Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Paulo Lourenço e Emanuel Vidal Lima, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. No dia 5 de Julho de 2018, A..., Ldª., NIPC..., com sede no ..., n.º..., ...-... Sintra, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos tributários:
i. liquidação n.º 2018..., de IVA, reportado ao período de tributação 2014.07M, que estornou a liquidação n.º 2014... no valor de € 41.245,48;
ii. liquidação n.º 2018..., de Juros Compensatórios, reportado ao período de tributação 2014.07M no valor de € 6.079,47;
iii. liquidação n.º 2018..., de IVA, reportado ao período de tributação 2014.08M, que estorna a liquidação n.º 2014... no valor de € 9.932,35;
iv. liquidação n.º 2018..., de Juros moratórios, reportado ao período de tributação 2014.08M no valor de € 1.884,17;
no valor total de € 59.141,47.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que cumpriu todos os deveres jurídico-tributários que sobre si impendiam, não podendo ser responsabilizada por qualquer imposto em falta, devendo, consequentemente, as liquidações contra as quais se insurge ser anuladas.
3. No dia 07-07-2018, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente procedeu à indicação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Dr. Paulo Lourenço, nos termos do artigo 11.º/2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Dr. Emanuel Vidal Lima.
5. Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos.
6. Na sequência do requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes, foi designado árbitro-presidente, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, o ora Relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.
7. Em 24-08-2018, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
8. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 13-09-2018.
9. No dia 16-10-2018, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
10. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
11. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, abstiveram-se ambas as partes de o fazer.
12. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, prazo este que foi prorrogado nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
13. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A aqui Requerente é uma sociedade comercial que tem por objecto a "Importação, comércio por grosso e a retalho de ourivesaria, relojoaria e joalharia" e opera no mercado através de duas lojas.
2- Entre os seus clientes encontram-se pessoas residentes no estrangeiro que a ela se dirigem a fim de adquirirem peças de ourivesaria, jóias ou relógios.
3- Nas vendas realizadas a clientes residentes em países terceiros não pertencentes à União Europeia, era, à data dos factos sub iudice, frequente a Requerente aplicar o regime de IVA previsto no Decreto-lei n.º 295/87, de 31 de Julho, alterado pelo Decreto-lei n.º 202/95, de 3 de Agosto, e pelo Decreto- lei n.º 206/96, de 26 de Outubro, o qual regulamentava a aplicação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do Código do IVA.
4- Relativamente à verificação da não residência dos clientes em território nacional, os empregados da aqui Requerente ou os seus representantes legais, exigem ao adquirente dos bens que transmite a apresentação de documento identificativo oficial e válido, sendo que, inclusivamente, por vezes, ficam com fotocópia do mesmo, que arquivam para instrução do processo interno relativo à comprovação da legalidade da aplicação da isenção referida.
5- Em 10/07/2014, a Requerente efectuou uma venda, apondo na factura-recibo n.º FT01G/2764, o NIF ... e o nome do cliente e cidadão dos Emirados Árabes Unidos, B... .
6- A 24/07/2014, a Requerente emitiu ao mesmo cliente a factura 01G/67, no montante de € 222.512,00.
7- Nessa factura, não apôs o NIF português do adquirente, tendo registado essa venda na conta 71.1.3, vendas para países terceiros.
8- Aquando da aquisição titulada por esta factura, o referido B..., exibiu cartão de identidade de cidadão dos Emirados Árabes Unidos e o Passaporte n.º ... e a Requerente criou nova ficha de cliente daquele adquirente, enquanto cliente não residente em Portugal.
9- No dia 25/07/2014, o referido B... apresentou a factura 01G/67 emitida pela Requerente aos Serviços Alfandegários do Aeroporto de Lisboa que apuseram o carimbo que comprova a saída dos bens para um país terceiro.
10- A Requerente foi inspecionada com base na Ordem de Serviço n.º 0I2018..., de âmbito parcial que teve por extensão o exercício de 2014, tendo os Serviços de Inspecção Tributária (SIT) concluído, através da factura referida nos pontos anteriores que a Requerente havia emitido ao referido B..., que este tinha NIF português e que a Requerente disso tinha conhecimento aquando da emissão da factura referida, e que apesar de tal não apôs o NIF português do adquirente nessa factura.
11- Mais concluíram os SIT, através da consulta à visão integrada do contribuinte, que o referido B... era residente em território nacional desde 28-10-2011, verificação levada a cabo através do NIF.
12- Os SIT concluíram, em consequência que sendo o referido B... residente em território nacional para efeitos da isenção, não estavam reunidas as condições para a mesma, razão pela qual havia imposto em falta, a cuja liquidação procederam, nos actos tributários objecto da presente acção arbitral.
13- Em 02-07-2018, Requerente procedeu ao pagamento das liquidações adicionais de IVA e juros, objecto da presente acção arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
1- Que aquando da aquisição a que se referem os pontos 6 e seguintes dos factos provados, B... apresentou-se como residente.
2- Que a conclusão a que se refere o ponto 11 dos factos dados como provados só não foi obtida pelos Serviços Aduaneiros porquanto o NIF não constava da factura.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
A questão que se coloca nos presentes autos de processo arbitral tributário, prende-se com a legalidade da liquidação à Requerente de IVA, e acessórios, relativamente a uma venda a um cidadão nacional dos Emirados Árabes Unidos, por uma transmissão de bens que saíram do território da União Europeia.
Em causa está a aplicação – ou não – do disposto no Decreto-Lei n.º 295/87, de 31 de Julho (entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 19/2017, de 14 de Fevereiro, que passou a definir novas regras para a aplicação da isenção a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do Código do IVA) que regulamentava a aplicação de uma isenção de IVA às aquisições de bens sem caráter comercial, de valor igual ou superior a € 49,88, feitas por residentes fora da Comunidade Europeia que, no prazo de 90 dias, os transportem na sua bagagem pessoal, com destino a um país não pertencente à Comunidade Europeia.
Este regime, decorre do disposto no art.º 146.º/1/b) e 147.º da Directiva 112/2006/CE do Conselho, de 28 de Novembro, que dispõem, respectivamente, que:
- “1. Os Estados–Membros isentam as seguintes operações:(...)
b) As entregas de bens expedidos ou transportados pelo adquirente não estabelecido no respectivo território, ou por sua conta, para fora da Comunidade, com excepção dos bens transportados pelo próprio adquirente e destinados ao equipamento ou ao abastecimento de embarcações de recreio, aviões de turismo ou qualquer outro meio de transporte para uso privado;”;
- “1. Quando a entrega prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 146.º incidir sobre bens transportados na bagagem pessoal de viajantes, a isenção só é aplicável quando estejam reunidas as seguintes condições:
a) O viajante não está estabelecido na Comunidade;
b) Os bens são transportados para fora da Comunidade antes do termo do terceiro mês seguinte ao da entrega;
c) O valor global da entrega, IVA incluído, excede o montante de EUR 175 ou o seu contravalor em moeda nacional, fixado uma vez por ano, através da aplicação da taxa de conversão do primeiro dia útil do mês de Outubro, com efeitos a 1 de Janeiro do ano seguinte.
Todavia, os Estados–Membros podem isentar de imposto as entregas de valor global inferior ao montante previsto na alínea c) do primeiro parágrafo.
2. Para efeitos do n.º 1, entende-se por «viajante não estabelecido na Comunidade» qualquer viajante cujo domicílio ou residência habitual não se situe no território da Comunidade. Neste caso, entende-se por «domicílio ou residência habitual» o lugar mencionado no passaporte, no bilhete de identidade ou em qualquer outro documento reconhecido como documento de identificação válido pelo Estado–Membro no território do qual é efectuada a entrega.
A prova da exportação é feita mediante apresentação da factura, ou de um documento comprovativo que a substitua, munida do visto da estância aduaneira de saída da Comunidade.
Cada Estado-Membro envia à Comissão um espécime dos cunhos dos carimbos utilizados na emissão do visto a que se refere o segundo parágrafo. A Comissão comunica essa informação às autoridades fiscais dos restantes Estados–Membros.”.
Conforme a própria AT explica, na sua Ficha Doutrinária emanada do Processo n.º 2972, e objecto de despacho do SDG dos Impostos, substituto legal do Director-Geral, em 2012-02-29, a propósito do regime referido:
“3. Impõe o nº 4 do artigo 1º que: "A comprovação da residência, obrigatoriamente exigida pelo vendedor e pelos serviços aduaneiros, será efectuada mediante apresentação do passaporte ou de outro documento de identidade oficialmente reconhecido como válido".
4. Nos termos do nº 1 do artigo 3º "As transmissões dos bens abrangidas por este diploma deverão ser documentadas por facturas passadas em forma legal, que deverão conter a anotação de documento comprovativo da entidade e da residência do adquirente".
5. Por sua vez, o nº 2 do artigo 3º refere que "As facturas serão emitidas em três exemplares, destinando-se o triplicado ao vendedor e os restantes ao adquirente, que os apresentará na estância aduaneira de saída do território aduaneiro da Comunidade Europeia para confirmação da exportação e remeterá ao vendedor o original".
6. A referida isenção opera através de dois métodos, a serem utilizados por opção do transmitente dos bens:
6.1 O sujeito passivo vendedor efetua a transmissão isenta de IVA, aguardando o posterior envio pelo adquirente do original da fatura, devidamente confirmada nos termos referidos no nº 2 do artigo 3º. No entanto, e conforme refere o artigo 4º, caso o vendedor, passados 150 dias após a transmissão, não tiver na sua posse o original da fatura, devidamente confirmado pelos serviços aduaneiros, deve proceder à liquidação do imposto até ao fim do período seguinte àquele em que terminou o referido prazo de 150 dias.
6.2 Em alternativa, o vendedor pode exigir do comprador o valor do imposto, obrigando-se, no entanto, a devolver-lhe o respetivo montante. Neste caso, o reembolso do IVA suportado por não residentes que beneficiem desta isenção é da responsabilidade do vendedor, que, após ter na sua posse o original da fatura, devidamente confirmado pelos serviços aduaneiros, deve proceder à restituição do valor do imposto pago, no prazo de quinze dias após sua receção.
7. Deste modo, para poder beneficiar da referida isenção torna-se necessário que o adquirente apresente, aquando da aquisição, o seu passaporte ao vendedor, para que este anote o número do mesmo na fatura, processada em triplicado, destinando-se dois exemplares ao adquirente, bem como anotar a morada do adquirente no estrangeiro.
8. É oportuno salientar que compete ao adquirente dos bens solicitar ao vendedor a passagem da respetiva fatura informando o fim a que a mesma se destina.”
Também no “Manual do IVA – Vertente Aduaneira”, a AT explanou o seu entendimento quanto às funções dos diversos intervenientes no procedimento de aplicação da isenção em questão, referindo, no que às instâncias aduaneiras diz respeito, para além do mais, que:
“Para confirmação da exportação dos bens transportados pelos viajantes, os serviços aduaneiros nacionais deverão proceder do seguinte modo: (...)
b. Constatar que estão preenchidos os requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 295/87, relativos aos bens, aos viajantes e às facturas.”.
Nesta sequência, e no que diz respeito aos viajantes, refere a AT naquele Manual que:
“O viajante que pretenda a isenção do imposto ao abrigo deste regime deverá reunir, cumulativamente, as seguintes condições:
• Ser residente em país terceiro.
A confirmação da condição enunciada ocorrerá mediante a apresentação de documento de identidade oficial, o qual deve referir o local de residência, identificando igualmente o respectivo país, de modo a que se comprove que se trata, efectivamente, de um país terceiro.
• Não ter residência em território nacional.
A confirmação da condição enunciada ocorrerá mediante a consulta à base de dados “Visão do contribuinte”, da DGCI, acessível nas alfândegas.
• Possuir título de transporte para país terceiro.”
E, no que diz respeito às facturas, lê-se no mesmo Manual:
“As facturas de suporte às vendas dos bens para os quais se pretende a isenção do imposto ao abrigo deste regime deverão:
• Ser emitidas em forma legal.
A confirmação da condição enunciada ocorrerá in loco, mediante apresentação de factura onde constem os elementos previstos no artigo 36º do CIVA, a saber:
Data
Número
Nome e n.º de identificação fiscal do vendedor
Nome e residência do adquirente portador do bem, na qualidade de particular
Quantidade e identificação pela denominação usual dos bens Preço líquido de imposto
Taxa de imposto aplicável
• Ser emitidas em triplicado.”
Conclui-se, naquele documento, que:
“Caso as condições necessárias à isenção do IVA ao abrigo deste regime, enunciadas atrás, estejam reunidas, relativamente aos bens aos sujeitos e às facturas:
Os serviços aduaneiros deverão confirmar a exportação dos bens transportados na bagagem dos viajantes, mediante a aposição de carimbo aprovado para o efeito, nas facturas (ou nos impressos emitidos pelas empresas conhecidas por "Tax-free", preenchidos de forma completa e legível).”
*
Passando para o caso concreto, verifica-se, em suma que:
- A Requerente vendeu determinados bens a um cidadão dos Emirados Árabes unidos, que solicitou a facturação dos mesmos nos termos próprios das vendas a viajantes;
- A requerente procedeu à facturação, nos termos solicitados, exigindo e fazendo constar da mesma os elementos legal e administrativamente exigidos para tal, com excepção da anotação do passaporte ou outro documento oficial indicativo da identidade e residência do adquirente;
- O referido cidadão estrangeiro, validou, junto das autoridades aduaneiras próprias, a saída dos bens em questão do território comunitário;
- A Requerente havia efectuado, duas semanas antes da venda acima referida, uma outra venda ao mesmo cidadão estrangeiro, tendo tal venda sido facturada como aquisição intracomunitária, e tendo aquele mesmo cidadão estrangeiro indicado, e sido feito constar da correspondente factura, um n.º fiscal português.
Tendo em conta as referidas circunstâncias, julga-se não ser possível concluir de outra forma, que não a de que as liquidações de imposto ora em crise serão ilegais.
Senão vejamos.
*
Antes de mais dever-se-á ter presente que a isenção em questão não é uma isenção objectiva ou subjectivamente condicionada a circunstâncias próprios do transmitente dos bens a viajantes, mas, antes, condicionada a circunstâncias próprias destes.
Dito de outro modo, a referida isenção não deverá ser enquadrada como uma isenção concedida ao transmitente dos bens, mas, antes como uma isenção concedida aos viajantes.
Neste sentido, afirmou já o TJUE que “as condições previstas no artigo 147.º da Diretiva IVA dizem apenas respeito aos adquirentes dos bens em causa e não se referem aos vendedores desses bens.” .
Também a AT, como se viu previamente, realça que “compete ao adquirente dos bens solicitar ao vendedor a passagem da respetiva fatura informando o fim a que a mesma se destina”.
Daqui decorrerá, então, que o transmitente dos bens intervém na operação no quadro dos deveres acessórios de cooperação com a AT, que lhe assistem, conforme impostos pela Lei (comunitária e nacional) e pela própria AT, dentro dos limites daquela.
Estes deveres, conforme a própria AT esclarece em diversas sedes, consistem, desde logo, na emissão da factura em forma legal e em triplicado, onde conste a anotação de documento comprovativo da entidade e da residência do adquirente, bem como os elementos previstos no artigo 36º do CIVA, designadamente data, número, nome e n.º de identificação fiscal do vendedor, nome e residência do adquirente portador do bem, na qualidade de particular, quantidade e identificação pela denominação usual dos bens, preço líquido de imposto, taxa de imposto aplicável.
Para além disso caso não recebesse, no prazo de 150 dias, o transmitente dos bens não tivesse na sua posse o original da fatura, devidamente confirmado pelos serviços aduaneiros de saída do território aduaneiro da Comunidade Europeia, confirmando a exportação, deveria proceder à liquidação do imposto até ao fim do período seguinte àquele em que terminou o referido prazo.
No caso, a AT fundou as liquidações impostas à Requerente, e ora em causa, nas circunstâncias de:
- o adquirente não ser residente em país terceiro;
- a factura emitida não conter a anotação do passaporte ou outro documento oficial indicativo da identidade e residência do adquirente.
Vejamos cada uma delas.
*
Relativamente ao primeiro dos fundamentos indicados, o mesmo assenta na circunstância de que, à data, existia um número de identificação fiscal em nome do adquirente dos bens, em vigor, constando do cadastro da AT que o referido adquirente seria residente em Portugal.
Ora, ressalvado o respeito devido a outras opiniões, tal circunstância não poderá, sem mais, justificar a imposição à Requerente da obrigação de imposto liquidado
Assim, e desde logo, ao contrário do que repete a Requerida na sua resposta não “está provado e é aceite pelas partes que o adquirente dos bens era para os efeitos da isenção residente em território nacional.”.
Com efeito, a Requerente é clara ao afirmar, relativamente ao adquirente dos bens, não saber “nem tendo forma de saber que aquele era, em 2014, residente em Portugal”.
Posto isso, julga-se que da existência de um número de identificação fiscal em nome do adquirente dos bens, em vigor, constando do cadastro da AT que o referido adquirente seria residente em Portugal, não decorre, pelo menos desacompanhada que seja de outras circunstâncias, como é o caso, e ao contrário do que sustenta a AT, que o adquirente dos bens à Requerente era, à data, residente em Portugal, para efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 295/87, de 31 de Julho.
Com efeito, e como se aponta no acórdão proferido no processo arbitral n.º 105/2012-T do CAAD , “nos termos do n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 295/87, de 31 de Julho, considera-se residente, para efeito de aplicação deste concreto regime, quem tenha permanecido em Portugal, num determinado ano civil, mais do que 180 dias, seguidos ou interpolados”, sendo que “o Número de Identificação Fiscal é atribuído a toda e qualquer pessoa que aufira em Portugal rendimentos sujeitos a imposto, sem atribuir relevância ao facto de ser ou não residente para efeitos fiscais em Portugal. Destarte não parece ser possível que, pelo simples facto de determinada pessoa singular ser detentora de Número de Identificação Fiscal, se possa concluir, como fez a Requerida, que essa mesma pessoa é residente em Portugal. Para mais, num quadro fáctico em que a Requerida nem sequer alega, e por maioria de razão também não demonstra, que aquando da obtenção do Número de Identificação Fiscal pelos adquirentes identificados foi promovido o registo enquanto residente para efeitos fiscais em Portugal.”.
Ou seja: nos termos do DL em questão consideram-se residente em Portugal quem tenha permanecido em Portugal, num determinado ano civil, mais do que 180 dias, seguidos ou interpolados, e a circunstância de o adquirente dos bens em questão nos presentes autos ter activo um número de identificação fiscal português, não decorre, directa ou presumidamente, que aquela condição se verifique.
Note-se, aliás, que era possível à AT reunir outros elementos, no sentido de demonstrar que, efectivamente, o cidadão dos Emirados Árabes Unidos em causa permaneceu, em 2014, mais do que 180 dias, seguidos ou interpolados, em Portugal, como lhe competia, nos termos das regras do ónus da prova, dado ser um fundamento da correcção que operou e tratar-se de um facto alheio à Requerente.
Efectivamente, podia, e devia, a AT ter indicado uma concreta morada ou moradas onde a pessoa em questão tivesse residido, apresentar documentação fiscal indiciadora da permanência em território nacional e, inclusive, no âmbito dos poderes de investigação que lhe assistem, obter documentação bancária que denotasse a permanência em Portugal no período em questão.
Ora, o certo é que nada mais foi apurado pela AT, sendo que dos extractos dos registos da AT juntos aos autos, não consta sequer uma morada em território nacional, correspondente a um domicílio fiscal.
Neste quadro, não poderá este Tribunal ratificar a conclusão da AT, na qual se fundam as liquidações sub iudice, de que o adquirente dos bens vendidos pela Requerente não era, em 2014, residente em território terceiro.
Esta conclusão não é modificada pela circunstância, também apurada, de a Requerente ter efectuado, duas semanas antes da transmissão onde se fundam as liquidações em crise, uma outra venda, ao mesmo adquirente, sobre a qual liquidou IVA, e na qual foi feito constar um número de identificação fiscal português.
Com efeito, e como se viu, da existência de tal número, não é possível retirar, ipso facto, a residência em Portugal do seu titular, para efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 295/87, de 31 de Julho, notando-se, ainda, que as facturas em questão foram emitidas em Julho, altura em que ainda haviam mais de 5 meses para a pessoa em questão se radicar em território terceiro, e perfazer o tempo necessário para estar fora de território comunitário mais de 185 dias, situação que não incumbia, nem era possível, à Requerente sindicar.
Note-se ainda, por fim, que se tem por duvidosa a conformidade do próprio n.º 3 do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 295/87, de 31 de Julho, com a Directiva 112/2006/CE do Conselho, de 28 de Novembro, tendo em conta que, nos termos do art.º 147.º, n.º 2, daquela se dispõe expressamente que “entende-se por «domicílio ou residência habitual» o lugar mencionado no passaporte, no bilhete de identidade ou em qualquer outro documento reconhecido como documento de identificação válido pelo Estado–Membro no território do qual é efectuada a entrega”, solução esta que veio a ser adoptada pelo Decreto-Lei n.º 19/2017, de 14 de Fevereiro, que revogou aquele Decreto-Lei n.º 295/87, de 31 de Julho.
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Funda também a AT as correcções operadas, e que ora se sindicam, na circunstância de a factura emitida não conter a anotação do passaporte ou outro documento oficial indicativo da identidade e residência do adquirente, não obstante ter recolhido cópia do cartão de identificação e do passaporte daquele.
Efectivamente, nos termos do art.º 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 295/87, de 31 de Julho, “As transmissões dos bens abrangidas por este diploma deverão ser documentadas por faturas passadas em forma legal, que deverão conter a anotação de documento comprovativo da entidade e da residência do adquirente”, anotação essa que não foi feita.
Não obstante, e desde logo, não se pode deixar de notar que os serviços aduaneiros competentes, que integram a própria AT, não se abstiveram de validar a documentação em questão, não obstante a omissão apontada, considerando-a suficiente para os efeitos em causa.
Tal postura, de resto, está em conformidade com o que tem sido a jurisprudência do TJUE relevante na matéria.
Assim, no seu Acórdão de 28 de Fevereiro de 2018, proferido no processo C-307/16, atrás citado, referiu aquele Tribunal que:
“32 É certo que, conforme resulta do artigo 131.º da Diretiva IVA, as isenções previstas nos capítulos 2 a 9 do título IX desta diretiva, de que fazem parte os artigos 146.º e 147.º, aplicam-se nas condições que os Estados-Membros fixem a fim de assegurar a aplicação correta e simples das referidas isenções e de evitar qualquer fraude, evasão ou abuso possíveis. Por outro lado, o artigo 273.º da Diretiva IVA dispõe que os Estados-Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude.
33 A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que, no exercício das competências que lhes são atribuídas pelos referidos artigos 131.º e 273.º, os Estados-Membros devem respeitar os princípios gerais do direito que fazem parte da ordem jurídica da União, entre os quais se contam os princípios da segurança jurídica, da proporcionalidade e da proteção da confiança legítima (Acórdão de 19 de dezembro de 2013, BDV Hungary Trading, C-563/12, EU:C:2013:854, n.º 29 e jurisprudência referida).
34 Mais concretamente, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, o Tribunal de Justiça já decidiu que, em conformidade com este princípio, os Estados-Membros devem recorrer a meios que, ao mesmo tempo que permitem alcançar eficazmente o objetivo prosseguido pelo direito interno, causem o menor prejuízo possível aos objetivos e aos princípios decorrentes da legislação da União em causa (Acórdão de 19 de dezembro de 2013, BDV Hungary Trading, C-563/12, EU:C:2013:854, nº 30 e jurisprudência referida).”
Não obstante, tem sido reiteradamente afirmado pelo TJUE que o facto de os requisitos formais adicionais impostos pela legislação nacional não estarem cumpridos não pode pôr em causa o direito à isenção de IVA .
Daí que, no caso, e tendo em conta que, como se referiu, as próprias autoridades aduaneiras não relevaram a omissão formal em questão, que não decorre imperativamente do Direito comunitário, bem como a circunstância de a Requerente ter, efectivamente, recolhido cópia do cartão de identificação e do passaporte do adquirente, que apresentou à AT, julga-se que a isenção em questão não deverá ser afastada.
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Em sede arbitral a Requerida veio ainda sustentar, à luz do disposto no art.º 59.º da LGT, que a Requerente terá actuado em violação da boa-fé, e em abuso de direito, ao ter conhecimento prévio do número de identificação fiscal do adquirente, e ao não o fazer constar da segunda factura que emitiu.
Não obstante tal matéria não constar do RIT, não integrando, como tal, os fundamentos das correcções operadas, sempre se referirá que decorre da Directiva 112/2006/CE do Conselho, de 28 de Novembro que os únicos elementos documentais relevantes são o passaporte, bilhete de identidade ou qualquer outro documento reconhecido como documento de identificação válido pelo Estado–Membro, não sendo dada qualquer relevância ao número de identificação fiscal.
Em conformidade, também a legislação nacional e os documentos administrativo-tributários produzidos pela AT na matéria, não conferem qualquer relevância na matéria ao número de identificação fiscal.
Por outro lado, e ao contrário do que alega a Requerida, nada indicia que os serviços aduaneiros careçam do número de identificação fiscal para utilização da Base de Dados “Visão do Contribuinte”. Com efeito, é o próprio Manual do IVA acima transcrito, que impõe àqueles serviços a consulta de tal base de dados, ao mesmo tempo que apenas exige, na documentação a facultar a esses serviços, os dados relativos ao passaporte ou outro documento de identificação oficial.
Efectivamente, no referido Manual, diz-se expressamente, que “A confirmação da condição enunciada ocorrerá mediante a apresentação de documento de identidade oficial, o qual deve referir o local de residência, identificando igualmente o respectivo país”, sendo que será verificada a não residência em território nacional “mediante a consulta à base de dados “Visão do contribuinte”, da DGCI, acessível nas alfândegas.”
Daí que se haja de presumir que a referida base de dados tenha as ferramentas de pesquisa adequadas a, com base nos elementos referidos, determinar se a pessoa em questão está, ou não, inscrita como contribuinte em Portugal, sendo que, em todo o caso, sempre se deverá considerar um ónus da AT estruturar as suas bases de dados nos termos adequados à função a que se destinam.
Por fim, não se deverá descurar que, conforme provado, a Requerente tinha duas lojas, com o necessário pessoal ao seu normal funcionamento, nada se provando ou apurando relativamente à comunicabilidade do conhecimento da primeira operação aos responsáveis pela execução da segunda, sendo, ainda, certo, que a Requerente não estava obrigada a dispor dos serviços e mecanismos a assegurar tal comunicabilidade.
De resto, e a este respeito, a situação da Requerente não diverge, substancialmente, da da própria AT, na veste dos serviços alfandegários. Efectivamente a Requerente, tal como a AT, tinha registos que revelavam que o adquirente dos bens por aquela vendidos possuía um número de identificação fiscal português, mas, aquando dos respectivos controlos, por razões não apuradas, não efectuaram qualquer cruzamento de informação, sendo de referir que a própria AT comete aos serviços alfandegários a incumbência de controlar os requisitos da isenção relativos “aos bens, aos viajantes e às facturas”, e determina que os serviços aduaneiros apenas confirmarão “a exportação dos bens transportados na bagagem dos viajantes, mediante a aposição de carimbo aprovado para o efeito, nas facturas”, caso “as condições necessárias à isenção do IVA ao abrigo deste regime, enunciadas atrás, estejam reunidas”.
Assim, não se descortinando, nem se alegando sequer, qualquer situação de fraude ou evasão fiscal, não deverá assumir qualquer relevância, designadamente aquela que lhe é pretendida pela Requerida, a circunstância de, em 10/07/2014, a Requerente ter efectuado uma venda, apondo na factura-recibo n.º FT01G/2764, o NIF ... e o nome do cliente e cidadão dos Emirados Árabes Unidos, B... .
Face a todo o exposto, atento os erros de facto e de direito assinalados, deverão os actos objecto da presente acção arbitral ser anulados, procedendo, em consequência, o pedido arbitral.
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Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso, o erro que afecta as liquidações anuladas é imputável, em primeira linha à AT, que procedeu à liquidação de imposto sem que estivessem reunidos os pressupostos de facto e de direito legalmente impostos para tal.
Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força dos actos ora anulados e, ainda, a ser indemnizada pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde a data daquele pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular os seguintes actos tributários:
i. liquidação n.º 2018..., de IVA, reportado ao período de tributação 2014.07M, que estornou a liquidação n.º 2014 ... no valor de € 41.245,48;
ii. liquidação n.º 2018..., de Juros Compensatórios, reportado ao período de tributação 2014.07M no valor de € 6.079,47;
iii. liquidação n.º 2018..., de IVA, reportado ao período de tributação 2014.08M, que estorna a liquidação n.º 2014... no valor de € 9.932,35;
iv. liquidação n.º 2018..., de Juros moratórios, reportado ao período de tributação 2014.08M no valor de € 1.884,17;
b) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos acima fixados.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 59.141,47, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 25 de Março de 2019
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Paulo Lourenço)
O Árbitro Vogal
(Emanuel Vidal Lima)