, a partir do momento em que passou a ser totalmente integrada no perímetro do Grupo L.../A..., após a compra da participação que pertencia ao Grupo M...– cf. depoimento das testemunhas.

W.          Por outro lado, a C... dispunha de terrenos e de armazéns próprios, bem como, de melhores acessos ferroviários e rodoviários, o que representava a possibilidade de a atividade de comercialização, que envolve o armazenamento e transporte dos produtos, ser exercida de uma forma mais adequada e eficaz. O Grupo pretendeu também concentrar esta atividade apenas numa entidade, evitando-se a redundância de custos – cf. depoimento das testemunhas.

X.            O contrato celebrado entre a nova comercializadora (a C...) e a G... e a H... tem exatamente as mesmas condições que haviam sido acordadas com a B..., nomeadamente no que se refere à comissão de venda de 0,75% – cf. RIT (cujo anexo 3 contém cópia do contrato de distribuição celebrado pela C...).

Y.            A C..., tal como as suas antecessoras D... e B..., também beneficiou do know-how e dos clientes fidelizados ao Grupo L.../A... – cf. depoimento das testemunhas.

Z.            A carta circular de comunicação aos clientes a informar da alteração contratual e da nova entidade comercializadora (a C...) foi efetuada pelo Sr. N... que a assinou nos seguintes moldes:

“N.../ B...

Director Comercial

Portugal e España”,

sendo a designação “B...” utilizada como nome comercial no seio do Grupo com diversas finalidades, nomeadamente como “marca” dos produtos e como denominação de sociedades, também em Espanha – cf. depoimento das testemunhas, organograma do Grupo constante do RIT e anexo 4 do RIT.

AA.        Alguns dos trabalhadores da B... que desempenhavam funções ligadas à comercialização dos produtos passaram para a esfera da C... para o desenvolvimento da sua atividade – cf. depoimento das testemunhas.

BB.         A Requerente foi alvo de um procedimento inspetivo realizado pelos Serviços de Inspeção Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes da AT, em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2017..., de âmbito interno, com o objetivo verificar o cumprimento das obrigações fiscais, em sede de IRC, do ano 2014 – cf. RIT.

CC.         Esta ação de fiscalização teve por base a Ordem de Serviço n.º OI2016..., referente ao procedimento inspetivo realizado, com referência ao IRC do mesmo ano (2014), à sociedade “B..., LDA.”, cujo Relatório de Inspeção Tributária faz parte integrante do Relatório da Requerente – cf. RIT.

DD.        Em resultado desta ação inspetiva, a Requerente foi notificada do projeto de Relatório de Inspeção Tributária, para exercer o direito de audição sobre as correções propostas:

i.             Correção à matéria coletável declarada pela Requerente, no montante de € 332.148,42, decorrente da alegada transferência de negócio entre entidades relacionadas, ao abrigo do artigo 63.º do Código do IRC;

ii.            Correção ao IRC, no valor de € 89.715,76, referente à não aceitação da dedução do benefício fiscal do CFEI, que não constitui objeto da presente ação arbitral,

tendo a Requerente optado, por não o fazer, reservando o seu direito de defesa para a fase judicial – cf. RIT, secção IX.

EE.          A AT manteve as correções preconizadas, procedendo à notificação do Relatório de Inspeção Tributária definitivo, sobre o qual recaiu despacho favorável da Chefe de Divisão (em regime de substituição), cujo teor se dá por inteiramente reproduzido, do qual se extrai a seguinte fundamentação, com relevo para a matéria em discussão nos presentes autos arbitrais – cf. RIT (documento 2 junto com o ppa e com o PA):

“I.4.1. CORREÇÕES AO NÍVEL DA MATÉRIA COLETÁVEL – IRC

I.4. Descrição sucinta das conclusões da ação de inspeção

I.4.1. IRC – Correções ao lucro tributável

I.4.1.1. Transferência do negócio para uma entidade relacionada (artigo 63.º do Código do IRC) – 332.148,42€

Na sequência da análise realizada constatou-se que o sujeito passivo transferiu, progressivamente durante um período de dois anos, a atividade de comercialização de produtos siderúrgicos para uma entidade relacionada – a empresa C...–, sem que tenha sido compensada pela cessação do seu negócio e pela transmissão da base de clientes fidelizados. Além de ter sido beneficiada pela transferência do negócio, o desempenho desta nova função pela C... viabilizou a dedução parcial dos prejuízos fiscais acumulados em períodos precedentes, no decurso do anterior negócio que desenvolvia. Fruto desta operação – transferência do negócio – a empresa B... abdicou de uma margem equivalente a 0,75% das vendas que deixou de realizar e que passaram a ser registadas pela C... . Uma vez que a ausência de remuneração na operação realizada violou o Princípio de Plena Concorrência, preconizado no n.º 1 do artigo 63.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (Código do IRC), concluiu-se que o sujeito passivo subavaliou o seu lucro tributável no montante de 332.148,42 Euros

[…]

 III. DESCRIÇÃO DOS FACTOS E DOS FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS

III.1. IRC – Correções ao lucro tributável

III.1.1. Transferência do negócio para uma entidade relacionada (artigo 63.º do Código do IRC) – 332.148,42€

No âmbito do procedimento de inspeção incidente sobre o período de 2014 detetou-se que a B... Lda (adiante designada apenas por «B... » ou «sujeito passivo») apresentou uma forte redução da sua atividade, evidenciada pelo decréscimo da rubrica de «Vendas e serviços prestados», que passou de 210,4 milhões de Euros, em 2012, para 124,2 milhões de Euros em 2013 (redução de 41,0%) e para 33,7 milhões de Euros, em 2014 (menos 72,9%). No período de 2015, a empresa registou um valor nulo de «Vendas e serviços prestados».

Em paralelo, a empresa C... Lda (adiante «C... »), apresentou um crescimento acentuado da rubrica de «Vendas e serviços prestados» no mesmo intervalo temporal, especificamente, 50,7 milhões de Euros em 2013 (acréscimo de 2.551,2%), 142,3 milhões de Euros em 2014 (mais 180,5%) e 165,6 milhões de Euros em 2015 (variação de 16,3%), tendo substituído a B... no desempenho da função comercial junto dos clientes já existentes.

A evolução simétrica das vendas das duas empresas encontrava-se justificada no ponto 4 «Evolução da Performance Económica e Financeira» do Dossier de Preços de Transferência (doravante «DPT») da B... de 2014 (página 7) onde se referia que «o decréscimo acentuado do volume de negócios em 2014 resulta do facto de quase a totalidade da atividade de comercialização de produtos siderúrgicos (…) ter sido transitada no decurso do referido exercício para uma comercializadora parcialmente detida pelo Grupo A...».

Considerando a existência de relações especiais entre o sujeito passivo e a C..., a transferência do negócio em causa e a utilização da carteira de clientes pela C... configura uma operação vinculada, que se encontra subordinada ao cumprimento do Princípio de Plena Concorrência, vertido no ordenamento jurídico português no n.º 1 do atual artigo 63.º do Código do IRC1. Nesse contexto, e tendo em consideração as Orientações da OCDE2 em matéria de preços de transferência, foi avaliada a operação vinculada em causa, com vista à aferição do cumprimento do mencionado Princípio de Plena Concorrência nos termos e condições praticados na referida transação. Na sequência desta avaliação concluiu-se que houve violação deste princípio, da qual resultou uma redução do lucro tributável da B... no período analisado, como a seguir se descreve.

1 Acrescente-se que no ponto 3 do artigo 1º da Portaria n.º 1446-C/2001 de 21 de dezembro, que complementa a regulamentação da matéria de preços de transferência, referem-se especificamente «operações comerciais realizadas no âmbito de uma alteração de estruturas de negócio».

2 Vide «OCDE – Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais» de 1995, publicado em Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (189) – Ministério das Finanças – Lisboa 2002. As orientações constantes do Relatório de 1995 registaram, entretanto, um conjunto de revisões, dando origem às «OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations», de julho de 2017, publicadas pela própria OCDE e ainda não traduzidas em Portugal, pelo que todas as referências futuras às «Guidelines» ou «Orientações da OCDE» respeitam a esta última versão.

Note-se que, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária (LGT), «em caso de existência de operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, ou de operações financeiras, efetuadas entre um sujeito passivo de imposto sobre o rendimento e qualquer outra entidade, sujeita ou não a imposto sobre o rendimento, com a qual aquele esteja em situação de relações especiais, e sempre que haja incumprimento de qualquer obrigação estatuída na lei para essa situação, a fundamentação da determinação da matéria tributável corrigida dos efeitos das relações especiais deve observar (…)» determinados requisitos, designadamente, a descrição das relações especiais, a indicação das obrigações incumpridas pelo sujeito passivo, a aplicação dos métodos previstos na lei e a quantificação dos respetivos efeitos. Nos termos anteriormente referidos, apresentar-se-ão de seguida os fundamentos da correção proposta.

III.1.1.1. Descrição das relações especiais

No contexto do referido na alínea a) do n.º 3 do artigo 77.º da LGT, importa demonstrar a existência de relações especiais entre a B... e a C... .

O n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC vem explicitar as circunstâncias em que se considera existirem relações especiais entre duas entidades, sendo que tal facto sucede nas situaçoes em que uma entidade tem o poder de exercer, direta ou indiretamente, uma influência significativa nas decisoes de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre duas entidades em que os mesmos titulares do capital detenham, em cada uma delas, uma participação, direta ou indireta, não inferior a 20% do capital ou dos direitos de voto (alínea b) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC).

Tal como indicado no ponto 2 «Estrutura Acionista» e no organograma do grupo espanhor L..., integrados no DPT3 do sujeito passivo, a empresa B... era detida a 100% pela A... SGPS, SA (doravante «A... ») e esta sociedade detinha igualmente 38,98% da empresa C..., todas sedeadas em Portugal, em 2014.

3 Página 4 do DPT da empresa B..., 2014.

No mesmo ano, o restante capital da C... (61,02%) era detido pela LAF 2000, com sede em Espanha, que simultaneamente pertencia a uma subsidiária da empresa dominante do grupo L..., localizada no mesmo país.

A estrutura societária do grupo L..., que abrange a A..., encontra-se representada na figura 1 infra.

Figura 1 – Organograma do grupo L...

 

As participações da sociedade A... encontravam-se também identificadas na IES de 2014, tal como detalhado no quadro seguinte.

Quadro 1 – Participações da sociedade A... SGPS SA, 2014

NIF         Designação         Participação

(%)         Data de início da

participação

...            D...SA   100,00   25-04-1994

...            B... LDA 100,00   22-04-1996

...            E... SA   100,00   30-06-2011

...            C... LDA 38,98     30-05-2013

...            E... SA   100,00   16-06-2014

...            J... UNIPESSOAL LDA      100,00   13-12-2006

...            K... SA   100,00   10-10-2002

Fonte: IES da empresa A..., SGPS, SA, 2014 (Declaração IES-DA .../2014/...)

Considerando a estrutura de repartição do capital da A... SGPS SA, acima descrita, concluiu-se que o sujeito passivo se encontrava em situação de relações especiais com a empresa C... . As relações especiais verificaram-se por força da alínea b) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC, uma vez que quer o sujeito passivo quer a C... são detidos diretamente pela mesma entidade (sociedade A...) em percentagens não inferiores a 20%.

Significa isto que a suprareferida operação constitui uma operação vinculada, nos termos descritos na alínea b) do n.º 3 do artigo 1º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro (doravante designada apenas por «Portaria»), conjugado com o estatuído na alínea d) do n.º 3 do artigo 1º e com a alínea c) do artigo 2º do mesmo normativo, estando subordinada ao cumprimento do Princípio de Plena Concorrência, preconizado no n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC.

III.1.1.2. Avaliação da conformidade dos preços praticados com o Princípio de Plena Concorrência

III.1.1.2.1. Subordinação da operação ao Princípio de Plena Concorrência

O Princípio de Plena Concorrência está transposto para o ordenamento jurídico nacional no n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC, o qual determina que «nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis».

A alínea a) do n.º 3 do artigo 1º da Portaria vem regulamentar o conceito de operações a que o n.º 1 do artigo 63.º alude e subordina ao cumprimento do Princípio de Plena Concorrência, referindo que, o termo «operações» abrange as operações financeiras e, bem assim, as operações comerciais, incluindo qualquer operação ou série de operações que tenha por objeto bens corpóreos ou incorpóreos, direitos ou serviços, ainda que realizadas no âmbito de um qualquer acordo, designadamente de partilha de custos e de prestação de serviços intragrupo, ou de uma alteração de estruturas de negócio, em especial quando esta envolva transferência de elementos incorpóreos ou compensação de danos emergentes ou lucros cessantes.

Adicionalmente, a Portaria, reconhecendo a complexidade técnica das realidades que envolvem a aplicação do Princípio de Plena Concorrência e a validação do respetivo cumprimento, refere no seu Preâmbulo que «(…) nos casos de maior complexidade técnica, é aconselhável a consulta dos relatórios da OCDE que desenvolvem esta matéria, e cuja adoção pelos países membros é objeto de recomendações aprovadas pelo Conselho desta organização internacional».

As Orientações emanadas pela OCDE constituem uma fonte de primordial importância na interpretação da temática de preços de transferência, nomeadamente, na aplicabilidade do Princípio de Plena Concorrência. A este respeito, Stephen Callahan4 refere «A OCDE através do Comité para os Assuntos Fiscais, tem incentivado as Administrações Fiscais e contribuintes a adotar princípios internacionais comuns de tributação, com o propósito de estimular o comércio e evitar a dupla tributação internacional».

No mesmo sentido, Helena Evangelista e Sousa5 refere que «Portugal acolheu amplamente as diretrizes da OCDE sobre preços de transferência, não se tendo coibido de referir expressamente essa «fonte». De facto, quer em diplomas preambulares, quer na Jurisprudência, deparamo-nos com assumidas menções aos Relatórios e Recomendações da OCDE. (…) No plano jurisprudencial, são várias as decisões judiciais em que é feita menção aos trabalhos da OCDE relativos aos preços de transferência, não só do lado dos sujeitos passivos como também na própria fundamentação do posicionamento do tribunal e da Administração Tributária».

4 «As Novas Regras de Preços de Transferência em Portugal», Fisco n.os 97-98, setembro, 2011, p. 39-46.

5 «O contributo da OCDE para a disciplina dos preços de transferência», em « Preços de Transferência Casos Práticos», Vida Económica, 2006, página 205.

Nestes termos, tendo ficado demonstrada a existência de relações especiais entre as entidades envolvidas na operação de transferência do negócios de comercialização de produtos siderúrgicos, bem como a subordinação desta operação ao Princípio de Plena Concorrência (n.º 1 do artigo 63º do CIRC em conjugação com o n.º 3 do artigo 1º da Portaria), em articulação com as Orientações da OCDE, importa agora demonstrar que os termos e condições praticados na referida operação vinculada divergem daqueles que seriam normalmente contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, violando, por isso, o Princípio de Plena Concorrência.

Para a comprovação da conformidade destas operações com o Princípio de Plena Concorrência os n.ºs 6 e 13 do artigo 63.º do Código do IRC e os artigos 13.º e 14.º da Portaria 1446-C/2001, obrigam ao registo e posse de um extenso conjunto de informação relevante, para que seja possível determinar, em qualquer momento, a substância dos factos económicos e as razões lógicas justificativas dos comportamentos dos sujeitos passivos.

Estando reunidas as condições exigidas para a obrigação de preparação do processo de documentação fiscal para efeitos de preços de transferência, recai sobre o sujeito passivo o ónus de provar a paridade de mercado dos termos e condições acordados, aceites e praticados nas operações efetuadas com entidades relacionadas. Essa obrigação compreende a prova da seleção e utilização do método ou métodos mais apropriados de determinação dos preços de transferência, que proporcionem uma maior aproximação aos termos e condições praticados por entidades independentes e que assegurem o mais elevado grau de comparabilidade das operações efetuadas com outras substancialmente idênticas, realizadas por entidades independentes em situação normal de mercado.

Sobre o ónus da prova na matéria de preços de transferência o Acórdão Arbitral de 8 de julho de 2016, do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), sobre o Processo n.º 733/20[1]5-T, refere que «no plano prático, e num primeiro nível, os sujeitos passivos que atinjam o volume de vendas líquidas e outros proveitos previsto na lei terão de preparar a documentação de preços de transferência de forma a sustentar a paridade das condições e termos praticados nas transações com partes relacionadas com aquelas realizadas em condições semelhantes por partes não relacionadas». Acrescenta ainda que «A AT, ao inspecionar o contribuinte, terá acesso a esta informação e verificará da conformidade com as exigências legais dos elementos atinentes aos preços de transferência, em particular da observância pela operação vinculada do princípio de plena concorrência».

III.1.1.2.2. Descrição da operação e dos termos e condições praticados

III.1.1.2.2.1. Descrição da atividade realizada pela B... e dos resultados alcançados

A B..., Lda é uma empresa residente, localizada no ..., com o NIPC..., que exerce a título principal uma atividade comercial, industrial e agrícola com o CAE 46720 – Comércio por grosso de minérios e metais.

A B... atuava principalmente no mercado português, tendo como objetivo a venda de fio, varão e malha produzidos por empresas do grupo para serem comercializadas a entidades externas ao grupo.

A sua atividade encontrava-se suportada por contratos de distribuição (ver Anexo n.º 1), estabelecidos com as empresas produtoras, designadamente, G..., H... e I... também pertencentes ao grupo A... . Estes contratos continham as obrigações das partes e abrangiam condições de fornecimento, margens praticadas, condições de pagamento e responsabilidade pelo risco de não pagamento dos clientes finais.

Os contratos de distribuição existentes conferiam à B... o direito de distribuir no território português todos os produtos industriais fabricados pelas empresas dos grupo A... sedeadas em Portugal.

As suas principais obrigações, tal como definidas no contrato de distribuição, eram:

- «Promover os maiores esforços para promover e vender os Produtos e, em geral, aumentar o volume de vendas dos mesmos;

- Comunicar com a necessária antecipação às empresas produtoras as solicitações de produtos;

- (…)

- Organizar a logística de transporte e de gestão aduaneira, nomeadamente contratando em nome das empresas produtoras os meios de transporte, negociando os respetivos preços nas melhores condições possíveis no mercado e, em qualquer caso, em condições competitivas, comunicando às empresas produtoras os serviços contratados com antecedência suficiente para que estas possam organizar os meios necessários para o carregamento e entrega;

- Resolver situações de desconformidade na comercialização dos bens sempre que decorram de causas que lhe sejam imputáveis;

- Assumir o risco de não pagamento dos clientes finais.»

O desempenho económico da B... nos anos anteriores a 2013 tinha sido positivo, tal como evidenciado nas demonstrações financeiras […]. A situação económica da B... degradou-se no ano de 2013 e seguintes, com a redução do volume de vendas. Em 2015, as demonstrações financeiras espelharam a cessação da atividade comercial da empresa.

Quadro 2 – Volume de negócios da empresa B... 2011 - 2015

                2011      2012       2013      2014      2015

Vendas e prestação de serviços 244.934.934,00  210.385.898,00  124.207.479,00  33.658.646,00    0,00

Taxa de crescimento anual (%)  -              -14,1      -41,0      -72,9      -100,0

Vendas e Prestação de Serviços 244.934.934,00  210.385.898,00  124.207.479,00  33.658.646,00    0,00

Dos quais:                                                                         

Vendas 242.634.003,00  209.142.922,00  124.080.007,00  33.522.182,00    0,00

Prestação de Serviços    2.300.931,00      1.242.976,00      127.472,00          136.464,00          0,00

CMVMC              240.472.122,00  206.996.058,00  122.686.225,00  33.249.993,00    0,00

Resultado Operacional (EBIT)     1.763.416,00      2.601.730,00       399.113,00          577.092,00          419.735,00

Fonte: IES B... 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015

Na análise à informação constante no anexo O da IES da B... foi possível constatar que os principais clientes estavam fidelizados, existindo uma relação comercial estável entre fornecedor e clientes.

Mais concretamente, entre 2005 e 2012, as relações comerciais estabelecidas pela B... apresentaram as seguintes características (informação detalhada no Anexo n.º 2)6:

•             Durante este intervalo temporal (8 anos) a B... efetuou vendas a 75 empresas diferentes;

•             A maior parte das vendas foi efetuada junto de uma base estável de clientes (38 empresas), que asseguraram 88,9% da totalidade de vendas da empresa entre 2005 e 2012;

•             Em 2012, 82,3% das vendas estavam concentradas em 14 empresas e 12 destas empresas apresentavam um período de fidelização de pelo menos 8 anos;

•             Das empresas que realizaram aquisições à B... em 2012 (55 empresas), 92,7% tinham uma fidelização superior a 3 anos.

6 Esta análise foi efetuada com base no valor de vendas por cliente declarado pelo sujeito passivo no anexo O da IES de cada ano. De acordo com as instruções de preenchimento, neste anexo devem ser incluídos os clientes com sede em território nacional, cujo valor anual de vendas seja superior a 25.000 euros. O valor a menionar deve corresponder à soma dos valores constantes das faturas (excluindo os valores relativos a adiantamentos), emitidos ao mesmo cliente, líquidos de quaisquer descontos neles mencionados e com IVA incluído.

Em síntese, a B... assumia as funções comerciais e logísticas essenciais ao escoamento e colocação no mercado dos produtos siderúrgicos fabricados pelas empresas industriais do grupo A... e essa atividade permitiu-lhe alcancar resultados operacionais expressivos até 2013. O segmento de mercado em que operava era estável e os principais clientes estavam fidelizados, mantendo um volume de aquisições sólido, alinhado com a conjuntura económica e com a evolução da procura no setor de atividade em que estavam inseridos.

III.1.1.2.2.2. Entrada da C... no negócio de distribuição dos produtos fabricados pelo grupo A...

A C..., Lda é uma empresa residente com o NIPC..., localizada em ..., Palmela, que exerce a que exerce a título principal uma atividade comercial, industrial e agrícola com o CAE 46720 – Comércio por grosso de minérios e metais.

A empresa foi constituída em janeiro de 1992 e tinha por atividade principal a importação, exportação, comercialização e distribuição de produtos siderúrgicos, nomeadamente, metais ferrosos e não ferrosos e a sua transformação7.

7 Informação obtida no quadro 0501-A «Identificação da entidade» da IES da C... de 2014, ....

A 23 de maio de 2013, 38,98% do capital da C... foi adquirido pela sociedade A... (empresa dominante do grupo L... em Portugal), à M... España, SA e à O..., SL. Dado que o restante capital (62,02%) já pertencia ao grupo L..., este passou a deter 100% do capital da empresa e, portanto, a totalidade do seu controlo.

A cadeia de participações concentrava-se em empresas sedeadas em Espanha, com origem na sociedade L..., que detinha a empresa X... (99,1%). O capital da LAF 2000 era partilhado pela X... (93,99%) e pela L... (6,01%), e a LAF 2000 detinha 62,02% da C... em 2014 (ver organograma identificado como Figura 1, no ponto III.1.1.1 deste documento).

Após esta aquisição, o volume de negócios evidenciado na rubrica «Vendas e prestação de serviços» da C... registou um crescimento acentuado, evolução simétrica ao decréscim do volume de negócios da B... . Também neste ano a C... passou a apresentar um Resultado Operacional (EBIT) positivo, situação contrária à registada nos períodos anteriores8. 

8 A empresa apresentou Resultados Operacionais negativos pelo menos desde 2006, segundo informação declarada na IES.

 

Quadro 3 – Volume de negócios da empresa C... 2011 - 2015

                2011      2012       2013      2014      2015

Vendas e prestação de serviços 5.352.045,61      1.913.977,64       50.744.192,50    142.348.224,00  165.582.672,00

Taxa de crescimento anual (%)  -              -64,2      2.551,2 180,5     16,3

Vendas e Prestação de Serviços 5.352.045,61      1.913.977,64       50.744.192,50    142.348.224,00  165.582.672,00

Dos quais:                                                                         

Vendas 5.304.022,85       1.909.053,36      50.723.191,50    142.114.353,00  165.081.530,00

Prestação de Serviços    48.022,76            4.924,28               21.001,00             233.871,00          501.142,00

CMVMC              4.931.936,85       1.852.128,42      48.743.767,00    138.861.480        161.936.851,00

Resultado Operacional (EBIT)     -2.226.409,78     -1.907.179,01     344.074,00          4.474.096,00      3.267.829,00

Fonte: IES C... 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015

Com base no contrato de distribuição disponibilizado […] constatou-se que a empresa G... (NIPC...) estabeleceu com a C... a 1 de agosto de 2013, condições de fornecimento semelhantes às praticadas com a B... . Existia uma equivalência textual das cláusulas constantes do contrato de distribuição estabelecido entre as empresas G... e a C... (que juntamos no Anexo n.º 3), quando comparado com as mesmas cláusulas do contrato de distribuição estabelecido entre a G... e a B... . Confirmou-se que o anexo I do referido contrato, que estabelecia anualmente a margem a praticar entre as empresas, era igual.

No anexo I ao contrato entre a G... e a B...(ver Anexo n.º 1):

Descontos aplicáveis para determinação do preço de venda

ANO 2014

Adenda ao contrato de Distribuição Comercial de 07 de março de 2005

Revisão nos termos da cláusula 2.2

O desconto aplicável para a determinação do preço de venda do G... à B... de produto acabado será de 0,75% sobre o preço de venda acordado pela B... aos clientes finais.

No anexo I ao contrato entre a G... e a C... (ver Anexo n.º 3):

ANO 2014

Adenda ao contracto de Distribuição Comercial de 01 de agosto de 2013

Revisão nos termos da cláusula 2.2

O desconto aplicável para a determinação do preço de venda do G... à C... será de 0,75% sobre o preço de venda acordado pela B... com os seus clientes finais.

Refira-se que no anexo I ao contrato da G... com a C..., encontrava-se a designação «B... », embora tenhamos atribuído esta referência a um lapso do sujeitos passivo na sua elaboração, pelo que onde se lê «B... » deverá ler-se «C... ».

Verificou-se assim que a margem de remuneração atribuída à C... pela comercialização dos produtos fabricados pelas entidades produtoras do grupo correspondia à que era praticada com a B... .

Destaca-se, no entanto, que os seguintes termos foram excluídos do novo contrato, já não constando no contrato estabelecido entre a G... e a C...:

i)             Na cláusula segunda - «Preço e forma de pagamento» - excluiu-se a redação «2.5. Em caso de mora no cumprimento, a B... ficará obrigada ao pagamento ao G... de juros de mora à taxa de EURIBOR + 1%, pelo período que decorrer entre a data de vencimento da Nota de Débito e a data do efetivo e integral pagamento»;

ii)            Assim como na cláusula terceira - «Obrigações das partes» - o seguinte ponto não estava incluído nas obrigações da C...: «(iv) Pagar pontualmente as faturas».

Concluiu-se, portanto, que o contrato estabelecido entre uma das empresas produtoras com uma nova distribuidora – a empresa C... – manteve textualmente os termos contratualizados com a B..., ainda que tenham sido excluídas duas obrigações – pagamento de juros de mora e pagamento atempado de faturas – que se traduzem numa redução dos riscos assumidos pela nova distribuidora, os quais foram transferidos para a entidade produtora (G...).

Adicionalmente verificou-se que, entre a G... e a C..., foi praticado um desconto financeiro de pronto pagamento, no montante de 1.121.457,05 Euros em 2014 (628.353,85 Euros em 2013), tendo proporcionado uma margem bruta (“MB”) das vendas de 2,34% à C... (enquanto na B... a MB das vendas foi de 0,82, em 2014, não tendo sido aplicados descontos de pronto pagamento).

III.1.1.2.2.3. Operação de transferência do negócio da B... para a C...

A reestruturação da função de comercialização e distribuição do grupo L..., em Portugal, compreendeu, numa primeira fase, a aquisição de uma parte relevante da C... (38,98%) que lhe permitiu assumir o controlo da totalidade da empresa. Ainda em 2013, iniciou-se um processo de transferência do negócio de comercialização e distribuição de produtos siderúrgicos preconizado pela B... para a C..., que culminou em 2015, período em que a totalidade da atividade se passou a concentrar na C... .

Dado que a B... era uma empresa comercial que não possuia ativos tangíveis, a operação de transferência do negócio centrou-se na transferência de intangíveis, designadamente, carteira de clientes e know-how, como se passa a descrever.

No âmbito do procedimento inspetivo constatou-se que, após assinatura do contrato de distribuição entre as empresas produtoras e a C..., a transferência do negócio de comercialização de produtos siderúrgicos da B... para a C... foi concretizada através de uma circular remetida por e-mail à generalidade dos clientes da B... .

Nessa comunicação, enviada pelos comerciais da B... para os clientes da empresa, por solicitação do Diretor Comercial Portugal e Espanha do grupo, Sr. N..., indicou-se que «a partir do próximo dias 1 de agosto de 2013 as faturas das nossas entregas de materiais nervurados e malha electrosoldada, que vinham sendo emitidas pela B..., Lda, vão ser emitidas pela nossa sociedade C..., Lda». Como motivo, a comunicação referiu «a necessidade constante de melhorar a distribuição dos nossos produtos, especialmente no mercado português». A título de exempço juntamos cópia da circular disponibilizada pela empresa P... (NIPC...), um dos principais clientes da B... (Anexo n.º 4).

A transferência do negócio foi apresentada aos clientes como uma mera transição da obrigação de faturação da B... para a C..., como se tratasse de uma simples operação de mudança de designação da empresa, sem mais alterações.

Mostrando-se necessário obter informação sobre a relação comercial existente entre a B... e os seus clientes, foi efetuada a circularização junto dos oito principais clientes da empresa (volume de aquisições superior a 10 milhões de Euros). Constatou-se que os esclarecimentos obtidos foram coerentes, destacando-se o seguinte:

i)             Foi recebida uma comunicação – acima referida – que direcionou as encomendas que seriam solicitadas à B... para a C...;

ii)            As encomendas eram contratualizadas através de mensagem de correio eletrónico ou telefone;

iii)           Os procedimentos decorrentes da interação comercial da empresa B... com os seus clientes mantiveram-se com a transferência do negócio para a C...: as encomendas eram solicitadas e confirmadas por correio eletrónico ou por telefone e depois a sua formalização realizava-se através de um «pedido de compra» ou de «notas de encomenda»; a B... emitia a guia de remessa, que acompanhava a mercadoria, e enviava a fatura via correio;

após a transferência do negócio, todos os procedimentos se mantiveram, na esfera da C...;

iv)           Em relação às condições de aquisição, no âmbito da fixação dos preços praticados com cada cliente, a empresa Q..., SA (NIPC...), referiu que «Os preços são-nos comunicados pelas Sociedades mensalmente por telefone ou nas visitas efetuadas pelos representantes das Sociedades à nossa empresa. É de referir que a prática é a de colocação de uma encomenda com quantidades que serão levantadas ao longo de um determinando período de tempo – 1 a 2 meses, em regra»;

v)            O código interno de cliente atribuído pela B... aos seus clientes manteve-se na C...; por exemplo, a empresa R... (NIPC...) tinha o código interno de cliente «2012» na B... e a C... emitiu as suas faturas com um código igual;

vi)           Foram comunicadas pelo menos duas situações em que uma encomenda efetuada à B... correspondeu a um fornecimento realizado pela C...:

[…].

Constatou-se portanto que a C... assumiu a posição de mercado alcançada pela B... através da transferência da carteira de clientes, sem qualquer esforço comercial, limitando-se a receber as encomendas que os clientes da B... lhe endereçaram ou a satisfazer encomendas que já tinham diso acordadas com a B..., por uma solicitação da mesma, determinada por decisão do grupo.

Apesar da C... desenvolver uma atividade própria, anterior à aquisição pela sociedade A... e à contratualização da função comercial e de distribuição com as empresas industriais suas participadas, o aproveitamento da sua base de clientes já existente foi quase nulo como seguidamente se demonstra.

Após uma análise comparativa dos clientes da C... em 2012, 2013 e 20149 constatou-se que, em 2013, dos clientes existentes antes da transferência do negócio, apenas dois realizaram aquisições, nomeadamente, as empresas identificadas com o n.º 27 e n.º 38,, tendo estas aquisições representado apenas 0,17% do total de vendas em 2013. Estes clientes já não efetuaram compras em 2014 (ver Anexo n.º 6).

9 Análise efetuada com base na informação declarada pela C... no Anexo O da IES de cada ano.

Por outro lado, o aproveitamento da base de clientes da B... foi pleno: quase todos os clientes da C... (em 2013, 2014 e 2015) já eram clientes da B... em 2012. Os novos clientes (exceto empresas relacionadas) representaram uma percentagem diminuta das vendas (menos de 1%), nos períodos que se seguiram à transferência do negócio (ver Quadro 4 infra e, para maior detalhe, ver Anexo n.º 7).

Quadro 4 – Vendas da C... a clientes B... 2013-2015

                2013      2014       2015

Total das vendas              52.206.578,00    152.023.078,00  176.733.331,00

Valor das Vendas a clientes da base B... em 2012              51.950.788,00    148.962.337,00  173.970.385,00

Valor das Vendas a novos clientes           255.790,00          3.060.741,00       2.762.946,00

Valor das Vendas a novos clientes exceto empresas relacionadas             255.790,00          731.924,00          1.459.146,00

% Vendas a novos clientes exceto empresas relacionadas            0,490% 0,481% 0,826%

Fonte: IES C... 2013 (2013-... -...), 2014 (2014-... -...) e IES B...2012 (2012-... -...)

Assim, a base de clientes, que constitui um dos principais ativos de uma empresa comercial e que alicerçou o negócio da C... no ano de 2013 e seguintes, era composta quase exclusivamente por clientes que, por indicação do grupo, transferiram as suas aquisições da B... para a C..., como se se tratasse de uma única empresa.

De acordo com a Norma Contabilística de Relato Financeiro 6 (NCRF 6) a qualificação da carteira de clientes como ativo intangível está associada à sua identificabilidade, controlo sobre um recurso e existência de benefícios económicos futuros.

Em relação ao critério «controlo» o §16 da NCRF 6 refere que «Na ausência de direitos legais para proteger os relacionamentos com os clientes, as transações de troca dos próprios relacionamentos com os clientes ou outros semelhantes (…) constituem prova de que a entidade está, não obstante, capacitada para controlar os benefícios económicos futuros esperados que fluam dos relacionamentos com os clientes. Dado que essas transações de troca também constituem prova de que os relacionamentos com os clientes, em si mesmos, são separáveis, esses relacionamentos com os clientes satisfazem a definição de ativo intangível». O §17 da mesma norma contabilística acrescenta que «os benefícios económicos futuros que fluam de um ativo intangível podem incluir réditos da venda de produtos ou serviços, poupanças de custos, ou outros benefícios resultantes do uso do ativo pela entidade».

Paralelamente à transmissão da carteira de clientes, também os trabalhadores da B... passaram para a C... .

Na ação de inspeção realizada constatou-se que, no que respeita aos recursos humanos, no período analisado, o número de pessoas remuneradas ao serviço da B... manteve-se estável até maio de 2014 (ver Anexo n.º 8), mês em que os empregados existentes deixaram de fazer parte do pessoal ao serviço da empresa, sem registo de indemnização e, no mesmo mês, iniciaram funções na C... (ver Anexo n.º 8).

Acrescente-se que, com a diminuição gradual e cessação expetável da atividade comercial da B..., os contratos de trabalho das pessoas que lhe estavam afetas teriam sido rescindidos, com uma eventual atribuição da correspondente compensação legal. Na situação descrita, não existe registo de pagamento de indemnizações ao empregados da B..., que passaram a desempenhar funções na C..., ainda durante o mesmo mês.

O pessoal ao serviço da B... que cessou funções em maio de 2014 não foi substituído, pelo que a empresa se manteve em atividade após essa data, mas sem empregados.

Com base na informação disponibilizada pelo sujeito passivo, as funções desempenhadas pelos quatro funcionários ao serviço da B... até maio de 2014 eram as seguintes: Diretor Comercial, Técnico Comercial, Administrativo Comercial, Administrativo da Direção Financeira (ver Anexo n.º 9) Estes eram os únicos empregados da B... e as funções que passaram a desempenhar na C... terão sido idênticas, ou seja, centravam-se no desempenho de funções relacionadas com prospeção e contacto com clientes, eventual aconselhamento na compra e prestação de informações sobre os stocks disponíveis, definição/comunicação de preços, registo e processamento de encomendas, gestão de entregas, acolhimento de sugestões, aferição do grau de satisfação dos clientes, recolha de opinião sobre o produto e controlo de recebimentos

Durante sete meses, entre outubro de 2013 (mês seguinte à saída de cinco funcionários da C..., do total de seis ao serviço) e até à integração dos quatro ex-funcionários da B..., que ocorreu em maio de 2014, a C... manteve somente um funcionário.

Na circularização acima referida, efetuada junto dos principais clientes da B..., solicitou-se a identificação do contacto comercial de cada empresa e foram indicados contactos únicos para as duas empresas. O nome mais referido foi o do Sr. S..., que trabalhou para a B... e que se supõe, pela informação entregue pelas empresas contactadas, que tenha transitado para a C... .

Por outro lado, as competências dos empregados existentes na C... antes de 1 de agosto de 2013 não foram aproveitadas na nova área de negócio, uma vez que apenas um dos seus trabalhadores permaneceu na empresa, após o início da atividade de distribuição dos produtos dos produtos fabricados pelo grupo A... . Pela análise da Declaração Mensal de Remunerações (DMR), o pessoal ao serviço existente em 2012 (13 empregados) deixou de fazer parte da empresa, em 2012 (redução de 7 pessoas ao serviço) e 2013 (menos 5 empregados), tendo ficado ao serviço apenas um trabalhador da C..., a partir de outubro de 2013.

Isto significa que o negócio pouco rentável existente na C... antes de 2013 não teve continuidade. Ao invés, houve uma rutura com as funções desenvolvidas anteriormente, com a absorção dos recursos humanos da B... e direcionamento da totalidade dos clientes desta última.

O esvaziamento de funções da B... e a transição dos seus empregados para a C... configura igualmente uma componente de trasnferência do negócio pois significou que o know-how, procedimentos, conhecimento tácito, conhecimento do mercado e histórico de relação com os clientes existente na B... foi transferido para a C... .

Os recursos humanos de uma empresa de comércio e distribuição são um elemento fulcral para o seu desempenho, num contexto B2B10, pois é através deles que se estabelece a ligação ao mercado, quer enquanto agente difusores de informação sobre a empresa quer como meio de captação de informação sobre a concorrência e necessidades dos clientes, em particular, numa estrutura comercial com reduzida dimensão.

10 Business to Business, ou seja, num mercado em que a totalidade das transações são estabelecidas entre empresas.

 

Quadro 5 – Recursos humanos da B... no período 2012-2015

B...

                2012      2013       2014      2015

Pessoas remuneradas ao serviço da empresa     4             4              4             0

Número de horas trabalhadas   7.572     7.744     2.240     0

                                                              

Prestadores de serviços 0             0             0             0

Número de horas trabalhadas   0             0             0             0

                                                              

Gastos com o pessoal    365.966,00          337.388,00          100.022,00          0,00

Remunerações dos órgãos sociais            48.836,00            0,00        0,00       0,00

Remunerações do pessoal          251.660,00          274.114,00          79.833,00            0,00

Indemnizações 1.152,00               0,00       0,00       0,00

Fonte: IES B... 2012, 2013, 2014 e 2015

Quadro 6 – Recursos humanos da C... no período 2012-2015

C...

                2012      2013       2014      2015

Pessoas remuneradas ao serviço da empresa     13           6              5             5

Número de horas trabalhadas   26.499   6.336     9.200     9.297

Fonte: IES C... 2012, 2013, 2014 e 2015

Acrescente-se que o negócio desenvolvido pela C... era distinto do da B..., pois entre a aquisição e a venda dos produtos, incluía uma operação intermédia de corte/transformação dos produtos, isto é, na cadeia de valor a empresa posicionava-se como cliente da B... . O seu negócio passava pela aquisição de um volume elevado de produtos siderúrgicos, seguida pela realização de operações de transformação, e venda posterior a outras empresas, em menores quantidades.

Da análise do código CAE dos clientes das duas empresas, identificados no anexo O da IES de 201211, resultou que as áreas de atividade em que se inseriam eram diferentes. Contudo, tendo em conta a amplitude da classificação, encontraram-se algumas semelhanças pontuais (ver Anexo n.º 10).

11 IES B... 2012 (2012-...) e IES C... 2012 (2012-...)

O segmento de mercado dos cliente da B... era composto por empresas que se dedicavam ao Comércio por grosso de minérios e metais (47,3%), Comércio por grosso de materiais de construção (12,7%), Fabricação de estruturas de construções metálicas (7,3%) e Fabricação de produtos de arame (7,3%).

As empresas clientes da C... inseriam-se principalmente em setores de atividade que incorporavam na sua produção os materiais adquiridos junto da C..., designadamente, Construção de Edifícios (33,3%) e Fabricação de estruturas de construções metálicas (16,7%).

Pelo exposto, considera-se demonstrado que os ativos intangíveis que estavam na esfera da B...– carteira de clientes fidelizados e know-how do pessoal ao serviço – deixaram de ser empregues na atividade produtiva da empresa, tendo sido transferidos para uma entidade relacionada12, a sociedade C... . Esta operação entre entidades relacionadas, que se centrou na transferência e utilização de ativos intangíveis, no âmbito de uma alteração de estruturas de negócio, configura uma operação vinculada e, como tal, encontra-se subordinada ao cumprimento do princípio da plena concorrência13.

12 Pela alínea b) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC.

13 Pela alínea a) do n.º 3 do artigo 1º da Portaria, em complemento do n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC.

Considera-se ainda demonstrado que os ativos intangíveis suprarreferidos constituíam um elemento essencial do negócio em que a B... operava e que, como tal, existiu uma relação de causalidade entre a transferência destes ativos para a esfera da sociedade C... e a diminuição gradual da atividade comercial da B... e posterior cessação da mesma. A B..., ao realizar esta operação, deixou de realizar vendas, que lhe proporcionavam uma margem garantida, contratualizada com as empresas industriais do grupo A... . Sendo uma empresa rentável que, com a transferência dos ativos intangíveis para a C... ficou esvaziada de funções, abdicou dos lucros potenciais proporcionados pela atividade que desenvolvia. 

Além disso, ficou demonstrado que os ativos intangíveis recebidos pela C... tiveram um efeito determinante no seu desempenho comercial. A quase totalidade das vendas realizadas pela C... no ano de 2014 e seguintes resultou de encomendas dos clientes que integravam a carteira de clientes da B... . Para a concretização dessas vendas, foi utilizado o know-how detido pelo pessoal ao serviço da C... , que tinha transitado diretamente da B... .

Há ainda a referir que, foi possível reconhecer que as competências existentes na C... não foram mobilizadas no desempenho da atividade de comercialização e distribuição de produtos siderúrgicos do grupo A..., que iniciou em 2013. Manteve apenas um dos treze trabalhadores existentes em 2012, alterou a sua posição na cadeia de valor e passou a oferecer produtos a um segmento de mercado distinto.

Finalmente, o conjunto de Demonstrações Financeiras preparadas pelo sujeito passivo evidenciou que não existiu qualquer compensação atribuída à B..., pela operação realizada. Esta informação foi também confirmada nas reuniões realizadas com o sujeito passivo e na resposta à nossa notificação de 23 de maio de 2017.

III.1.1.2.2.4. Demonstração do Cumprimento do Princípio de Plena Concorrência na operação realizada, pelo sujeito passivo

Tal como referido no ponto III.1.1.2.1, cabe ao sujeito passivo a organização da documentação necessária à comprovação do cumprimento do Princípio de Plena Concorrência nas operações vinculadas realizadas. A operação em apreço não foi considerada no DPT apresentado pelo sujeito passivo e, como tal, a situação de relações especiais não foi descrita, a operação não foi caracterizada, não foi indicado o preço e condições da operação praticada, nem os métodos subjacentes à sua definição. Em relação a esta operação, esteve igualmente omissa a descrição das funções exercidas, ativos utilizados e riscos assumidos, quer pelo sujeito passivo, quer pelas entidades relacionadas envolvidas.

Face à ausência de informação sistematizada que versasse sobre a operação de transferência dos ativos intangíveis (que sustentavam o negócio de comercialização de produtos siderúrgicos da B...), no dia 23 de maio de 2017, através de notificação, solicitou-se ao sujeito passivo que indicasse «as razões que estiveram na origem da redução da atividade de distribuição desempenhada pela B... e na transição dessa atividade para a empresa C...» e «o valor da compensação atribuída pela C... à B... em razão da cessação e transferência progressiva da atividade comercial que esta última desempenhava, e em prol da exploração do mesmo negócio pela C..., demonstrando a conformidade dessa compensação com o Princípio de Plena Concorrência. Caso não tenha existido compensação, queiram então demonstrar que a inexistência de uma compensação cumpre o Princípio de Plena Concorrência» (ver cópia da notificação entregue, que juntamos como Anexo n.º 11).

A resposta recebida a 5 de junho de 2017 (ver Anexo n.º 12) indicou que «no que concerne À identificação das razões que estiveram na origem da redução da atividade de distribuição da B... Lda (ponto 1.1), as mesmas prendem-se com razões de estruturação e otimização comercial, conforme foi estudado e deliberado internamente».

Neste ponto o sujeito passivo, apresentou uma resposta genérica, não tendo demonstrado o impacto económico efetivpo da «estruturação e otimização comercial». Com efeito, tal como foi detalhado no ponto III.1.1.2.1, numa primeira fase, o ónus da prova em matéria de preços de transferência caberia ao sujeito passivo, a quem cumpre respeitar a obrigação legal de documentar os termos e condições da operação vinculada realizada, em conformidade com o estabelecido nos números 6 e 13 do artigo 63.º do Código do IRC e os artigos 13.º e 14.º da Portaria 1446-C/2001.

Não obstante a existência da obrigação legal, na resposta remetida pelo sujeito passivo não foram disponibilizados documentos que comprovassem os efeitos pretendidos (e alcançados) com a estruturação e otimização comercial da empresa. Com base na informação consultada pela AT, nomeadamente lista de clientes da B... e da C... e histórico de trabalhadores ao serviço em ambas as empresas, concluiu-se que não houve alargamento da base de clientes, nem aproveitamento dos recursos existentes na C..., o que contraria as razões invocadas.

Em relação à compensação ou valor transacional atribuído à transferência do negócio da B... para a C..., o sujeito passivo esclareceu que, no seu entendimento, «a mesma não é aplicável, desde logo por duas razões. Em primeiro lugar, a C... não é parte em nenhum contrato celebrado com a B...– aliás a C... era entidade terceira nas relações entre a B... e as sociedades produtoras (G..., H... e I...) – e, em segundo lugar, dos próprios contratos de distribuição celebrados entre a B... e a G..., S.A., a H..., S.A. e a I..., S.A., em vigor no exercício objeto de inspeção (2014), que aqui anexamos igualmente (vide Anexo 2), não resulta qualquer obrigação de compensação à B..., nem nenhum direito atribuído à B... conta a C...».

Acrescentou que «com efeito, da conjugação das cláusulas n.º 5 e n.º 11 dos contratos de distribuição, resulta a possibilidade de cessão de posição contratual não havendo qualquer direito de indemnização para nenhuma das partes contratantes. Assim sendo qualquer das partes envolvidas pode livremente, tal como em situações de Plena Concorrência, selecionar outra entidade para os mesmos fins. Assim entende que não deverá ser ficcionada qualquer compensação».

Refira-se que no que respeita às condições inerentes à transferência do negócio, o sujeito passivo enquadrou a compensação a atribuir pela C... à B... na esfera do cumprimento das condições contratuais estabelecidas entre as empresas e não no âmbito do artigo 63º do Código do IRC, que elenca obrigações específicas para os efeitos fiscais das relações comerciais estabelecidas entre entidades relacionadas.

Tal como referido no ponto I.4.1.1 deste documento, considerando que estamos perante duas entidades relacionadas, a transferência do negócio em causa encontra-se subordinada ao cumprimento do Princípio de Plena Concorrência, vertido no ordenamento jurídico português no n.º 1 do atual artigo 63.º do Código do IRC. Nesta perspetiva, e tendo em consideração as orientações da OCDE nesta matéria, nomeadamente no que concerne ao seu Capítulo IX «Transfer Pricing Aspects of Business Restructurings», a questão relevante teria sido demonstrar que as condições praticadas ou impostas na restruturação do negócio não diferiram daquelas que seriam aplicadas entre empresas independentes.

Conclui-se que, a resposta recebida não continha os elementos necessários à demonstração do cumprimento do Princípio de Plena Concorrência na operação de transferência do negócio da B... para a C..., designadamente, não foi realizada a prova da seleção e utilização do método ou métodos mais apropriados de determinação dos preços de transferência, que proporcionassem uma maior aproximação aos termos e condições praticados por entidades independentes e que assegurassem o mais elevado grau de comparabilidade das operações efetuadas com outras substancialmente idênticas, realizadas por entidades independentes em situação normal de mercado.

Embora se considere um aspeto secundário face à evidenciação do cumprimento do Princípio de Plena Concorrência na transferência do negócio, teria ainda de ser demonstrado que as condições contratuais estabelecidas nos contratos de distribuição em que intervêm a B... e as empresas industriais do grupo –G..., H... e I...14 – tinham subjacentes as Orientações da OCDE nesta matéria, nomeadamente que os termos contratuais estabelecidos correspondiam aos que seriam estabelecidos entre empresas independentes.

14 Em 2014, estas empresas eram detidas a 100% pela sociedade D... SA (NIPC...), cuja totalidade do capital social pertencia à A..., SGPS, SA, que também detinha a empresa B..., como pode ser observado na Figura 1 do ponto III.1.1.1. deste documento. Como tal, existem relações especiais entre estas empresas, uma vez que são detidas, direta ou indiretamente, em percentagem não inferior a 20%, pela mesma entidade (alínea b) do n.º 4 do artigo 63º do CIRC).

Nas transações entre empresas independentes, a diferença de interesses entre as partes garante (i) que os termos contratuais refletem a vontade de ambas as partes; (ii) que as partes irão zelar individualmente pelo cumprimento das condições contratuais; (iii) que os termos contratuais só serão ignorados ou alterados se esse for o interesse de ambas as partes. Entre entidades relacionadas essa diferença de interesses poderá não existir ou ser determinada pelas relações de controlo existentes.

Nesta perspetiva, a aceitação, por parte da B..., de um contrato de distribuição, do qual depende a totalidade da sua atividade, contendo cláusulas que (i) prejudicam o seu interesse individual (Cláusula 11º, que prevê que as partes abdiquem do direito de solicitar indemnizações no âmbito da execução ou cessação do contrato) e (ii) são contrárias ao cumprimento do princípio de plena concorrência (Cláusula 5ª, onde as partes preveem a cessão de posição contratual apenas a sociedades do Grupo B... a e Cláusula 10ª que determina que em caso de mudança de controlo, em que esse controlo passe a ser exercido por entidade não pertencente ao grupo B..., o contrato cessará efeitos imediatamente), é uma decisão que difere da racionalidade da prossecução do interesse próprio que existiria numa empresa independente.

III.1.1.2.2.5. Incumprimento do Princípio de Plena Concorrência na operação realizada

De acordo com a al. a) do n.º 3 do artigoº 1.º da Portaria 1446-C/2001, que rege a temática de preços de transferência, o termo «operações» abrange (…) as operações comerciais, incluindo qualquer operação ou série de operações que tenha por objeto bens corpóreos ou incorpóreos, direitos ou serviços, ainda que realizadas no âmbito de (…) uma alteração de estruturas de negócio, em especial quando esta envolva transferência de elementos incorpóreos ou compensação de danos emergentes ou lucros cessantes».

Pelo exposto no ponto III.1.1.2.2.3, constatou-se que a transferência do negócio da B... para a C... se tratou de uma operação entre entidades relacionadas, interna ao grupo L..., que detinha o controlo de ambas as empresas. Os principais elementos transferidos, de natureza intangível, foram a carteira de clientes e o conhecimento do negócio e do mercado (know-how), inerente às funções desempenhadas pelos empregados da B... que passaram, todos, para a C... .

As condições aplicadas não cumpriram o Princípio de Plena Concorrência pois nenhuma empresa independente abdicaria da margem comercial proporcionada pelos intangíveis detidos, sem ser compensada pelo efeito negativo que a transferência desses intangíveis para outra empresa teria nos seus resultados.

III.1.1.2.3. Seleção do método mais apropriado para a avaliação dos termos e condições praticados

Nos termos do n.º 2 do artigo 63.º do Código do IRC, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o sujeito passivo «o método ou métodos suscetíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efetua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os ativos utilizados e a repartição do risco».

No mesmo sentido, estipula o n.º 1 do artigo 4.º da Portaria que «o sujeito passivo deve adotar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método mais apropriado a cada operação ou série de operações». Em conformidade com o n.º 2 do mesmo preceito legal, «considera-se como método mais apropriado para cada operação ou série de operações aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordos, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, devendo ser feita a opção pelo método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e outras não vinculadas e entre as entidades seleccionadas para a comparação, que conte com melhor qualidade e maior quantidade de informação disponível para a sua adequada justificação e aplicação e que implique o menor número de ajustamentos para efeitos de eliminar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis».

O Código do IRC e a Portaria enumeram o métodos a utilizar, em linha com as Orientações da OCDE, que se agrupam numa de duas tipologias:

i.             Métodos Tradicionais ou Métodos Baseados nas Operações (os chamados «Traditional Transactional Methods»);

ii.            Métodos Baseados no Lucro das Operações (os chamados «Transactional Profit Methods»).

De entre os métodos baseados nas operações são identificados no n.º 3 do artigo 63.º do Código do IRC e no n.º 1 do artigo 4.º da Portaria, os seguintes:

•             Método do Preço Comparável de Mercado (MPCM);

•             Método do Preço de Revenda Minorado (MPRM);

•             Método do Custo Majorado (MCM).

Quanto os métodos baseados nos lucros das operações referido são identificados, no n.º 3 do artigo 63.º do Código do IRC e no n.º 1 do artigo 4.º da Portaria, os seguintes:

•             Método do Fracionamento do Lucro (MFL);

•             Método da Margem Líquida da Operação (MMLO);

•             Outros métodos.

Em conformidade com as mais recentes Orientações da OCDE em matéria de preços de transferência (vide o § 2.1 e seguintes das Guidelines) a seleção de um destes métodos para a avaliação da conformidade de uma operação vinculada com o Princípio de Plena Concorrência visa encontrar o método mais apropriado para cada caso específico. Neste sentido, e considerando o disposto no § 2.3. daquelas Orientações, os métodos baseados nas operações são vistos como métodos mais diretos para estabelecer se as condições praticadas no âmbito de uma operação vinculada são arm’s length.

De acordo com o § 2.15 das Orientações da OCDE, desde que seja possível a identificação de operações comparáveis em mercado aberto, o Método do Preço Comparável de Mercado (MPCM) constitui «o meio mais direto e mais fiável de aplicação do princípio de plena concorrência», pelo que deve ser dada preferência a este sobre os demais. O MPCM consiste na comparação direta de operações, através da comparação dos preços praticados em operações vinculadas com os preços praticados em operações comparáveis não vinculadas, realizadas entre entidades independentes. Por outras palavras, este método pode, assim, ser utilizado quando o sujeito passivo tenha, nomeadamente, realizado operações da mesma natureza, cujo objeto seja um serviço idêntico, com uma entidade independente.

Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 77.º da LGT é de referir que, face às características da operação e à informação disponível, o MPCM revela-se como o mais apropriado, em concordância com o previsto no n.º 2 do artigo 4.º da já referida Portaria. Deste modo o MPCM assume-se como o método mais adequado a utilizar e será utilizado na análise das condições que seria praticadas entre entidades independentes em operações similares à ora analisada. A sua preferência em relação aos demais métodos advém do facto de constituir a forma mais direta de determinar se as condições acordadas, entre entidades relacionadas, são condições de Plena Concorrência.

Não obstante as linhas diretoras concetualmente definidas para a aplicação do Princípio de Plena Concorrência se empregarem, igualmente, na determinação de preços de transferência entre empresas associadas no caso de bens incorpóreos, a sua aplicação poderá revelar-se particularmente complexa em operações vinculadas relativas a intangíveis. Tal como disposto no § 6.108 das Orientações da OCDE «the principles of Chapters I – III can sometimes be difficult to apply to controled transactions involving intangibles. Intangibles may have special characteristics that complicate the search for comparables, and in some cases make pricing difficult to determine at the time of the transaction».15

15 Tradução livre da AT «Os princípios dos Capítulos I a III podem às vezes ser difíceis de aplicar a operações vinculadas que envolvam intangíveis. Os  intangíveis podem apresentar características específicas que complicam a pesquisa de comparáveis e, nalguns casos, tornar difícil a determinação do preço reportado ao momento da transação».

A aplicação do MPCM à análise da transferência do negócio da B... para a C... e correspondente utilização dos ativos intangíveis transmitidos, centra-se na comparação da remuneração auferida pela B..., no momento em que detinha o controlo exclusivo dos intangíveis referidos – carteira de clientes e know-how dos trabalhadores – e a remuneração que esperaria receber caso transferisse ou concedesse o direito de utilizar os ativos intangíveis a outra empresa, substituindo-a no desempenho do negócio que controlava.

Entre empresas independentes, uma empresa que utiliza intangíveis essenciais ao seu negócio só realizaria uma operação de transferência ou concessão do direito de utilizar os ativos intangíveis para outra empresa, abdicando dos mesmos, caso recebesse um incentivo pelo menos equivalente ao valor da remuneração obtida com base nesses intangíveis. Essa empresa iria comparar a remuneração das operações comerciais proporcionadas pela detenção desses intangíveis com a remuneração que iria obter com a suspensão da utilização desses ativos, e só realizaria uma operação de transferência para outra empresa caso viesse a receber uma remuneração igual ou superior.

Por outras palavras, uma empresa, ao realizar uma operação em que transfere ativos (ou a concessão do direito de utilização dos mesmos) para outra empresa fará sempre a comparação entre a situação presente (em que explora diretamente os ativos e estes lhe proporcionam lucros) e a situação futura (em que os ativos ou os direitos da sua exploração direta passam para a esfera da outra empresa). Tendo subjacente o princípio da plena concorrência, esta empresa só concretizará a operação caso os benefícios que espera alcançar com a situação futura, igualem ou superem os benefícios presentes.

Até num contexto de partilha de intangíveis com uma empresa independente, a empresa detentora dos ativos apenas equacionará a partilha caso o preço oferecido pela outra empresa compensar o risco associado a essa operação, isto é, a empresa detentora dos ativos irá comparar o preço oferecido com o efeito económico esperado da diminuição de lucros ou aumento de custos. Por exemplo, a partilha de uma carteira de clientes com uma empresa que ofereça produtos iguais ou semelhantes, acarreta o risco de divisão do mercado e consequente diminuição dos lucros. Poderá ainda suscitar o aumento dos gastos em serviços comerciais e de marketing para manter, recuperar ou angariar novos clientes, evitando reduzir o nível de vendas.

Ainda sobre a complexidade da determinação do preço de plena concorrência em operações vinculadas que envolvem intangíveis, o § 6.3 das Orientações da OCDE, refere que «Where necessary the analysis should consider, within the framework of Section D.2 of Chapter I, whether independent parties would have entered into the arrangement and if so, the conditions that would have been agreed»16.

16 Tradução livre da AT:« Quando necessário, a análise deverá considerar, sob o enquadramento da secção D.2 do Capítulo I, se empresas independentes teriam realizado a operação e, em caso afirmativo, as condições que teriam sido acordadas».

De acordo com o disposto nos § 1.33 e 1.34 das Orientações da OCDE, a aplicação do Princípio de Plena Concorrência assenta, de um modo geral, na comparação entre as condições praticadas numa operação vinculada e as condições praticadas numa operação entre entidades independentes. Para determinar o grau de comparabilidade entre operações, refere esta fonte doutrinária, é necessário entender o modo como as entidades independentes avaliam os termos de potenciais operações e, na ponderação das condições a praticar numa eventual operação, dever-se-á ter presente que aquelas entidades independentes vão comparar essa operação com outras opções que realisticamente se lhes ofereçam, e só concluem uma operação se não tiverem outra alternativa mais vantajosa. Este articulado materializa o paralelismo existente entre o Princípio de Plena Concorrência e o princípio do sound business purpose que deverá assistir a uma gestão empresarial eficaz e eficiente.

III.1.1.2.4. A valorização dos intangíveis transmitidos

O § 9.11 das Orientações da OCDE, integrado no capítulo dedicado à reestruturação de negócios17, refere que o objetivo principal da análise a realizar é apurar se as condições aplicadas ou impostas numa reestruturação de negócios diferem das que seriam estabelecidas entre empresas independentes. Caso esta situação se verifique, isto é, caso as condições praticadas não correspondam às que seriam estabelecidas entre empresas independentes, devem-se apurar os lucros que teriam sido realizados pela empresa, que devido às condições aplicadas ou impostas não ocorreram e, como tal, incluí-los nos seus resultados fiscais sujeitos ao pagamento de imposto.

17 No original «Transfer pricing aspects of business restructurings».

Neste âmbito, as Orientações da OCDE clarificam o conceito de «lucros potenciais» ou «lucros futuros esperados»18, indicando que o Princípio de Plena Concorrência não tem aplicação num contexto de mero decréscimo de resultados. Contudo refere-se que «When applying the arm’s length principle to business restructurings, the question is whether there is a transfer of something of value (an asset or an ongoing concern) or a termination or substantial renegotiation of existing arrangements and that transfer, termination or substantial renegotiation would be compensated between independent parties in comparable circumstances»19.

18 Parágrafo 9.39 de OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, 2017

19 Tradução livre da AT «Na aplicação do Princípio de Plena Concorrência em situações de reestruturações de negócios, a questão relevante é apurar se existiu a transferência de algo com valor (um ativo ou um negócio em curso) ou a revogação ou renegociação substancial de um contrato existente em que essa transferência, revogação ou renegociação substancial seria compensada entre empresas independentes em circunstâncias comparáveis».

Como transferência de algo com valor, especificam-se as situações relacionadas com (i) transferência de ativos tangíveis20; (ii) transferência de ativos intangíveis21 e (iii) transferência de um projeto em curso ou unidade de negócio22. 

20 Parágrafo 9.49 e seguintes de OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, 2017

21 Parágrafo 9.55 e seguintes de OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, 2017

22 Parágrafo 9.68 e seguintes de OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, 2017

A transferência de ativos intangíveis abrange elementos muito diversos, podendo incluir nomeadamente «customer lists, distribution channels, unique names, symbols or pictures»2324. Daí que, uma parte importante da análise passe pela identificação dos intangíveis relevantes ou direitos sobre intangíveis que sejam transferidos e por questionar se uma entidade independente teria remunerado essa transferência e qual o valor a atribuir à mesma.

23 Parágrafo 9.55 e seguintes de OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, 2017

24 Tradução livre da AT «lista(s) de clientes, canais de distribuição, designações únicas, símbolos ou imagens».

Ainda de acordo com as Orientações da OCDE25, a transferência de empregados para uma entidade relacionada em conjunto com a transferência de outros ativos, num contexto de reestruturação de negócio, pode constituir, para a entidade de acolhimento, uma forma de poupança, quer de tempo quer de despesas de contratação e formação de novos empregados.

25 Parágrafo 1.153 de OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, 2017

Acrescenta-se que, em algumas situações, a transferência dos funcionários pode resultar na transferência de know-how valioso de uma empresa para outra, podendo mesmo aumentar o valor de outros intangíveis transferidos ou de outros ativos26.

26 Parágrafo 1.156 de OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, 2017

A transferência do negócio em análise reflete este efeito, porque a transferência da carteira de clientes, secundada pela transferência de experiência acumulada pelos empregados da B..., dá origem a uma exploração informada e direcionada da carteira de clientes, aumentando o seu valor.

Para determinar um montante da compensação que cumpra as diretrizes do princípio de plena concorrência é necessário tomar em consideração, designadamente, o valor da transferência do negócio para o beneficiário e o montante que uma empresa independente comparável estaria disposta a pagar pelo mesmo em circunstâncias equiparáveis assim como os custos incorridos (ou lucros cessantes) para a empresa que abdica do negócio. De uma forma geral, ter-se-á em consideração tanto o montante que o novo distribuidor estaria disposto a pagar para obter o negócio, como a compensação que a empresa que cede o negócio esperaria receber pela diminuição das suas vendas e resultados operacionais correspondentes.

A B..., à luz do princípio de plena concorrência, nas operações realizadas com entidades relacionadas, deverá procurar maximizar o retorno dos ativos que detém. Perante uma situação semelhante, uma entidade independente iria avaliar a opção de vender ou manter os ativos, escolhendo a opção de maior retorno económico e financeiro.

Há que considerar que a opção de venda está associada a um processo negocial, envolvendo a disputa, entre comprador e vendedor, do preço da operação e a exata natureza da mesma. Enquanto entidades independente cada qual procura maximizar os seus interesses. A possibilidade de acordo é condicionada pela oportunidade de obtenção de ganhos para ambas as partes.

Em «Avaliação de Empresas e de Negócios», João Carvalho das Neves, McGraw-Hill, 2002, página 33 e seguintes, o autor refere que: Uma das tipologias possíveis para classificar os métodos de é a seguinte: Avaliação Patrimonial (Asset Based Approach), Avaliação Comparativa com o Mercado (Market Approach) e Avaliação pelo Rendimento Atualizado. O método do rendimento é a abordagem mais utilizada quando se avalia o valor de um negócio, sendo o valor mensurado através do cálculo do valor presente dos benefícios económicos futuros.

Neste âmbito, o modelo com a designação «Excess Earnings Approach» apresenta-se como um modelo híbrido de avaliação (combinando a abordagem rendimento com a abordagem custo), que consiste na aplicação da seguinte equivalência para determinação do valor de um negócio: Valor do Ativo Intangível = Valor do Negócio (Cash Flows descontados) – Valor do Ativo Tangível.

O Excess Earnings Approach, método de avaliação baseado na abordagem rendimento, baseia-se nos seguintes pressupostos:

a)            O valor de um negócio é igual à capitalização do seu rendimento;

b)           O fluxo de rendimentos pode ser decomposto em duas componentes:

i.             Uma rentabilidade normal nos ativos líquidos tangíveis;

ii.            A diferença entre o valor do negócio e o valor dos ativos tangíveis consiste no valor dos intangíveis.

No modelo Excess Earnings Approach o termo ativo tangível referese ao valor de mercado de dinheiro, inventários, contas a receber, propriedade, entre outros, líquido de todas as obrigações. Os ativos líquidos tangíveis não incluem elementos imateriais ou intangíveis – tais como carteiras de clientes ou know-how referente ao mercado e processos de desenvolvimento do negócio – que representam fatores adicionais que permitem às empresas a obtenção de rendimentos mais elevados.

A referência a este modelo justifica-se porque para apurar o valor de transferência do negócio da B... para a C..., há que considerar as duas componentes: o ativo tangível transferido e o ativo intangível, que no caso presente não foi considerado pelo sujeito passivo para efeitos de avaliação do valor do negócio de comercialização de produtos siderúrgicos.

III.1.1.2.5. Aplicação de um modelo de avaliação

Considerando que o sujeito passivo argumentou que não seria de atribuir qualquer compensação à B... pela transferência do negócio para a C..., não foram apresentados estudos de avaliação do valor do negócio, que pudessem comprovar que o preço praticado corresponde ao justo valor dos ativos alienados (intangíveis).

Não existindo uma base de avaliação apresentada pelo sujeito passivo, o trabalho realizado pela Administração Fiscal baseou-se no apuramento da valor da concessão do direito de exploração anual da carteira de clientes, que estava a ser explorada pela B... e que passou para a esfera da C... .

Para tal, o apuramento desse valor baseou-se: 

1º Numa quantificação das vendas anuais realizadas pela C... junto dos clientes da B... em 2014, que traduzem o acesso direto e respetiva utilização da carteira de clientes cedida pela B...;

2º No apuramento dos lucros operacionais anuais que a B... deixou de obter por ter cedido a sua lista de clientes e know-how à C..., que correspondem à margem acordada com as empresas produtoras, reduzida dos custos anuais em que teria incorrido para concretização das vendas.

Assim, o procedimento de avaliação foi o seguinte:

1º Quantificação das vendas realizadas pela C..., junto dos clientes da B... em 2014, que traduzem o acesso direto à carteira de clientes cedida pela B...

O procedimento adotado para estimar as vendas potenciais da B... em 2014 teve por base a proporção das vendas da C... alcançada através do recurso à carteira de clientes da B... . Tal como referido no quadro 4 supra, a percentagem de vendas realizadas junto de clientes angariados pela C... (exceto empresas relacionadas) foi de 0,481%, o que significa que o volume de vendas restante (99,519%) resultou do direcionamento dos clientes de B... . Assim sendo, e tomando por referência o valor de vendas (exceto prestação de serviços) declarado pela C... no campo A6042 do quadro Q05301-A da IES, o valor de vendas que deixou de ser realizado pela B... foi de 141.430.782,96.

Não foi utilizado o valor de vendas por cliente declarado no anexo O da IES pois os valores declarados correspondem ao valor da fatura, ou seja têm IVA incluído (quando aplicável).

2º No apuramento dos lucros operacionais anuais que a B... deixou de obter por ter cedido a sua carteira de clientes à C..., que correspondem à margem acordada com as empresas produtoras, reduzida dos custos em que teria incorrido para concretização das vendas.

Tal como estabelecido no Anexo I do contrato de distribuição assinado com as empresas produtoras do grupo, «o desconto aplicável para a determinação do preço de venda da – empresa produtora – à B... será de 0,75% sobre o preço de venda acordado pela B... com os seus clientes finais»27, o que é equivalente à obtenção de uma margem bruta sobre as vendas de 0,75%.

27 Ver anexos aos Contratos de Distribuição estabelecidos com as empresas industriais do grupo A..., que juntámos como Anexo I deste documento.

Uma vez que a informação sobre as vendas efetivamente realizadas junto dos clientes da C... estava disponível, optou-se por utilizar dados reais em detrimento da utilização do valor atualizado da projeção de vendas futuras.

A utilização de dados reais constitui a opção mais adequada pois espelha diretamente as condições de mercado, nomeadamente, a procura anual existente e o nível de preços praticados.

Assim, respeitando a margem bruta do contrato de distribuição vigente, as vendas realizadas a clientes da B... resultariam numa remuneração de 1.060.730,87 Euros (0,75% do valor de vendas acima mencionado) pelo desempenho da atividade de comercialização de produtos siderúrgicos.

A este rendimento há que deduzir os custos operacionais diretos, inerentes à concretização das vendas, nomeadamente, os gastos com o pessoal e os fornecimentos e serviços externos.

No ano de 2014, a B... registou na rubrica de « Fornecimentos e serviços externos»28 o valor de 1.394.298,00 Euros e na rubrica de «Gastos com o pessoal»29 o montante de 209.565,00 Euros.

28 Campo A5007 do Quadro 03-A da IES-DA da C..., 2014, 2208-I0301-30

29 Campo A5008 do Quadro 03-A da IES-DA da C..., 2014, 2208-I0301-30

O DPT da B... de 2014, na página 19, refere que «em operações de venda em que existe um frete marítimo, este é suportado pelas empresas comercializadoras, sendo neste caso adicionado à martem fixa, aquando da determinação do preço a aplicar pela fábrica à comercializadora», o que significa que, os custos de transporte são reembolsados pelas empresas produtoras quando suportados pela empresa distribuidora.

Esta situação, segundo o sujeito passivo, ocorre habitualmente nos transportes internacionais esporádicos (a atuação da empresa centra-se no mercado interno) e nos transportes para as Regiões Autónomas da Madeira ou dos Açores.

A fórmula de cálculo aplicada para obtenção do preço de venda de plena concorrência das empresas produtoras (página 19 do DPT da B...) contempla o reembolso dos custos de transporte incorridos pelas empresas comercializadoras (neste caso,B... e C...):

PV = A*(1 – 0,75) – B

                               Em que:

                               PV – Preço de venda da empresa industrial

                               A – Preço de venda médio da comercializadora ao cliente final

B – Custos de distribuição por tonelada da comercializadora

Considerando que, no cálculo da margem a receber pela B..., apenas se considerou o valor de 0,75% das vendas realizadas pela C... a clientes da B...30, para obter o valor correspondente à margem de comercialização efetiva, não se poderão incluir, nos custos operacionais diretos, os custos de transporte.

30 Tendo-se excluído novos clientes, exceto empresas relacionadas.

Os custos de transporte estão incluídos na rubrica de «Fornecimentos e serviços externos», contudo o detalhe da mesma não foi declarado no Quadro 061-A da IES/DA da C... .

Em resposta ao nosso pedido de esclarecimentos adicionais, remetido a 17 de janeiro de 2017, o sujeito passivo, na resposta que remeteu a 22 de março de 2017, indicou que os custos de transporte relevntes, para o apuramento da margem de comercialização da C..., se tinham fixado em 875.280,55 Euros (ver Anexo n.º 12).

Quadro 7 – Resultado para 2014 do modelo de avaliação adotado

                2014

A. Vendas e prestação de serviços da C...1           142.348.224,00

B. Vendas da C...2            142.114.353,00

C. Prestação de serviços da C...3               233.871,00

D. % Vendas a clientes B...           99,519%

               

F. EBIT (Res. Operacional) C...    4.474.096,00

G. Vendas a atribuir à B...(=B*D)              141.430.782,96

H. Margem sobre as Vendas (=G*0,75%)             1.060.730,87

Custos Operacionais Diretos      

Fornecimentos e serviços externos 4      1.394.298,00

Dos quais: Custos de transporte               -875.280,55

Gastos com o pessoal 5 209.565,00

I. Total dos Custos Operacionais Diretos               728.582,45

Lucros operacionais que a B... deixou de obter (=H-I)     332.148,42

1 Campo A501 do Q03-A da IES – DA da C...(2014) ...

2 Campos A6042 do Q05301-A da IES – DA da C...(2014) ...

3 Campos A6045 do Q05301-A da IES – DA da C...(2014) ...

4 Campo A5007 do Q03-A da IES – DA da C... (2014) ...

5 Campo A5008 do Q03-A da IES – DA da C... (2014) ...

 

O montante de 332.148,42 Euros configura a margem operacional potencial da B... e representa o rendimento anual, referente ao período de 2014 a que a B... deixou de aceder por ter abdicado, sem qualquer compensação, de clientes fidelizados que realizaram aquisições durante um longo período de tempo e que transitaram para a C... devido a uma decisão imposta pelo grupo. Uma empresa independente, na posse de uma carteira de clientes fidelizados, só abdicaria de parte das suas encomendas presentes e das encomendas futuras, caso obtivesse uma compensação que lhe permitisse aceder a um rendimento equivalente ou superior.

O preço de plena concorrência a título de compensação pela cedência do direito de utilização da carteira de clientes e know-how «incorporado» nos recursos humanos que transitaram para a C... é de 332.148,43 Euros, que corresponde à remuneração das vendas que a B... deixou de obter junto da sua base de clientes fidelizados, em prol da concretização das mesmas através da C.... Verificando-se que a função comercial desempenhada pela B... era suscetível de gerar, através das encomendas dos seus clientes, uma remuneração adicional de 332.148,42 Euros em 2014, uma entidade independente tenderia a refletir aqueles lucros cessantes no preço a cobrar pela utilização anual dos intangíveis cedidos, o que não aconteceu.

O justo valor dos direitos de utilização dos ativos intangíveis cedidos, calculados sob a forma de lucros cessantes, corresponde portanto a de 332.148,42 Euros. Este valor representa o montante, não cobrado pela B... à C... no ano de 2014, decorrente da cedência da utilização dos ativos intangíveis essenciais à prossecução do negócio.

Uma empresa que, tal como a C..., alterasse o binómio produto/mercado onde se pretendia posicionar, teria de realizar um investimento inicial inerente o arranque da nova atividade. Esse investimento, no seio de uma empresa de comércio e distribuição abrange, por exemplo, formação dos trabalhadores, recolha de informação sobre o mercado, ações de marketing e publicidade, angariação de clientes e consolidação de relações comerciais.

Na C..., este investimento foi substituído pelo acesso direto à carteira de clientes e às competências profissionais dos trabalhadores, concedido por uma empresa relacionada – a B...– que já operava nesse mercado e que comercializava os mesmos produtos.

Pelo exposto, a compensação apurada para 2014 será devida nos anos seguintes, e dependerá das vendas concretizadas pela C... junto dos clientes que integravam a carteira de clientes da B... em 2013 e nos anos anteriores à transferência do negócio. Esta compensação será devida enquanto o benefício económico inerente à utilização dos ativos intangíveis cedidos pela B... se mantiver na esfera da C... .

III.1.1.2.6. Quantificação dos efeitos da violação do Princípio de Plena Concorrência

O n.º 1 do artigo 63.º do CIRC dispõe que «nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços (…) efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis».

Ao não valorizar a carteira de clientes e o know-how existente na empresa, que assegurava uma remuneração e ao não refletir esse mesmo valor no preço a cobrar à C... pela utilização desse intangível, a B... violou o princípio da plena concorrência. A evidência de que os elementos transmitidos eram essenciais ao negócio é a de que, em maio de 2014 a B... deixou de ter empregados e em 2015, cerca de um ano e meio após abdicar da utilização da sua carteira de clientes, a empresa cessou a sua atividade comercial, deixando de registar vendas.

Uma entidade independente não aceitaria ceder a utilização de ativos valiosos (carteira de clientes e know-how), desenvolvidos internamente (angariação de clientes, divulgação dos produtos, recolha de informação sobre o mercado e processos de aprendizagem), essenciais à prossecução do negócio, sem receber a respetiva contrapartida. Dado ter-se tratado de uma transmissão gratuita, a B... não demonstrou refletir no preço dos ativos intangíveis transferidos o justo valor dos mesmos, pois não recebeu a título de preço a remuneração de plena concorrência que lhes estava associada.

Um comportamento concorrencial, que vise a maximização do lucro, implica um processo negocial que dá origem a resultados consistentes com o princípio de plena concorrência. Tal, no entanto, não aconteceu neste caso, pois o preço não reflete o valor dos ativos transmitidos, não sendo o preço praticado aceite como um preço de plena concorrência, nos termos do n.º 1 do artigo 63º do CIRC.

A valorização dos ativos intangíveis, determinada pela Inspeção Tributária numa ótica do rendimento que teria sido gerado pela B... em 2014, constitui o valor de plena concorrência que deverá integrar o preço final a cobrar à C... pela sua utilização.

Avaliou-se o preço da transferência do negócio pertencente à B..., concluindo-se que um preço igual a zero ou a inexistência de preço, não se considera, nesta transmissão, um preço de plena concorrência, ou seja, aquele que seria contratado entre entidades independentes em condições comparáveis.

O preço de plena concorrência deve refletir a remuneração proporcionada pelos ativos intangíveis cedidos, suscetível de ser gerada na esfera da B... .

A valorização dos ativos intangíveis afigura-se um bom indicador de preço de plena concorrência, consistindo o preço de referência numa abordagem rendimento à avaliação dos ativos, podendo servir por isso de base à determinação do preço referente aos ativos intangíveis transmitidos.

O método utilizado consistiu no apuramento da margem das vendas realizadas pela C..., junto dos clientes indicados pela B..., considerando-se que os ativos intangíveis detidos pela B... foram o elemento determinante para a concretização das vendas e, como tal, deveriam ser refletidos no preço.

O método de avaliação utilizado pela Administração Fiscal, que está suportado em informação real sobre os benefícios alcançados pela empresa que utilizou os ativos intangíveis transferidos, é qualificável como método do preço comparável de mercado e encontra-se previsto na legislação portuguesa como método passível de utilização para validar o princípio de plena concorrência (vide alínea a) do n.º 3 do artigo 63º do CIRC e alínea a) do n.º 1 do artigo 4º da Portara n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro).

Conclusão

Perante a evidência de que a B... abdicou de vendas potenciais em prol da transferência do negócio para a C... sem que por isso tenha recebido uma compensação, afigura-se que o preço praticado na operação de transferência do negócio atrás descrita deve ser corrigido, procedendo-se para tal ao acréscimo do montante de 332.148,42 Euros referente ao valor da utilização da carteira de clientes determinado em função das vendas efetuadas pela entidade durante o ano de 2014, para que o preço praticado represente de forma mais correta o preço que seria praticado entre entidades independentes.

Face ao que foi exposto, conclui-se que se encontram reunidos os requisitos previstos no n.º 3 do artigo 77º da Lei Geral Tributária, designadamente:

a)  A transferência e a utilização da carteira de clientes da B... para a C... foi realizada entre duas entidades em situação de relações especiais, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC;

b)  A operação descrita não respeitou o Princípio de Plena Concorrência previsto no n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC, porque, conforme se demonstrou, o preço praticado não reflete o valor dos ativos intangíveis cedidos, cuja carteira de clientes configurava uma componente essencial, concluindo-se que as condições praticadas diferem das que seriam praticadas entre entidades independentes; 

c)  O preço de plena concorrência para 2014 fixou-se em 332.148,42 Euros, resultante da estimativa baseada numa metodologia de avaliação na ótica do rendimento proporcionado pela utilização dos intangíveis cedidos e dos benefícios futuros que lhes estão associados, afigurando-se mais adequada por refletir de forma apropriada a contrapartida a receber pela B... .

d) O ajustamento no montante de 332.148,42 Euros decorre da aplicação do Princípio de Plena Concorrência e resulta da diferença entre o preço de plena concorrência determinado pela Administração Tributária e Aduaneira e o preço praticado.

Assim, propõem-se o acréscimo do montante de 332.148,42 Euros ao lucro tributável do período de tributação de 2014 da B... .

De referir que, a realização do ajustamento correlativo adequado no lucro tributável da C..., está prevista no n.º 1 do artigo 17º e seguintes da Portaria, no prazo de 180 dias a contar da data do conhecimento, ou da data em que for possível obter o conhecimento, do trânsito da decisão, quer administrativa quer judicial, como estipulado no n.º 1 do artigo 20º do mesmo normativo. 

[…]”

FF.          A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC emitida sob o n.º 2017..., datada de 14 de dezembro de 2017 e da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2017..., relativamente ao exercício de 2014, assim como da respetiva Demonstração de acerto de contas n.º 2017..., que resultou no valor global a pagar de € 182.248,27, com data limite de pagamento fixada em 25 de janeiro de 2018 – cf. Documento 1 junto com o ppa e PA.

GG.        A Requerente procedeu ao pagamento do IRC liquidado adicionalmente no valor de € 182.248,27, por operação bancária datada de 24 de janeiro de 2018 – cf. Documento 6 junto com o ppa. 

HH.        Em discordância com os supra identificados atos de liquidação de IRC e de juros compensatórios, a Requerente apresentou junto do CAAD, em 26 de abril de 2018, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo, para pronúncia sobre as correções de preços de transferência, na origem do presente processo.

 

2.            FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se nas posições assumidas pelas partes, na análise crítica da prova documental junta aos autos e, sempre que aplicável, nos depoimentos das testemunhas inquiridas.

 

Constatou-se que a quarta e última testemunha ouvida, o Dr. T..., não conhecia os factos de fonte direta, tendo sido contratado, a posteriori, pela Requerente para a realização de um estudo na consultora em que presta funções, com o objetivo de determinar, caso fosse devida uma compensação pela operação assinalada pela AT, qual seria o seu valor à luz do princípio (preço) de plena concorrência. Deste modo, as declarações prestadas foram de caráter opinativo e não factual.

 

As outras testemunhas inquiridas revelaram conhecimento direto e detalhado dos factos relatados e dos esclarecimentos prestados. Os seus depoimentos foram objetivos e consistentes, permitindo de forma acessível compreender como se processa a atividade da Requerente, como se infra se sintetiza:

(a)          N...– é o responsável pela área comercial do Grupo no mercado ibérico, abrangendo Portugal e Espanha, e o signatário da circular relativa à mudança de distribuidor em Portugal, referindo que não o fez na qualidade de funcionário da B... portuguesa, pois não era trabalhador desta sociedade, mas sim de uma sociedade de direito espanhol, trabalhando para o Grupo L... em Espanha desde 1989. Explicitou que existem diversas aplicações do nome “B...” no Grupo, sendo um nome comercial e uma marca registada muito conhecida. Fez também referência à parceria com a M... na C..., aos procedimentos de cobertura de risco na atividade de distribuição e à carteira de clientes que provém da D...;

(b)          U...– é o diretor financeiro de todo o Grupo, no qual trabalha em Espanha desde 1989. Atualmente é funcionário da holding do Grupo L... em Espanha. À data dos factos o vínculo laboral era com a V..., em idênticas funções, abrangendo a responsabilidade pela função financeira em Portugal. Referiu a evolução desde a privatização da siderurgia em 1995 e a parceria com a M... que, tendo terminado em 2013, permitiu encarar de outra forma a sociedade C... e o seu potencial. Salientou tratar-se de um setor com muito poucos produtores e um número circunscrito de clientes. Sublinhou a importância do nome B..., que é o mais importante do Grupo que remonta aos anos 50, e ao facto da C... incluir a palavra “aço” o que considera ser uma vantagem;

(c)          W...– é o contabilista certificado da Requerente na qual começou a exercer funções em 2001. Contextualizou a passagem da D..., que vinha da privatização, para a B... em 2005 e confirmou o processo de alteração da distribuidora do Grupo em Portugal em 2013 e o facto da base de dados de clientes já vir do tempo da D... .

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

3.            DO DIREITO

 

3.1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO

 

Está em discussão uma correção de preços de transferência, ao abrigo do artigo 63.º do Código do IRC, no âmbito da cessação da atividade de comercialização de produtos siderúrgicos por uma sociedade (a B...) compreendida no Grupo económico encabeçado pela Requerente, com a simultânea assunção dessa atividade comercializadora por uma outra sociedade, associada da Requerente (a C..., participada diretamente em 38,98%), sem que se tenha verificado o pagamento de qualquer compensação à primeira, pela rutura dos contratos de distribuição com as sociedades que detinham as unidades fabris e que pertencem ao mesmo Grupo.

 

São suscitadas, neste âmbito, três questões de mérito, a apreciar na medida em que não sejam prejudicadas pela solução das antecedentes:

(a)          A primeira prende-se com a (in)existência do próprio facto tributário e reside em saber se existe uma operação vinculada, não remunerada – i.e., um trespasse ou transferência de negócio –, consubstanciados numa transmissão de ativos intangíveis, nomeadamente a carteira de clientes e o know-how;

(b)          A segunda, respeita ao vício de falta de fundamentação da metodologia de quantificação do facto tributário e consequente imposto empregue pela AT;

(c)           Por fim, cabe aferir do invocado vício material de erro nos pressupostos na quantificação do facto tributário, abrangendo a insuficiência daqueles.

 

O Tribunal tem também de pronunciar-se sobre o pedido dependente relativo à condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

                Atento o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável segundo o artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, na ausência de vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado, a ordem de apreciação dos vícios deve ser a que determine, segundo o prudente critério do julgador, a mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, pelo que serão conhecidos em primeiro lugar os vícios substantivos e em segundo lugar o vício formal de falta de fundamentação. Em qualquer caso, na situação concreta, os efeitos da procedência dos vícios imputados aos atos são semelhantes sob o prisma da estabilidade e eficácia da tutela dos interesses da Requerente, pois no que se refere ao vício de ordem formal, em virtude do decurso do prazo de caducidade, em princípio resulta impedida a reedição dos atos tributários (referentes ao exercício de 2014).

 

3.2. QUESTÃO PRÉVIA - VALOR DA CAUSA

 

O juiz deve fixar o valor da causa na decisão que ponha termo ao processo, de acordo com o preceituado no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, de aplicação subsidiária aos processos tributário e arbitral tributário.

 

Na jurisdição arbitral, o critério de fixação do valor retira-se do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária que dispõe, no seu artigo 3.º, n.º 2 que «[o] valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário». Por seu turno, o n.º 1, alínea a) deste último preceito dispõe que, no caso específico de impugnação da liquidação, e importa não esquecer que o processo arbitral tributário é um processo de cariz impugnatório, o valor atendível, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, é «o da importância cuja anulação de pretende».

 

Esta solução constitui corolário do princípio geral de que o valor da causa representa a utilidade económica imediata do pedido, princípio com expressão em diversos compêndios processuais, desde logo no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”) – artigo 31.º, n.º 1 – e no CPC – artigo 296.º, n.º 1, aplicáveis a título subsidiário ao processo tributário que, sobre esta matéria, se cinge a um único preceito, o mencionado artigo 97.º-A.

 

Conforme refere JORGE LOPES DE SOUSA, nesta norma cabem “todas as situações em que é «impugnada a liquidação», em que se incluem não só as impugnações diretas de atos de liquidação através do processo de impugnação judicial, como as impugnações de atos de indeferimento de reclamações graciosas ou recursos hierárquicos em que seja apreciada a legalidade de atos de liquidação, as impugnações de atos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamentos por conta, pois em todos os casos é impugnado um ato que determinou uma quantia de imposto», concluindo que o valor do processo «será o da própria liquidação, se for pedida a anulação total, ou o valor da parte impugnada, se se pretender uma anulação apenas parcial.” - cf. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Volume II, 6.ª edição, Áreas Editora, p. 72.

 

É indiscutível que as liquidações de IRC e de juros compensatórios impugnadas, no valor total de € 182.248,27, abrangem duas correções distintas. Porém, apenas uma delas, a relativa aos preços de transferência, foi submetida à apreciação deste Tribunal Arbitral.

 

Suscitada a questão pela AT, a Requerente reconheceu ter-se tratado de lapso seu, sendo consensual que o valor do processo e o seu objeto se restringem à anulação parcial dos atos de liquidação supra identificados no valor de € 92.532,51, que resulta da subtração ao valor total inicialmente considerado (€ 182.248,27), do montante de € 89.715,76, referente ao benefício fiscal CFEI que não está aqui em discussão.

 

À face do exposto, com base nos legais critérios enunciados, fixa-se o valor do presente processo em € 92.532,51.

 

3.3. PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA – VÍCIOS SUBSTANTIVOS

 

3.3.1. Quadro legal

 

Para apreciação das questões jurídico-fiscais atinentes ao presente processo, tem especial relevo o disposto no artigo 63.º do Código do IRC, em especial os seus n.ºs 1 a 3, conforme infra se transcreve:

 

"Artigo 63.º

Preços de transferência

1 – Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

2 – O sujeito passivo deve adotar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos suscetíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efetua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os ativos utilizados e a repartição do risco.

3 – Os métodos utilizados devem ser:

a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;

b) O método do fracionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam. [...]"

 

Importa também atender às seguintes disposições regulamentares da Portaria n.º 1446-C/2001, supra citada:

 

"Artigo 1.º

Regras gerais sobre o princípio de plena concorrência

[...]

3 – Para efeitos desta portaria, salvo quando de disposição expressa ou do contexto resulte um sentido contrário, considera-se que:

a) O termo «operações» abrange as operações financeiras e, bem assim, as operações comerciais, incluindo qualquer operação ou série de operações que tenha por objeto bens corpóreos ou incorpóreos, direitos ou serviços, ainda que realizadas no âmbito de um qualquer acordo, designadamente de partilha de custos e de prestação de serviços intragrupo, ou de uma alteração de estruturas de negócio, em especial quando esta envolva transferência de elementos incorpóreos ou compensação de danos emergentes ou lucros cessantes; […]

 

Artigo 5.º

Fatores de comparabilidade

Para efeitos do artigo anterior, o grau de comparabilidade entre uma operação vinculada e uma operação não vinculada deve ser avaliado, tendo em conta, designadamente, os seguintes fatores:

a) As características específicas dos bens, direitos ou serviços que, sendo objeto de cada operação, são suscetíveis de influenciar o preço das operações, em particular as características físicas, a qualidade, a quantidade, a fiabilidade, a disponibilidade e o volume de oferta dos bens, a forma negocial, o tipo, a duração, o grau de proteção e os benefícios antecipados pela utilização do direito e a natureza e a extensão dos serviços;

b) As funções desempenhadas pelas entidades intervenientes nas operações, tendo em consideração os ativos utilizados e os riscos assumidos;

c) Os termos e condições contratuais que definem, de forma explícita ou implícita, o modo como se repartem as responsabilidades, os riscos e os lucros entre as partes envolvidas na operação;

d) As circunstâncias económicas prevalecentes nos mercados em que as respetivas partes operam, incluindo a sua localização geográfica e dimensão, o custo da mão-de-obra e do capital nos mercados, a posição concorrencial dos compradores e vendedores, a fase do circuito de comercialização, a existência de bens e serviços sucedâneos, o nível da oferta e da procura e o grau de desenvolvimento geral dos mercados;

e) A estratégia das empresas, contemplando, entre os aspetos suscetíveis de influenciar o seu funcionamento e conduta normal, a prossecução de atividades de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, o grau de diversificação da atividade, o controle do risco, os esquemas de penetração no mercado ou de manutenção ou reforço de quota e, bem assim, os ciclos de vida dos produtos ou direitos;

f) Outras características relevantes quanto à operação em causa ou às empresas envolvidas.

 

Artigo 6.º

Método do preço comparável de mercado

1 – A adoção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objeto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes.

2 – Este método pode ser utilizado, designadamente, nas seguintes situações:

a) Quando o sujeito passivo ou uma entidade pertencente ao mesmo grupo realiza uma transação da mesma natureza que tenha por objeto um serviço ou produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares;

b) Quando uma entidade independente realiza uma operação da mesma natureza que tenha por objeto um serviço ou um produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, no mesmo mercado ou em mercados similares.

3 – Sempre que uma operação vinculada e uma operação não vinculada não sejam substancialmente comparáveis, o sujeito passivo deve identificar e quantificar os efeitos provocados pelas diferenças existentes nos preços de transferência, que devem ser de natureza secundária, procedendo aos ajustamentos necessários para os eliminar, por forma a determinar um preço ajustado correspondente ao de operação não vinculada comparável."

 

3.3.2. As características da operação

 

                Alega a Requerente que não existiu qualquer trespasse ou alienação de intangíveis, pois a B... não poderia vender o que lhe não pertencia, designadamente a carteira de clientes, que tinha sido, na sua quase totalidade, angariada pelo Grupo, previamente ao seu uso pela B... .

 

                Contrapõe a AT que a operação se centrou na transferência de uma estrutura de negócio, em especial na transferência de intangíveis, designadamente, carteira de clientes e know-how. Alicerça tal tese na fundamentação contabilística dos ativos, na descrição da estrutura comercial transferida e nos benefícios que a receção dos ativos nela incluídos proporcionaram à C... .

 

                Se bem que, num plano formal, não tenha existido uma transação a título oneroso da carteira de clientes e do know how dos colaboradores, o que a disciplina fiscal dos preços de transferência visa aferir é se entre entidades independentes, em circunstâncias comparáveis, se realizaria a operação nas condições em que esta foi efetuada (cf. artigo 63.º, n.º 1 do Código do IRC).

 

                Quanto a este primeiro ponto, o Tribunal tem de indagar se, numa ótica substantiva e económica, a cessação dos contratos de distribuição celebrados com a B... e a contemporânea (concomitante) contratação dos serviços à C... (pelas mesmas entidades produtoras do Grupo em Portugal) consubstanciaram uma transferência de ativos intangíveis e, depois, se as condições em que o foram permitem validar a tese preconizada pela AT.

 

                Trata-se de uma questão complexa. Como bem notam WRIGHT e outros : “Economists tend to identify the value drivers in the market in which the company’ s product or service is traded, and those value drivers, more often than not, constitute intangibles in their eyes. Some lawyers, in the authors’ experience, take the position that if the intangi¬ble is not legally protected, it is not an intangible and the economist doing the valuation must not attribute value to it.  Accountants, on the other hand, tend to think that if the intangible is not reflected on the balance sheet, it does not exist and value cannot be attributed to it. This conflict has existed for as long as the authors have been involved in transfer pricing.”

 

                Ou seja, em tradução livre deste Tribunal, os citados autores sustentam que a perspetiva económica sobre os intangíveis os identifica com elementos criadores de valor ou com fatores de rendibilidade, ainda que não reconhecidos no balanço. A perspetiva jurídica é diversa e associa-os a elementos imateriais legalmente protegidos, determinando a ausência de proteção legal a ausência de valor. Por fim, a perspetiva contabilística associa o valor de um intangível ao seu reconhecimento no balanço.

 

No caso concreto, a fundamentação da AT (no RIT) segue a perspetiva contabilística,  por via da invocação das disposições da Norma Contabilística de Relato Financeiro (“NCRF”) 6, publicada, após homologação do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, no Aviso n.º 15655/2009, do Diário da República, 2.ª série, n.º 173, de 7 de setembro , na sequência da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (“SNC”), pelo Decreto-lei n.º 158/2009, de 13 de julho. Neste âmbito, a AT conclui que se transmitiram ativos intangíveis, designadamente a carteira de clientes e o know how do pessoal da B... .

 

Esta tese, quando vistos tais ativos isoladamente, num plano contabilístico, não é apropriada à situação. Poderá ter, contudo, aderência à realidade, se a operação for vista como equivalente à transferência económica de um negócio ou atividade. Explicitemos.

 

Atente-se nas seguintes disposições da NCRF 6:

 

"9 – As entidades gastam com frequência recursos, ou incorrem em passivos, pela aquisição, desenvolvimento, manutenção ou melhoria de recursos intangíveis tais como conhecimentos científicos ou técnicos, conceção e implementação de novos processos ou sistemas, licenças, propriedade intelectual, conhecimento de mercado e marcas e objetivos comerciais (incluindo nomes comerciais e títulos de publicações). Exemplos comuns de itens englobados nestes grupos são o software de computadores, patentes, copyrights, filmes, listas de clientes, direitos de hipotecas, licenças de pesca, quotas de importação, franchises, relacionamentos com clientes ou fornecedores, fidelidade de clientes, quota de mercado e direitos de comercialização.

 

10 – Nem todos os itens descritos no parágrafo 9 satisfazem a definição de um ativo intangível, i.e. identificabilidade, controlo sobre um recurso e existência de benefícios económicos futuros [...]

16 – Uma entidade pode ter uma carteira de clientes ou uma quota de mercado e esperar que, devido aos seus esforços para criar relacionamentos e fidelizar clientes, estes continuarão a negociar com a empresa. Porém, na ausência de direitos legais para proteger, ou de outras formas controlar, o relacionamento com clientes ou a sua fidelidade para com a entidade, esta geralmente não tem controlo suficiente sobre os benefícios económicos esperados derivados do relacionamento e fidelização dos clientes para que tais itens (por exemplo, carteira de clientes, quotas de mercado, relacionamento com clientes e fidelidade dos clientes) satisfaçam a definição de ativos intangíveis. Na ausência de direitos legais para proteger os relacionamentos com os clientes, as transações de troca dos próprios relacionamentos com os clientes ou outros semelhantes (que não sejam como parte de uma concentração de atividades empresariais) constituem prova de que a entidade está, não obstante, capacitada para controlar os benefícios económicos futuros esperados que fluam dos relacionamentos com os clientes. Dado que essas transações de troca também constituem prova de que os relacionamentos com os clientes, em si mesmos, são separáveis, esses relacionamentos com os clientes satisfazem a definição de ativo intangível."

 

Assim, quanto a um suposto valor, individualizado e reconhecido no balanço, da carteira de clientes, a fundamentação da AT ancora-se nas "transações de troca dos próprios relacionamentos com os clientes" (§16). Note-se que não são as simples transações com clientes (vendas de produtos ou serviços) a originarem ativos intangíveis; mas sim as transações dos relacionamentos, ou seja, do direito a comercializar com os clientes, transferindo a clientela (“lista de clientes”) como elemento potencialmente gerador de benefícios futuros.

 

A eventual existência de transações passadas de listas de clientes por parte da B... constituiria uma prova de aferição da identificabilidade, controlo e potencial de geração de benefícios futuros. Sucede que, no caso, não é apresentada qualquer prova transacional, quantificada, da qual possa emergir a sustentação contabilística de um ativo isolado e como tal valorizável.

 

Para mais, e a isso se voltará adiante, as condições específicas em que uma potencial transação entre entidades independentes (fosse entre a B... e um terceiro independente, por via de um comparável interno; ou entre dois terceiros independentes, por via de um comparável externo) é suscetível de constituir um referencial exigem uma análise prévia de comparabilidade que tem de levar em conta certos aspetos da relação potencial com os clientes e a probabilidade de realização da operação ou do negócio em condição comparável.

 

Sobre o valor do know how dos colaboradores que terão passado da B... para a C..., importa começar por compulsar a NCRF 6 (§ 15):

 

"15 — Uma entidade pode ter uma equipa de pessoal habilitado e pode ser capaz de identificar capacidades incrementais do pessoal que conduzam a benefícios económicos futuros derivados da formação. A entidade pode também esperar que o pessoal continue a pôr as suas capacidades ao seu dispor. Porém, geralmente uma entidade não tem controlo suficiente sobre os benefícios económicos futuros provenientes de uma equipa de pessoal habilitado e da formação para que estes itens satisfaçam a definição de um ativo intangível. Por uma razão semelhante, é improvável que uma gestão específica ou um talento técnico satisfaça a definição de ativo intangível, a menos que esteja protegido por direitos legais para usá-lo e obter dele os benefícios económicos futuros esperados e que também satisfaça as outras partes da definição."

 

À luz deste preceito, não é sustentável que, num plano contabilístico, o know how do pessoal, visto isoladamente, consubstancie um ativo reconhecível e valorizável.

 

Não se pretende com isto dizer que, em face destas questões analíticas, não haja qualquer valorização de intangíveis a efetuar como defende a Requerente. É que o artigo 3.º da Portaria n.º 1446-C/2001 estabelece que o termo «operações» "abrange as operações financeiras e, bem assim, as operações comerciais, incluindo qualquer operação ou série de operações que tenha por objeto bens corpóreos ou incorpóreos, direitos ou serviços, ainda que realizadas no âmbito de um qualquer acordo, designadamente de partilha de custos e de prestação de serviços intragrupo, ou de uma alteração de estruturas de negócio, em especial quando esta envolva transferência de elementos incorpóreos ou compensação de danos emergentes ou lucros cessantes".

 

E, no caso, existiu uma operação que consistiu num acordo intragrupo de alteração de estruturas de negócio que envolveu, quando visto na sua globalidade, ativos que, não estando embora reconhecidos como intangíveis nas contas da B..., são, contudo, elementos económicos determinantes para que a estrutura operacional da C... desenvolva a sua atividade e gere benefícios potenciais.

 

Se entre duas entidades independentes se efetuasse tal operação de realocação de ativos, equivalente a uma transferência de atividade, não seria a falta de reconhecimento dos ditos “ativos” nas contas do vendedor da estrutura comercial que determinaria que essas fontes eventuais de criação de valor (clientela, know how) não tivessem uma contrapartida.

 

Adicionalmente, na situação vertente, e para citar apenas este elemento, uma cláusula que preveja a inexistência de indemnização a pagar em caso de alteração de estrutura do negócio é compreensível no seio do grupo, mas não deve condicionar em absoluto a apreciação do princípio de plena concorrência.

 

Isso é, aliás, sublinhado pela OCDE, nas suas Orientações ou Guidelines (cf. “The OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprise and Tax Administrations, 2017, Chapter IX, Business Restructurings”), nos seguintes termos:

 

"9.105 However, the examination of the terms of the contract between the associated enterprises may not suffice from a transfer pricing perspective as the mere fact that a given terminated, non-renewed or renegotiated contract did not provide an indemnification or guarantee clause does not necessarily mean that this is arm’s length, as discussed below."

 

Em tradução livre deste Tribunal, afirma-se que o facto de uma cláusula prever a ausência de indemnização, quando da transferência de elementos empresariais, não significa que a administração tributária esteja impedida de a avaliar no plano da disciplina fiscal dos preços de transferência.

 

Acrescenta ainda a OCDE que:

 

"9.80 Transfers of intangible assets raise difficult questions both as to the identification of the assets transferred and as to their valuation. Identification can be difficult because not all valuable intangible assets are legally protected and registered and not all valuable intangible assets are recorded in the accounts."

 

Ou seja, certos intangíveis, tendo efetivo relevo económico, nem sempre estão legalmente protegidos e registados no balanço das entidades.

 

Em suma, pese embora a análise da Requerida a respeito dos ativos intangíveis em questão não aprofundar, como poderia, tais aspetos, não se julga que tal imperfeição seja de ordem a permitir, por si só, a resolução do caso. Acresce que a fundamentação constante do RIT apela amiúde às expressões "transferência de negócio" ou "atividade de comercialização"  e não apenas a ativos individualizados, embora os clientes e o know how sejam, neste contexto, fulcrais (face à não significância dos ativos tangíveis). Interessa notar que a disciplina fiscal dos preços de transferência obedece a uma teleologia e visa, no essencial, impedir a flexibilidade completa dos grupos empresariais na alocação de resultados a partir de operações vinculadas.

 

Prossigamos, pois.

 

                3.3.3. A metodologia de quantificação do facto tributário e seus pressupostos

 

3.3.3.1. Nota prévia sobre a metodologia de valorização de intangíveis, em especial de listas de clientes

 

Segundo a Requerida o método utilizado para apurar o valor dos intangíveis em causa foi o do Preço Comparável de Mercado (“PCM”). No entanto, a Requerente alega que em ponto algum da fundamentação foi identificado um comparável independente, ou preço de mercado concorrencial.

 

Em ponto anterior desta decisão (3.3.1) mostrou-se que o artigo 6.º da Portaria n.º 1446-C/2001 estabelece que o método em causa (PCM) é o apropriado, designadamente, nas seguintes situações:

 

“a) Quando o sujeito passivo ou uma entidade pertencente ao mesmo grupo realiza uma transação da mesma natureza que tenha por objeto um serviço ou produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares;

b) Quando uma entidade independente realiza uma operação da mesma natureza que tenha por objeto um serviço ou um produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, no mesmo mercado ou em mercados similares.”

 

Não consta dos autos qualquer evidência de ter sido usado um comparável interno, tal como definido na alínea a), acima, pois não foi feita qualquer referência a que a B... tivesse alienado a um terceiro, não relacionado, ativos semelhantes em condições similares. Muito menos se exibe um comparável externo, proveniente de uma transação idêntica entre duas entidades independentes (cf. alínea b) supra).

 

Há assim que averiguar se, a partir da natureza exemplificativa (“designadamente” é a expressão usada na norma acima citada), o método aplicado pela AT cumpre os requisitos do PCM, que a lei define de forma particularmente exigente no artigo 6º da citada Portaria, designadamente no plano da comparabilidade.

 

Para além do que se estabelece na legislação portuguesa sobre o PCM, as Guidelines da OCDE contêm importantes considerações e diretrizes sobre a correta avaliação de intangíveis, que não podem aqui deixar de ser sublinhadas. Assim:

 

"6.20 In applying the arm’s length principle to controlled transactions involving intangible property, some special factors relevant to comparability between the controlled and uncontrolled transactions should be considered. These factors include the expected benefits from the intangible property (possibly determined through a net present value calculation). Other factors include: any limitations on the geographic area in which rights may be exercised; export restrictions on goods produced by virtue of any rights transferred; the exclusive or non-exclusive character of any rights transferred; the capital investment (to construct new plants or to buy special machines), the start-up expenses and the development work required in the market; the possibility of sub-licensing, the licensee’s distribution network, and whether the licensee has the right to participate in further developments of the property by the licensor."

 

Significa isto, em tradução livre deste Tribunal, que certos fatores especiais de comparabilidade devem ser considerados na análise de uma transação vinculada envolvendo intangíveis, por confronto com uma transação similar entre partes independentes. Entre esses fatores destacam-se os seguintes: benefícios esperados, calculados por um método de valor descontado ou pelo valor presente desses benefícios; limitações geográficas ao uso dos intangíveis; o carácter de exclusividade (ou falta dela) dos direitos incorporados nos intangíveis transmitidos; possibilidade de sub-licenciamento dos ativos, entre outros.

 

Quando seja difícil obter evidência sobre transações comparáveis entre partes independentes, a OCDE recomenda que:

 

"9.112 In case such evidence is not found, the question would be whether independent parties would have agreed to a similar allocation of risk. This will depend on the facts and circumstances of the transaction and in particular on the rights and other assets of the parties", colocando o acento tónico na alocação de risco que duas entidades independentes estabeleceriam numa transação comparável.

 

Por fim, refira-se, ainda respigado das orientações da OCDE:

 

"9.143 One important issue with such before-and-after comparisons is that a comparison of the profits from the post-restructuring controlled transactions with the profits made in controlled transactions prior to the restructuring would not suffice given Article 9 of the OECD Model Tax Convention provides for a comparison to be made with uncontrolled transactions. Comparisons of a taxpayer’s controlled transactions with other controlled transactions are irrelevant to the application of the arm’s length principle and therefore should not be used by a tax administration as the basis for a transfer pricing adjustment or by a taxpayer to support its transfer pricing policy." (sublinhado e realçe nosso)

 

Ou seja, e traduzindo livremente, preconiza-se que a comparação do lucro entre duas operações controladas, antes e depois de uma transação, não pode servir de base à aplicação do princípio de plena concorrência pelas autoridades fiscais. Sustentar que um PCM pode ser apurado em tais circunstâncias é entendido pela OCDE como inviável no plano da aplicação da disciplina fiscal dos preços de transferência.

 

Compreende-se que assim seja. Se a aplicação da disciplina dos preços de transferência visa comparar operações vinculadas com operações realizadas entre entidades independentes, em circunstâncias similares, então a comparação dos lucros que resultem de duas operações vinculadas não pode servir de base a tal comparabilidade, de acordo com as normas legais e regulamentares aplicáveis (cf. artigo 63.º do Código do IRC e Portaria n.º 1446-C/2001).

 

 Feito este excurso, importa responder à questão de saber se a metodologia de quantificação do facto tributário e seus pressupostos enfermam dos vícios que lhes foram imputados pela Requerente.

 

 

3.3.3.2. A operação tomada como comparável

 

A Requerida procede ao apuramento do preço comparável de mercado da operação de transferência da atividade, ou de realocação de ativos, por via da reafectação de intangíveis da B... para a C..., da seguinte forma (p. 32 do RIT): "O montante de 332.148,42 Euros configura a margem operacional potencial da B... e representa o rendimento anual, referente ao período de 2014 a que a B... deixou de aceder por ter abdicado, sem qualquer compensação, de clientes fidelizados que realizaram aquisições durante um longo período de tempo e que transitaram para a C... devido a uma decisão imposta pelo grupo. Uma empresa independente, na posse de uma carteira de clientes fidelizados, só abdicaria de parte das suas encomendas presentes e das encomendas futuras, caso obtivesse uma compensação que lhe permitisse aceder a um rendimento equivalente ou superior."

 

Assim, o preço usado pela AT (332.148,42 Euros) não é um preço comparável de mercado, na ótica de um comparável interno, nos termos da alínea a) do artigo 3.º da Portaria n.º 1446-C/2001. Também não é um comparável externo, de acordo com a alínea b) do mesmo artigo.

 

Relembra-se que o artigo 6.º, n.º 1 da Portaria 1446-C/201 estabelece que "A adoção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objeto e demais termos e condições da operação como na análise funcional […]".

 

Ora, tal preço foi obtido usando dados de uma transação vinculada, e não de uma transação entre partes independentes. O valor dos lucros de 2014 que, segundo o RIT, a B... deixou de auferir, configura um comparável apurado em situação de relações especiais, pois ele emerge e é apurado no contexto de uma atividade comercial efetuada no seio de um grupo. 

 

O resultado desta atividade estimada da B..., operada inteiramente no seio de um grupo, em 2014, não pode servir, como acima sublinhado nas Guidelines da OCDE (§ 9.143), como "análise comparativa do tipo antes e depois" .

 

Não há, para mais, na fundamentação do ato tributário qualquer análise a fatores de comparabilidade, como sejam, o acesso por um independente aos produtos das entidades produtoras do Grupo, ou a repartição do preço entre a B... e as empresas do Grupo que tinham angariado a larga fatia dos clientes, numa lógica de profit splitting ou de repartição do lucro, por investimentos passados.

 

Em suma, quando o RIT refere que uma empresa independente, na posse de uma carteira de clientes fidelizados, só abdicaria de parte das suas encomendas presentes e das encomendas futuras, caso obtivesse uma compensação que lhe permitisse aceder a um rendimento equivalente ou superior, toma como um dado que tal compensação deve corresponder ao preço comparável de mercado. Todavia, tal preço de mercado, como alega a Requerente, não é observado, nem tem uma lógica de formação, num mercado concorrencial entre partes independentes.

 

Esse preço, ou compensação, é apenas o lucro anual (2014) que, segundo a AT, a B... deixou de obter em 2014 continuando a operar no seio do grupo, com transações vinculadas. Tal não pode considerar-se um preço de mercado, pois ancora-se em transações vinculadas e não em dados de transações entre partes não relacionadas.

 

Em síntese: o benchmark ou termo comparativo para apurar o preço de cedência de uma atividade, ou estrutura comercial, entre partes independentes, não pode tomar-se como o lucro anual que se obteria em condições de operações vinculadas. Tal resulta da lei e das Guidelines da OCDE, doutrina de referência. Tanto mais, que nenhuma análise ou ajustamento é efetuado a fatores de comparabilidade que, como adiante melhor se verá, implicariam que a B... não pudesse auferir tal preço.

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) citada pela Requerente, designadamente o Processo n.º 0401/06, de 29 de novembro de 2006, no qual se enfatiza a necessidade de AT proceder à descrição, clara e objetiva, dos termos em que, normalmente, se processam as transações comparáveis entre entidades independentes, corrobora tal exigência.

 

3.3.3.3. O método de avaliação usado

 

A) Da aplicação concetual do método de avaliação

                A fundamentação do ato tributário (RIT) que consta dos factos provados, explica o método de avaliação dos intangíveis que corporizam a transação nos seguintes moldes:

 

"Em «Avaliação de Empresas e de Negócios», João Carvalho das Neves, McGraw-Hill, 2002, página 33 e seguintes, o autor refere que: Uma das tipologias possíveis para classificar os métodos de é a seguinte: Avaliação Patrimonial (Asset Based Approach), Avaliação Comparativa com o Mercado (Market Approach) e Avaliação pelo Rendimento Atualizado. O método do rendimento é a abordagem mais utilizada quando se avalia o valor de um negócio, sendo o valor mensurado através do cálculo do valor presente dos benefícios económicos futuros. Neste âmbito, o modelo com a designação «Excess Earnings Approach» apresenta-se como um modelo híbrido de avaliação (combinando a abordagem rendimento com a abordagem custo), que consiste na aplicação da seguinte equivalência para determinação do valor de um negócio: Valor do Ativo Intangível = Valor do Negócio (Cash Flows descontados) – Valor do Ativo Tangível.

O Excess Earnings Approach, método de avaliação baseado na abordagem rendimento, baseia-se nos seguintes pressupostos:

a)            O valor de um negócio é igual à capitalização do seu rendimento;

b)           O fluxo de rendimentos pode ser decomposto em duas componentes:

i.             Uma rentabilidade normal nos ativos líquidos tangíveis;

ii.            A diferença entre o valor do negócio e o valor dos ativos tangíveis consiste no valor dos intangíveis.

No modelo Excess Earnings Approach o termo ativo tangível referese ao valor de mercado de dinheiro, inventários, contas a receber, propriedade, entre outros, líquido de todas as obrigações. Os ativos líquidos tangíveis não incluem elementos imateriais ou intangíveis – tais como carteiras de clientes ou know-how referente ao mercado e processos de desenvolvimento do negócio – que representam fatores adicionais que permitem às empresas a obtenção de rendimentos mais elevados.

A referência a este modelo justifica-se porque para apurar o valor de transferência do negócio da B... para a C..., há que considerar as duas componentes: o ativo tangível transferido e o ativo intangível, que no caso presente não foi considerado pelo sujeito passivo para efeitos de avaliação do valor do negócio de comercialização de produtos siderúrgicos."

 

Tal fundamentação implicaria o uso de um método de apuramento do valor dos intangíveis por via dos cash flows (fluxos de caixa) descontados, conforme expressamente referido na passagem citada.

 

O método dos fluxos de caixa descontados (discounted cash flow ou “DCF”) baseia-se na atualização dos valores estimados do conjunto dos cash-flows que a empresa previsivelmente gerará no futuro.  O princípio que lhe subjaz é o de que uma empresa vale pela sua capacidade futura de libertar fundos para os detentores do capital, pelo que o valor da entidade deve corresponder à soma dos montantes atualizados desses fluxos de caixa estimados no momento da avaliação. Este método permite determinar o valor fundamental gerado pelo negócio e compara o desembolso presente de meios monetários com encaixes estimados ou futuros de fluxos monetários.

 

Na sua utilização é necessário prever:

i)             os valores dos cash-flows que a empresa originará;

ii)            a taxa de atualização, ou taxa de desconto, que traduz a expectativa quanto ao risco do investimento.

 

No plano técnico, são múltiplas as variáveis críticas que influenciam a estimativa dos cash-flows, designadamente (entre muitas outras) as seguintes:

i)             Taxa de crescimento dos rendimentos operacionais (vendas de produtos ou prestação de serviços);

ii)            Estrutura de custos e margens;

iii)           Política de investimentos em capital fixo e fundo de maneio necessário;

iv)           Política de financiamento.

 

Trata-se de um método que exige um significativo número de estimativas, mas bem sustentado em alicerces da teoria financeira, a qual tem como postulado geral que o valor de um ativo (ou empresa) se baseia nos fluxos de caixa que este libertará, atualizados para o momento em que se efetua a transação desse ativo (ou empresa).

 

No plano concetual o método usado pela AT enferma de duas inconsistências. Em primeiro lugar, baseia-se em lucros para um determinado ano (2014) e não numa projeção de cash-flows para um período plurianual, que leve em conta a vida esperada da atividade economicamente transmitida. Como bem se sabe, o lucro é uma variável claramente distinta do cash-flow. O primeiro é uma variável económica (rendimentos – gastos). O segundo representa uma variável que mede liquidez ou encaixe monetário (recebimentos – pagamentos).

 

A segunda incongruência, resulta de o método DCF apurar o valor de um negócio ou de um acervo de ativos como sendo o valor presente de um conjunto estimado de cash-flows.

 

Como invoca a Requerente (e.g., artigo 220.º do ppa), o preço numa transação de transferência de atividade, entre partes independentes, corresponderia a um valor presente, descontado, único e apurado no momento em que tal transação é acordada. Tal preço global poderia ser sujeito a cláusulas de revisão futura.  O que não se verificaria, por via de regra, seria o apuramento de um preço com base num lucro, a calcular anualmente, como consta da fundamentação do ato tributário, enquanto a clientela que subjaz ao negócio a desenvolver estiver na empresa que recebe tal intangível. Este Tribunal Arbitral também assim o julga.

 

A OCDE recomenda que na avaliação de intangíveis se sigam determinados procedimentos para que se apure um preço no momento da transação (no caso em apreço, no momento em que se efetua a alocação do negócio à C...). No § 6.29 das Guidelines sublinha-se que a avaliação de intangíveis entre empresas independentes é uma tarefa complexa e incerta.

 

Uma possibilidade de desenvolvimento de tal tarefa, consistirá em usar os benefícios estimados para, no momento da transação, calcular um preço, tendo em conta os fatores económicos relevantes (esta é a lógica de aplicação habitual do DCF, que no RIT se apresenta como método base que a AT aplicou). Para o que aqui releva, o preço seria, pois, apurado por referência ao valor presente, num dado momento, de benefícios estimados. Está-se longe, na doutrina e nas recomendações da OCDE, de apurar um preço de mercado a partir do lucro anual, calculado no contexto de operações vinculadas, que foi o percurso seguido pela Requerida.

 

Adicionalmente, como de seguida se explica, a variante do DCF que a AT usa (excess earnings method) não foi aplicada da forma configurada pela doutrina.

 

B) Da aplicação prática do excess earnings method

 

Refere a este respeito o RIT:

 

                "A referência a este modelo (Excess earnings  approach) justifica-se porque para apurar o valor de transferência do negócio da B... para a C..., há que considerar as duas componentes: o ativo tangível transferido e o ativo intangível, que no caso presente não foi considerado pelo sujeito passivo para efeitos de avaliação do valor do negócio de comercialização de produtos siderúrgicos."

 

A literatura  descreve o "Excess earnings  approach" da seguinte forma, que se cita, em tradução livre do Tribunal:

 

"Os ativos intangíveis relacionados com a clientela são frequentemente dependentes da existência de vários outros ativos para gerar valor para as empresas. Normalmente, a maioria dos ativos de uma empresa, incluindo ativos fixos e propriedade intelectual, é essencial na criação de produtos ou na prestação de serviços aos seus clientes.

O valor (intangível) dos relacionamentos com clientes depende da capacidade da empresa de vender produtos e serviços no futuro. Como resultado, para que as empresas extraiam valor dos ativos intangíveis relacionados ao cliente, elas devem ter outros ativos alocados ao negócio.

O excess earnings method (“EEM”) é comummente usado para avaliar ativo(s) gerador(es) de rendimento de uma empresa ou de um segmento de uma empresa. O EEM estima o valor com base no fluxo de lucros e cash-flows futuros esperados atribuível a um ativo específico. 

O analista estima a receita e o fluxo de caixa derivados do ativo intangível a avaliar, como seja o relacionamento com o cliente, e deduz as parcelas do fluxo de caixa que podem ser atribuídas a ativos de suporte, ou ativos contributivos.

Esses ativos contributivos incluem marcas registadas, nomes comerciais ou ativos tangíveis que contribuíram para a geração desse fluxo de caixa. O fluxo de caixa excedente resultante atribuível ao ativo objeto de avaliação é então descontado a uma taxa de retorno proporcional ao risco do ativo a avaliar.

Ao aplicar o MPEEM, o analista deve executar os seguintes procedimentos:

 Identificar o (s) ativo (s) a ser(em) avaliado (s)

Identificar o fluxo de receita associado ao(s) ativo(s)

Estimar as taxas de atrito para o ativo sujeito (e.g. taxa anual de perda futura de clientes)

Estimar fluxos de caixa associados ao(s) ativo(s)

Estimar e deduzir encargos de ativos contributivos (e.g. marcas)

Estimar a taxa de retorno exigida para o(s) ativo(s) a avaliar

Descontar os fluxos de caixa remanescentes (fluxo do ativo a avaliar - fluxos de ativos contributivos) para o valor presente

Existem outros ativos que precisam de ser usados para que as empresas possam extrair valor dos ativos relacionados com a clientela. Possíveis ativos contributivos podem incluir fundo de maneio ou capital circulante; equipamentos e edifícios; força de trabalho especializada; e outros ativos intangíveis, como contratos de marca, marca, tecnologia e não concorrência. O analista deve, portanto, reduzir o fluxo de caixa atribuível ao ativo intangível de relacionamento com o cliente por via do retorno exigido sobre os outros ativos contributivos."

 

Assim, embora a entidade detentora de um intangível (no seio de um Grupo) possa receber o produto da exploração do mesmo, outros membros do grupo podem ter desempenhado funções, utilizado ativos, ou assumido riscos que contribuíram para o valor do intangível, devendo ser compensados pelas suas contribuições no âmbito do PCM. A alocação final dos retornos obtidos pelo Grupo da exploração destes ativos, bem como a alocação final de gastos e outros encargos relacionados com esses bens intangíveis, é alcançada através da compensação das empresas do Grupo pelas funções desempenhadas, ativos utilizados e riscos assumidos.

 

A fundamentação da AT, que menciona o uso do PCM, que requer o mais elevado grau de comparabilidade entre operações vinculadas e operações entre entidades independentes, não obtém o comparável utilizado, como devia, a partir de transações num contexto de independência ou mercado livre. Acresce assinalar que o método usado não é, como sustentado pela AT, baseado em cash flows descontados, e, por fim, o cálculo do preço de um ativo a partir dos lucros que se obteriam em 2014, fica muito distante dos procedimentos técnicos que o EEM implica, como se viu no excerto atrás citado sobre os passos a seguir na respetiva aplicação.

 

Em conclusão, quer concetualmente, quer na sua aplicação concreta, o método ou processo de cálculo usado pela AT enferma dos referidos vícios.

 

3.3.3.3.4 Considerações adicionais sobre comparabilidade

 

                A AT, ancorando-se nas posições da OCDE, refere no RIT que:

 

"Nesta perspetiva, a aceitação, por parte da B..., de um contrato de distribuição, do qual depende a totalidade da sua atividade, contendo cláusulas que (i) prejudicam o seu interesse individual (Cláusula 11º, que prevê que as partes abdiquem do direito de solicitar indemnizações no âmbito da execução ou cessação do contrato) [...] é uma decisão que difere da racionalidade da prossecução do interesse próprio que existiria numa empresa independente "

 

De facto, é compreensível a posição segundo a qual entidades independentes, ao transacionarem entre si, exigiriam uma contrapartida pela cedência de ativos.

 

Porém, é também certo que o § 6.13 das Guidelines da OCDE  sublinha que no seio de um Grupo existem relacionamentos especiais, com regras próprias do Grupo, que não devem ser automaticamente postos em causa por desrespeito ao princípio de plena concorrência, particularmente em transações envolvendo intangíveis.

 

Neste contexto, o RIT é totalmente omisso, e não deveria sê-lo, sobre o valor do contributo do Grupo para a clientela da B..., conforme assente no probatório, em particular na lógica de aplicação do excess earnings method (e respetivos elementos contributivos para os ativos em avaliação).

Numa transação entre partes independentes, a parte vendedora, tendo previamente obtido, certamente por via do pagamento de uma contrapartida um tal direito ou ativo intangível, o que ganharia seria o valor decorrente do seu contributo específico, e não o valor total do ativo, pois que uma substancial parte do mesmo não foi por si desenvolvido .

 

No caso vertente, ao lucro da B... teria de ser deduzido o valor aportado pelo grupo para a carteira de clientes realocada à C... . A admitir-se uma compensação pela reafectação dos intangíveis da B..., teria também de analisar-se como aquela se repartiria entre as entidades do Grupo que contribuíram para a geração dos intangíveis realocados.

 

Em face de tudo o que antecede, conclui-se que os atos tributários de liquidação de IRC e dos juros compensatórios inerentes, enfermam de erro nos pressupostos e são por isso anuláveis por vícios substantivos, em virtude de a AT não ter observado os critérios legais do método de determinação do preço comparável de mercado (PCM) ou de outro método alternativo. Em concreto:

a.            O preço alegadamente comparável foi obtido pela AT a partir dos dados de uma transação vinculada, e não de uma transação entre partes independentes – o que não é admissível de acordo com o artigo 63.º do Código do IRC, da Portaria n.º 1446-C/2001 e das Guidelines da OCDE que consagram as diretrizes a seguir para este efeito;

b.            O método de avaliação empregue foi o método dos fluxos de caixa descontados (discounted cash-flow), que tem como postulado geral que o valor de um ativo (ou empresa) se baseia nos fluxos de caixa que este libertará, atualizados (valor presente) para o momento em que se efetua a transação desse ativo (ou empresa). Porém, de forma inconsistente, apesar de invocar esse método, a AT não se fundou numa projeção de cash-flows para um período plurianual, baseando-se nos lucros (e não, como referido, em cash-flows) de um determinado ano – 2014 (e não, como referido, numa base plurianual);

c.            Não foram tidos em conta fatores relevantes de comparabilidade como o que respeita, no caso vertente, ao facto de ao “lucro” da B... dever ser deduzido o valor aportado pelo Grupo para a carteira de clientes realocada à C... .

 

3.4.  SOBRE O VÍCIO FORMAL DE FUNDAMENTAÇÃO

 

Entende a Requerente que se verifica o vício formal de falta de fundamentação, relativamente ao método de quantificação utilizado, aos cálculos realizados e à respetiva lógica, para o que invoca o princípio constitucional consagrado no artigo 268.º, n.º 3 da CRP, concretizado disposto no artigo 77.º da LGT que determina que a decisão do procedimento tributário é sempre fundamentada e, apesar de poder ser efetuada de forma sumária, deve “sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo” (n.ºs 1 e 2), e ainda no artigo 153.º do (novo) CPA.

 

Neste âmbito, interessa salientar que o dever de fundamentação desempenha a função primordial de permitir que o destinatário do ato se inteire das razões que subjazem à decisão administrativa, permitindo o controlo da sua validade, através da análise dos respetivos pressupostos, e o acesso à garantia contenciosa.

 

Seguindo a jurisprudência do STA, a fundamentação é um conceito relativo que varia em função do tipo legal de ato e visa responder às necessidades de esclarecimento do contribuinte, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática e por que motivo se decidiu num sentido e não noutro (cf. Acórdãos do STA, Processo n.º 01114/05, de 2 de fevereiro de 2006, e Processo n.º 42180, de 20 de novembro de 2002). E ainda que se encontra devidamente fundamentado o ato que, de forma direta ou por remissão, contém a indicação contextual dos motivos de facto e de direito que permitem ao seu destinatário normal, apreender o raciocínio decisório, as causas e o sentido da decisão (cf. Acórdão do STA, processo n.º 46796, de 14 de março de 2001).

 

Compulsados os autos arbitrais, constata-se que são percetíveis as razões que conduziram a AT à decisão do procedimento tributário, bem como os cálculos que realizou, incluindo os respetivos pressupostos (ainda que errados), e que a Requerente compreendeu perfeitamente o seu sentido e alcance, rebatendo de forma circunstanciada os respetivos argumentos. 

 

Não se constatam, deste modo, as deficiências apontadas pela Requerente à fundamentação do Relatório de Inspeção Tributária, improcedendo a invocação do vício de falta de fundamentação suscitado pela Requerente.

 

Questão distinta é a de saber se a Requerente discorda da fundamentação por não considerar verificados os pressupostos de tributação nela retratados e que “tem já a ver com o mérito da decisão e com a legalidade «stricto sensu» do próprio ato” (cf. Acórdão do STA, processo n.º 1690/13, de 23 de abril de 2014). Neste caso, não se trata de aferir o vício formal de falta de fundamentação, mas a validade substantiva do ato tributário, por erro nos pressupostos, que foi acima apreciada.

 

* * *

                À face do exposto, e em síntese, os atos tributários de liquidação de IRC e de juros compensatórios, relativos ao exercício de 2014, padecem de vício de violação de lei, relativamente à correção de preços de transferência objeto da presente ação arbitral,  pelo que devem ser parcialmente anulados na parte correspondente, cifrada em € 92.532,51, em conformidade com o disposto no artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA” - com correspondência no artigo 163.º, n.º 1 do novo CPA), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.

 

3.5. JUROS COMPENSATÓRIOS

 

                Na situação sub iudice, os juros compensatórios incidem sobre a dívida tributária de IRC que é parcialmente anulada, nos termos e pelas razões expostas. Estes juros integram a relação jurídica tributária e supõem o retardamento de uma prestação tributária devida (cf. artigos 30.º, n.º 1, alínea d) e 35.º, ambos da LGT), sendo a forma processual própria para a sua discussão a impugnação judicial.

 

                Dada a equiparação da ação arbitral ao processo de impugnação judicial, cabe nos poderes de cognição e pronúncia dos Tribunais Arbitrais a apreciação e declaração da (i)legalidade dos juros compensatórios (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e b) do RJAT), pelo que, perante a anulação parcial do ato tributário de liquidação de IRC que constitui seu pressuposto, a liquidação dos juros compensatórios inerentes partilha de idênticos vícios e desvalor invalidante, devendo, por isso, ser, de igual forma, parcialmente anulada, na parte correspondente. 

 

 

3.6. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

                Quando está em causa a errada interpretação e aplicação pela Requerida de normas de incidência tributária, tem sido pacificamente entendido que os Tribunais Arbitrais tributários  têm competência para proferir pronúncias condenatórias em moldes idênticos aos que são admitidos em processo de impugnação judicial, incluindo portanto as que derivam do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.

 

                O direito a juros indemnizatórios depende de um conjunto de pressupostos constitutivos. Deste logo, é imprescindível que a Requerente tenha previamente procedido ao pagamento do imposto e dos juros compensatórios relativamente aos quais reclama a devolução.

 

                Na situação vertente, a Requerente comprovou o pagamento integral dos atos de liquidação. Acresce ter ficado demonstrado que os atos tributários padecem de erro(s) de direito que é(são) imputável(eis) à AT. 

 

                Deste modo, procede o pedido de condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre a quantia de € 92.532,51, contados desde a data do pagamento efetuado pela Requerente até ao momento do respetivo reembolso.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal Arbitral, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras. 

 

 

IV.          DECISÃO

 

                Em face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

(a)          Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular os atos tributários de liquidação de IRC e de juros compensatórios supra identificados relativos ao ano 2014, no valor a pagar de € 92.532,51;

(b)          Julgar procedente o pedido de restituição do valor de € 92.532,51 pago pela Requerente, adicionado de juros indemnizatórios,

 

                tudo com as legais consequências.

 

* * *

 

                Fixa-se ao processo o valor de € 92.532,51 de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Lisboa, 22 de março de 2019

 

[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT]

 

 

Os Árbitros,

 

 

Alexandra Coelho Martins

António Martins

Henrique Fiúza