Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 481/2018-T
Data da decisão: 2019-03-07  IRC  
Valor do pedido: € 195.323,14
Tema: Revogação do ato – Extinção da instância.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., NIF..., residente na ..., ... – ... ...-... Matosinhos, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto tributário de liquidação adicional de IRS, referente ao ano de 2010, no montante total de € 566.980,52, bem como do indeferimento do recurso hierárquico interposto de anterior decisão de deferimento parcial de reclamação graciosa, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Notificada para apresentar resposta, a Administração Tributária veio dizer que notificou o Requerente da revogação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, dentro do prazo estabelecido no artigo 13.º do RJAT, tendo o Requerente, na sequência, vindo a manifestar o interesse no prosseguimento dos autos para decisão sobre o seu direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

Face à posição adoptada pelo Requerente, e ainda em sede de resposta, a Administração Tributária suscita a exceção da incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do pedido de juros indemnizatórios.

 

Por despacho arbitral de 23 de janeiro de 2019, foi determinada a notificação da Requerente para se pronunciar sobre o acto revogatório e as suas consequências quanto ao prosseguimento do processo.

 

Em resposta, a Requerente veio dizer que no pedido arbitral requereu a anulação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico e de liquidação  adicional de IRS relativamente ao ano de 2010, bem como a condenação da Autoridade Tributária a devolver o imposto indevidamente liquidado e a condenação no pagamento de juros indemnizatórios, acrescentando que este último pedido tem cabimento no processo arbitral e nada obsta a que possa ser decidido no prosseguimento do processo não obstante a revogação do acto impugnado.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 6 de dezembro de 2018.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades, tendo sido invocada excepção de incompetência do tribunal arbitral para conhecer do perdido de condenação de juros indemnizatórios, na sequência da revogação dos actos impugnados.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

3. A questão que se discute é a de saber se, tendo sido revogado pela Administração Tributária o acto de indeferimento do recurso hierárquico que constitui objecto do processo arbitral, pode o processo prosseguir para a condenação em juros indemnizatórios, e, em caso afirmativo, se o tribunal dispõe de competência jurisdicional para emitir decisão condenatória quanto a juros. 

 

Recorde-se que o Requerente veio solicitar a constituição de tribunal arbitral para apreciar a legalidade do acto tributário de liquidação adicional de IRS, referente ao ano de 2010, bem como do indeferimento do recurso hierárquico interposto de anterior decisão de deferimento parcial de reclamação graciosa, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Por despacho de 29 de outubro de 2018, da Subdirectora-geral da Área de Gestão Tributária, o anterior despacho de indeferimento do recurso hierárquico foi revogado.

O acto revogatório teve por base a informação da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares em que se reconhece que a empresa B... Lda. pode ser qualificada como pequena empresa para efeitos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º do Código do IRS e, consequentemente, se propõe a anulação administrativa do acto tributário em causa, em aplicação do disposto no artigo 168.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

 Nestes termos, e independentemente do que a seguir se dirá sobre a natureza jurídica do acto, a revogação do indeferimento do recurso hierárquico, com base nos fundamentos constantes da informação para que remete, tem implícita a própria anulação do acto tributário de liquidação.

5. Cabe a propósito referir que o novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto que a anulação administrativa, tendo por objeto a eliminação do mundo jurídico de atos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3).

Ainda segundo o disposto no artigo 197.º, n.º 1, do CPA, em caso de recurso hierárquico, “o órgão competente para conhecer do recurso pode confirmar ou anular o acto recorrido e, se a competência do autor do acto recorrido não for exclusiva, pode também revogá-lo, modificá-lo ou substitui-lo, ainda que em sentido desfavorável ao recorrente”. 

No caso vertente, a Autoridade Tributária entendeu revogar o acto recorrido com fundamento em considerações de legalidade administrativa e não de mera discricionariedade, pelo que, embora adopte a fórmula verbal anteriormente aplicável, praticou, segundo a nova terminologia, um acto de anulação administrativa, tendo determinado, no rigor dos termos, a anulação do acto tributário que foi impugnado por via do recurso hierárquico.

Por outro lado, no que concerne às consequências processuais da anulação administrativa interessa considerar a norma do artigo 64.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, subsidiariamente aplicável, e especialmente o disposto nos seus n.ºs 1 e 2:

1 - Quando, na pendência do processo, o ato impugnado seja objeto de anulação administrativa acompanhada ou sucedida de nova regulação, pode o autor requerer que o processo prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades, sendo aproveitada a prova produzida e dispondo o autor da faculdade de oferecer novos meios de prova.

2 – O requerimento a que se refere o número anterior deve ser apresentado no prazo de impugnação do ato anulatório e antes do trânsito em julgado da decisão que julgue extinta a instância.

(…)

Prevê-se aí a hipótese típica de ampliação do objecto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o acto impugnado praticando um novo acto em sua substituição contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em reagir.

 É patente que não é essa, no entanto, a situação do caso.

A Administração anulou o acto sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica, limitando-se a conformar-se com o reconhecimento da ilegalidade do acto anteriormente praticado.

Ora, como decorre do citado n.º 2 do artigo 64.º, a anulação do ato impugnado pela própria Administração, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância (artigo 277.º, alínea e), do CPC).

Certo é que, em tese geral, a anulação administrativa de um acto administrativo na pendência do processo judicial de impugnação, pode não conduzir, necessariamente, à extinção da instância quando tenham sido deduzidas, em cumulação com a pretensão impugnatória, outras pretensões, dirigidas a obter prestações repristinatórias, indemnizatórias ou outras, que a anulação do ato, só por si, não satisfaz: nesta hipótese, a anulação administrativa não impede o processo de prosseguir, para apreciação das pretensões que vinham cumuladas, como pedidos dependentes, com o pedido principal de impugnação (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Coimbra, pág. 440).

Essa possibilidade, no entanto, não se coloca no âmbito do processo arbitral, caso em que, como resulta do disposto no artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o pagamento de juros indemnizatórios é devido como efeito da decisão arbitral de procedência sobre o mérito da pretensão deduzida pelo sujeito passivo e tem em vista restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto de decisão arbitral não tivesse sido praticado (artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT).

Estando em causa a anulação do acto tributário por iniciativa da Administração Tributária, o pagamento de juros indemnizatórios é devido no âmbito do próprio procedimento tributário, em aplicação do disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária. De resto, ao contrário do que parece pressupor o acórdão do STA de 7 de janeiro de 2016 (Processo 0574/14), a condenação em juros indemnizatórios não poderia resultar directamente da anulação oficiosa, mas implicaria o prosseguimento do processo judicial para efeito de apreciar a validade do acto tributário, visto que só em caso de procedência do mérito da pretensão é que o tribunal pode proferir uma decisão condenatória.

Acresce que o artigo 172.º do CPA, sob a epígrafe “Consequências da anulação administrativa”, reproduz o disposto no artigo 173.º do CPTA, aplicável à execução de sentenças de anulação de actos administrativos, estipulando um conjunto de deveres de executar relativamente ao acto anulado administrativamente que correspondem aos que igualmente se impõem à Administração se houver lugar a anulação contenciosa no âmbito de um processo impugnatório. O que faz supor que as consequências resultantes da anulação de um acto administrativo são fundamentalmente idênticas, independentemente da anulação resultar de um acto da própria Administração ou de decisão jurisdicional proferida em processo impugnatório (nestes precisos termos, CARLOS FERNANDES CADILHA, “Implicações do Novo Regime do Código de Procedimento Administrativo no Direito Processual Administrativo”, in Julgar n.º 26, maio-agosto 2015, pág. 31).

 

Sendo um dos deveres em que a Administração fica constituída, por efeito da anulação administrativa do acto, a reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, mediante a execução do efeito repristinatório da anulação, nada impede que nesse âmbito sejam devidos juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestação tributária, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

E não está excluído, em qualquer caso, que a Requerente possa deduzir um pedido indemnizatório em acção de responsabilidade civil autónoma.

 

O que não pode deixar de reconhecer-se é que o presente processo arbitral por efeito da anulação administrativa dos actos impugnados não pode prosseguir por impossibilidade superveniente da lide.

 

Fica consequentemente prejudicado o conhecimento da excepção da incompetência do tribunal arbitral para conhecer do pedido referente a juros indemnizatórios.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 195.323,14, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).

 

Notifique.

 

Lisboa, 7 de março de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

José Rodrigo de Castro

 

O Árbitro vogal

Magda Feliciano